18 de novembro de 2008

AVC NA FRANÇA


Nei Duclós (*)

Os franceses são capazes de produzir grandes blockbusters, cheios de ação, milionários. Também são craques em narrativas comerciais, como provam suas inúmeras produções refilmadas pelos americanos. Mas a França ainda é e sempre foi o centro internacional da cultura humanista. Não pode jamais querer ser americana, sob pena de sofrer um AVC, Acidente Vascular Cerebral, como acontece com o protagonista de “O escafandro e a borboleta” (2007), de Julian Schnabel.

O jornalista Jean-Dominique Bauby, editor da Elle, interpretado por Mathieu Amalric, está no auge: carro novo, rico, bem sucedido, invejado e pretensamente livre. Deixou a família e evita qualquer relacionamento maduro com as mulheres. Quando tem o derrame, descobre que se afastou das coisas essenciais, do amor, da responsabilidade, dos filhos, da cultura. Pelo olho esquerdo, que ainda está vivo e em movimento, ele vê o resultado do choque entre a vida estéril e o acervo acumulado que abandonou. No fundo, tinha deixado à deriva seu próprio país, ou o que há de melhor nele.

Uma das coisas essenciais que voltam é a memória. Marcel Proust, no capítulo Combray, do livro “No Caminho de Swan”, escreveu: “Quando mais nada subsistisse de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas - sozinhos, mais frágeis, porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis -, o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação”. Esses vestígios imateriais são representados, no filme, pelos espíritos, que vagam arrastando suas longas vestes e cercam o paciente terminal de visões, atenção e afeto.

Tudo some da vista, o dinheiro, o crédito, a casa hiper-valorizada. Vemos então que essas evidências eram a ilusão dos nossos sentidos bem nutridos, que o sentimento de devorar o mundo todos os dias não tinha base sólida. Em “O escafandro e a borboleta”, o pesado mergulho liberta a leveza do entendimento. A vida desperdiçada, sem conexão com o passado, dá lugar à criação e à emoção, presas num corpo imobilizado.

RETORNO - 1(*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 18 de novembro de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: o jornalista francês e seus fantasmas em "O Escafandro e a borboleta". 3. De vez em quando o noticiário econômico - conjunto de frases com sentido que formam conceitos sem sentido - tem uma recaída e entrega o ouro. Prestei hoje atenção no termo Subprime, que é o crédito a rodo proporcionado pelos EUA depois dos atentados de 11 de setembro de 2001. Como a brutalidade provocou o efeito dominó de uma ameaça de recessão no mercado imobiliário (quem iria pagar os tubos por coisas que poderiam cair como um castelo de cartas?) então eles inventaram esse crédito sem garantia. Ou seja, eles mesmos criaram o crédito podre, alimentando a especulação financeira e a tal bolha (que é o mercado antes do estouro). Explodiu tudo, fazendo estrago. É como costumo dizer: são eles. São sempre eles.

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