22 de fevereiro de 2012

GARY OLDMAN COMO ESPIÃO: O ATOR QUE SABE DEMAIS


Nei Duclós

Cinema é para ser visto, não analisado. É como um documento de fonte primária: você vê apenas o que está colocado ali para poder saber o que ele registra de fato. No fundo, não existe conteúdo em nenhum lugar, apenas linguagem. Vamos pegar esse admirável filme Tinker Tailor Soldier spy (O Espião que Sabia Demais, diz o título brasileiro, que sabe de menos), dirigido por Tomas Alfredson e com roteiro de Bridget O'Connor e Peter Straughan, baseado em novela de John Le Carré, de 1974.

Gary Oldman, o espião militante com talento para a costura e a funilaria, como sugere o título original, que também é uma referência aos códigos de tratamento entre os profissionais da informação, compõe o design imutável de rosto, corpo, postura e roupas que é uma síntese de todas as suas emoções, expectativas, determinações e surpresas. Como ele faz isso?

Costumo dizer que não existe reconstituição de época e sim a disposição do cenário em função da narrativa. O filme é uma composição de elementos analógicos num mundo impensável hoje, sem a interferência radical da digitalização. Procurar o nome do agente duplo infiltrado num agência ultra secreta britânica pesquisando arquivos de papel em armários de metal, gravando conversas naquelas fitas gigantescas por meio de estenógrafas diligentes parece ser um surto de imaginação de um mundo morto. Mas ele funcionava assim e não faz muito tempo. Deixou inúmeras pistas, seguidas pelo filme.

Gary Oldman, meu atual candidato ao Oscar de melhor ator 2012, está bem cercado do que há de melhor: o veterano genial John Hurt, que recentemente detonou em Melancolia, de Lars Von Trier, quando fez o ex-marido cercado de amantes gordinhas, todas com o mesmo nome, e que neste assume a cadeira de chefe dos espiões; Colin Firth, que sempre está bem mesmo num filme errado como O Discurso do Rei, agora num papel decisivo ; Toby Jones , que fez um Truman Capote magnífico mas foi sufocado pelo outro Capote do oscarizado Phillipe Seymor Hoffmann, e que aqui faz um asqueroso burocrata da espionagem com rabo preso; e o jovem ator Benedict Cumberbatch que interpreta um calado e convincente Peter Guillam, o braço direito de Smiley, o espião aposentado que volta à cena para decifrar o mistério.

Smiley é, claro, Oldman. Como ele faz isso? Começa com as linhas do rosto, sempre as mesmas. Não são apenas rugas, são roteiros definidos de uma soma de expressões, mascaradas numa só. Com essa persona ele enfrenta seus inimigos com a frieza de um expert, a sabedoria de um paciente caçador, o tirocínio de um veterano. Ele encara, desconfia, sofre, se surpreende, ameaça, vence, ironiza, tudo com essas linhas do rosto que compôs uma vez só e chega. Trata-se de um trabalho de gênio, não da maquiagem, mas da concentração, matéria prima da interpretação. Ao redor desse rosto, como moldura, o cabelo aprumado para jamais sair do lugar. Essa imobilidade capilar representa a forma imutável do investigador sem coração.

Mas tem mais. Ele usa sempre o mesmo tipo de terno e gravata, o mesmo capote, o clássico gabardine, a pasta de couro, o andar com um tranco meio sonso. Seu andar faz parte da paisagem, é um dos elementos dessa disposição do cenário a que me referi acima. Quando tira a roupa para andar um pouco no clube, ele mantém à tona a rotina dos óculos muito largos, que amplia seu olhar de coruja nos interlocutores que aos poucos se desarmam e se apavoram. Smiley é o âncora da história que se apresenta complicada, mas que no fundo é simples, trata-se de um corte na idiotia humana cacifada pelas potências.

O filme foi acusado de confuso porque espicaça a preguiça de ver. Precisamos abrir os olhos para o cinema e não esperar entretenimento ou qualquer outra baboseira. É Arte, não brincadeira. Os atores se matam para mostrar o que sabem. O espectador precisa estar à altura desses monstros (os que encarnam os personagens, como Oldman) ou cavaleiros (os que conduzem o personagem pela mão, como Colin Firth). Mantenha a postura na cadeira. Cinema não é para passar o tempo.

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