O depoimento mais arrasador da tragédia que derreteu a paisagem de Santa Catarina, matando mais gente do que as estatísticas conseguem suportar, foi o do jovem pai de família que perdeu a mulher grávida e a filha pequena, que vi ontem no Jornal Nacional/RBS. Sua fala é a dor da perda maior, a da esperança. Como conviver com a impossibilidade de salvar a família, com a perspectiva de não ver nascer e crescer a criança esperada, que tinha até nome escolhido? Como não sofrer diante da mãe agarrada ao corpo da menina, encontrada depois, quando tudo estava perdido?
Pela primeira vez vi os apresentadores de televisão, que vivem forçando a barra para promover emoções baratas, ficarem realmente tocados com essa fala dita de maneira entrecortada, por alguém que expressou o grande abismo em que a população mergulhou depois que a chuva insistente e depois torrencial, provocou no belo estado que todos nós escolhemos para viver, mesmo os que ainda não vieram para cá.
Santa Catarina sempre foi a garantia de que nem tudo está perdido. Se você vive décadas numa estação de horrores, como os megacentros urbanos malcheirosos e violentos, quando chega nesse aprazível lugar se encanta e quer ficar para sempre. É assim que acontece. É tão avassaladora essa tendência de vir para cá que ontem estive no correio para enviar uma encomenda para Uruguaiana quando, ao meu lado, uma família inteira perguntava para a moça que atendia como fazer chegar uma carta exatamente na terra natal deles, Uruguaiana. Isso serve para várias outras regiões, que não cansam de enviar gente para cá. Ou seja, é todo mundo mesmo.
Por isso dói demais ver a calamidade que este lugar privilegiado se transformou, virando o foco do noticiário com seus alagamentos, deslizamentos, afogamentos, mortes, miséria, saques, desespero, choro. Por que, meu Deus? Porque temos que passar essa dura prova, neste pedaço de Brasil que parece ter jeito, onde ainda existe ou existia paz, reconhecimento mútuo, coletividade? Pessoas preocupadas me telefonam de Campo Grande, Amsterdam, Imbé, Porto Alegre. Querem saber como estamos. Estamos bem, pois aqui no norte da ilha fomos poupados, felizmente, com algumas exceções, alagamentos em servidões (as pequenas ruas que existem por aqui). Mas estamos arrasados.
Redescobrimos que nossa tranqüilidade não vem da nação que habitamos, mas da firmeza do clima. Se ele estiver bom, tudo pode ser resolvido, até mesmo a ditadura que nos governa. Mas se redemoinhos de centenas de quilômetros se movimentam em sentido anti-horário, capturando milhões de toneladas da água do mar, para jogar sem cessar em cima de nós, então não tem remédio, não tem mais jeito. É uma espécie de traição. É como romper as regras do jogo só para humilhar o adversário. Onde está o sol, que não seja ardido e prenúncio de mais chuva? Onde está a praia, impossível de freqüentar com tanta intempérie?
Uma rocha de duas mil toneladas pousa na pista da BR-101. Dois milhões de quilos é brincadeira. Para você trafegar nessa estrada, que normalmente já é precária, vai ter que remover um asteróide de médias dimensões? Para voltar a circular, é preciso implodir um Himalaia de granito? E a bucólica rodovia SC-401, a que nos liga ao centro de Florianópolis, serpenteando entre verdes morros? Há uma semana está interditada e o troço vai demorar ainda mais vinte dias. Os morros despencaram brutalmente, me deixando de cabelo em pé. Eu queria achar que aquilo estava acontecendo longe daqui, mas me alertaram, gritaram no meu ouvido: É apenas uns 10 quilômetros daqui, ali na curva, entende? Ali? dizia eu, incrédulo. Mas eu passava por ali todos os dias. Ali mesmo!
Não quero falar mal de ninguém, mas fico pasmo diante das explosões em bloqueios onde devem existir ainda pessoas soterradas; queixas de que os mantimentos e recursos não podem ser transportadas (claro, choveu! foi por isso que enviaram os mantimentos, seu); helicópteros cheios de autoridades que descem em áreas de risco e não carregam ninguém porque estão lotados (inacreditável!); soberba na hora de fazer o balanço achando quem tudo é culpa da natureza. Não é não. Vamos assumir uma ponta da culpa. Isso não quer dizer que devemos negar a grande movimentação solidária, o heroísmo dos bombeiros, vítimas e voluntários, a generosidade de quem envia ajuda. Tudo isso é verdade, é louvável e quem precisa levanta as mãos para o alto. Mas vamos analisar o que aconteceu. Desde o derretimento da paisagem até os processos de salvamento. Vamos ver o que há, para saber melhor o que há de vir.
Afora, isso, rezar. Deus nos proteja.
RETORNO - Imagem de hoje: Renascimento de Santa Catarina, de Rafael (1483-1520). Mulher de grande cultura e sabedoria, dobrou as eminências do reino de Alexandria e foi perseguida pelo rei, que a encarcerou e torturou. Seu milagre foi enfrentar a morte e o suplício mantendo-se fiel ao que sabia e aprendeu. Rogai por nós.
Pela primeira vez vi os apresentadores de televisão, que vivem forçando a barra para promover emoções baratas, ficarem realmente tocados com essa fala dita de maneira entrecortada, por alguém que expressou o grande abismo em que a população mergulhou depois que a chuva insistente e depois torrencial, provocou no belo estado que todos nós escolhemos para viver, mesmo os que ainda não vieram para cá.
Santa Catarina sempre foi a garantia de que nem tudo está perdido. Se você vive décadas numa estação de horrores, como os megacentros urbanos malcheirosos e violentos, quando chega nesse aprazível lugar se encanta e quer ficar para sempre. É assim que acontece. É tão avassaladora essa tendência de vir para cá que ontem estive no correio para enviar uma encomenda para Uruguaiana quando, ao meu lado, uma família inteira perguntava para a moça que atendia como fazer chegar uma carta exatamente na terra natal deles, Uruguaiana. Isso serve para várias outras regiões, que não cansam de enviar gente para cá. Ou seja, é todo mundo mesmo.
Por isso dói demais ver a calamidade que este lugar privilegiado se transformou, virando o foco do noticiário com seus alagamentos, deslizamentos, afogamentos, mortes, miséria, saques, desespero, choro. Por que, meu Deus? Porque temos que passar essa dura prova, neste pedaço de Brasil que parece ter jeito, onde ainda existe ou existia paz, reconhecimento mútuo, coletividade? Pessoas preocupadas me telefonam de Campo Grande, Amsterdam, Imbé, Porto Alegre. Querem saber como estamos. Estamos bem, pois aqui no norte da ilha fomos poupados, felizmente, com algumas exceções, alagamentos em servidões (as pequenas ruas que existem por aqui). Mas estamos arrasados.
Redescobrimos que nossa tranqüilidade não vem da nação que habitamos, mas da firmeza do clima. Se ele estiver bom, tudo pode ser resolvido, até mesmo a ditadura que nos governa. Mas se redemoinhos de centenas de quilômetros se movimentam em sentido anti-horário, capturando milhões de toneladas da água do mar, para jogar sem cessar em cima de nós, então não tem remédio, não tem mais jeito. É uma espécie de traição. É como romper as regras do jogo só para humilhar o adversário. Onde está o sol, que não seja ardido e prenúncio de mais chuva? Onde está a praia, impossível de freqüentar com tanta intempérie?
Uma rocha de duas mil toneladas pousa na pista da BR-101. Dois milhões de quilos é brincadeira. Para você trafegar nessa estrada, que normalmente já é precária, vai ter que remover um asteróide de médias dimensões? Para voltar a circular, é preciso implodir um Himalaia de granito? E a bucólica rodovia SC-401, a que nos liga ao centro de Florianópolis, serpenteando entre verdes morros? Há uma semana está interditada e o troço vai demorar ainda mais vinte dias. Os morros despencaram brutalmente, me deixando de cabelo em pé. Eu queria achar que aquilo estava acontecendo longe daqui, mas me alertaram, gritaram no meu ouvido: É apenas uns 10 quilômetros daqui, ali na curva, entende? Ali? dizia eu, incrédulo. Mas eu passava por ali todos os dias. Ali mesmo!
Não quero falar mal de ninguém, mas fico pasmo diante das explosões em bloqueios onde devem existir ainda pessoas soterradas; queixas de que os mantimentos e recursos não podem ser transportadas (claro, choveu! foi por isso que enviaram os mantimentos, seu); helicópteros cheios de autoridades que descem em áreas de risco e não carregam ninguém porque estão lotados (inacreditável!); soberba na hora de fazer o balanço achando quem tudo é culpa da natureza. Não é não. Vamos assumir uma ponta da culpa. Isso não quer dizer que devemos negar a grande movimentação solidária, o heroísmo dos bombeiros, vítimas e voluntários, a generosidade de quem envia ajuda. Tudo isso é verdade, é louvável e quem precisa levanta as mãos para o alto. Mas vamos analisar o que aconteceu. Desde o derretimento da paisagem até os processos de salvamento. Vamos ver o que há, para saber melhor o que há de vir.
Afora, isso, rezar. Deus nos proteja.
RETORNO - Imagem de hoje: Renascimento de Santa Catarina, de Rafael (1483-1520). Mulher de grande cultura e sabedoria, dobrou as eminências do reino de Alexandria e foi perseguida pelo rei, que a encarcerou e torturou. Seu milagre foi enfrentar a morte e o suplício mantendo-se fiel ao que sabia e aprendeu. Rogai por nós.
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