28 de maio de 2021

ÁRVORE

 Nei Duclós 


Brilha o sol da tua presença, amor que demora

Gastei os pés depois que foste embora

Na pista do teu rosto, ave canora

Corpo de armadilha na sombra das portas


Agora assomas inteira como árvore 

Solitária no campo surrado de amoras

Fustigas o vênto, sopro de rosas

No canteiro de junho, próxima flora 


Vivo desta tua devassa glória 

És o alimento da minha aurora

Coração que nada e ninguém  joga fora

AMETISTAS

 Nei Duclós 


Morena de mar, de viagens longínquas 

Honraste, mulher, farda branca da  Marinha

Não chegaste a capitã, no meio do caminho

Abandonaste  a carreira  para exercer um ofício

Explorar ametistas em remotas ilhas

E percorrer os portos com teu olhar felino


Todos te temiam , negociante exímia

A ninguém te entregaste, ardor em fogo brando

Até que me   viste, poeta mendigo

De mãos rudes e palavras de espinho


Navegamos separados em navios mercantes

Só num lugar perdido colocamos em dia

O amor que brotou quando corremos perigo



24 de maio de 2021

DISFARCE

 Nei Duclós 


O HOMEM primitivo era capaz de tudo

Pirâmides monumentos megalíticos impossíveis de ser reproduzidos

Códigos de leis em papiros

Alta literatura 

Sistemas econômicos em registros de barro

Arte profunda em grutas milenares

Astronomia sofisticada impérios incríveis


Mas seu maior feito foi disfarcar-se do que nunca foi

Um tosco  adorador do Sol e autor de humanos sacrifícios


Foi generosidade dele

Nos convencer

Que somos evoluídos

Quando apenas decaimos

Aves sem asas no abismo



23 de maio de 2021

CIRCULAR

 Nei Duclós 


Lembro vagamente como neblina da memória

Algo que marquei  como evento raro  

E que não tinha qualquer referência  


E hoje ao citar fico na dúvida

Se de fato significa meu recorte


O tempo é  circular

Mas atola

22 de maio de 2021

O SANGUE

 Nei Duclós 


O sangue é  íntimo

Mais que a saliva 

Mais que o ronco 


O sangue mancha 

Mais que a tinta

Mais que o vinho


O sangue não é água

Assim mesmo  molha

Mais que a lágrima 


Depois seca 

Vira casca 

Sinal na testa


O sangue surta

Espesso, sórdido 

Álibi  perfeito

Se me pões à prova 


Sangue é espera 

Marca de linhagem

Rescaldo de coragem 


Sangue não aguarda

Verte sem limite

Inunda na batalha



19 de maio de 2021

ESQUEÇO

 Nei Duclós 


Esqueço  quem és 

Nome de neblina no vazio da memória

Andamos para trás 

Como um navio que bate no cais


Assomas então em alto mar

És sereia que veio me buscar

O sal te batizou, ninfa virtual

Canto de doçura  mortal 



DECISÃO

Nei Duclós


É traiçoeira a decisão de abandonar o verso épico 

Que pega carona na História ou a natureza 

E descreve inflamado a ruptura , o heroismo, a queda ou a glória 


Dedicar-se à  quirera dos dias

Ao rés  do chão às  formigas às  raízes e sementes

E desviar o olhar gigante para mergulhar nos tijolos,  pedras, paredes


Pois corre -se o risco  de ficar no barro

Só para provar que somos comuns e humanos 

Isso não vale o esforço pois todos concordarão que não és  de nada

Incapaz de uma odisseia , uma parada

Quando sabes mais do que ninguém que podes despertar na barca

E com a mão para o céu amainar a tempestade 



VAI E VEM

 Nei Duclós 


Pensando em voltar

antes de ir embora

Sair é corpo que retorna

um dia a pé fora de hora


Fico para não perder a viagem

Vivemos fixos como árvores

Estamos só de passagem



PRAIAS

 Nei Duclós 


Você preenche meu espaço

aberto por motivos obscuros

E que fica abandonado

Em praias que ainda pulsam


Você deita na areia

E atrai pássaros do continente

Não tenho tempo de perder- te



FAVORITA

 Nei Duclós 


Mulher é favorita quando cuida dos detalhes

Brinco de ouro, amor ao trabalho

E que dá dura quando pisas na bola


Mulher dá o grito quando  o perigo se acerca

Antes que atines a tempo, palerma

Fareja o inimigo que por algum motivo

Invade a casa com a cara lambida


Mulher não gosta de ser escrava

Varrer sozinha, aguentar no talo

Até arrebentar-se os mesmos problemas

Que também são teus, mas não compartilhados


Nem prefere que tracem seu perfil forçado  

Como se fosse a imagem de um reino remoto

É  mulher apenas e agora cale-se

Tire toda a roupa e lave

A louça que deixas acumulada



17 de maio de 2021

CALOR

 Nei Duclós 


No meio da conversa

a mão caiu sem querer em seu colo 

Que pegou fogo

Enquanto exércitos invasores despertavam 

Atraídos pelo calor e as fagulhas


O beijo foi o gatilho

para o que a natureza ordena

Sem precisar do poema


OGRO

 Nei Duclós 


De você quero saber ao certo

Se me ama, basicamente 

Se estou jogando a vida fora

Ao insistir nisso todo o tempo


O resto

Quem és e onde moras

Eu deixo para o perfil do face

Que jamais visito 

Pois te  vejo sempre

Ao vivo na calçada em frente


Se me olhas fico contente

Se ignoras não faz diferença 

Sou a solidão da rua, ogro impenitente

A exibir para a lua meus cabelos brancos


Vivo de amor

Mulher que não  pertence

A nenhum de nós 

Do gênero  carente

Que só oferece o espanto dos sobreviventes 



ABJETOS

 Nei Duclós 


Chinelo faz cama de gato quando é  trocado pela sandália

Atrapalha o passo atacando aos pares

Fios de uso diverso se enroscam como apaixonados

O fone de ouvido abraça a ligação de vídeo

Roupas velhas estão sempre prontas para sair

Às novas se escondem em lugares improváveis 

Os óculos desaparecem no lugar de sempre e lá são reencontrados

O chapéu de palha se emburra quando chega o inverno

E a boina de lã faz a serventia da casa 


Os objetos são  sujeitos complicados

E nós  seus abjetos servos



SURPRESA

 Nei Duclós 


Sonhei em retribuir todos os gestos

Do mínimo mimo à  dívida impagável 

Com excesso de pacotes e presentes caros

E as pessoas que me fizeram o bem agradecidas

Choravam em meu ombro num assombro


Só que fiquei sem recursos no início da fantasia

 acenei para todos como numa promessa

 

Ninguém notou a intenção expressa

E retribuíram - mais um vez - com carinhoso apreço 



SEPARAÇÃO

Nei Duclós


Às  vezes não  há  mais conserto 

E foi-se para sempre o que não tinha preço 

E ficaste só, como cacto no deserto 

Voando sobre o mar sem pouso


Conselhos são areia

Consolos, água no penhasco

Tens o mundo sem arrimo, a casa vazia, a mesa indisposta

E todos falam sem te dar resposta


É quando descobres que estar sozinho 

Pode ser Deus, pilar de um novo templo

Ou pássaro peregrino, amor faminto

Que vem de longe com o alimento



15 de maio de 2021

TRUQUES

 Nei Duclós 


Quando me pinto comum é  para dizer que sou raro

Quando digo que ignoro mostro o perfil do sábio

Quando falo que arrebento

Expresso minha gentileza

Ao confessar-me lerdo é  porque nasci com pressa

Analiso obra alheia para creditar meu talento

Se provo ser um covarde melhor sair da minha frente


Se faço autocrítica não concorde

Eu tenho outro por dentro 

Olhe, veja, note

Os truques de alguém   autêntico 



NA MESA COMUM

 Nei Duclós 


Tenho fé mas pouco demonstro

Minhas  orações não alcançam o que sinto

Espero milagres sem fazer esforço 

Apenas com as lições  do catecismo 


Peguei carona nos eventos maristas

Na missa das oito de domingo

Que reunia  crianças no alvoroço 


E com essa bagagem caí  na vida

Os santos velavam por eu ter sido moço 


Mas o despertador tocou depois de muitos anos 

Deus toma a lição dos repetentes

Quem está no céu? E à  mão direita

Vive o Filho ou algum outro?


Perdão pelo desleixo. Fiz da poesia meu esboço 

De um templo sagrado mas humano

A  Trindade entende, tenho certeza

Poema é  a verdade, meu pão e  vinho

Arte é  Eucaristia à  sua maneira

Todos são convivas ao redor da mesa



MOTIVOS

 Nei Duclós 


Não  é  o bibelô ou a pele de louça

As linhas perfeitas do rosto 

A pose pornô, o nudes de estúdio 

Ou a veste rica, o sucesso na tela

Os motivos profundos de quem admira


A glória efêmera não produz impacto

Mas sim o amor sob a pele exposta 

A fantasia real na solidão aflita

O exercício da vida sonhada e sentida


Venha, musa 

Consinta esse toque

De  corações legitimos



14 de maio de 2021

FRIO

 Nei Duclós 


É  cedo para dormir

Tarde para acordar

Perigo de partir

Sonho de voltar


Nada nos espera

Na estação das horas 

Entramos sem bagagem

Saimos só a força 


O inverno é  peregrino

Viaja de carona

Chega sem aviso 

Antes que o outono morra


Não há sono suficiente

Para escaparmos da lua

Frio de água corrente

Vida feita de espuma



GARAGEM

Nei Duclós 


Faço  poemas pequenos

Porque cansei da epopéia 

Para expulsar os venenos

Para acender uma vela


Invoco a força dos anjos

Os olhos de Santa Clara

Pelo fim do sofrimento 

Pela arte feita em casa 


Nos ofícios de garagem 

Os antigos se superam

Palavras que o tempo ensina

Em serões da sua memória 



DESENHOS

 Nei Duclós 


Não sabemos nada

Por isso preferimos as hipóteses 

Que substituem não os fatos

Mas o que os fatos deveriam ser depois de desaparecerem


As versões cobrem o corpo da realidade 

Seduzem o olhar que sonha em ver tudo 

E que não atenta para o que deixam à  mostra

Os ombros

Desenhos explícitos em grutas ocultas



AGRESTE

 Nei Duclós 


Tens de mim a memória de um acordo 

Em que éramos um só no mesmo fôlego 

Não atinei no tempo que passou no entorno

E mantenho o amor, agora sem  reforço


Sou sem noção, pura fantasia

Sempre foste uma outra criatura

Que me deu a chance mas sumiu na poeira


Sou como os caras do faroeste 

Depois do fim do filme no íntimo deserto

Quero voltar mas nada me obedece 


11 de maio de 2021

AMARRA

 Nei Duclós 


Dispensei teus cuidados respondendo positivo 

Logo depois te despedes com figurinhas

Voltamos à infância no colégio

Divides a merenda me olhando sério 

Sou o cara dos teus sonhos, há séculos 

Armarraste meu  destino ao teu vestido 



10 de maio de 2021

INSONIA

 Nei Duclós 


Não durmo se você não me responde

Aguardo a noite toda seu boa noite

Como criança que segura o  sono 

Até vir o beijo do amor no rosto


Não sei porque demora esse simples gesto 

Como se houvesse esforço em retribuir o aceno

O pior é  ter de sofrer calado

Senão passo por carente ou bobo


Pensando bem estou pouco me lixandio

Vou dormir assim mesmo sem cobertor no inverno

Depois vais saber que passei frio e fome

E aí te arrependerás tarde demais, por certo


Na noite seguinte tudo recomeça 

Amar sem retorno é viver de insônia 

A não ser que venhas mesmo no sonho 

E me diga durma, seu grande teimoso



9 de maio de 2021

MINHA MÃE

 Nei Duclós 


Minha mãe se foi cedo, aos 62

Para mim, que hoje sou dez anos mais velho

ela era uma anciã, de lentes grossas devido à catarata

E ficava em pé cada vez mais frágil

Nunca vi minha mãe  correndo

Andava devagar e a tudo observava

Parada e só como árvore isolada no pampa


Criou sete filhos, sendo quatro marmanjos que lhe deram trabalho

e cada um jura que era o favorito

Levava as gurias para os bailes e a todos encaminhava nos estudos


Lecionava multidões de alunos que iam dividir o café da tarde conosco

Só sei até o ginásio, dizia

E isso bastava


Tecia puloveres com mangas enormes pois cresciamos e a lã durava mais de um inverno


Decifrava charadas dos jornais usando dicionário Lello

E foi a primeira leitora das minhas poesias

Aos dez anos eu já era um intelectual e dizia para ela

Fiz um poema mas acho que tu não vai entender

Ela achava a maior graça e contava para as amigas


Foi assim que eu não sendo nada virei coisa

Pela mão de quem representava a divindade na terra


ENIGMA

Nei Duclós 


Dormem os monumentos em formas incompreendidas

Deuses, animais, reis, altares velam nas pedras desse enigma


Talvez em sonho saibamos do que se trata

Mas acordados nossa lucidez está cega


Tateamos no escuro em plena luz do Sol


Desconhecer é  o verdadeiro abismo

Nas montanhas sagradas


Nei Duclós

6 de maio de 2021

ABERTA

 Nei Duclós 


As palavras apodrecem dentro de nós 

E isso nos adoece

Precisamos mudá-las de lugar


Levá-las para o alto mar

Com novas velas 

Escutar suas raizes

Livres das perdas


Elas vivem debaixo do teu olhar 

Amiga certa 

Teu coração enxerga 

Pulsam em tua veia poética 

Motor da circulação 


Venham, diga para elas

Aves de arribação 

Na vida aberta 



PERFUME

 Nei Duclós

Escrevo em teu vestido com letra imperceptível. Para leres depois, ao te despires. Levarás o verso ao rosto como se fosse perfume.

ARMADILHA

 Nei Duclós 


Teu corpo é  a roupa que revela

A oculta curva e os detalhes

Um só  brinco nenhuma costura

O véu que desce até mostrar o joelho


Parece  falsa essa cobertura

Por ser de seda e cor púrpura

Mas é a pele legítima em voo de  conquista 


Perdes o ar de musa e ajeitas a cintura

Arrumas um cisco no olho por disfarce

Deixas nus os ombros  pois todos   consentem

Sem saber que neles está  a armadilha


O golpe final é  o xale que providencias

Para depois tirá-lo frente ao príncipe

Que bobo se ajoelha por saber de sobra

que a única majestade 

é  a beleza feminina


A tua, tigra


OBRIGATÓRIO

 Nei Duclós 


Assuma o compromisso, me dizem

Para o tempo não parar no lixo 

Mas já conheço o resultado disso

O que é  obrigatório  vira confisco


Melhor deixar para lá 

Como na canção dos Beatles 

Sem pretensão à  sabedoria


Não me aconselhe

Nem siga meu caminho 

Faço tudo o que devo

Na fantasia que exerço com rigor

Todos os dias



OVERDOSE

 Nei Duclós 


Vou deixar passar essa foto 

Faz de conta que não vi 

Nem sempre suporto a beleza exposta por ti

Overdose de amor pode ferir

Guardo meu olhar para o que não esqueci



OUTRO LUGAR

Nei Duclós 


Parece indiferença mas é  solidão 

Deixo passar o gesto da paixão

Se pudesse voltar , mas não 

Já estás em  outro lugar, coração



RODIZIO

 Nei Duclós 


Só penso bobagem 

Não perco mais tempo  com coisa séria 


Não tem mais viagem 

Não vendo meu tempo para tirar férias 


Saiu da janela 

Não passa  mais gente querendo conversa


Não vou ao   cinema

Ninguém quer ficar só na plateia


Não quero notícias 

Ler vozes  no escuro dispensando a lanterna


Durmo de  dia

Para acordar com teu beijo sob o mesmo teto