30 de junho de 2009

COMUNICAÇÃO


Nei Duclós (*)

Jornalismo era considerado um gênero literário. O que fazia parte do entorno do jornalismo – notícias, reclames, editais, avisos etc. – acabou em primeiro plano, deixando de lado a cobertura policial com suspense, o drama das grandes tragédias, as aventuras dos insubmissos, as memórias dos combatentes e a polêmica dos esgrimistas do verbo. O que era um nicho da literatura virou ciência humana e até mudou de nome: foi batizado de “comunicação”.

No final dos anos 60, a comunicação tomou conta das mentes. O carisma da nova onda era tão forte que não se circunscreveu aos humildes estudantes que optaram pela profissão porque “gostavam de escrever”. Atingiu faculdades de vanguarda como a arquitetura, onde se despejavam teorias evolucionistas da emergente aldeia global. Chacrinha tirou um sarro da moda, com o seu “quem não se comunica se trumbica”, imediatamente adotado pelos novos e tumultuados scholars. Há uma cena famosa em que Woody Allen, exausto da conversa do sujeito que estava na sua frente na fila do cinema, tirou, detrás de um painel, o próprio McLuhan, o papa intelectual da época, que contrariou tudo o que estava sendo dito de maneira definitiva.

Passada essa fase deslumbrada, a comunicação alcançou status de cânone, carregando embaixo do braço os estudos da linguagem a partir de Saussurre e passando pelo ralador do estruturalismo. Assim instrumentados, os conceitos da comunicação avançaram sobre o jornalismo, misturando-se aos vetores que se desenvolveram em áreas correlatas, como a publicidade. Era tudo uma questão de gosto, mas o sabor dos princípios recém descobertos acabou virando lei.

Para se consolidar, o paradigma vitorioso precisou inventar a história de que, antigamente, as redações eram um covil de românticos. Foi esquecido de propósito que, antes da febre, havia rigor pautado pelo talento e o aprendizado, que jamais dispensou a leitura dos grandes autores, era exercido na prática, no embate diário do caos da realidade, insumo para o texto inesquecível. Contar uma história ficou fazendo parte do passado, apesar de escritores como Hemingway e Garcia Marquez terem se formado nesse jornalismo que se foi, enterrado pelo brilho da mediocridade tornada enfim hegemônica.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 30 de junho de 2009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: o jovem Garcia Marquez, o escritor que saiu daquelas redações clássicas. Quais escritores de primeiro time foram gerados pela "comunicação"?

29 de junho de 2009

VITÓRIA DE NARVÁEZ E COMPLICAÇÃO EM HONDURAS


Nei Duclós

Não foi Francisco Narváez, definido como magnata, liberal e peronista dissidente, quem venceu as eleições legislativas na Argentina: foi o casal Kirchner que perdeu. Criei a manchete acima porque deverá ser a única neste dia com esse enfoque. A mídia estava toda concentrada nos Kirchner e deixaram de lado algo pouco importante, como o candidato da oposição. Esse assunto certamente será aprofundado nos próximos dias, mas por que não agora, hoje? Quem é realmente Narváez? Não me venham com links, devem ter inúmeros. Falo da mídia das primeiras ocorrências e dos grandes veículos, Clarin, de Buenos Aires, inclusive.

Deve ser ordem expressa dos manuais de redação, que ensina, de antemão, o que é e não é notícia (aquela asneira de morder o cachorro). Honduras, por exemplo, qual é a notícia? Golpe militar! dizem todos. Obedecem à lógica internacional das idéias prontas, a que sustenta o sistema econômico. Parece que foi contra-golpe. O presidente deposto estava a fim de se perpetuar no cargo e foi mexer logo com quem, com um general. Voltou atrás e se deu mal. Acabou nos braços do Chavez, que está louco por uma guerrinha, até que alguém lhe acerte as fuças de porquinho e ele então se cale para sempre.

Lembrei do marechal Lott que colocou tropa na rua em 1955 para garantir a posse de Juscelino Kubistchek, contra o continuísmo dos golpistas. Achei acertada a indicação do presidente do Congresso para ocupar interinamente a presidência e a convocação de eleições gerais em novembro. Posso estar enganado, pois as informações são escassas. Os jornalistas estão ocupados em repetir exaustivamente o Mesmo, para não haver o que eles consideram Erro. E é aí que erram. Gripe suína, por exemplo. Primeiro, houve um clima de blockbuster de tragédia global, com o planeta sendo invadido pelos Sete Macacos no Independence Day. Depois, alguém poderoso pediu para baixar a bola. Obedeceram.

Aí colocaram a doença no saco, quando então foi decretada a pandemia. O assunto voltou às manchetes, mas não com o mesmo furor. Ora, só mata quem pega, dizem, pouca coisa. Ora, 600 casos confirmados no Brasil, quem se importa? Parece a Lei Seca. Por uns dois meses, foi aquele furor de blitz, gente tomando água de coco na balada e bafômetros que tais. Logo em seguida, aquela preguiça. Um ano depois, a merda continua a mesma, porque a mídia faz campanhas obsessivas sobre pautas repetitivas e depois larga de mão. No seu excelente blog na veja.com, Augusto Nunes tem uma seção chamada O país quer saber, onde ele resgata um monte de barbaridades que foram deixadas de lado pela imprensa apressada.

Prevejo uma fase de endeusamento de Dunga, agora que ele provou a que veio. Dunga errou muito, mas acertou também, tanto é que sua campanha é vitoriosa. O problema não é gostar ou não, apoiar ou não o Dunga ou o Ricardo Teixeira, a CBF contra Kfouri e essas coisas. O problema é achar que alguns empates e derrotas servem para destruir, achincalhar um profissional. Assim como suas vitórias não devem servir para colocá-lo no panteão dos deuses. Acho Dunga, como Felipão, dialético, trabalha de maneira interativa, na tentativa e erro ou acerto. Acho-o sério, mas não um gênio.

E agora que as manifestações do Irã caíram em desuso nas manchetes, por força da repressão e do terror, os jornais vão deixar de lado a revolta popular? Ou vai virar um novo mensalão, aquele acontecimento provado pela Procuradoria Geral da República e que ficou por isso mesmo? Achei graça das denúncias de fraudes que a oposição fez na Argentina. Eventos mínimos, falta de cédulas aqui e ali. Nem chega perto das nossas urnas eletrônicas, a caixa preta da ditadura fantasiada de democracia.

As perguntas são: quem é, de fato, Narváez e o que significa sua vitória, o que realmente ele vai fazer? O que Chavez tem a ver com Honduras? Quantos estão sendo assasinados no Irã? O que o Brasil está fazendo de fato para evitar a pandemia da gripe suína? Cumpram as pautas óbvias e não insistam no óbvio. Depois não se queixem que os blogs dêem uma surra nos jornalões. É preciso deixar de ser babaca. Chega a doer a maneira torpe com que a Globo está, finalmente, tratando a internet. Eles se deram conta que estão perdendo audiência, ou seja, grana e aí partiram para falar da internet, de levar em consideração o que rola na rede. Mas fazem isso instaurados na pompa de sempre e com a mania de manipular tudo.

UP-GRADE - OS CRIMES DE CHAVEZ EM HONDURAS

A equipe do Diário da Fonte (este jornal tem equipe!) descobriu a ligação de Chavez com Honduras. Chavez subsidiava a política de suborno popular promovida pelo presidente deposto, distribuindo tratores, por exemplo; cobrava abaixo da tabela para o petróleo em troca de fidelidade; e, o mais grave, imprimiu as cédulas do plebiscito proibido pelo Judiciário e o Congresso de Honduras, que estavam retidas numa base aérea. O presidente deposto tentou retirar à força as cédulas. Queria legalizar a reeleição, proibida pela Constituição, por meio de um referendo que poderia lhe ser favorável por meio da manipulação e dos desvios da politica de suborno popular acima referida (é proibido comprar voto!). Vejam que sujeito perigoso esse Chavez, que chegou a pedir a intervenção de seu tradicional aliado, os Esdados Unidos! Na hora decisiva é que se conhecem os "estadistas" da pseudo ideologia. Uma coisa é certa: reeleição ilegal é tropa na rua.

RETORNO - Imagem desta edição: Marechal Lott atrás de João Goulart. Lott garantiu a posse de JK em 1955 e foi candidato derrotado por Jânio em 1960. Nem sempre um movimento militar é golpe, nem sempre os civis são inocentes, nem sempre um presidente eleito pode fazer o que bem entender.

28 de junho de 2009

GIGANTE MASTIGA O ÁLIBI DA FALSA ZEBRA


Nei Duclós

O primeiro tempo da decisão da Copa das Confederações, em Joannesburgo, foi o melhor dos mundos para quem precisava mostrar coerência de análise contra o capitão Dunga. Perdendo de dois a zero para a Legião Estrangeira dos soccers, o técnico da seleção agora campeã poderia novamente ser execrado, como aconteceu antes da atual campanha vitoriosa. Até a final, não davam (como não darão jamais) o braço a torcer. Dunga era uma “surpresa”, jamais um técnico competente que conseguiu arrumar o time. Suas vitórias eram “extraordinárias”, jamais obedeciam à lógica de sua estratégia bem sucedida. Bastava uma derrota na final, e pronto, estava tudo certo. Mas a virada de 3 a 2 serviu como lição.

É preciso dizer que a chamada zebra, os Estados Unidos, era falsa, pois tinha demonstrado sua fraqueza ao perder para nós por 3 a zero e já sabíamos com antecedência que a seleção americana obedece à realidade do “grande irmão “ do norte, um país que tenta desmoralizar o futebol batizando-o com um nome viado e colocando o esporte exclusivamente nos pés das suas mulheres (nossa seleção feminina ainda vai dar um toco nelas). Os caras que se dedicam ao jogo são quase todos estrangeiros ou quase, adventícios, já que a legitimidade e a macheza, nos Estados Unidos, são para aqueles jogos em que eles seguram o pau na mão, ou o outro em que colocam calça liga para destacar a bundinha dura e ficam se agarrando e se cagando de pau o tempo todo, enquanto a pobre da bola oval foge desesperada.

Quer dizer, os EUA não eram parada para o gigante pentacampeão do mundo, que tem um craque por metro quadrado, fruto da intensidade da sua cultura esportiva voltada para o futebol, o jogo aprendido na várzea, com as sobras dos embates ingleses. Ronaldinho Gaúcho nem foi convocado. Tivemos uma seleção de estreantes, praticamente, pelo menos para mim, que não conheço ninguém. Daniel Alves, Ramires, Felipe Melo, Luisão? Conhecia Lúcio, o líder do glorioso escrete canarinho nesta campanha, mais Robinho, Kaká, Luis Fabiano, entre outros. Ou seja, Dunga montou seu time como quis e se deu bem.

Perder para os gringos seria o álibi perfeito para a crítica instrumentalizada contra a seleção de Dunga. Mas bastou colocar a cabeça no lugar durante o intervalo para fazermos o primeiro gol aos 45 segundos do segundo tempo. Depois que o bandeirinha roubou um gol feito da bola que entrou toda e foi retirada do fundo pelo goleiro espertalhão, fizemos o segundo, até que Lúcio, de cabeça, selou o destino da partida. O choro de Lúcio é o nosso choro. Vencemos, caralho, contra todas as falsas evidências.

E vencemos porque temos tradição e um acervo para mil selecionados de futebol. Só o banco poderia dar uma lavada nos caras, que fizeram seus dois gols de escapada, como dizíamos em Uruguaiana, a covardia do contra-ataque fulminante. Quero ver cavocar o ninho da coruja, driblar uma legião de centuriões, quebrar a varinha de condão das profecias negativas e penetrar no gol com bola e tudo. Quero ver fazer como Kaká, que carregou a bola e o adversário para o fundo e cruzou, para que Luis Fabiano completasse.

É uma questão de superioridade manifesta. Não existe essa de que todos os times hoje são iguais. O que é igual são as dificuldades. Todos precisam enfrentar o mesmo tipo de problema. Mas cada um joga o que sabe com o que tem. O Brasil - é preciso dizer? - sabe demais e tem um acervo infinito.

Somos campeões da Copa das Confederações de 2009, líderes das eliminatórias, tudo obra de Dunga, apoiado nos tesouros nacionais (o próprio povo organizado em inúmeros times e bandeiras), o técnico chamado aos berros de burro e tratado aos pontapés pela crítica dita especializada. São vitórias também do Diário da Fonte que pode, como fazem os comentaristas esportivos, alardear que essa bola – o acerto na escolha de Dunga - nós tínhamos cantado antes. E se por acaso a seleção tropeçar, como já aconteceu muitas vezes, não caiam matando em cima do técnico nem expressem com tanta veemência esse espírito de vira-latas. Digam: acontece. Somos parte do gigante, a pátria amada.

RETORNO - Imagem desta edição: Lúcio, capitão do time e autor do gol do título.

27 de junho de 2009

ÚLTIMO DESEJO


Nei Duclós

O poema como última trincheira
como um aceno de luz, uma bandeira
quebrada aos pés

O poema no último
momento
antes da gravata e o juramento

O poema no último trem
na plataforma escura
(dentro, teu coração
pede alguma coisa
e tens apenas um papel dobrado
e uma caneta)

O poema um dia antes
do teu desmaiar
entre a tormenta

Sentado, escreves,
teu último desejo
enquanto o coração é jogado
fora da janela
como um copo de plástico

RETORNO - 1. Poema do livro No Mar, Veremos (Editora Globo, 2001). 2. Imagem desta edição: cena do filme Brief Encounter, de David Lean.

EXTRA: CRÍTICA LITERÁRIA SURTADA

Manuel Bandeira, sabe o que é? Segundo Naomi Jaffe, em texto na Ilustrada deste sábado na Folha, trata-se de “nosso maior poeta menor”. A explicação é ainda melhor do que a definição: “ Bandeira, o autor homenageado da 7º Flip, é menor - menor porque seu corte, sua entrada na vida, é feito por portinholas, e porque sua palavra vem do húmus, da terra da língua.”

Acho fantástico o Manuel Bandeira ser considerado "menor", entrando na vida por portinholas e, tão elegante e civilizado, tão rompedor de paradigmas poéticos, ter sua palavra vinda do húmus, da terra da língua. Da lama, se entendi bem. Iria sujar o terno de linho branco! O poeta era um mestre do deboche, um gênio lírico, um monstro no domínio da linguagem falada ou culta, entre muitas outras coisas. Jamais poderá menor, a não ser que seja visto pela idiotia bem posta.

Acho que os críticos enfim surtaram de vez. Em outro artigo da mesma edição, Antonio Cícero pontua um monte de insights definitivos com muletas variadas que seriam erradicadas no mais simplório copy, como de fato, na verdade, no fundo, com isso, uma vez que. Sem falar em construções verbais horrendas, como a que abre o texto: “É comum o pressuposto de que.”

Um troço tosco desses precisa de muita falsa erudição para se afirmar, como o anacronismo, pois o articulista levanta a hipótese de que a autonomia da arte seria vista como um fenômeno moderno. Na-na-não, avisa, os antigos também tinham essa percepção. Ora, cate-se.

O defecho do artigo é soberbo: “Se, como diz Goethe, os gregos sonharam mais esplendidamente o sonho da vida é porque - agora sou eu que o digo - sonharam sonhos de poetas e não de profetas, pastores ou sacerdotes.” Agora é ele que o diz! É isso que dá incensar alguém que se instaura como o inteletual da poesia, se transforma em pauta obrigatória de caderninhos culturais, e acaba por ocupar vasto espaço para pontificar sobre a coisa como um todo. Vira uma espécie de Goethe de ocasião.

Como ninguém fala nada, eles vão escrevendo essas coisas. É como a roupa invisível do rei. Qualquer criança sabe que os alfaiates espertalhões, que nada sabem, enganam todo mundo com firulas.

26 de junho de 2009

IRÃ E MICHAEL JACKSON FORÇAM MUDANÇA DE PARADIGMA


Nei Duclós

O furo de um site de fofocas, TMZ, sobre a morte de Michael Jackson espalhou-se pelo twitter e colocou em polvorosa o noticiário tradicional da TV, que enfim teve que engolir a nova realidade. A Globo ficou completamente atazanada com as versões em conflito, ou melhor, o furo na rede e a falta da confirmação oficial. Enquanto o Los Angeles Times mancheteava com o desfecho, a CNN ainda tinha dúvidas e isso causou o desconforto global, visível nos apresentadores e repórteres, nas chamadas antes do Jornal Nacional e até mesmo no seu início.

Quando enfim o hospital se manifestou, William Bonner pôde fazer o anúncio. Acontece que todo mundo é mídia e fatalmente alguém ou várias pessoas no miolo do drama dispunham da ferramenta twitter para jogar o fato na rede. “Expulsem os correspondentes” diz o aitaolá, numa charge, ao que outro replica, apontando a multidão com celulares: “Mas todos são correspondentes”. A rebelião do Irã é um fenômeno de massa que repercute e é alimentado pelo twitter e o you tube, ferramentas on line de interação instantânea de massa.

No Jornal da Globo, com William Waack, a Globo se refez e conseguiu colocar no ar uma boa edição especial sobre o ídolo, mesmo com alguns atrapalhos, previsíveis, no percurso. Pela primeira vez vi a Globo abordar a internet sem a aura da vilania habitual, pois Waack citou o Google! Escutei pela primeira vez no noticiário da TV a palavra “ocorrrências” da ferramenta de busca. Sinal que a indiferença, a empáfia, a soberba, a auto-suficiência da mídia tradicional começam a fazer água diante da avalanche da internet. No Brasil, somos 62 milhões de internautas. Não tem como ignorar mais. Não tem como chamar de “novas mídias” uma realidade que existe há mais de dez anos. Uma década depois, com os jornais indo para as picas, a TV perdendo audiência, soa babaca demais as noticinhas engravatadas abordando a rede como se fosse um brinquedo, uma ameaça ou algo sem importância.

A mudança de paradigma já ocorreu, mas ela estava sendo jogada para baixo do tapete. Nem mesmo as ameaças econômicas (jornalões fechando) tiraram a mídia tradicional do seu pedestal. Foi a revolta do Irã e a morte de Michael Jackson, dois eventos inesperados, que forçaram o reconhecimento de que vivemos agora numa nova realidade e todos precisam se adaptar. Não apenas os que se refugiaram na situação alienada das televisões e veículos impressos, mas também os blogueiros, saiteiros, orkuteiros e facebookeiros. O microblog chegou arrasando e criou uma nova dinâmica na geração e difusão de noticias, enfeixando vários eventos, desde a manifestação de rua até os funerais de um ídolo.

Isso não significa que está tudo obsoleto. Não canso de repetir: tudo existe simultaneamente e todas as soluções tem chances de sobreviver. Rádio, TV, revista jornal, nada disso vai morrer. O que morre é um jeito ultrapassado de fazer radio, TV, revista, jornal.

25 de junho de 2009

GOL DE FALTA NA AFRICA GELADA


Nei Duclós

O jogo contra a África do Sul desta quinta-feira em Joannesburgo foi um embate que sufocou a seleção brasileira. Erramos todos os passes e eles acertaram todos. Nossos craques eram estrelas isoladas, morando em asteróides que não se comunicavam. A bola ficava enrodilhada num redemoinho e acabava indo para fora.

Joel Santana armou o time possível, fechando o ferrolho sobre a campanha vitoriosa de Dunga, que prefere não mudar na maior parte do tempo e só faz uma alteração quando não tem mais jeito. Sorte ou estratégia? No momento em que colocou Daniel Alves no lugar de André Santos, não entendi. A verdade é que Daniel Alves estava predestinado e decidiu se concentrar ao máximo para que a bola seguisse o impulso da energia cinética produzida pela sua mente.

E na véspera do encerramento do jogo, quando já tremíamos diante da possibilidade de uma prorrogação, e pior, do sofrimento de uma decisão por pênaltis, ele avançou sobre a criança afetivamente colocada no ponto exato. Seu pé obedeceu a vontade expressa por sua concentração e nossa torcida. E voou como um pombo correio com endereço certo, numa trajetória em curva, que quebrou o gelo de um jogo irritante.

Não dá para suportar tanta expectativa diante de uma peleja e verificar que ela não desencanta, fica amarrada, como aconteceu na quarta-feira no Cruzeiro e Grêmio pela Libertadores, um confronto amarrado, bruto e que acabou numa bestagem, em plena delegacia de polícia. É possível que o argentino Maxi Alves tenha mesmo chamado o adversário de macaco. Os argentinos dizem isso desde a guerra do Paraguai, quando nossos soldados negros, formados em batalhões próprios, fizeram uma campanha mortal, atraindo ódio e inveja entre os hispânicos.

Mas com o xingamento ou não, foi um jogo travado, como este Brasil e África do Sul. Muito diferente do magnífico Internacional versus Corinthians pela Copa do Brasil. Não porque o Timão tenha vencido por dois a zero. Mas porque foi um jogo brilhante, com lances inesquecíveis. Destaque para Ronaldo, que aplicou uma dupla tesoura. Avançou sobre a bola, que sobrava para lá da linha adversária. Deu então um corte nela, driblando o colorado que vinha logo atrás. Depois, com a canhota, deu outra tesoura, colocando a bola numa diagonal que escapou do alcance do goleiro.

O gol de Daniel Alves nesta quinta também foi fantástico. A bola primeiro se projetou para fora do arco feito pelos braços do goleiro, escorregou do seu golpe de vista, foi-se para a linha de fundo. Mas o pé do batedor tinha cravado uma mudança de rumo na hora do chute. Ela então obedeceu e entrou um pouco abaixo do ângulo, lá onde nosso coração aos pedaços esperava por um milagre.

E foi assim que vencemos os anfitriões de maneira apertada, jogando sofrivelmente, mas carregados em triunfo pelo que somos, o Brasil que veio de longe. Quando tudo nos falta, gols, comida, estadistas, dinheiro, o carisma do país gigante vem em nosso socorro. E imprime fogo na geladeira insuportável tocada por milhões de cornetas ilegais. A bola beijou os pés da rede e o estádio silenciou como se o mar, de repente, tivesse convencido a tempestade a dar uma trégua.

Foi assim que nos classificamos para a final, onde nos espera a tradição de uma zebra: os Estados Unidos, aquela legião estrangeira que joga soccer e que na copa de 1950 venceu a Inglaterra! Mas zebra não deve meter medo em quem enfrentou os leões africanos dentro da casa deles e provou que, para vencer jogo decisivo, é preciso mais do que vontade. É preciso pertencer a uma linhagem em que um gaúcho campeão do mundo coloca nos minutos finais um baiano de Juazeiro. E ele bate como se o seu pé fosse o arcanjo anunciador, capaz de calar o gentio, os que ainda não nasceram para essa glória efêmera, o futebol. Mesmo num dia ingrato, e na faísca de um instante decisivo, o futebol brasileiro decola para a posteridade.

RETORNO - 1.Imagem desta edição: Daniel Alves.

24 de junho de 2009

PORQUE MORREM OS JORNAIS


Nei Duclós

Há duas espécies, ou grupos, de motivos. Primeiro, causas externas. Golpe de 1964, por exemplo, que fechou o Correio da Manhã, do Rio, e a Última Hora, de Porto Alegre. O Correio sumiu de vez. Ferida de morte, a cadeia de jornais Última Hora de Samuel Wainer mudou de mãos e foi morrendo aos poucos, num longo processo de desmoralização e desgaste. Outro motivo externo: mudança de paradigma. Quando chegou o off-set, só quem tinha cacife para sair da impressão a chumbo sobreviveu. Hoje, com a tecnologia digital, a saída tem sido migrar para o mundo virtual e fechar as portas da versão tradicional.

Mas existem as causas internas: má gestão, que vem de mãos dadas com a empáfia, a soberba, a auto-suficiência. É o que vimos na Gazeta Mercantil, um patrimônio de quase um século que se estiolou nas mãos de um herdeiro, que preferia viajar de jatinho para suas fazendas, inchar o quadro de funcionários, dar saltos no escuro em projetos furados. Não quis acompanhar o jornal nas suas dificuldades diárias e preservá-lo, lutar pela sua sobrevivência. Muitos herdeiros não têm qualquer ligação afetiva com a herança e acabam numa espécie de vingança contra os pais, destruindo o que ganharam de mão beijada.

Jornal é uma criatura. Nasce, vive e pode morrer. Não é a galinha dos ovos de ouro. Vejam o que aconteceu com a grande cadeia dos Diários Associados. Era poderosa e parecia eterna. Bastou morrer o fundador, Assis Chateaubriand, para que os herdeiros, um grupo de mais de 20 funcionários que viraram donos, jogassem tudo por água abaixo. Cada novo proprietário era um Assis em miniatura. Ou melhor, a miniatura da imagem que faziam de Chateau, que era considerado porra louco metido a besta, mas era um empreendedor ousado e competente, tanto é que conseguiu montar um império. Imitar os defeitos e não as qualidades do fundador é a receita mortal para o fracasso.

A certeza de que tudo sai no suor e existirá para sempre normalmente acaba comprometendo a credibilidade do jornal. Pois, como sabemos, o mercado não é garantia de nada, e se não for tratado à altura ele mata. A solução é abraçar-se com os poderes e isso foi decisivo em grande empresas como a da Manchete, que morreu agarrada à ditadura de 64. Ninguém vai ler veículos comprometidos, ainda mais com a direita. A soberba também pode ser fatal para jornais menores, mas sólidos, como aconteceu aqui em Florianópolis com velho O Estado, fundado em 1915 e que morreu há dois anos.

A comunidade jornalística está chocada com o abandono do acervo de O Estado, que nos anos 70 (quando trabalhei lá) e 80 era o mais importante de Santa Catarina. O arquivo fotográfico no chão, esparramado, as máquinas enferrujando, abandonadas, papéis por todo o lado, móveis detonados empilhados, tudo isso faz parte das ruínas da sede situada na estrada SC-401, a que liga o norte da ilha, onde moro, ao centro da cidade. Mas a morte era sabida com antecedência. Foi um problema de má-gestão.

A empresa simplesmente ignorou os avisos e, mesmo tentando mudar, não mudou de fato, deixando-se engolir por uma empresa maior, a RBS, gaúcha, que montou o Diário Catarinense em 1986 e levou os melhores colaboradores. O Estado não teve condições de peitar essa concorrência, mas fechou-se em copas, insistindo em velhos paradigmas, formatados em realidades ultrapassadas. Finou-se aos poucos, num processo lento e doloroso. Hoje há lamentação geral, mas os jornalistas sabem que era inútil tentar salvar O Estado, já que a direção era impermeável, não estava determinada de fato de abrir mão de suas idiossincrasias.

Não tenho detalhes sobre o que realmente houve, mas no plano geral foi isso. Era preciso deixar de lado a auto-suficiência, reconhecer que estava em desvantagem, que os anos dourados tinham passado. Estabelecer parcerias, dar condições de trabalho para as equipes, adotar a transparência e a independência. Soube de excelentes projetos que foram realizados por jornalistas determinados a salvar o jornal, mas as coisas no fim caíam no buraco negro da indiferença proporcionada pela má gestão.

É preciso que se diga. Um jornal custa a morrer, mas quando começa a morrer, não pára mais.

RETORNO - 1. A grave denúncia do abandono do acervo de O Estado está neste endereço. 2. Imagem desta edição: Samuel Wainer e sua razão de viver, a Última Hora, assassinada pelo golpe de 1964. 3. Juca Kfouri, autoridade no esporte, confessa que "Dunga é uma surpresa". Não para o Diário da Fonte. Quando todo mundo caiu matando em cima do Dunga, na época em que ele estava montando o time e, portanto, precisava mais prudência do que outra coisa, quando espetaram sua imagem com tudo o que é tipo de alfinete, aqui nós demos o alerta, em mais de uma edição. Agora que ele não pára de vencer, ficam pasmos. Isso também mata jornal, essa mania de procurar nos fatos a confirmação dos próprios preconceitos e pressa. E não me venham de analistas isentos. São comprometidos, pelo menos com as próprias percepções graníticas, impermeáveis. Capitão Dunga!O cara que nos deu o tetracampeonato, junto com outros heróis. Que não tremeu na hora decisiva. Já que não gostam dele, pelo menos o respeitem.

UM CLÁSSICO NO CÍRCULO DE LEITURA


“De ambos os lado elevam-se picos de granito, altos e esguios como imensos minaretes turcos, perfurando as nuvens. No espaço aberto entre um e outro avistava-se a verdejante planície lá embaixo, ornada de vilas, estendo-se até a beira d´água. Ali começava a linda baía, salpicada de verdejantes ilhas numa das pontas e de navios de todas as nações, na outra; mais além ficava a cidade, estendo-se ao longo das praias e entremeada de morros cobertos de mata, com suas encostas pontilhadas de chácaras e seus cumes encimados por igrejas e conventos. Mais além ainda erguiam-se o Pão de Açúcar, o Corcovado e outros morros de singular formato que dão à entrada da baía um caráter tão incomum. E, por fim, ao longe, as águas azuis do Atlântico, estendendo-se pelo espaço infinito até se perderem ao longe no azul do céu. Mas é impossível para mim dar a você uma idéia de quão soberbo é esse panorama, que excede de muito o que já vi até agora ou que ainda espero ver. “

Noticias do Brasil (1828-1829), de R. Walsh, uma edição USP-Itatiaia).

Meu amigo e poeta Alcides Buss, coordenador do Círculo de Leitura de Forianópolis: o segundo volume do clássico de R. Walsh é minha leitura atual. Estou completamente tomado pelo texto, traduzido de maneira magistral por Regina Regis Junqueira. O Brasil está inteiro ali. A viagem que ele faz do Rio de Janeiro até os grotões auríferos de Minas Gerais, passando por seis regiões distintas, por campos e serras, gerou um relato fundamental sobre geografia, ambiente, costumes, populações, produção, comércio. Por todo o livro perpassa o humour inglês, já que o bom capelão de Lord Strangford precisava dizer a verdade por uma questão de princípios, mas evitava ao máximo ferir as suscetibilidades dos anfitriões brasileiros.

Estalagens tomadas por morcegos, hospedeiras embriagadas, chuvas torrenciais a maior parte do caminho, dieta variada e nem sempre satisfatória convivem com sustos, medos, isolamentos e uma sensação permanente de deslumbramento. Sabe o que me deu vontade, poeta? De fazer como Monteiro Lobato, de contar a viagem de Walsh do meu jeito e de maneira sucinta. Mas seria perda de tempo. O bom é encarar, em qualquer idade, os dois volumes dessa obra tão importante, que mostra como existia, antes de os caminhões levarem no lombo toda a produção, as caravanas de tropeiros com seus burros de carga, levando café, mandioca, açúcar e tudo o mais pelas escarpas e lodaçais do país.

Não mudamos muito. No lugar dos trens, resolvemos manter as estradas imperiais e colocar caminhão no lugar das mulas. E em vez de usar direito a grande extensão de terra arável, resolvemos continuar disseminando os desertos, uma situação que já existia naquela época, final da década de 1820. Mas de modo nenhum o livro traz desesperança. O país emergente, que se formava, tinha inúmeras qualidades, apontadas de maneira minuciosa pelo viajante desassombrado. No fundo, ele escreveu uma vasta defesa do Brasil, sobre nossa hospitalidade, vontade de aprender, cordialidade, respeito aos estrangeiros, honestidade. E nos dá lições de como devemos enxergar o que temos de bom e também nossas mazelas, para serem corrigidas.

É isso, amigo e poeta Alcides. Fica esse registro e o aviso aos internautas de que vale a pena levar lá o livro que cada um está lendo e debater com a platéia e o escritor em destaque. Já fui alvo deste privilégio. Desta vez, o contista, cronista e tradutor, Flávio José Cardozo é o convidado da 44ª edição do Círculo de Leitura de Florianópolis, que será realizada às 17h de quinta-feira, dia 25, no mini-auditório Harry Laus da Biblioteca Universitária da UFSC.

Ele falará de suas primeiras leituras, da passagem pelo seminário de Turvo, onde foi apresentado aos grandes clássicos da literatura, das lembranças da paisagem inóspita de Guatá, onde viveu a infância, de seus escritos e dos livros e autores prediletos, que revisita freqüentemente, na tentativa da “redescobrir” suas peculiaridades e o prazer que elas proporcionam. Essas e outras informações estão neste endereço.

23 de junho de 2009

POSE


Nei Duclós (*)

Pose é posse: a imagem pública pertence a quem briga para formatá-la. Quando esse perfil arduamente conquistado escapa e rola na sarjeta, a biografia corre perigo. É preciso então intensificar as poses para recuperar o espaço perdido e definir o que chamam de “virada”. Vemos isso a toda hora. Depois de fazer uma besteira, a celebridade diz em rede nacional que vai colocar a casa em ordem, ou seja, recuperar a identidade ferida.

A pose faz parte da luta pela sobrevivência, dessa verdadeira vida social, que é comparecer todos os dias, por décadas, em lugares lotados de pessoas desconhecidas. O resto – almoço de domingo, entardecer no bar, festas, bailes, visitas – são ralos minutos de convivência, jamais comparados à extensa rede de relações estabelecidas nos empregos, projetos, empresas, negócios em geral. Entre as duas realidades, que às vezes se confundem (quando, por exemplo, sua sala é transformada numa redação) proliferam os gestos estudados, essa dramaturgia necessária, que formata uma persona, a cara com que você se apresenta no teatro humano.

As celebridades intensificam a arte de parecer porque dependem disso. Usar óculos escuros é o truque mais recorrente. Significa que o famoso não enxerga os outros, já que não é platéia, está ali para ser visto e não ver. Quem usa óculos escuros mostra que é cem por cento observado. O olhar para o nada é acompanhado pelo sorriso vazio de qualquer significado, a não ser o de expor a dentadura ou sugerir intimidade com os fãs. Existe mais impacto quando a pessoa famosa fecha a cara, como a dizer que está farta de tanto assédio, mas não abre mão da sessão de fotos.

Quem ocupa um lugar menos privilegiado no pódio faz o que pode. A estrela simpática evita frases completas e pontua sua fala com alguns risos aparentemente espontâneos, para aumentar sua dose de bem-querer. Sincopar o texto emitido é um velho hábito que ronda a gagueira, sem se entregar ao desconforto de uma deficiência.

Mas tudo depende. Não gagueje numa reunião ministerial. Nem pontifique em entrevista de bastidores. É preciso manter a persona afiada para cada ocasião. Não vá fazer como aquele jornalista excêntrico que recebia o “bom dia” dos colegas com um sonoro e desesperador “tu achas, é?”.

RETORNO - 1.(*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 23 de junho de 2009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: Dan Aykroyd e John Belushi, os Bluebrothers, um sarro em cima da pose.

22 de junho de 2009

O POETA COMO PERSONAGEM


Nei Duclós

Há o nerudismo, em dois vetores. Um, o épico, em que você faz gestos largos e tem a voz tremida quando canta nuestramerica. Outro, o íntimo, em que o crepúsculo se deita como um cachorro a seus pés. O épico,depois da luta, recolhe-se em frente ao mar, a apascentar leitores a distância. Lá ele cultiva lembranças, como o tempo em que tentou ser pragmático, quando celebrava a cebola e lamentava jamais ter construído nada com as mãos, nem mesmo uma vassoura. O íntimo migra para o apaixonado, o amante viajador. Ambos usam boné, imitado por todo mundo. É uma estranha compulsão. Parece que ao chegar a idade mais avançada, corre-se ao boné nerudiano de maneira obsessiva e misteriosa. Por que as senhoras idosas pintam o cabelo de azul? É tão enigmático quanto usar o boné de Neruda.

Outra persona é o poetinha, que tem Vinicius de Moraes como modelo supremo. Bebe uísque na banheira cheia com espuma, toma todas até amanhecer, quando sai de porta em porta pelas casas dos compositores a providenciar letras, como se fosse (o achado é dele) um “letreiro”, espécie de leiteiro-poeta. O poetinha é quase um Villa-Lobos, que ia ao concerto de chinelo por sofrer de gota. Fez carreira na diplomacia, mas esnoba. É amigo de figuras populares. Trata todo mundo no diminutivo. Quando a crise aperta, faz shows. Levanta o copo para a platéia e saúda: saravá! O poetinha é o tipo inesquecível que todos querem passar a mão na cabeça. Mas ele morde.

João Cabral foi o anti-poeta, com sua anti-poesia, escrita de fora para dentro, a partir do andaime até chegar ao reboco. O poeta cabralino sofre de enxaqueca, tartamudeia nas entrevistas e se esconde a maior parte da vida em lugares ermos, como se fosse nosso homem em Havana antes da revolução, ou um cônsul em Angola avesso às guerras, um adido no Senegal, vestindo linho branco. Em Sevilha, vai a touradas. Mantém a luz lorqueana e às vezes até sua música, mas, paradoxalmente, não faz concessão a elas. Gosta de ser comparado a um engenheiro e usa terno e gravata o tempo todo. Quando era chefe de gabinete do MEC, Drummond de Andrade tinha uma persona cabralina, apesar de chamar de “essas coisas” a poesia de João Cabral.

O poeta do avesso é diferente do cabralino, que é uma figura da alta burocracia. O poeta do avesso é como Quintana, que trabalha para sobreviver e acaba vivendo de favor. Passa a maior parte da vida tentando mostrar que o poeta é diferente do que dizem, não é condoreiro como Neruda, ou íntimo como o poetinha. É uma espécie de boêmio diurno, a caminhar a esmo por ruas sem sentido, meio de banda, carregando os mortos, e olhando o azul das venezianas. Não se identifica com nenhum ethos regional ou nacional. Nasceu na lua, vive ao Deus Dará. É reconhecido só depois dos setenta anos, mas, como Quintana, implora que não o chamem de septuagenário.

O herdeiro é outro tipo de poeta. Ele é uma espécie de substituidor de talentos. Ocupa o lugar do seu ídolo e, ao contrário deste, acaba na Academia. Tenta se diferenciar caindo no Mesmo, usando o boné de Neruda ou secando sua poesia até o osso. Não pode ser confundido com qualquer leite derramado. Cerebral, foi por um tempo o queridinho dos estudos de pós graduação literária. Hoje acumula uma obra de uns cem títulos e espera ser lembrado no minuto seguinte ao seu desaparecimento, o que é altamente improvável.

Há o poeta cool, que tira fotos sentado no chão encerado da biblioteca do seu apartamento nos Jardins. Representa o Brasil, apesar da pouca idade, em eventos internacionais. Tem um pé virtual em Nova York e um pé real no engarrafamento. Cita os clássicos. Gosta de poetas eruditos desconhecidos. Superou o leminskismo, o trocadilho que fica insosso na segunda leitura. Agora quebra o verso até virar uma pasta disforme. Prefere a sílaba à palavra. Cala mais do que escreve. Isso na poesia. Nos tratados, é boquirroto. Sabe tudo e mais um pouco.

O poeta pobre é o mais comum. Por falta de recursos, emprego ou patrocínio, não consegue ir ao Flip tomar umas birras. Não é convidado para eventos. Não ganha o suficiente para negociar publicações. Mora em meio a gavetas e é considerado um desperdício. Espécie de extra-terrestre consentido, é tido como bôbo pelas pessoas realmente próximas . Cresce sob essa suspeita. Quando chega à idade adulta, confirma o escrito e só faz bobagens. Como poesia, por exemplo.

RETORNO - Imagem de hoje: o legítimo e genial Pablo Neruda.

21 de junho de 2009

RETORNOS DE LEITORES ATENTOS


Estou acumulando agradecimentos às pessoas que tem me escrito comentando textos, fazendo análises, dando retornos variados para o escriba veterano, que assim não se sente isolado aqui no ermo, onde a coruja pia e o inverno aporta ao redor de um mar gelado, dias azuis ou cinzentos, ventos esporádicos, quietudes. Antes de mais nada, destaco a ilustração acima, que acompanha meu texto Separatismo, publicado neste domingo na revista Donna DC, do Diário Catarinense.

Por falar em Diário Catarinense, o Diário da Fonte saúda o editor-chefe Claudio Thomas, que volta para sua Porto Alegre querida. Ele me enviou o seguinte e-mail: “Depois de 11 anos, deixo o Diário Catarinense e assumo novos desafios profissionais no Grupo RBS. Serei o editor-chefe do Diário Gaúcho em Porto Alegre, a partir do dia 23 deste mês. Obrigado pela constante colaboração com o DC. abraços Claudio Thomas Editor-Chefe.” Thomas é um jornalista sério, competente, compenetrado e excelente anfitrião: me recebeu, junto com o editor de Variedades, Dorva Rezende, de braços abertos no jornal.

Separatismo recebeu o seguinte comentário do escritor, poeta, cronista Olsen Jr., o talentoso viking das letras catarinas: “Olá, Nei, salve!Engenhosa e brilhante a crônica de hoje, revista Donna, no DC...Congratulações!” Olsen faz parte de um projeto comum que vai dar o que falar. Hoje estou meio misterioso.

Do leitor T. Ludovico, médico, publico trecho da sua mensagem: “Parabéns pela reportagem, gostaria de incluir minha posição quanto ao assunto, sou espiritossantense da cidade de Colatina e confesso que me emocionei ao ler a matéria,pois sou "viciado " em BRASIL. Tudo que está contido nesse texto me interessa. Tenho ouvido conversas que remetem ao termo desde que separatismo interessaria apenas aos estados da região sul, assunto que graças ao bem da soberania nacional , tem reduzido bastante. Hoje mesmo ouvi impropérios contra José Sarney, relatado como "nordestino safado", seria um péssimo exemplo para o país.Nossos valores não podem deixar de ser levados em consideração, pois somos muito fortes desde que considerados como um todo".

Do poeta Alcides Buss, sobre minha crônica Frio, de terça-feira passada: “Caro Duclós: Gostei de ler sua crônica de hoje no DC. Nos meus tempos de guri, no rigoroso frio do oeste paranaense, o melhor agasalho era o sol, quando aparecia. Quando não tinha sol, e ainda por cima se estivesse chovendo, aí era de lascar! Abraço, Alcides.“ O poeta Alcides reúne as qualidades do poeta importante e fecundo com a gentileza em pessoa.

E, quase todo dia, alguém posta uma edição do DF em algum lugar. Mario Medaglia colocou no seu blog Batendo Forte a crônica Separatismo, Sergio Rubim o texto sobre a valorização do diploma de jornalista, Juliana Meira publicou no seu blog o poema Cofre, Orlando Lago, que colocou vários poemas meus na comunidade Poesia e Luz, do Orkut, gostou de Trapézio, que publiquei dias atrás. É muita coisa. São muitas dádivas de leitores e das amizades que vou fazendo ao longo da rede. Nos meus scraps ou recados do Orkut, então é brincadeira. Dá um quilômetro de retornos, principalmente sobre meu verso de Outubro, “quero um sorriso que dure uma quadra e dobre a esquina a iluminar-me.”

De Miguel Ramos, ator maior, citando frase de um poema publicado aqui: “..a indiferença cobria o mundo de porcelanas e imundície . Confesso que não tenho nada a declarar. Está tudo declarado. Deflagrado. Che, tu estas cada dia pior de tão melhor. É assustador.”

Mas tem muito mais. Tenho me correspondido com Getulio Vargas Valls, que, descubro agora, é filho do grande prefeito uruguaianense Íris Valls, aquele que transformou minha cidade num esplendor de administração publica. Íris, que morreu de enfarte em 1962, logo depois de ter sido escolhido para assumir o cargo de prrimeiro prefeito de Brasilia (imaginem Brasilia nas mãos deste homem!) era casado com a Professora Maria Eva, que me alfabetizou. Isso vai dar um samba danado, que depois conto com detalhes. Só para adiantar: em 2009 comemoramos - nós, o povo brasileiro - o centenário de Iris Ferrari Valls, um estadista do Brasil Soberano. Aguardem.

Falei que eu estava meio misterioso.

BATE O BUMBO

Leia o poema "O tempo que dura o aplauso", de Julio Conte: "Lembrei de uma apresentação de uma peça minha em Buenos Aires quando o público aplaudiu mais de dez minutos. Foi neste momento, na reclusão da igreja, que percebi isso, que a vida dura o tempo de um aplauso. O tempo de um reconhecimento. O tempo da reverência."

20 de junho de 2009

O QUE O IRÃ NOS ENSINA


Nei Duclós

Não há democracia sem eleição direta, mas eleição direta não garante a democracia. Ditadores adoram eleições. Servem para justificar o poder ilimitado e colocar a culpa nos votantes. Qual o modelo de democracia no mundo? Os Estados Unidos, claro. Você conhece algum presidente americano que não seja democrata ou republicano? Não passa de uma gigantesca república café-com-leite, onde dois partidos se revezam para manter a continuidade da política imperial. Adolf, o austríaco nazista, foi eleito pelo voto direto. Assim como o atual presidente iraniano.

Se o Ahmadinejad desempenhasse seu papel com lisura nas eleições, quando em tese teria recebido 62% dos votos, não haveriam gigantescas manifestações, violentas, ameaçando a estabilidade do país. O atual estágio do Irã nos revela um país surpreendente. Eu acreditava, na minha ignorância habitual (plantada pela modorra do noticiário ) que se tratava de uma espécie de Coréia, onde os donos do poder se eternizavam no trono. Só a existência de um aitaolá que paira sobre as nuvens, ou seja, tem mais poder do que os eleitores, nos diz bastante sobre a situação. Mas vemos que o Irã é uma nação com uma gigantesca oposição militante, que foi à forra depois que os resultados vieram à tona, boiando como coisa morta na superfície da opinião pública alarmada.

É sintomático que o presidente Lula tenha feito pouco desse enorme movimento de massas, que pode ser comparado à pressão popular contra o Xá, antes de o país virar uma república islâmica. Lula acha, assim como o aitolá Khamenei, que não tem de chorar sobre leite derramado, que aos vencedores as batatas do poder. Ou seja, o resultado que as comissões eleitorais extraem das urnas é sagrado e não se pode contestar essa ação humana, e portanto aberta a falhas. Com o assim, o resultado é sagrado, não pode mexer? E se o resultado foi fraudado, como tudo indica que foi? E por que é sintomático que Lula tenha apoiado o presidente reeleito dessa forma tão contestada?

Porque aqui temos algo semelhante, uma ditadura que usa as eleições para se perpetuar. A militância trabalhista tem falado como foi fraudado o resultado das eleições presidenciais de 1989, quando tiraram de Brizola o direito de assumir o Planalto e colocaram Lula e Collor na final, com evidente vantagem para o presidentinho que tungou todo mundo. Notícias de fraudes existem, mas jamais são apuradas de maneira devida. Fica um diz-me-diz-que, uma onda do rádio peão. Ninguém vai a fundo ver, ninguém “recrama”. É porque temos uma oposição pulverizada contra a ditadura. A ferida aberta do trabalhismo, a força política assassinada e insepulta, é apenas um aspecto dessa insurgência surda, que acaba gerando defecções pífias como o Psol ou o PSTU.

Não temos, como no Irã, um consenso de oposição capaz de fazer os ditadores se arrependerem de brincar de democracia. Aqui no Brasil tivemos um exemplo nas eleições de 1974, quando os senadores de oposição ganharam em quase todo o Brasil, fazendo o poder tremer. Lembro até hoje o Correio do Povo, de Porto Alegre, ostentado a foto de Paulo Brossard, acenando com o chapéu de feltro (num gesto típico de Primeira República), enquanto a manchete dizia: “MDB lidera eleições em todo o país”. Não foi o início do fim da ditadura, mas de sua auto-superação. Foi um susto que os ditadores aproveitaram para se recuperar logo em seguida, providenciando a anistia para os torturadores, o longo mandato de Figueiredo (para preparar o terreno do continuísmo), a derrota das diretas-já no Congresso, a morte de Tancredo Neves e a eleição de José Sarney.

Agora é moda chutar Sarney, mas foi a imprensa que incensou essa ditadorzinho metido a estadista. Tanto é que ele há anos é colunista da Folha. A porção britânica da mídia brasileira fez uma análise sobre o Sarney colunista do jornalão. Tarde piaram. A crônica política precisa se desvencilhar da imagem bem comportada do analista consentido, que fala elegantemente nas entrelinhas, uma herança da fase áurea da ditadura civil-militar. É preciso desmascarar esse bom mocismo bem pensante que bate uma no cravo e outra na ferradura, conforme se movimenta a biruta.

É preciso aprender com o Irã. Democracia não é só eleição. É também povo na rua para virar o jogo das eleições fraudadas. E também uma oposição de texto engajado e não apenas olímpico, como se o sexo dos anjos fosse o tom apropriado para lidar com eventos que matam gente e destroem gerações.

RETORNO - Imagem de hoje: o presidente do Irã, submisso ao poder teocrático (ou seria o contrário?). A foto tirei daqui.

18 de junho de 2009

DIPLOMA DE JORNALISTA SERÁ VALORIZADO


Nei Duclós

Há uma explosão indignada contra o STF, que extinguiu a obrigatoriedade do diploma para o exercício do jornalismo. Gente dizendo que vai pedir indenização, que se sente ludibriada, acusando os ministros togados de irresponsabilidade, que vai jogar o diploma no fundo do armário, doar para museu etc. São reações naturais, mas é uma pena que a fúria substitua a razão. Acho que vai acontecer exatamente o contrário: o diploma será enfim valorizado. Vou dizer porquê.

Primeiro, acaba a fabriqueta de faculdades de comunicação. A obrigatoriedade serviu para que proliferassem inúmeras instituições voltadas para o ganho fácil dos seus donos, oferecendo uma formação ineficiente. O que garantia o negócio era o diploma obrigatório, passaporte para uma atividade reconhecida e remunerada. Haverá um natural enxugamento e sobreviverão apenas aquelas que realmente estão preparadas para formar jornalistas. É hora de o governo intensificar os investimentos nas boas faculdades do ramo, como a da UFSC aqui de Florianópolis e, acredito, a ECA da USP.

Pois os empregadores vão valorizar os diplomados num sistema enxuto e altamente qualificado, já que o fim da obrigatoriedade vai dispersar os aventureiros, ou seja, os fabricantes de diplomas fajutos. Lembro que fui editor de focas que jamais tinham lido um livro. Mas também de recém formados no rumo da erudição, preparadíssimos. Tudo depende da instituição séria, que sairá fortalecida.

Ao contrário do que todos temem, não haverá um avanço de aventureiros na carreira. Trata-se de um trabalho complicado, que depende de vocação, de preparo. Exige fôlego, determinação, dedicação. Não é qualquer um que passa na peneira. Quem tem formação específica poderá se impor, se sobressair. Acho que aventureiros existiam até agora. Havia muito burro diplomado. Gente despreparada, de canudo na mão, tirava o lugar de outras pessoas, inclusive diplomados.

Não se trata de otimismo a qualquer preço. O jornalismo passa por uma fase decisiva. O que está sendo ameaçado no jornalismo não é sua essência, mas seus equívocos. Acredito que o jornalismo como gênero (sério) literário voltará com tudo. Acho que o jornalismo de mãos dadas com a formação acadêmica tradicional, como história, economia, engenharia, nos ajudará a dar novos saltos. O que pega agora é competência e isso uma boa faculdade pode proporcionar.

Então, meus queridos alunos, professores, colegas: nada de pânico. O STF prestou um serviço, não porque tenha clareza sobre tudo isso, mas porque foi o instrumento para uma atividade que será valorizada. Ter diploma de jornalista, de agora em diante, será para valer. Quem vai querer passar por esse crivo para um nicho que não exige diploma? Só mesmo nós, os ursos que jamais se extinguem.

Eu deixei os bancos escolares do jornalismo quando ele era apenas um curso, que foi ferido de morte em 1968, no AI-5. Era ruim e ficou pior com a repressão. Não achei ético continuar. Acabei me formando em História. Mas se tivesse 18 anos, iria prestar vestibular para jornalista. Como eu fiz, quando tinha 19 anos e ninguém valorizava essa formação acadêmica, ainda no seu início.

17 de junho de 2009

BRIC A BRAC DO APOCALIPSE VIRTUAL


Nei Duclós

Que fim deram os observadores internacionais? Como não há resposta tangível (no google) resolvi ir até uma obscura taberna situada nos arredores de Istambul. Uma visita virtual, claro, via Voip, pois todos sabem que Istambul só existe em livros antigos de aventuras. Descobri que eles bebem absinto e relembram os bons tempos dos anos 70, quando eram capazes de mudar o mundo com apenas algumas frases. O assunto do momento era os Bric, sigla criada em novembro de 2001 pelo economista Jim O'Neill, do grupo Goldman Sachs, que colocou no mesmo saco os quatro principais países emergentes do mundo, Brasil, Rússia, Índia e China. Eles ficaram impressionados quando souberam que o grupo Sachs mapeou as economias dos países Brics até 2050. Baseados nisso, eles resolveram criar os Bracs.

Os Bracs reúnem quatro países nada-a-ver que poderão sobreviver a um iminente apocalipse virtual. São eles: Barbados, Ruanda, Andorra e Cazaquistão. São nações que obedecem aos parametros necessários para definir uma posição oculta e cheia de significados. Barbados é o país mais oriental das Caraíbas, situado a leste da área conhecida como Índias Ocidentais (ou seja, é puro século 17, com piratas e tudo). Ruanda é um pequeno país montanhoso da África, encravado entre o Uganda, a norte, a Tanzânia, a leste, o Burundi, a sul e a República Democrática do Congo, a oeste; sua capital é Kigali (“encravado” mata a pau). Andorra é um pequeno país europeu localizado num enclave nos Pirineus (enclave é fundamental). Cazaquistão é fundamentalmente asiático, embora também inclua uma região européia entre o rio Ural e a fronteira russa (nada mais misterioso do que “fundamentalmente asiático”).

Os observadores internacionais, fazendo suas projeções usando velhos ábacos e infográficos coloridos tipo Newsweek, e em preto e branco tipo Economist, profetizam que os Bracs, por não disporem de banda larga, poderão continuar existindo, enquanto o resto do mundo irá travar miseravelmente. Pensem com os grandes eruditos confinados na taberna de Istambul. As profissões todas acabaram, com exceção dos passeadores de cachorro e os arrastadores de ferro. Esses não podem ser substituídos pelos blogs. No mais, é o que vemos. Não temos mais jornalistas, economistas, professores, burocratas, estadistas, engenheiros, médicos. Só temos blogueiros. Isso significa o fim da espécie humana.

Não adianta mais fazer qualquer consulta, basta acionar a ferramenta de busca. É inútil produzir qualquer coisa que preste, voce não vai mais ganhar dinheiro com isso. Desista de ser ator, os personagens avatares já são uma realidade. Promotor de eventos? Não me faça rir. As pessoas hoje vivem nos estandes virtuais fazendo negócios. E quais negócios? Poucos restaram e em questão de meses não haverá quase nenhum, pois tudo está sendo devorado pelo apocalipse virtual. É um travamento total da realidade. Ninguém mais vive. Só falta terceirizar a respiração, já que comer virou horário de novela faz tempo. Janta-se na novela das seis.

Mas toda essa tragédia, segundo os observadores internacionais, não será visível, ou não acontecerá, como queiram, nos Bracs. Os países que são enclaves encravados a leste das Indias Ocidentais, ou que são fundamentalmente asiáticos, mesmo tendo uma pequena porção européia limitada pelo rio Ural, terão grandes chances então de se desenvolverem. Só deverão ter o cuidado de não implantar a banda larga entre eles. Será o fim, e irão para o brejo da mesma forma que os Brics, que exibem estadistas que se abraçam confiantes num futuro incerto.

No bric a brac da vida, será possível no futuro continuar vivendo desses pequenos badulaques que fazem a vida uma realidade. Um canivete suíço, um pião usado, uma pandorga sem rabo, um velho LP do Sinatra, um toca-discos com a agulha rombuda, uma carta de amor sem destinatária, uma caixa de bombons rasgada, uma flor amassada entre livros de amor. Será nossa salvação, essa de frequentar lugares atulhados de coisas inúteis e maravilhosas, mas concretas, que se possam pegar, cheirar, provar. E que façam barulho quando jogadas no chão.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: obra de Tavik František Šimon (1877-1942), artista tcheco, do acervo do The British Museum em Londres. 2. Meu amigo internacional Osmar Freitas Jr. me telefonou ontem a tarde de São Paulo, quando tentamos colocar em dia uma conversa acumulada de vinte anos. O texto acima foi inspirado nesse papo proveitoso. Osmar é um dos maiores talentos do texto pátrio e mora em Nova york, onde está estabelecido com a família. Prometeu uma visita para definirmos ao vivo os rumos do jornalismo mundial e o futuro da humanidade.

16 de junho de 2009

FRIO


Nei Duclós(*)

Inverno exige uma resposta à altura. Para quem nasceu no Brasil profundo – a fronteira entre uma civilização possível e a natureza bruta – era necessário refugiar-se nas peles dos animais. Lembro do grande couro estendido na sala, único lugar possível para brincar no chão. Ou do grande pelego de ovelha, trincheira contra as madrugadas polares batidas pelo vento. Ou ainda as campeiras, grossos casacos que cobriam costas e peitos; as meias e calças de lã, que devolviam vida a pernas e pé condenados ao congelamento; e as boinas, que tiravam os cabelos do relento.

Os grossos cobertores forravam as camas quando nos recolhíamos precocemente aí pelas nove da noite, depois das narrativas dos adultos, veteranos de guerra. Na cabeceira, um rádio salvador despejava música de todas as nações. Vivíamos na diversidade cultural. Não havia ainda o ganho de escala a qualquer custo, esse que, a exemplo das plantações de banana, produz em série o providencial baticum ou a abobrinha datada.

Existia também a margem para leituras, de preferência Monteiro Lobato, com as ilustrações inesquecíveis de Le Blanc, que nos levavam no dorso do rinoceronte para a Grécia Clássica. A insônia, rara, era povoada de histórias pessoais, inventadas entre faroestes e namoros. Não cobiçávamos estrelas de cinema, mas as beldades do burgo, esplendorosas em sua graça inatingível.

O frio era um acontecimento matinal, de geada cobrindo o campo de futebol do colégio, onde exercitávamos a ginástica sueca sob as ordens de um severo sargento do Exército. Os movimentos brutos antecediam um jogo de vale-tudo, território seletivo para futuros torneios e medalhas. Na manhã rósea e azul, ainda não ocupada pela claridade total do sol de junho, orelhas vermelhas recebiam o castigo aplicado com réguas afiadas, manipuladas por grandalhões prevalecidos.

Éramos vítimas do frio, naquela época de casacos de pele que enfeitavam as senhoras distintas. Gostávamos de abrir os armários para passar a mão no vison hoje condenado pela militância. Aquele gesto carinhoso na pele que dava charme e glória a quem a usava faz parte do acervo abandonado do frio de outros tempos. Quando éramos crianças, ou seja, bichos em plena temporada de provações, quando cultivávamos a esperança da próxima primavera.

RETORNO - 1. Imagem desta edição: quadro de Juliana Duclós. 2. (*)Crônica publicada neste terça-feira, dia 16 de junho de 2009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 3. Ida Duclós mostra como os açorianos aprenderam com os índios a pescar, a comer, a viver na ilha de Santa Catarina. Trata-se de uma edição do seu magnífico blog com trechos de relatos antigos sobre como os indígenas pegavam as tainhas no nosso litoral, entre outras atividades. Aviso aos navegantes: ao postarem sobre o mesmo assunto, por favor não esqueçam do crédito (Ida Duclós). A pesquisa e a elaboração do texto dão o maior trabalho.

FRIO

Nei Duclós(*)

Inverno exige uma resposta à altura. Para quem nasceu no Brasil profundo – a fronteira entre uma civilização possível e a natureza bruta – era necessário refugiar-se nas peles dos animais. Lembro do grande couro estendido na sala, único lugar possível para brincar no chão. Ou do grande pelego de ovelha, trincheira contra as madrugadas polares batidas pelo vento. Ou ainda as campeiras, grossos casacos que cobriam costas e peitos; as meias e calças de lã, que devolviam vida a pernas e pé condenados ao congelamento; e as boinas, que tiravam os cabelos do relento.

Os grossos cobertores forravam as camas quando nos recolhíamos precocemente aí pelas nove da noite, depois das narrativas dos adultos, veteranos de guerra. Na cabeceira, um rádio salvador despejava música de todas as nações. Vivíamos na diversidade cultural. Não havia ainda o ganho de escala a qualquer custo, esse que, a exemplo das plantações de banana, produz em série o providencial baticum ou a abobrinha datada.

Existia também a margem para leituras, de preferência Monteiro Lobato, com as ilustrações inesquecíveis de Le Blanc, que nos levavam no dorso do rinoceronte para a Grécia Clássica. A insônia, rara, era povoada de histórias pessoais, inventadas entre faroestes e namoros. Não cobiçávamos estrelas de cinema, mas as beldades do burgo, esplendorosas em sua graça inatingível.

O frio era um acontecimento matinal, de geada cobrindo o campo de futebol do colégio, onde exercitávamos a ginástica sueca sob as ordens de um severo sargento do Exército. Os movimentos brutos antecediam um jogo de vale-tudo, território seletivo para futuros torneios e medalhas. Na manhã rósea e azul, ainda não ocupada pela claridade total do sol de junho, orelhas vermelhas recebiam o castigo aplicado com réguas afiadas, manipuladas por grandalhões prevalecidos.

Éramos vítimas do frio, naquela época de casacos de pele que enfeitavam as senhoras distintas. Gostávamos de abrir os armários para passar a mão no vison hoje condenado pela militância. Aquele gesto carinhoso na pele que dava charme e glória a quem a usava faz parte do acervo abandonado do frio de outros tempos. Quando éramos crianças, ou seja, bichos em plena temporada de provações, quando cultivávamos a esperança da próxima primavera.




15 de junho de 2009

CAMANGAS E AMAGADAS


Nei Duclós

Camanga todo mundo que nasce entre o rio Ibicuí e o Uruguai sabe: é quando o mocinho consegue amagar os bandidos. Vou dar um exemplo clássico do Gene Autry. Todos nós acreditamos que o grande cowboy cantor tinha enfim se estrepado. Ele estava tocando seu banjo ou guitarra na cadeira de balanço na varanda. Os malfeitores vieram pelas costas e atiraram nele várias vezes. Deu então “episódio”, ou seja, o curta metragem acabou, apareceu a chamada “cenas do próximo episódio” e só iríamos saber o destino do herói no domingo seguinte. Ninguém apostava mais um vintém furado nele.

Quando chegou o dia da sessão esclarecedora, ficamos sabendo de tudo. O esperto Gene Autry tinha colocado um boneco com um violão atravessado no peito, um chapéu largo na cabeça, e cantava como um ventríloquo, a distância, para tornar convincente sua artimanha. E como a cadeira de balanço se movimentava, dando impressão da mais completa entrega aos prazeres da arte country naquele momento supremo do entardecer no deserto? Simples, nosso mocinho puxava uma corda e fazia o troço ficar tão parecido com a realidade que chegou até a amagar a nós, vivarachos espectadores das matinês.

Baita camanga, a mais bem bolada de toda a história dos faroestes z. Tremenda amagada, pois a corja tinha descarregado seus revólveres e ficaram à mercê de Gene Autry no segundo seguinte, para delírio de nossas palmas e pontapés nas cadeiras desferidos de forma sincopada, fazendo tremer o cine Corbacho (ou seria o Carlos Gomes?). Foi assim que, como os leõzinhos na savana, treinávamos para a vida adulta. Ficamos especialistas em camangas, mas o mistério é que só levamos amagadas.

Vejam o caso do José Sarney. Na hora em que ele se queimou no Maranhão, amagou os eleitores do Amapá e se reelegeu para sempre senador da República. Baita camanga essa de trocar o domicílio eleitoral. Depois, foi fácil: simplesmente distribuir santinhos ao lado do pobre do Papa e posar de grande estadista da redemocratização, quando não passou de fundador da ditadura civil. O Brasil amaga até o Papa. Não há camanga do Vaticano, nem da Máfia, que dê conta. Aliás, como notou Mino Carta, o único lugar onde a máfia siciliana se dá mal é no Brasil, porque aqui a máfia local não suporta concorrência.

Outra tremenda camanga é a que amagou o Noblat na edição de hoje do seu festejado blog. Noblat invoca o exemplo dos japoneses que, pegos em flagrante de corrupção, acabam lavando a honra com o suicídio. Akira Kurosawa já provou, no seu filme de 1960, The Bad Sleep Well, comentado aqui, que a máfia japonesa obriga os executivos e as autoridades, que são desmascarados, a se suicidar. Portanto, não há nenhum mérito no ato extremo. É puro assassinato. Os japas amagam todo mundo com suas camangas.

Mas a maior camanga de todas foi a do tucano-petismo. O tucanato surgiu como ordem moral contra a podridão do PMDB e acabou entregando o país de mão beijada, em troca de algumas propinas e títulos universitários. O petismo não quer sair mais do poder e já está pensando naquilo que condenava em Getúlio, o continuísmo. Ambos enfeixaram a indignação popular contra a ditadura e se transformaram em agentes da ditadura. Foi uma camanga eleitoreira, a maior amagada da história mundial. Claro que eles foram mais sofisticados do que o Collor, que fez sumir o dinheiro da conta corrente e da poupança – depois, claro, integralmente devolvido (!).

A verdade é que todos esses camangosos nos amagaram de verde e amarelo. E hoje sentimos saudades do tempo do faroeste. Pelo menos os mocinhos venciam no final.

RETORNO - 1. Imagem desta edição: Gene Autry. Atenção: pronuncia-se autri mesmo, de au-au, e com tri de Petry, Gessy. E não "ôutryi", com cuspidinhas gringas no final. Depois de pronunciar corretamente Gene (de gêne mesmo, nada de "giini") Autry, puxe as calças e dê uma fungada feia. É para prevenir: vai que algum engraçadinho ache estranho um cow-boy tocador de violão. 2. Este post me foi inspirado pelo comentário do uruguaianense Flavio Lago, que resuscitou o verbo amagar, de uso corrente nos anos 50.

14 de junho de 2009

FLAGRANTE


Nei Duclós

Não peço desculpas pelo atraso
Nem pelo caldo, folia de Reis
na serra do Espinhaço, turismo
de sal na areia depois das seis

Não faço de conta que passo
Que desisti na hora do salto
Pedras sem som de arremesso
Ruído de abismo e desespero

Ritmo de roedor no cadafalso
Música aleatória, palimpsesto,
Destino na brasa do cinzeiro

Tudo faz sentido ao despertar
atrás do espelho, rapa de feira
sarro pelo avesso, moço, velho

RETORNO - 1. Poema inédito, feito neste domingo. 2. Imagem desta edição: foto de Ida Duclós, antrópologa formada pela USP, que no seu blog Feriasfloripa está inovando na abordagem das inúmeras manifestações aqui da ilha. Já surgem epígonos - muita gente indo atrás, sem dar o crédito. É bom lembrar quem está abrindo caminho e tirando os assuntos desta parte do Brasil do ramerrão e da mesmice.

13 de junho de 2009

VAMOS DANÇAR?


Nei Duclós

Alto demais para idade, pé 44 antes da hora, calça quase de pular sanga com bainha italiana, casaco apertado de cor diferente, meia branca, cocoruto pelado saltando dele um pelincho, gomina Glostora no topete, nada disso importava. O baile ou a reunião dançante eram eventos democráticos. Você poderia tentar tirar para o meio do salão a musa do colégio do Horto, o das gurias. Ela até poderia rir, mas pelo menos uma volta dava com você, que teria assunto para mais de um mês, só para falar do cheiro dela, dos passos que se desencontraram e, milagre, dos corpos que se entenderam desde o primeiro acorde. Poderia virar namoro. Naquele tempo, o coração agüentava.

Era bem mais prático do que a atual balada, onde a abordagem é mais complicada, pois não se tira alguém para dançar, nem existe espaço para o bate-coxa. É cada um por si na geléia geral das mãos ao alto. Há êxtase antes da hora, e não um ritual mais apropriado à realidade emocional, ou seja, a timidez, a natural distância entre pessoas desconhecidas e de sexos diferentes. Tem que ser aceito na mesa onde ela se encontra e é constrangedor se acomodar numa roda que não lhe pertence.

A dança, ao contrário, não era coletiva e sim exclusiva a dois. Falando claro: dava para agarrar a moça no primeiro segundo e todo mundo achava natural. Era assim que se dançava. Algum acontecimento sinistro fez com que os casais se desgrudassem na hora do bem bom e hoje o que existe é exibicionismo individualista expresso em passos redundantes, mas com pose de originais. Dois para lá e dois para cá eram o cúmulo da sofisticação. Bem melhor do que dois mil para qualquer lado.

Havia um ranking de tempo que revelava sua performance com elas. Se pediam licença só aí pela quarta música, era um feito. Se ela quisesse ficar contigo o baile inteiro, já era quase um noivado. Mas o mais difícil era a conversa. No fundo, o agarro não definia o laço na prenda e sim a conversa, mistura de sinceridade com estratégia. Você não poderia improvisar tudo, mas também não podia cair nas armadilhas dos lugares comuns como “vem sempre por aqui?”. Essas coisas podem provocar gargalhada hoje, época da gravidez precoce e da ficaria geral. Mas aproximar-se de alguém era bem penoso.

Havia olheiros, testemunhas, guardas. Irmãos, que você, se fosse folgado e garantido por algum grandalhão ou turma de meliantes, poderia chamar de cunhados. Pais: senhoras de coque alto e colar de falsas pérolas, sisudas como seus consortes; senhores barrigudos e com uma perna de lado, para dar espaço para algum trabuco. E amigas, as arroz de festa que estragavam tudo arrastando o objeto de desejo para longe.

Outro lugar de caça para incompetentes no namoro como eu era a praça. No fute, as gurias olhando para os caras encostados nos automóveis (nós, os abombados de plantão) pediam acompanhamento. Um flerte na praça poderia evoluir para um aperto de coração apressado e um calor nos lugares certos. Havia mais emoção do que simplesmente passar a noite olhando para as gatas sem poder chegar, porque não existe nada organizado.

Vejo as matérias e todas se queixam de que falta homem sério na balada. Não pode haver gente séria num evento que não é sério. O baile era a ponte entre os gêneros consentida, onde se encaminhavam os relacionamentos duradouros. Havia, claro, os lances de fugir para o carro ou um hotelzinho barato. Mas o grosso da tropa obedecia aos trâmites legais. Um bate-coxa básico poderia evoluir para o namoro no portão, depois uns agarros no sofá e finalmente o casamento com o 38 encostado na nuca. Coisa civilizada.

Hoje o pessoal engravida e fica tudo por isso mesmo. Sai até casamento, mas não dura, pelo que vejo nas reportagens (posso estar enganado). É preciso que haja algumas barreiras para a coisa dar certo. A falsa liberalidade no fundo é prisão. A organização antiga, tida como um cárcere, revela-se hoje, vista à distância, como fruto de uma longa elaboração. Foram muitas gerações até se chegar à solução que encontramos na adolescência. Mas achamos que estava tudo errado e explodimos tudo. Não deu certo.

É por isso que minha mãe gostava de mostrar as fotos do filho poeta revolucionário envergando um smoking caprichado, nos bailes de gala, e de cabelo curto. Dizia: “Esse é o guri que eu criei, diferente do cabeludo que vocês conhecem”. Mãe sabe tudo.

RETORNO - A imagem desta edição tirei daqui.

11 de junho de 2009

O SOM DO TECLADO


Nei Duclós

Havia um piano na minha casa, fazia parte da formação das moças. As teclas pareciam de marfim, brancas e pretas, de onde jamais tirei som que preste, nem mesmo um bife básico. Ao redor do piano vinham de fora as sanfonas, manipuladas com estardalhaço por talentos reconhecidos na cidade. A cascata de teclas me confundia ainda mais. Como podiam acertar as notas com tanta oferta para os dedos? Música sempre foi um mistério para mim. Acabei ganhando a vida no teclado mais banal, o das máquinas de escrever.

Há uma mística sobre as velhas Olivetti. Mas batucar nas pretinhas era um exercício de várias marcas. Lembro que por mais de uma vez martelei em antiqüíssimas Underwood, além das Remington de vários calibres. A gurizada de hoje que desliza as mãos para produzir em massa vai rir quando souber como eram as máquinas de escrever na Folha de S. Paulo. As mesas eram de fórmica e o monstro do teclado estava embutido nelas. Para produzir o texto, era preciso puxar a maçaneta que o mecanismo funcionava: do ventre da mesa saltava a ferramenta de uso diário.

Depois do rec rec e do tec tec intermináveis para desovar matérias ou fechamentos (título, olho, legenda, etc.), o que gerava um lixo considerável de laudas jogadas fora, acionava-se de novo o mecanismo para que a máquina voltasse ao ventre da baleia. Assim, com a mesa desimpedida, passávamos a caneta nos textos, antes de enviar para as oficinas. Funcionava assim: em cima das mesas, havia potes de goma arábica. Servia para colar as laudas uma na outra. Eram tripas enormes, conforme o tamanho da matéria.

Você enrolava a coisa, fazia um canudo com aquilo e gritava para o office-boy: desce! O rapaz então vinha e levava até o centro da enorme redação, e jogava dentro de um orifício, que era o bocal de um cano curvo, comprido, que se dirigia aos porões. O canudo de papel deslizava para lá, onde os gráficos compunham a sua obra em letrinhas da composição. No primeiro dia de Folha, recém vindo dos pampas, não tive dúvida. Gritei: Baixa! , o que provocou gargalhadas por alguns meses. Sempre me perguntavam como estava o baixamento.

É preciso dizer essas coisas, pois irão se perder e ninguém vai mais atinar como tudo funcionava. Os teclados faziam o som das profissões em plena atividade. Os locais de trabalho era os escritórios, lugares onde se escrevia. Trabalhar, durante toda minha vida, sempre foi escrever. Se você está escrevendo no escritório, está trabalhando. Havia pose nos veteranos, que teclavam com a espinha reta, quase olhando para o infinito. Era um jeito cool de se mostrar, exclusivo para quem era observado, estrelas do ofício.

Mas havia os mais espertos, que jamais curvavam a espinha e davam ordens de pé o tempo todo, sem batucar no teclado. Não eram respeitados como operários das letras, como nós. Quem pegava no pesado, a estiva das redações, fazia parte de um grupo identificado com a força bruta da profissão. Garantíamos o que chamam de conteúdo pregando em milhões de páginas os milhões de letras que batíamos sem parar pela vida afora.

A sensação é que éramos eternos, aquilo iria ser sempre assim. Falávamos muito em mudanças, mas jamais pensamos que essas iriam cavar fundo na essência da nossa atividade. Mudar era a palavra de ordem e lutávamos por isso. Tudo realmente mudou e o mundo que conhecemos e ajudamos a construir e levar nos ombros acabou indo para o ralo. Hoje, confinados em blogs, sites e até mesmo nos veículos de comunicação que sobrevivem e irão seguir em frente, somos o resultado de um século desse som no teclado.

Somos os peões das palavras, os árduos fazedores de textos, os compositores da música da linguagem, o que fabricam o andar dos carrilhões do tempo que nos devora. Nas rebarbas do nosso ofício, cultivávamos a poesia, como se fosse a primavera. Mas ela era mais do que isso. Era nosso futuro e sobrevivência. Hoje, os que vivem de escrever, espalhados pelo Brasil ágrafo e bruto, são o poema humano de um barro brindado pelo sopro imortal: a vocação e o talento, esse mistério da sabedoria, que sobrevive a todas as mudanças e atinge o tempo como a seta envenenada de Cupido, o deus travesso.

IMPÁVIDO COLOSSO


Nei Duclós

Falar da seleção brasileira é perda de tempo. Tudo já está dito. Por exemplo: disseram que Dunga é tosco, quando hoje é líder. Não significa nada, claro. Se é líder, é porque os adversários permitiram, não por méritos próprios, que, todos sabem, o bom capitão Dunga não possui. O fato de o time estar acima de todos os outros não é nada para quem conhece profundamente futebol e fala da seleção como se falasse de chouriços. Como não entendo nada de futebol e só abordo esse assunto para incomodar a vizinhança, posso garantir que o Brasil pentacampeão do mundo, hoje líder das eliminatórias, é o que a letra do hino diz: impávido colosso. O gigante indiferente, pois seu destino está assegurado.

Vejam o caso do Paraguai, o ex-bicho papão das eliminatórias. Dá gosto de ver o Galvão Bueno escolhendo o Cabañas como o boludo da vez. Sempre que o Brasil enfrenta um time estrangeiro, o Galvão Bueno escolhe um jogador deles e começa a chover no cara a gosma de uma incompreensível babação de ovo. Foi assim com o Zidane, o Beckman, o Veron e tantos outros. “Essssse é craque!” Acho que o Cabañas se parece com um rinoceronte de espartilho. Para os mais moços, espartilho é aquele troço que aperta o torax e engole a barriga e deixa o sujeito com uma pose artificial quando caminha. Cabañas é assim. Fica pior quando, por sorte, faz um gol e sai sacudindo a cabecinha como se fosse o fodão do cabaré.

O Bueno usa esse expediente porque assim garante o seu. Se o Brasil tropeçar, o comentarista global pode dizer que isso ele já sabia, pois desde o início do jogo está pulsando sua retenção em cima daquele adversário. Ele vibra numa patriotada pelo avesso, ou seja, transformando o inimigo numa espécie de Brasil que deveria dar certo. Porque o importante aí é a patriotada, não o futebol. A patriotada é o mau uso do carisma da nação em proveito próprio. É desmascarada no primeiro revés. É só tomar um gol que a patriotada vai toda para o inimigo. Chamam isso de "isenção".

O futebol é uma obra nacional que alcançou a permanência. Isso transmite segurança a quem faz parte do país e não precisa de patacoadas, já que tem uma ligação sincera com a pátria. Para mim, o importante é descobrir que a seleção canarinho (ainda usam esse apelido? eu gosto) é obra da nação, não da CBF, dos treinadores ou mesmo dos jogadores. Esses, cumprem o destino do Brasil cheio de glórias.

Não se trata de misticismo, mas de evidência. Você não pode se insurgir contra Atlas se estiver ao pé dele. Pode levar um pisotão. Não pode apontar para Antares e dizer: puxa, ele é do tamanho de dois Paraguai. Não é. É maior. Começa pelo hino. Enquanto os paraguaios usam metáforas sinistras, Osorio Duque Estrada encheu nossa letra de florão, vida, amada, e outras palavras maravilhosas. Dá gosto cantar o hino e ver a multidão teimar na letra considerada incompreensível. Como resistir a um poema que diz: “Se ergues da justiça a clava forte, verás que um filho teu não foge à luta”? Foi o que aconteceu em Recife, no jogo desta quarta-feira, entrando na madrugada de quinta e do feriadão de Corpus Christi.

Começa pelo Kaká, o mais injustiçado garçom do futebol mundial. A todos ele serve, com seus passes, suas arrancadas, sua inteligência. Recebe quase nada em troca, como a ser punido por ter sido vendido por trocentos quaquilhões para o Real Madri. Mas falar de Kaká é redundância. Só podemos louvar seu talento e, acrescento, a humildade de um guerreiro que no front olha para os companheiros.

Depois de Kaká, teve Robinho, que se transformou em mestre de mais um oficio, o do sobrepique. O sobrepique, conhecido como bate-pronto, é quando a bola é chutada sem dó depois de quicar no chão. Ao receber o passe em diagonal e em curva, Robinho chutou de primeira, no sobrepique, e mostrou que o Paraguai é o que parece, um time raçudo mas sem vocação para a grandeza.

É preciso também louvar Nilmar, que veio ao mundo sem peso (as balanças emudecem quando recebem Nilmar) e é capaz de driblar sete adversários antes de se imortalizar num gol inesquecível, como aconteceu recentemente no campeonato brasileiro. No jogo contra o Paraguai, Nilmar fez um passe de peito que acabou nos seus pés. Conseguiu colocar a bola mesmo recebendo um tranco do zagueiro. É a estrela da vez, gerada pelo céu brasileiro representado no globo azul da bandeira.

Também deve se fazer justiça a Lucio, não só pelo que fez na linha de fundo paraguaia, quando quase causou um estrago de grande monta. Mas pela consistência, a persistência. A zaga não é simpática, é difícil ter um herói ali. Lúcio honra a posição e manteve a escrita de um time que é o perfil da garra brasileira. Lucio se parece com Dunga, um sujeito sério, aparentemente bruto, sem muito domínio de bola. Mas nenhum dos dois está balançando no cargo. São uma espécie de projeção do que o Brasil é, esse desengonço geográfico que inventou-se por teimosia.

Gostei do jogo. Os paraguaios foram duros e perigosos. O Brasil manteve um equilíbrio ofensivo e em alguns lances exerceu sua arte suprema, o de transcender um pedaço de chão, uma história complicada, um presente aos pedaços e um futuro incerto. Brasil é o impávido colosso visto de longe, daquele fim do mundo para onde foi o Felipão e, escreva, que de lá poderá sair campeão do mundo com seu time desconhecido. Felipão é implicante e está com os ingleses e todos os europeus atravessados no gogó. Cuidado com o Felipão, o chão treme quando ele caminha. Cuidado com Dunga, o cara anda colocando os pés para dentro. Cuidado com o Brasil, terra adorada.

RETORNO - 1. Imagem desta edição: capitão Dunga. 2. A Folha cumpre a escrita: "Fora do estilo de Dunga, Brasil vira e ganha elogio". Ou seja, quando o treinador está acertando o time, sofrendo nesse processo, a imprensa cai em cima e define que isso é o "estilo" dele. Quando consegue acertar e mostra a que veio, então não foi ele o responsável. Haja. 3. Repressão violenta na USP: o velho coronelato civil, com seu exército particular, a força pública, repete o que faz desde 1964. É a chamada "democracia" da ditadura.

10 de junho de 2009

MAQUIAGEM NA REALIDADE CRIMINOSA


É a Lei de Murphy: a economia brasileira sempre cai com o lado do Mantega para baixo. “Estamos em recessão técnica”, disse o ministro Guido, “mas isso é passado”. Quer dizer então que o presente do indicativo (estamos) virou passado perfeito? Ou não ensinam mais conjugação de verbos na escola? Talvez seja isso. O ministro usa o presente no passado e todos os tempos do verbo vão para o exílio, junto com o subjuntivo, que caiu faz tempo.

A verdade é que não conseguem mais mentir com a mesma competência. Estamos em recessão, ponto, segundo dados explícitos do IBGE. Se cai o PIB, a atividade industrial e comercial, então estamos escorregando. Não há pesquisa que segure, nem cobertor de campanha publicitária que cubra os pés frios da realidade. E como estamos indo para o buraco, podemos nos dar o luxo de “emprestar” dez bilhões de dólares para o FMI. A verdade é que esse dinheiro pertence à especulação internacional, que gera as divisas aqui dentro e pega uma parte gorda do butim, maior agora depois da crise. Não é dinheiro do Brasil. Não temos nem moeda.

Em Uruguaiana existia nos anos 50 a expressão manequim de turco, que eram as peruas enfeitadas em excesso. “Bota rouge, rouge, rouge, bota pó, pó, pó”, diziam as debochadas diante do espetáculo das caras pintadas com maquiagem fajuta. É o que temos hoje. Uma realidade maquiada por um sistema político criminoso, que se alterna no poder para dividir o fruto do suor popular. O PSDB agora está cheio de moral. É a vez do leite da república café-com-leite.

Recessão técnica faz parte de:

AS PIORES EXPRESSÕES DA LÍNGUA

JOGAR CONVERSA FORA – Quem usa deveria ter o mesmo destino.

DESOPILAR O FÍGADO – Para desmoralizar a arte da comédia. É quando o dom de provocar o riso, dificuldade suprema, é visto como jogar conversa fora.

ACABA EM PIZZA – Denota esperteza, lucidez e originalidade de quem a emite.

NÃO ME FALA AO PAU – Em desuso, caiu junto com o machismo. Quer dizer: a sensibilidade existe, mas não nesse caso.

A QUATRO PATAS – Parceria entre escribas, que denunciava a verdadeira natureza do que se produzia com ela.

FORA DE SÉRIE – Lugar comum. Usado quando o Mesmo se impõe como novidade.

PASSA LÁ EM CASA – Senha para te manda, me esquece. Senão te passo fogo.

E QUANDO É QUE CHEGASTE? – Traduzindo: quando é mesmo que vais embora?

PRATICAMENTE DA FAMÍLIA – Usada para escravas convocadas para o papel de laranja em falcatruas com o dinheiro público.

DO MEU PRÓPRIO BOLSO – Para as vítimas de cambaus e desfalques. O autor do crime admite uma impossibilidade, se separar de qualquer dinheiro.

GOSTAMOS DO TEU TRABALHO, MAS... - Para as demissões sumárias.

VOU ENFRENTAR NOVOS DESAFIOS - Exclusivo para recém desempregados.

VAMOS DAR UM TEMPO – É o nunca mais dos namoros.

JÁ FALO CONTIGO - Significa: não me atrapalhe, estou ocupado.

ESTÁ EM REUNIÃO – Reúne as piores intenções de quem quer evitar os outros.


MARCAS NOTÓRIAS INVENTADAS EM TEMPOS DE RECESSÃO TÉCNICA

VAI MUITO DA PESSOA BAR – Lugar cult para conversar sobre coisas que falam ao pau.

CAFÉ SÓ AROMA – Já vem tomado. Para quem gosta de dar o seu melhor.

ARROGÂNCIA MODAS – Um substituto para a Daslu, mas com nota fiscal quente.

RETORNO - Tirei a imagem desta edição daqui.