14 de novembro de 2008

MITCH MITCHELL: O SOM DO SONHADOR


Nei Duclós

O sonho não brotou, como querem os textos da memória fake da mídia, repetidos até a extrema exaustão, para manter no ar a intenção de assassiná-lo. O sonho foi sonhado (com perdão da necessária tautologia) por grandes artistas como Mitch Mitchell, baterista da Jimi Hendrix Experience (banda conhecida por todas as pessoas que permaneceram alertas numa época de sombras). Ele foi encontrado morto nesta quinta-feira, dia 13 de novembro de 2008, aos 62 anos, vítima de causas naturais, ou seja, desconhecidas. Tinha acabado de fazer uma turnê por 18 cidades americanas.

Estava vivo, mas disso nada sabíamos. Colocam na nossa frente uma procissão de nulidades que exigem ser celebradas pelo fato de abrirem as pernas enquanto rolam no palco no meio da gritaria pura e simples. Mitch Mitchell era um solista e seu instrumento não se limitava ao ritmo. Anti-baticum, era tão sofisticado quando um órgão, um violino, uma cítara.

Vemos e ouvimos o gênio de Hendrix acompanhando com a guitarra os solos do seu baterista. Nesses momentos, era Mitchell o protagonista de sua história musical. Quem foi devassado pelo seu som quando apareceu, de súbito, em Woodstock, viu que ele se diferenciava dos extremos. Numa ponta, a efusão do rock, tanto o tradicional das bandas quentes da época quanto da emergente latina, como acontecia nas performances dos percussionistas que acompanhavam Santana. Na outra, o desmaio infinito dos bateristas de jazz, solistas de primeira hora, mas diferentes da invenção de Mitch, que era do rock, portanto, da guerra.

O jazz é música de desarmados, de espirais que mergulham em continentes submersos. O rock é convocação e garra. Um concerto de hard rock é apenas a caricatura extrema de uma natureza que não foge a luta. Mas há um disparate: Mitch Mitchel, soldado nas linhagens incendiárias, era a reflexão performática, como se um garoto que estreasse no front fosse encarregado dos toques de clarim, apesar de dispor apenas de um tambor.

Avançar, recuar, montar: como emitir essas palavras de ordem contando apenas com a escassez dos couros estendidos em paisagens noturnas? Sua solução foi fazer como no jazz, mas com outra desenvoltura, com isso que chamam agora de pegada, e que era uma espécie de carga de brigada ligeira, que instrumentava as platéias abraçadas à sua determinação.

Um de seus toques era o hiato, a pausa, não o breque, que é apenas caudatário do ritmo. A pausa é como desistir completamente do que está sendo tocado, é o turning point, o ponto de mutação, em que uma frase respira para acordar rodeada de espíritos habitados no minuto seguinte, quando todos estão fissurados diante do artista e sua capacidade de mudar o mundo conhecido.

Escrevo de memória, pois pouco ouvi Mitch Mitchell. Mas basta alguns segundos para recuperar o Tempo estocado nos armazéns do limbo. Ele tocou para seu tempo, mas ficará mesmo atuante no futuro. Quando toda essa tralha que a ditadura financeira inventou para tontear as multidões escravas beijar a lona, haverá novamente a chance de escutar Mitch Mitchell, exatamente naquele instante em que ele some do ouvido para sempre.

Sabemos que retornará em frações microscópicas de anos-luz. É o que vai acontecer quando retomar seu som. O sonhador então reinventará a animação que fez nossa cabeça e que está guardada por enquanto, como um cão ainda vigoroso mantendo a vigília na noite gelada e interminável.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Mitch Mitchell, the dreamer drummer. 2. É tão importante o que Miguel Lobato Duclós escreveu nos comentários desse post, que vou reproduzir aqui, na seção Retorno: "O Jimi era a estrela mas não tinha estrelismo. Ele mesmo havia sofrido com o estrelismo do Little Richard, que o expulsou de sua banda, no começo de carreira, porque ele era grande demais. Jimi dava vez e espaço pro Mitch exercer sua virtuose na bateria, com seus solos determinados e inovadores, para em seguida retormar o controle de maestro com sua guitarra catártica, redentora da volição e da liberdade. E mantinha-se o sentido de banda, já que quando caiu o Experience, Jimmy manteve Mitch na lendária performance de Woodstock, com a Gipsy of Raibows. Uma mensagem perene que já está no futuro, e prova viva de que o mundo não é, não foi nem deve ser pouco." (Miguel Lobato Duclós).

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