30 de outubro de 2007

OSSO DURO DE ROER


Todo mundo já falou sobre Tropa de Elite, de José Padilha. É preciso abordá-lo pelo que é: um filme. Parece óbvio, mas quem disse que a vida é fácil? Ser um filme não quer dizer que nada tenha a ver com a realidade, com a polêmica, com a ideologia. Tem tudo a ver. Mas você estará mais perdido do que fogueteiro em fuga se não enxergar primeiro que se trata de obra cinematográfica, antes de ser o que sugere ser, ou seja, uma denúncia sobre a falência do Estado ou um mergulho na sociedade de classes, ou ainda um documento sobre corrupção e cumplicidade com o crime, ou pior, tomando o assunto pelo avesso, um estímulo à tortura e à matança geral.

Que filme é esse? Ele se sustenta numa coluna mestra: um narrador que participa da ação e enxerga as próprias contradições. O capitão Nascimento, personagem tão poderoso quanto o vilão (e mais tarde herói) Antônio das Mortes, de Glauber Rocha, é uma criatura inspirada em narradores clássicos do filme noir, que se baseavam em grandes escritores policiais como Dashiell Hammet e eram interpretados por atores antológicos como Robert Mitchum ou Humphrey Bogart. É desse paradigma que vem a visão crua dos fatos, a consciência ética misturada com cinismo, alimentadas pela impotência diante do Mal, assumido parcialmente no desfecho das tramas sinistras.

Esse personagem mudou de roupagem nos últimos anos, mas está mais presente do que nunca no cinema americano. São anti-heróis sem medo de morrer, obcecados por uma missão, um objetivo, e que apostam em si quando todo mundo deu de barato que estão perdidos. Há milhares de exemplos e basta citar “Duro de Matar”, com Bruce Willis, ou “Máquina Mortífera”, com Mel Gibson, para ver que a indústria audiovisual dos países ricos cuida da imagem dessa cidadania isolada e armada, que dentro ou fora das instituições assume o risco de decifrar o embrulho e transformar-se de coadjuvante em protagonista.

Mesmo que ele não desperte nenhuma aprovação dentro dos princípios humanistas, é inegável que tem carisma e exerce irresistível atração na cidadania afundada em rotinas de escravidão e miséria moral. Exercer uma atividade épica, objetiva, clara e sem retorno é a fantasia das pessoas amarradas a vidinhas supérfluas ou à mercê de toda espécie de tirania. O Brasil não tinha nada igual, até surgir o capitão Nascimento, brilhantemente interpretado por Wagner Moura.

O narrador onisciente, tão fora de moda por um tempo, quando se buscou romper com a composição romanesca tradicional, mas hoje mais presente do que nunca, conduz a história como quem não tem mais nada a perder. O personagem dói de tanto ver. Por ter cumprido sua missão, a seu modo e da forma errada, ele agora tem o território livre para dizer o que pensa, da maneira como quiser. Ele entrega todas, a começar pelos próprios companheiros de farda. Entrega de comandante ao praça, denunciando um sistema de corrupção que cuida de si próprio, deixando a segurança pública de lado. E descobre porque esse sistema não permite que nada decente medre na carreira policial.

Só esse enfoque faz do filme de Padilha uma explosão nuclear no bom-mocismo do cinema nacional. Diante da sucessão de filmes em que as pessoas tiram a roupa para mostrar como somos sexy, Tropa de Elite empolga as massas porque trabalha uma qualidade em desuso, a coragem, e constrói uma trama épica no país da dispersão nos detalhes, dos artificialismos pessoais.

Mas estamos falando do filme. Em torno do narrador, se contorcem as situações de risco, desde os tiroteios na favela até as aulas na faculdade. Estas, concentradas nos estudos do Mestre Foucault, não consegue enfrentar uma discussão séria com seus oponentes, já que os estudantes se guiam por um consenso ideológico sem contestações. A voz discordante, do policial que tenta ser advogado, ou seja, encontrar o caminho da Justiça na sua vocação de lutar contra o crime, acaba se reduzindo a pó diante de uma situação de guerra.

Tropa de Elite é sobre uma guerra coletiva, longe daqui (no cinema), aqui mesmo (ao nosso redor), para usar o título de uma peça de Antônio Bivar. É um filme que sobra. Não cabe em ataques ou defesas. É tremendamente dialético, inteligente até o osso, brutal até a exaustão, imoral, impróprio, desajustado. E super bem feito, com câmara em movimento sem frescuragens, apresentação didática dos problemas, definição antológica dos personagens (o que é aquela oficina de catraias policiais?!). É um filme de ação, sobre o Brasil que enxergamos só em parte. Agora podemos ver de frente e no final levar aquele tironaço no meio das fuças.

“Tropa de Elite, osso duro de roer. Pega um pega geral, também vai pegar você”.
RETORNO - Assista à entrevista de José Padilha na Folha.

CÉU DE BOMBA-ESTRELA


Nei Duclós (*)

A estabilidade é o capital simbólico do vôo. O olhar curioso, que vasculha o céu em busca de uma estrela diurna, repousa quando encontra o balanço sem nós de uma pipa, equilíbrio a sugerir excelência na arquitetura, fôlego nos materiais e alta definição nos detalhes. Destaca-se também o preparo do piloto, que manobra à distância.

Se, ao contrário, houver excessivo rodopio, mergulhos lancinantes, ameaças de cair em algum fio ou telhado, o espectador fica em sobressalto. A instabilidade significa péssimas intenções de abordagem, ansiedade em derrubar criaturas da mesma espécie, ou simplesmente falta de competência técnica. Pipa sem paz de espírito gera suspeita ao procurar algo que não lhe diz respeito.

Um objeto desses fazia parte de grande diversidade no território das nossas memórias. Em oposição à pipa, encarada como jogo da primeira infância, existia a bomba-estrela, que exigia habilidades de mestre de ofício. O corte de bambus longos, finos e resistentes, todos do mesmo tamanho, a partir de matéria-prima escassa e problemática (a taquara dos terrenos baldios), era apenas o primeiro passo.

Quando alguém se dedicava a construir uma bomba-estrela, imediatamente se fazia silêncio absoluto. Era permitido que os mais chegados vissem de perto o andamento dos trabalhos, sem jamais dar palpites, pois uma oficina que gera o deslumbramento não pode ser interrompida pelo grasnar dos leigos. Os menos considerados chegavam a esconder-se atrás das árvores, para só espiar de vez em quando.

A devoção fazia parte do ambiente que circundava a obra. Bomba-estrela só poderia levantar vôo em épocas sagradas do calendário, como nas virações violentas da primavera. Implicava grosso investimento em papéis de cores variadas, fundamentais para vestir a majestade. Impunha cola de primeira linha, e não o expediente maroto de misturar farinha com água (a glória não permitia o grude). E os barbantes deveriam resistir às tempestades.

Como o dinheiro era escasso, a bomba-estrela provinha da generosidade dos adultos ou da súbita união dos desiguais, que abriam mão das adversidades para viabilizar o sonho de ver o bólido fazendo inveja na vizinhança. Havia sempre um motivo nobre para a empreitada. No meu caso, meu pai cacifou uma enorme bomba-estrela, daquelas com roncador e tudo, para me dar de presente de aniversário.

Quando o gigante ficou pronto, ultrapassava minha altura. Impressionava até mesmo os autores da façanha, que cuidaram da decolagem. O monstro subiu ruidoso como um dragão de matinê. Mas a ordem paterna era que eu me apossasse da operação. Então fui amarrado pela cintura por grossa corda que empinava o bruto. Por pouco não fui varrido do mapa. Salvou-me o choro, que liberou a prenda para quem a construíra, sob o olhar assombrado da Inocência.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 30 de outubro de 2007, no caderno Variedades do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: foto de Alexander Rodshenko, publicada na edição 29 da revista Sagarana, que pela quinta edição consecutiva está apresentado um painel dos maiores fotógrafos do século Vinte. 3. Agradeço a todos que fizeram de ontem, dia 29, o melhor aniversário destes anos recentes. Ganhei dois presentaços. Um, do meu irmão Luís Carlos (que veio me visitar) o painel reproduzindo página dupla da Zero Hora de 1974, editada por Juarez Fonseca e fotografada por Eneida Serrano, que apresenta meus 25 anos ao lado de alguns poemas. Outro, de Miguel Duclós, que por enquanto é segredo, mas que certamente vai gerar post nas próximas edições do Diário da Fonte. E dezenas de felicitações vindas pelo Orkut, e-mail e telefone.

29 de outubro de 2007

A FORÇA DA PESSOA



A vida pessoal nada tem a ver com a pessoa. Onde cabe Zaratustra na cama de enfermo de Nietzche? E Nietzche é Zaratustra, essa é a persona, essa é a que vale. Isso se aplica indefinidamente. É moda agora dizer que o Imperador foi para o matinho na hora de proclamar a Independência. Ou que Deodoro acabou com o Império vestindo pijamas. Ou seja, estão confundido tudo. Temos um corpo precário, escasso e datado. O que somos não são nossos espirros, mas a viagem profunda que fazemos no Tempo e a marca que conseguimos imprimir nele. Isso fica claro quando falamos de Nara Leão.

A Globo resolveu colocar sua colher torta na Bossa Nova mostrando num especial recente a Narinha sem voz, que se apaixonou pelo Bôscoli, que teve filhos e que sei eu mais. Perderam o principal de Nara. Ela é a voz do Brasil insurgente, de vanguarda, que ao levantar um braço levantava o coração do país. No especial inclusive quiseram tirar seu papel de musa, já que ela participava ativamente, fisicamente, dos shows e de tudo o mais. Musa sim, inspiradora, persona que se colocou no alto, de onde se vê a planície.

De cara, esse sujeito que parece ser tão boa praça que é Nelso Motta assume o serviço sujo de dizer que Nara tinha uma voz pequenininha, mas que fez mais ‘barulho” do que todos os outros. Ou seja, não entendeu nada, apesar de se tentar se colocar no centro dos acontecimentos. Nara não tinha vozinha coisa nenhuma, nem fez barulho, quem faz barulho são essas porcarias que tomaram conta da audição do país. Tinha uma voz fora do circuito dos preconceitos. Sua voz não se opunha ao vozeirão nem se ligava aos sem-voz. Era voz fruto de uma articulação cultural poderosa, a do país gigante que transcendeu depois de cinco séculos de sofrimento e luta e dava o seu recado com a perfeição absoluta da melhor música do mundo.

Mas não aceitaram Nara, ficaram falando dos seus joelhos, do seu cabelo, da sua irmã, do seu marido, do seu rompimento com a Bossa Nova. Nara compôs a voz do país que não deveria se entregar e isso não a coloca entre os artistas de protesto. Ela não protestava, ela afirmava. Quem protestava contra ela eram os outros. Sua participação no show Opinião foi de inúmeras inaugurações. Reuniu João do Vale, do nordeste, com Zé Ketti, do morro. Expressou as denúncias da militância política. Sentou-se no palco para ajudar a enterrar o artificialismo teatral, inaugurando o informalismo ligado diretamente com a necessidade que tínhamos de mudar.

Foi a responsável por ter trazido Maria Betânia e Caetano Veloso da Bahia. Revelou Cartola. Buscou sempre artistas escondidos, o grande país oculto. Trouxe para a vitrine do Brasil, o Rio de Janeiro, o que tínhamos de mais forte e verdadeiro. Lá na fronteira onde nasci e me criei, toda vez que ela cantava Opinião eu ficava de pé e levantava um braço. Ela me tirava da mesmice. Nara sempre foi maior. O que tem a ver a adolescente do apartamento, a mãe de família, a portadora de uma doença terminal? Tudo isso é vida pessoal, não a pessoa.

Basta existir um gênio para alguém ir pesquisar quantas vezes ele cometeu deslizes, revelou sua precariedade. É uma espécie de vingança que a mediocridade pratica contra o gênio. “Ah, mas se ele defeca então é como nós e se for igual a nós, idiotas monumentais, então tudo está resolvido”. Assim, os imbecis podem conviver com sua própria grossura , enquanto a genialidade cada vez mais é enterrada.

Conheci Zé Keti no final dos anos 80, numa fase braba, em que ele não tinha um tostão e guardava dezenas de músicas maravilhosas, inéditas, na gaveta. Fui a uma feijoada no seu apartamento, a seu convite. Cantou para mim, o que é um privilégio sem tamanho. Vi de perto o gênio, que se foi pobre e esquecido e que agora recebe incensos variados por ter feito o que fez. Deveriam apoiá-lo na vida pessoal para que a pessoa não fosse prejudicada. Não deveriam tê-lo enterrado vivo. Jogaram Zé Keti contra o muro da sua vida pessoal enquanto guardavam seus grandes feitos para deglutição posterior.

Zé Keti e Nara Leão ficam: “Se não tem água, eu furo um poço, se não tem carne eu ponho um osso na sopa e deixo andar, deixo andar” disseram eles no show que marcou o país. Contra nosso acomodamento. A favor da mudança real, verdadeira. Quando mudarmos de fato, entenderemos Nara e sua grande voz.

28 de outubro de 2007

FICÇÃO ALIMENTAR


Uma das ficções mais perniciosas que nos dominam é a da indústria alimentícia. O que vendem nos supermercados, principalmente nas tais ofertas? Manipulações variadas de soja transgênica, envenenadas por produtos químicos para garantir a longevidade do produto, embaladas de maneira colorida e mentirosa. Sem falar na quantidade de bebidas inúteis, que as pessoas levam às toneladas, como se precisassem de quilos de açúcar concentrados em garrafas pet, ou álcool acompanhado por imagens de mulheres gostosas. Seja macho, beba. Seja feliz e tenha família perfeita, basta passar gordura artificial no seu pãozinho branco.

Os prazos de validade são impressionantes. Como um troço feito para comer ou beber pode valer por dois anos? Vejam o leite Longa Vida. Agora caiu a ficha que é leite pôdre trabalhado com água oxigenada e soda cáustica. Pegaram uma megaempresa mineira que distribuía 300 mil litros por dia para todo o Brasil. É um assombro. O leite tem que ser produzido e distribuído localmente. Precisa estar vivo para chegar às crianças e aos idosos, e, de quebra, aos adultos. Assim como os legumes e frutas. Cansei de comprar pêssego chileno caríssimo que se revela em casa esponjoso, passado, amargo. Maçãs que apodrecem mantendo o brilho da casca. Mamões que passam do estado verde total para intragável absoluto. Pulam o período da maturação.

Há artificialismo em tudo. Colocam os alimentos sob condições anti-naturais para que eles possam ser comercializados fora da temporada. Você tem acesso a veneno o tempo inteiro. O mais grave é que te viciam. A pessoa fica cansada, doente, obesa, mas não consegue atinar que a fonte de tanta desgraça está nas prateleiras, apresentadas de maneira sedutora. As mensagens comerciais que nos massacram têm tudo a ver com o crime. Eles te oferecem carne pôdre em oferta, te atraem para preços baixos e você chega lá e vê que apenas algumas porcarias estão abaixo da tabela, o resto continua ainda mais caro.

Uma coisa que não entendo é como os produtos naturais são tão acima das nossas posses. Deve ser por falta de produção em escala. Como produzem pouco, então o preço unitário vai para as alturas. O arroz integral, que não ganha aqueles banhos químicos para torná-lo caucasiano, ou seja, o arroz moreninho com sua película protetora intacta, fonte de proteínas e vitaminas, custa mais do que o dobro do que o branquelo. Qualquer verdura sem agrotóxicos exige uma fortuna. Se houver possibilidade de investimento, esse é o canal: livrar-se das barbaridades alimentícias e se concentrar apenas em alimentos vivos. Viciar neles e obter resultado imediato. Tudo melhora, a começar por sua aparência.

Precisa apenas escapar das obsessões e das culpas. Está cheio de espírito de porco querendo te mostrar como a coisa funciona. Você está comprando algumas coisas naturais no empório e lá vem o entendido dizendo para colocar mel na salada, que fica uma delícia. Pára com isso. Ou então, se você confessar que só come produtos naturais, alguém vir contar alguma história escabrosa envolvendo macrobióticos e outros pesadelos. O ideal é romper com a ficção alimentar sem dar bandeira. Quando estiveres emagrecendo, vai chover espírito de porco dizendo como você engordou. Faz parte. A humanidade é um projeto perdido.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Ceagesp, por Marcelo Min. 2. Não vi ainda "Tropa de Elite", o filme da hora. Mas Urariano Mota viu. Leia.

26 de outubro de 2007

OLHO BRANCO NÃO REVERTE


Olho branco é aquele jorro de suspeita que cai sobre uma criatura. Por mais que ela se movimente, se justifique, se explique, mais se enreda. Para funcionar, o olho branco precisa vir de quem tem poder, uma autoridade ou uma turba armada de mídia até os dentes. Vamos pegar dois casos de pessoas que foram alvo do olho branco. Uma delas é o Padre Julio Lancellotti, de São Paulo. Há quanto tempo lemos que o padre está sob a mira dos esquadrões da morte, os que sapateiam em cima da miséria da infância e adolescência abandonada? Eu leio há séculos. Pois agora encontraram um bom motivo para enredá-lo.

O padre, segundo seu depoimento à polícia, foi chantageado por alguém que ele sonhava em ajudar, em “tocar no seu coração para entender”, como disse. Imediatamente o caso virou um assunto de pedofilia. Claro, era isso que seus adversários queriam. Já que o padre cuida dos menores, e além disso é padre (há uma onda mundial de condenações de sacerdotes impondo sexo a crianças), então bingo. Como ninguém segue o noticiário de maneira isenta, aprofundada (a mídia não permite), então fica a percepção de que o padre teve o que merecia.

Mesmo que prove sua inocência, está já condenado. Que história é essa de pagar grandes quantias de dinheiro para aplacar a chantagem? E o Pajero? Notem que tem sempre um carrão em qualquer escândalo. O carrão é o símbolo da prepotência e da impunidade. Esta é uma situação complicada. Se for comprovada a culpa, deve ser levado em consideração o período em que o padre foi acusado, pressionado, cercado, caluniado. O olho branco escolheu-o e a vítima está frita.

Culpado ou inocente, o que conta é a versão cristalizada pela má-fé. Pois só pode ser má-fé colocar em suspeita um trabalho social como o do padre Julio Lancellotti, que arrisca a vida todos os dias para temperar um problema causado por décadas de ditadura brasileira.

Outra pessoa que caiu nas garras da condenação de massa foi o genetecista James Watson, prêmio Nobel de Medicina de 1962 e um dos co-autores da descoberta do DNA. Ele falou (e depois explicou num artigo) que há diferenças de inteligência provocadas pelos gens. Usou um exemplo infeliz, o dos africanos, mas disse à exaustão que não considerava os africanos inferiores, apenas diferentes. Como raça não existe, é claro que Watson cometeu um crime de opinião gigantesco, mas o que destaco aqui é a força do olho branco. Existe em escala mundial uma enorme má vontade em relação a qualquer tipo de opinião divergente do chamado politicamente correto.

Não se pode cometer nenhum deslize sob pena de ser colhido pela indústria da vilanização. Será que todos os que destruíram a reputação de Watson, eliminando sua chance de dar uma série de conferências, são tão inocentes assim? O racismo tem raízes profundas e não é exclusivo de Watson. A verdade é que os estudos da genética ainda estão no início. Por enquanto, parece que tudo é atribuído aos gens. Esse erro fundamental aos poucos vai ser eliminado por pesquisas científicas. É o que esperamos.

Deveriam aproveitar a declaração desastrada de Watson para discutir a influência dos estudos da genética na reiteração do racismo. Deveriam manter suas conferências e sabatiná-lo. E não simplesmente mandar o velhinho (ele tem 79 anos) de volta para casa. Não deve haver maior amargura do que ser colhido por uma tempestade de olho branco, e ficar observando o quanto existe de prestígio imerecido entre aqueles que posam de heróis da opinião correta.

Não conheço o trabalho de Watson, não defendo sua declaração. Apenas aponto o perigo da brutalidade da indústria midiática que pode escolher qualquer um para destruir vidas e carreiras. Ontem, o Linha Direta, da Globo, abordou o assassinato de uma menina no Rio, em 1985. Os assassinos estão soltos. O principal cumpriu nove anos, o outro nem isso (há um terceiro, que morreu mais tarde de ataque cardíaco). O cara que matou está jogando vôlei na praia. Quando não há interesse, deixa-se para lá. Só existe condenação de verdade quando, por trás das falsas virtudes, se escondem os mais torpes interesses.

Em relação ao Padre Julio Lancellotti, sabemos qual é. Tem gente que quer continuar matando impunemente, pois vivem dessa indústria. Em relação a Watson (que, insisto, errou, não me venham de olho branco para cá), qual será? Uma coisa que me invoca é o seguinte. Por que fazem tanta questão de chamar de afro-descendente as pessoas de pele negra? Descobriram esses tempos que uma ginasta negra brasileira tinha 60 por cento de “sangue” europeu. Se for descendente de alemão ou italiano, é batata: é alemão ou italiano mesmo, e não euro-descendente. Se for negro, é afro-descendente?

O que existem são os brasileiros, mas todos sabemos que os brasileiros não existem. Ou pelo menos, não existem mais. Brasileiro não serve para se descolar uma grana preta do imperialismo metido a ético. Agora, se houver negro na parada, opa! Paris, aqui vão eles.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: foto de Marcelo Min. 2. Atenção : "olho branco" é uma expressão antiga e conhecida. Nada tem a ver com a cor branca ou negra da pele.

24 de outubro de 2007

SOLDADOS DE SALAMINA


Soldados de Salamina (2001) , a premiada e bem sucedida novela de Javier Cercas, é sobre a reconciliação nacional na Espanha depois da queda do franquismo, quando era necessário revisitar as feridas abertas da Guerra Civil de 1936 a 1939. Foi sucesso por vários motivos. Primeiro, pela súbita notoriedade que adquiriu quando foi descoberta por Mario Vargas Llosa, o que colocou o livro no circuito da leitura obrigatória. Segundo, porque aborda a relação contemporânea da Espanha com o passado, como notou o cineasta David Trueba ao levar a história para o cinema em 2002, filme que vi ontem e que é absolutamente magnífico.

E terceiro, exatamente porque tocou no ponto principal do país dividido: a necessidade de reconquistar a união nacional, por meio não do perdão puro e simples, mas do entendimento de que a vida precisa ser hegemônica sobre a celebração da morte. Mantenha-se a diversidade, mas um ponto comum é preciso ser acertado, o da convivência por meio do resgate franco e aberto dos fatos que ensagüentaram o país.

Não é uma tarefa simples nem tranqüila. O livro virou alvo de críticas contundentes, sendo acusado de promover a recostura da cultura patriarcal e excludente, já que se trata do resgate de um episódio obscuro, o motivo que fez um líder fascista espanhol ser poupado por um soldado que deveria fuzilá-lo. Cercas enfrentou seu touro a unha e saiu-se bem. Abordou os dois lados da tragédia, por meio de um momento único, o olhar entre o carrasco e a vítima, ambos envolvidos num conflito que dizia respeito a suas ideologias, mas jamais à humanidade de cada um.

Trueba, jovem diretor eficiente e sensível, tem o cuidado de criar uma obra cinematográfica que não se rende à emoção. É enxuta o tempo todo ao seguir os passos de um Dedalus feminino, que usa o fio da investigação dentro do labirinto para encontrar a essência da sua história. “Esquecemos de filmar a emoção”, diz ele, debochando, no making of, depois de fazer uma cena. Ele não filma a emoção, mas faz um filme emocionante. Consegue porque usou o livro como fundamento, graças ao entendimento que teve com Cercas num longo convívio que chegou a cruzar as festas de fim de ano na virada de 2002.

Trueba muda o sexo do protagonista, que no livro é homem, o próprio Cercas, ou melhor, um personagem totalmente colado no autor. No filme é a mulher que vai em busca da própria salvação, pois o que procura é exatamente voltar ao seu ofício perdido, o de escritora. Conta para isso com o apoio de quem lhe quer bem, a amiga das cartas de Tarot e os personagens que entrevista, todos eles gratificados por serem alvo da sua atenção.

O encontro final, com o principal personagem, exatamente o soldado que poupou o líder fascista, é de arrebentar. Mais não conto para não tirar a graça. Leitores e espectadores merecem ter sua própria percepção desse trabalho maravilhoso que os espanhóis nos legaram. Precisamos nos mirar nesse exemplo: nos reconciliar, olhar com absoluta serenidade o Outro no momento extremo, quando nos defrontamos para nos eliminar. Deixar que a vida resolva a situação, e que a alegria transpareça e nos trespasse como um flecha excêntrica de Cupido, o deus travesso.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: cena de "Soldados de Salamina", de David Trueba. 2. Vi esse filme graças à competência do historiador Marcelo Andrades, que trouxe para sua Arquipélago Videolocadora (48-3269-1011 / 8806-5855) filmes cults de várias procedências, inundando o norte da ilha com cultura. 3. Quem me revelou Cercas foi Wagner Carelli, na época em que trabalhei com ele na W11 Editores. Carelli lançou a tradução brasileira de Soldados de Salamina na Editora Globo e escreveu a apresentação. 4. Usei uma frase de Soldados de Salamina como epígrafe do meu livro Universo Baldio, que Carelli lançou pela W11, hoje Francis. Escreveu Javier Cercas: "Será como um romance - resumi. - Só que em vez de ser tudo mentira, será tudo verdade."

23 de outubro de 2007

BONS SENTIMENTOS

Nei Duclós (*)

O estímulo aos bons sentimentos entope a mídia de amor, amizade, alegria, esperança. Mas fecham-se as cortinas dos comerciais e o noticiário assoma com as estatísticas do trânsito. As mortes em série nas estradas e ruas revelam a tendência coletiva ao suicídio, que é a maneira mais prática (só depende de um agente) de eliminar qualquer tipo de convivência. Talvez o transtorno não seja a existência do Próximo – sempre no lugar errado, concorrendo em todos os detalhes – mas nossa impossibilidade de lidar com o obstáculo irremovível, nós mesmos.

Longe de mim cair na tentação de terceirizar a culpa de todos os males ao foro íntimo da população desarmada (ou inerme, como queria a literatura antiga de caserna). Mas imagino que jogar uma carreta na contramão na descida da serra não seja a vontade de matar quem está na frente, mas algo que se situa um passo a menos. É a determinação de sumir do mapa, mesmo à custa da vida alheia, de se livrar do País continental, que nos cerca com sua inviabilidade crônica.O Brasil não oferece o refresco de cruzarmos a pé a fronteira para espairecer no estrangeiro, com raras exceções.

Não somos muito afortunados em lugares habitáveis no abraço geográfico com os inquilinos do continente. Ou é um rio que está lá como foi feito na Criação (com mais sujeira, menos água e menos peixe). Ou existe apenas a mata fechada onde mora o Medo da natureza intocada e feroz. Ou temos de enfrentar as linhas imaginárias que abraçam interesses, aí sim, armados até o pescoço. Difícil (mas não impossível) é encontrar um lugar de fronteira que seja aprazível. O que vigora são as ameaças de lugares cheios de transgressões.

Sem saída, a não ser pelo aeroporto, quando vemos que estes sofrem também de precariedade endêmica, há um desespero no afunilamento da fuga para um lugar fora daqui. Vemos os brasileiros enfrentarem o deserto, os muros, os guardas para colocar o pé ilegalmente na América. Chove casos de brasileiros assassinados no Exterior, como a cumprirem uma sina de suplícios sem solução à vista. Afora as vitórias comerciais, o Brasil participa do concerto internacional das nações com as partes mais frágeis: a criança nos mercados sinistros, homens e mulheres em todos os tipos de prostituição, a migração ilegal de massa na mão de grossa bandidagem.

A overdose de bons sentimentos parece assim ficar restrita aos ditames das trocas de favores entre produtos e consumidores. O álibi seria estimular o Bem para que o Mal, provocado, claro, por pessoas como nós, ceda finalmente. Se você sorrir no trabalho, abraçar sua companhia, brincar com a garotada e comprar o mundo sem que a conta apareça jamais na tela, então é porque há uma chance de salvação. Basta inventar esse Outro que aparece nos reclames – o pai amigão, a dona de casa com carinha de 15 anos abraçando uma filharada, os vovôs sem as responsabilidades da sua experiência e sabedoria, e pronto.

A violência e a indiferença somem por encanto. Pelo menos até o final do feriadão, ou mesmo nos dias normais, em que um acidente atropela o outro, como se o recado do nosso desespero precisasse de replay.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 23 de outubro de 2007, no caderno Variedades do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Meninos da República, por Marcelo Min. Leia a reportagem de Marcelo e Luciana Benatti sobre o abandono da infância no país dos bons sentimentos.

21 de outubro de 2007

OS GRANDES DEBATES



Um dos grandes debates nacionais é (ou deveria ser): o que fazer com a natureza no Brasil? Queimá-la? Encher o que resta de terra arável com munição para o biodiesel? Deixar que o pampa se estiole e produza eucalitpto para multinacionais? Acabar com o resto da mata para criar boi? Mudar a política de preservação, que só tem gerado novos desertos?

País inexistente, o Brasil se volta para outros temas considerados candentes, como o fato de inúmeras mulheres levantarem uma grana posando nuas para revistas masculinas. Onde houver mídia, haverá a pergunta como fulana lida com essa coisa de objeto sexual, se nu artístico ou que sei eu.

Como o Brasil foi completamente capado, é um país passivo, então se envolve noite e dia com esses assuntos pífios que ocupam as mentes vazias, e que normalmente giram em torno do verbo dar. Nos subterrâneos, o estupro cresce, pois a emasculação tem efeitos colaterais e a covardia macha procura equilibrar de maneira assassina a gigantesca abertura de rabo a que condenaram a nação.

Vi a propaganda babosa de um grande nome de jazz americano, tratado justamente a pão-de-ló por nós. Vejam como perdemos a pista das grandes personalidades na área cultural. Quem temos hoje do qual podemos nos orgulhar? O escritor mais em evidência é notadamente tosco (o cara de zilhões de exemplares vendidos), o cantor de maior sucesso simplesmente berra (Daniel ou Chororô ou quetais), a cantora que vende mais discos não tem voz (Sandy ett alli), a maioria dos dramaturgos fazem peças descartáveis (nem vou citar), grandes cineastas são ou estão voltados para o estrangeiro (Babenco é argentino, Meirelles está em Hollywood, Walter Salles já se foi há tempos).

Qual é o grande sambista, o grande cantor, o genial compositor, o escritor que apostaríamos para o Nobel? Tínhamos de sobra até poucos anos atrás. Não temos mais um Drummond, um Cabral, um Tom Jobim, um Glauber, um Nelson Rodrigues. Grandes vultos brasileiros, que representavam a grandeza da nação. Somos agora pequenos, usamos calças curtas e brincamos no quintal. A toda hora nos chamam para nos dar uma surra.

O país virou sucata. Há uma obsessão geral e intempestiva pela violência, a genitália, a sacanagem. Nesse vácuo, vemos nulidades sendo incensadas como grandes figuras da pátria. Como o sujeito que tem uns três bilhões de dólares na carteira, é contumaz monopolista de insumos básicos, e ainda por cima participa como banqueiro da ciranda financeira, se mete a ser autor de teatro e é aplaudido até as lágrimas pelo puxa-saquismo deslumbrado. Como é correto ser rico! Para isso destruíram o Brasil e seus grandes representantes: para roubarem os aplausos!

Estamos na maré alta da mentalidade fascista. O apresentador dos shows esportivos diz com todas as letras que “as pessoas de bem” estão voltando aos estádios. No Brasil Colônia, os homens de bem eram os de posses. Os pobres eram suspeitos, pois a pobreza, a miséria, tem culpa no cartório, é o pecado original do nosso pré-capitalismo. Mas existem pessoas que enriquecem trabalhando, como aquele alemão que mora na pequena cidade do pequeno estado branquelo.

O país está pronto para uma ditadura tradicional fascista. Tem cultura de sobra para isso. Todos querem ditadura, já que a ditadura financeira não é suficiente. É preciso que os esquadrões da morte, com suas escuderias cheias de ossos e caveiras, tomem conta das ruas, matando a esmo “essa gente” que resolveu se proliferar e quer agora reivindicar espaço no país continente.

Você não tem voz? Basta tirar o título de eleitor. Aí você poderá gritar. Mas não seria mais prático debater algo como a dificuldade de transformar indignação em ação política? Como se rompe o cerco dos partidos que escolhem os candidatos? Como participar da política sem se envolver em corrupção? Como trabalhar contra a exclusão sem cair nas armadilhas que costumam manter a exclusão? Grandes debates, pequenos cidadãos.

RETORNO - Imagem de hoje: Luta, por Hélcio Toth.

20 de outubro de 2007

GESTOS PERDIDOS


Nei Duclós (*)

Os flertes começavam com um piscar de olhos. E as mocinhas desmaiavam, coisa que não se vê mais, nem no cinema. O aceno do adeus com lenço ficou para trás, como a significar sua própria despedida. Não lembro se dizer adeus com lenço era invenção dos romances, das matinês ou dos documentários sobre os imigrantes, ou se existiu mesmo.

Há gestos que continuamos vendo nas telas, mas nunca existiram, como a ordem muda, mas imperiosa, do sargento para seus soldados de tocaia, significando go go go. A mão que ordena o movimento é acompanhada por um menear na cabeça, que imitávamos depois que saíamos das sessões da tarde. “Vamos! Por aqui! Sigam-me!” Quem diz isso na vida real? A propósito: o que é vida real? O apertar, ao longe, da aba do chapéu com o indicador e o polegar grudados, sinal pautado por olhar significativo, era outra obra exclusiva da sétima arte.

Já disseram que aprendemos a beijar com Hollywood. Aqueles beijos, em que o casal fazia pose para a câmara deslumbrada dos nossos olhares, quando havia esse tipo de deslumbramento, só existiam originalmente na luminosidade da sala escura. Depois foram imitados, principalmente nas cerimônias de casamento. Aliás, de todo tipo de cena, as de casamento são as minhas favoritas. Sunrise, sunset: quem não cai na lona quando assiste a união musical em “O violinista do telhado?” E aquele casamento em “Giant”, em que Rock Hudson recupera Liz Taylor? E a coreografada explosão serial de “Sete noivas para sete irmãos”?

A imagem toma emprestado da literatura e devolve para a vida. Existem manifestações humanas que simplesmente definem um povo inteiro. Em “O poderoso chefão”, o diretor Francis Ford Coppola colocou os mafiosos se dando tapinhas na cara. É possível que exista mesmo esse acervo na História, mas de Coppola em diante ninguém se atreve a mostrar um mafioso sem que ele bata na cara de quem está na sua frente.

Superioridade física era representada pelo bater forte da mão no ombro. Ou então no muque, pois era obrigatório ter muque. Medíamos a resistência do músculo do antebraço desde a segunda infância. Era para enfrentar os inimigos e impressionar as gurias. Quando queríamos ameaçar alguém batíamos na própria mão, enquanto dizíamos: “Te pego na saída”. Isso poderia ser substituído por uma representação do soco no nosso queixo. Significava que iríamos quebrar a cara de alguém.

Cruzar os dedos para impedir algum acontecimento, fazer figa para devolver o mau olhado, fechar o punho esquerdo em sinal de revolta, levantar o chapéu de feltro para a população em delírio: eis alguns gestos perdidos que fazem parte de outra humanidade, a que fomos um dia. De hoje, o que ficará? Será que o pula-pula dos torcedores nos estádios será visto no futuro como um sintoma grave de autismo comportamental coletivo? E as mãos ao alto nos shows, seria o sinal de que todos estão entregues à sanha do mau gosto e de outras mazelas nacionais?

Mas nem tudo sai de moda. Abraçar com apenas um braço o ombro de alguém enquanto se caminha numa conversa amistosa ou carinhosa, por exemplo, é algo que não some do mapa. Não significa apenas amizade ou amor. Quer dizer que somos a extensão das outras pessoas e fazemos parte delas como as gaivotas do mar. Não estamos sós quando o abraço demonstra a comunhão espiritual de duas mentes que acompanham o ritmo do coração.

Não gostamos da comercialização pura e simples, como as falsas campanhas da paz que usam pombas, coitadas, tão cheias de problemas de saúde e de superpopulação. Ou de criações publicitárias em que as pessoas batem carinhosamente no coração para dizer que o candidato está cheio de amor para dar. Gostamos é quando a criança se expressa, criando um gesto único. Dá vontade de pegá-la nos braços e levantá-la em direção ao sol.

Brilha, meu amor, que somos um só e ninguém vai conseguir nos apartar do nosso destino, esse sentimento que sobrevive sob qualquer condição, em qualquer tempo.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neste fim-de-semana na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: O Violinista no Telhado.

19 de outubro de 2007

DIREITOS HUMANOS


O helicóptero da polícia espingardeando até a morte dois fugitivos negros foi uma cena encarada pelas autoridades estaduais de segurança do Rio como necessária, pelo que vi no noticiário. Tiveram o merecido, não é mesmo? São bandidos, assim como os outros dez que se foram no mesmo dia. Claro que há o rescaldo: uma criança de quatro anos morta num tiroteio sem quartel entre policiais e traficantes. Agora tudo pode, está liberado. O povo quer sangue e os governos precisam atender a demanda. Desistiram de mentir sobre reestruturação, reforma, mais verbas, salários mais dignos. Abriram as comportas dos esquadrões da morte. Desde que seja uma “elite” policial encarregada de fazer o serviço, o negócio até que tem carisma.

Foi para o ar todo o trabalho minucioso e revelador de jornalistas como Caco Barcellos, que no livro Rota 66 provou com documentos pesquisados que a grande maioria das vítimas das matanças policiais era formada por inocentes. Ontem vi Caco com sua jovem equipe fazendo um primoroso Profissão Repóter, sobre a vida bruta que levam os brasileiros. O enfoque é positivo, destaca a resistência dos sobreviventes, a esperança possível, mas Caco jamais brincou em serviço. Não faz materinhas humanas babosas como acontece quase sempre, não explora a miséria, apenas reporta com competência e edita com sua sabedoria.

Sempre me perguntei de onde Caco tirava tanta coragem e desconfiei, vendo-o ontem dormindo, exausto, num ônibus lotado, trabalhando, no front, que ele jamais esquece esse Brasil que aborda. Taxista em Porto Alegre, Caco foi descoberto por Licinio Azevedo, editor de polícia da Folha da Manhã, de Porto Alegre. Repórter da pesada, abriu caminho no muque, se impondo como um dos melhores repórteres do país. Na Globo, matou a pau, sendo convocado para ser correspondente internacional. Como escritor, é deslumbrante: seu relato sobre a revolução na Nicarágua é um primor. E Rota 66 é uma aula de metodologia, tanto é que estudei esse livro na minha faculdade de História da USP.

Caco fez parte de um movimento grande pelos direitos humanos no Brasil, sucateados pela ditadura. Só que a expressão direitos humanos foi para o saco, pois virou moeda política sem valor. Distorceram a luta em defesa das pessoas e a transformaram, no imaginário, de tanto repetir a mesma mentira, em defesa de bandido, o que é de uma tragédia infinita. A morte dos direitos humanos é o sucesso da idéia da matança, que vingou na população enfurecida por tanta canalhice. No meio do rolo, despontam os novos coronéis urbanos, os protetores de mando e cutelo, que cobram pedágio da população para enfrentar traficantes e polícia. Estes são entronizados na nova novela da Globo, encarnados por Antônio Fagundes, o bonzão da fita.

A lei da selva, do cão, do mais forte: essa é a idéia de justiça no Brasil. Mas nem tudo está perdido: o ministro da Defesa até colocou farda!

RETORNO - Imagem de hoje: Favela, de Tarsila do Amaral.

18 de outubro de 2007

DE REPENTE, O GÊNIO


A vida é estranha. Consegue se realizar pelo detalhe, amparado pela obra. O que você faz enquanto vive é uma arquitetura anterior e anônima ao momento do brilho extremo, o detalhe. Robinho pedalou a vida toda, mas só ontem, no Maracanã, contra o Equador, definiu seu destino no grande concerto da criação. Todo mundo viu. Ele levou o adversário para o canto sem ângulo, o que dá, em princípio, um pouco de tranqüilidade ao oponente. Este, confiante de que a bola não encontrará o caminho do gol (a geometria disponível não permite) dedica-se a uma impossibilidade: tirar a bola dos pés do gênio.

Robinho conseguiu metade do que queria. Demarcou seu território longe dos outros defensores, tendo como obstáculo apenas o cara marcado para morrer. Precisava que fosse intensificada a certeza de que não conseguiria fazer nada ali naquele pedaço morto de área. Por isso desenhou a letra, quando o corpo todo se retorce para que os pés troquem de posição. A letra significa que o pé direito funciona como o esquerdo ou vice-versa. Costuma ser execrada como firula, perda de tempo. Quase sempre dá errado. No caso da partida de ontem, com uma seleção sub suspeita depois do zero a zero contra a Colômbia, a letra era, mais do que nunca, fora de hora.

O chute de letra tem como princípio desarmar as expectativas dos inimigos. O lance aparentemente desengonçado de Robinho, no lugar de lançar a bola para o miolo do drama, manteve a leonor a seus pés. Foi sorte, pensaram todos, quis chutar acabou driblando sem querer. E agora? O “certo” seria avançar naquele espaço criado pela letra surpreendente, ir em frente, pedalar novamente. Mas Robinho fez o contrário. Mergulhou ainda mais fundo nesse ponto morto da pequena área, onde o destino certo é desperdiçar tudo pela linha de fundo.

Essa insistência no buraco negro da jogada fez com que o adversário mais próximo aumentasse em confiança, pois um raio não cai duas vezes na mesma cabeça. Já tinha havido os dribles, a firula, o sarro. Agora era simplesmente decidir, tirar-lhe o biroço dos pés e recomeçar tudo com um tiro de meta. Mas Robinho, ao contrário dos outros, tem duas pernas, dois pés, que jogam simultaneamente. Não se trata da idéia comum do ambidestro. Mas o da coreografia dispondo de cada pé como um ser à parte, que jogam um com o outro como dois moleques em rua de terra em declive.

Um pé passa para o outro, fazendo com que o equatoriano enfrente dois Robinhos de uma só cabeça. Ele já está batido e o gênio, em curva e diagonal, se livra da sua marcação para chutar lá onde a coruja pia. Caprichosa, orgulhosa do momento, a bola fez justiça e sobrou nos pés de Elano, que saiu de braços abertos para ninguém. Todos caíram em cima de Robinho, que tinha chegado ao detalhe supremo da sua obra, arduamente construída em anos e anos de exercício.

Poderia dar tudo errado. Poderia até ser tudo sorte. Mas sabemos que não foi. Simplesmente sobrou, foi fora da ordem mundial. A jogada pertence, desculpem a insistência, ao Brasil soberano, o país que ensina a voar. Kaká foi perfeito no seu gol colocado longe de toda a quadratura, no ângulo extremo do seu talento. Foi merecidamente aplaudido como o melhor do mundo. Kaká se enquadra nesse universo do futebol. Robinho é de outra têmpera.

Robinho é uma rara manifestação do gênio. E quando o gênio se manifesta, voltamos a ter esperança.

RETORNO - Imagem de hoje:o menino Robinho, quando era instruído pela cultura do país que o gerou, criou e formou.

17 de outubro de 2007

O PAÍS ILEGÍTIMO


Se a esposa de Benjamin Constant, um dos fundadores da República, é representada por um traveco, como aconteceu no quadro "É muita História”, do Fantástico, e se a Proclamação da República não passa de uma espécie de vingança de quem não tinha sido convidada para o Baile da Ilha Fiscal, como sugeriu o mesmo episódio televisivo, e se a República foi proclamada na cama, por um velho gagá vestindo pijamas, como mostrou essa versão, é porque o Brasil não é um país legítimo e merece ser entregue à sanha estrangeira. “É muita História” soma-se ao movimento oficial de desconstrução do país, que assim justifica a covardia bem remunerada de nos deixarmos sugar como um tomate maduro.

Na mesma senda, a Independência não foi conquistada, mas vendida para a Inglaterra, a Monarquia não prestava porque era escravocrata, apesar de ter libertado os escravos, a República é uma palhaçada pois foi uma confusão só que culminou com um golpezinho militar. Todas as décadas de luta pela República Brasileira foram jogadas no lixo pela decisão da abordagem, quando destacou a apropriação das versões pelo apresentador global, para desconforto do historiador militar que tentava apresentar o marechal Deodoro com dignidade.

O estamento intelectual no Brasil desempenha um importante papel na entrega do país. Desde os mais sofisticados pensadores, que jogam biografias no lixo ao defender governos espúrios, até os mais comezinhos idiotas que se arvoram a ser historiadores, apoiados por extensa massa ágrafa de professores, que jamais abriram um livro sério. Empenhados em transformar a educação num recreio interminável, deixaram ir para o ralo um dos pilares da soberania, a História como representação nacional da luta pela sobrevivência e sua transcendência. O Brasil, em mais de 500 anos de vida, não passa de uma bobagem. Assim, se joga no lixo o trabalho das gerações que nos outorgaram a nação.

Por que fazem isso? Porque são irresponsáveis e porque se sentem estrangeiros. Todos são portugueses, espanhóis, franceses, alemães, italianos, ingleses, americanos. Ninguém é brasileiro. O Brasil é a piada da hora. Só existe em função de algo fora de nós. Colocar pedágios em rodovias federais prontas e acabadas? É só deixar os espanhóis fazerem o serviço, enquanto luminares da imprensa apóiam a tunga, provando que essa é uma sábia decisão de um governo sábio. Não existe mais oposição porque há corrupção geral. E quando ela existe, não tem presença no debate. Fica de fora, como uma tropa de reserva.

Eu me pergunto onde estão os grandes historiadores que não se manifestam contra essa putaria que estão fazendo com a História do Brasil. Muitos nomes famosos têm culpa no cartório e os outros, calaram-se para sempre? Tenho uma biblioteca razoável, abro qualquer livro e está lá a sobriedade, o suor, o combate, o espírito público se manifestando em qualquer época do Brasil. Para onde foram princípios e valores? Jogados para baixo do tapete, terceirizados, privatizados, vendidos como sabonete?

“E aí o Marechal Deodoro, que não era de ferro, foi naná. Acordado, disse que a República estava feita”. E o palhaço vai para debaixo das cobertas como se a República fosse a fossa onde está metida a mentalidade desses traidores. Isso não é muita nem pouca história. É deboche. Ninguém se manifesta? Todos acham o máximo? O crime principal da História é se deixar levar pelas versões não costuradas por uma metodologia. No caso do Fantástico, os magníficos quadros sobre a República (um deles ilustra este post), reconhecidamente representações do evento, devem ser substituídos pelo pouco caso dos apresentadores midiáticos, empenhados em transformar a nação numa grande besteira.
RETORNO - Posso estar enganado, mas a Globo está vendendo o jogo de hoje da seleção brasileira no Maracanã como uma festa, um reencontro dos craques com os torcedores. Esquecem de dizer que o Maracanã adora vaiar a seleção. Pode acontecer uma tremenda vaia e ainda por cima os equatorianos ("si, se puede") encherem o saco do novo ídolo Julio César com alguns gols.

16 de outubro de 2007

PODER DE CATA-VENTO


Nei Duclós (*)

Saindo da Ilha em direção ao Estreito, debaixo de um pontilhão, grudada numa coluna, a pichação tosca feita em tinta preta diz: "Fora, Bush". Não chega a ser um grito, é mais um protesto quase oculto, que se oferece por um segundo para quem passa. Como se o pichador tivesse dúvidas sobre a eficácia do seu ato. Ou seria a falta de atenção que jogou sobre a palavra de ordem esse ar de abandono, de reclame morto insistindo em permanecer na geografia perdida dos bairros em transformação?

Imagino o pichador como alguém encarregado da tarefa mais simples, o de se expor na rua para agitar o espaço público. Teria sido escolhido nos redutos de uma assembléia, clandestina mais por força do hábito, já que hoje está combinado que há liberdade. Jovem demais, disponível demais, humilde até a medula, não levantara o braço no primeiro impulso, considerando-se indigno da tarefa. Mas como o entorno permaneceu imóvel, ele acabou cedendo e assim fora escolhido por unanimidade. É preciso deixar, para quem é moço, os encargos de tarefas que exigem coragem física e fôlego para sair correndo caso haja flagrante.

Por isso os veteranos, depois da escolha por aclamação, lhe dirigiram aquele olhar perto do estímulo, mas na prática mergulhado num ar grave. Tantas lutas escaldaram as expressões dos combatentes. O entusiasmo original deu lugar ao equilíbrio das feições, amargadas por algumas ruínas. Isso acontece em qualquer nicho político, já que vivemos o limbo da ideologia, um clima idêntico ao dos velhos faroestes antes do grande tiroteio. "Está quieto", diz alguém de tocaia. "Quieto demais", responde seu parceiro ao lado. É a senha para o iminente desencadear da tempestade.

Mas o garoto nunca viu faroeste e tem como insumo a gana da idade, mais duas ou três leituras definitivas. Não é difícil encontrar vilões para a situação real. Os culpados assumiram a fachada que os condena, já que celebram seu status exibindo na mídia as festas, os roubos, as invasões, a violência. Nem é preciso ler Marx para entender a mais-valia, o famoso plus que sobra do trabalho escravo e fica fazendo parte do explorador. Basta conectar-se com o espírito de insurreição que fica fazendo água no navio do Sistema, essa entidade que praticamente obriga o jovem pichador a tomar uma atitude.

Então ele aguarda a noite e, contando com o apoio logístico do partido, ataca o concreto com sua indignação. Mas o presidente imperial passa célere pelos seus domínios sul-americanos, e a convocação, em poucas horas, perde o efeito, se é que isso existia desde o primeiro instante. Os autores da frase gravada já se recolheram, pensando em outras estratégias, mas o passageiro que enxerga, mesmo sem querer, as letras tortas e enormes pela janela da condução ou do carro, ganha de presente um gesto nulo, uma revolta datada, um marketing amador.

A perda de sentido de algo tão desolado depõe contra o movimento de libertação. Há mais proveito nas frases enigmáticas, como esta, exposta para a limpeza pública num enorme muro: "Cata-vento não gera poder central". O que realmente significaria? Era uma máxima técnica? Transcendia para a religião, a auto-ajuda? Uma coisa é certa: muito depois de Bush ter dado o fora, enterrando de vez a vaia tímida na coluna do pontilhão, a frase dos cata-ventos sobreviverá. Nunca perderemos a esperança de desvendá-la definitivamente.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 16 de outubro de 2007, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.
2. Continuo ofendido com a ameaça do Blogspot de tirar o Outubro do ar. Já pediram desculpas, mas fiquei com a pulga atrás da orelha.
3. Horário de verão: chove e faz frio no estado. Pessoas que madrugam para trabalhar acordam na mais completa escuridão, abaixo de chuva e, encapotados, aguardam as conduções. Tudo para satisfazer os burocratas que economizam à custa da saúde da população.
4. Festas de outubro. Descobriram a pólvora: tem carro demais para pouca estrada. Ninguém mais suporta esperar, então todos ultrapassam. O resultado é um massacre. Só em estradas federais, no feriadão, 92 mortos. Querem "aproveitar". Vemos os energúmenos abraçados e saradões se entupindo de álcool. Chamam de indústria do turismo. O nome é outro.
5. Proponho outro tipo de evento: junta a macacada em determinada área de risco e peçam para todo mundo cavar um sistema de esgoto. Milhares de pessoas em quatro dias de folga fazem isso com o pé nas costas. Enquanto cavam na lama, toquem Jimi Hendrix no clássico oculto "Peace in Mississipi".
6. Primavírus: as pestes não nos abandonam. Hasta quando?
7. Imagem de hoje: Gato, de Regina Agrella.

15 de outubro de 2007

AGORA PODE?

Estou fazendo um teste. Fiquei quatro dias proibido de postar, pois os computadores do Blogspot acharam que Outubro, este blog pioneiro do Brasil soberano, era potencialmente spamer, seja isso o que for. Por isso me suspenderam automaticamente enquanto os técnicos prometiam analisar a situação. Este é um teste para ver se posso postar de verdade. (vejo que posso, então tá)

Acho tudo muito simples: o Diário da Fonte, para usar o jargão ao gosto de freguês, "agrega valor" ao Blogspot. Simplesmente me deixar de molho para ficar examinando o que quer que seja é um desaforo, mesmo que tentem me convencer que isso é normal, que são milhões de blogs etc. Vão encher o saco dos picaretas! Deveriam é dar um prêmio para Outubro, que com mais de 1.200 posts em cinco anos, sobre cultura, jornalismo, política e tudo o mais que os leitores já conhecem, é uma avalanche que participa da alta maré de criação, em oposição à mesmice gerada pelas ditaduras.

Sei o que faço aqui e sei desse valor. Por isso tomei providências. Ou melhor, quem gosta deste acervo e admira o trabalho, tomou providências. Para melhor, claro. Aguardem novidades.

Quando chamei isto aqui de Diário é porque é diário. Ficar tanto tempo sem postar só mesmo um contratempo e dos grandes. Teve a gripe, sim, mas como deixar de escrever sobre Paulo Autran? Dá licença.

11 de outubro de 2007

NÃO SOMOS HUMANOS


Aguardo, com horas de antecedência, o avião que vai pousar na ilha, vindo de São Paulo, e que me levará a Porto Alegre. Chego antes porque sempre imagino enorme engarrafamento me impedindo a viagem, entre outras paranóias. Uma vez enchi tanto meus amigos de Uruguaiana, dizendo que ia perder o ônibus, que eles fizeram de propósito: três minutos antes do horário marcado, me puseram dentro de um carro e chegaram na rodoviária no minuto seguinte. Lá, ficaram de braços cruzados me olhando, e comentando: “Viu no que dá chegar cedo? Agora é esperar”.

Fico absolutamente só, esperando o momento em que vou pisotear aquela escadinha de arame que leva ao aperto do avião. Como estou em expansão, cada vez fica mais curto o cinto de segurança. Os passageiros vizinhos gostam de colocar o cotovelo na minha costela, por um motivo nobre: eles estão lendo! Mas antes, na sala de espera, vejo um grupo animado conversando sem se importar, aparentemente, com o vôo que já está um pouco atrasado. Uma das mulheres do grupo é a estrela da conversa. Tudo se concentra nela, nas suas mãos, no seu saltitar de cabeça, seu frigir de cabelos, sua vivência que é o paradigma da vida humana, a qual todos têm de prestar atenção e demonstrar respeito admirado.

Sua interlocutora sabe que jamais poderá chegar aos pés da estrelona à sua frente, mas não se dá por achada. Sacode a cabeça e murmura algo em cima das frases da outra, como se estivesse concordando, mas são apenas sinais de que ela também é rainha da cocada preta e só está dando um tempo antes de ir se queixar, mais tarde, sobre aquela arrogante metida que só fala nela e nas suas viagens.

De repente a protagonista-mór recebe um toque do celular. Grita que não está entendendo e nem sabe quem está do outro lado do aparelho. Identifica alguns segundos depois e se justifica dizendo que sua vida é uma correria, uma loucura e que ela...pa pa pa rara papá. As pessoas ao redor olham para a grandiosa estrela com meios sorrisos e gestos elegantes, mostrando que estão entendendo como esta vida agitada do século 21 é assim mesmo.

No dia seguinte, no hotel onde fiquei em Porto Alegre, na hora sagrada do café da manhã (café em hotel é o tipo ideal de momento), um grupo de católicos fervorosos celebram o fato de terem acordado e estarem ali, vejam só, no restaurante do hotel. Chega então o peruca acaju, o dono da festa e faz o de sempre: beija uma pessoa enquanto fala com outra, aperta a mão da seguinte lançando olhares para a paisagem, pois o importante é demonstrar poder, força, hegemonia. Os outros que fiquem ao redor, ele é o maioral. Senta na mesa ao lado, para que não se misture à sua platéia e de lá lança invectivas ruidosas e metidas a engraçadas sobre um ou outro. É o rei, o cara.

A humanidade me cansa e fico pensando se faço parte mesmo dessa espécie de criatura. Talvez eu seja idêntico a eles quando me junto aos outros e só eu não me vejo. Talvez eu seja o metido a chefão da conversa, ou faça micagens falsas para demonstrar apreço ou atenção para quem não conheço ou finjo que conheço. Tudo talvez seja parte da perspectiva onde você está e das intenções que te movem na hora dos encontros. Talvez as pessoas que me chocam quando estão juntas sejam magníficas quando estão sós ou ao lado de quem realmente conta.

Talvez sejamos ruins de teatro e ótimos de solidão. Talvez a verdade seja a intenção e não os fatos ou as mentiras. Talvez nem sejamos humanos e estamos apenas obrigados a percorrer esse palco fajuto com nossos passos trôpegos. Mas chega o fim do espetáculo e, indiferentes aos aplausos ou vaias, nos recolhemos aos bastidores, e dali para nossos redutos. Lá ficamos em frente a nós mesmos, acompanhados pelo que nunca deixamos de ser. É quando relembramos as cenas que desempenhamos ao longo do dia.

Damos então gritos involuntários, pois tudo está errado. Ali nos perguntamos o que nós, sozinhos, achamos de nós, quando estamos em grupo. Achamos que nesse circo não queremos mais participar. Mas há o dia seguinte e o celular toca.
RETORNO - Imagem de hoje: meu recital no Porto Poesia, que aconteceu em Porto Alegre no final de setembro. Foto enviada por Sidnei Schneider, um dos poetas organizadores do Porto Poesia, evento que é exatamente o oposto das situações reportadas acima. É quando assumimos no palco o que realmente somos. Nessa ocasião, não há diferença entre a fala dita no microfone e as palavras criadas ao longo da vida.

10 de outubro de 2007

SALTEADORES DE ESTRADAS



Houve uma blitz do noticiário sobre assaltos a estradas nos últimos dias. Está explicado: ontem, conseguiram entregar as rodovias federais, nos seus principais trechos (os mais rendosos em termos de pedágio) na mão dos castelhanos. Por isso diziam que estava ruim, para justificar o assalto maior, à rodovia toda. E dizer que lutamos cinco séculos contra os espanhóis e seus clones para construir um país e deixamos que mega-empreiteiras tomem conta do patrimônio tão suado. É um escândalo que a belíssima rodovia que liga Florianópolis a Curitiba (aquela porção que é um alívio para os motoristas) vá agora para as mãos privadas, que vão encher de pedágios para tungar quem passa nela, ou seja, a população brasileira.

É de vomitar o ar superior que fez o representante da empreiteira vencedora, um sujeito de aspecto lombrosiano, que se denuncia pelo visual de gângster, reconhecer, lá com suas palavras (eu uso as minhas, fruto da minha percepção diante da tragédia) dizer que agora vai meter a mão em estradas cheias de ouro. Vamos pegar a ligação com o Mercosul, disse ele. Quer dizer que levaram décadas para duplicar a BR-101 e agora que o mais difícil está feito entregamos de mãos beijada para uma empresa colocar pedágio em cima? É de uma cretinice bandida inominável. Ninguém reclama?

Cada vez fica mais claro que o Brasil foi completamente dominado, retalhado e entregue à pirataria internacional. O Brasil soberano foi um sonho de uma época distante, que não deixou herança, a não ser essas riquezas todas construídas com dinheiro público que alimentam inúmeros ali babás.

Como então entregamos as veias da nação, as rodovias federais, os caminhos por onde passam pessoas e riquezas, de um valor estratégico gigantesco, que significam o país em sua essência, já que uma nação não existe em territórios separados por pedágios, fronteiras, aduanas, como pegamos o que temos de mais valioso e fazemos um leilão? E o pior, baseado no preço do pedágio que eles vão cobrar, quando sabemos que o preço do pedágio pode mudar conforme a telha dos donos desse negócio sinistro, como assim que eles podem fazer isso enquanto o país fica de pés e mãos amarradas por esta ditadura sem fim, que posa de democracia, com os podres poderes se tratando de excelência em horário nobre?

Como deixamos que os castelhanos, logo eles, tomem conta da telefonia e das estradas e não sei de quê mais? São investidores, é? Agora contem outra. Simplesmente nos negam o direito à sobrevivência, pois enquanto os piratões pegam o suprasumo das vias federais, outros donos de grotões se assenhoram de estradas regionais, menores. Quer dizer que os caras vão mandar em tudo, na vida econômica e no direito de ir e vir? E dizer que temos uma bitola de trem estreito para evitar que os trens dos castelhanos da América hispânica se conectassem conosco para nos invadir! Mas onde estão os estrategistas do país? Não há mais vergonha na nação?

Foi por isso que deixaram as estradas se estagnarem, para poder agora compartilhar o butim que é cobrar de quem usa a rodovia. Vão fazer o quê mais? Privatizar as avenidas das grandes cidades? Vão colocar roleta na frente de casa? Vão te meter a mão nos fundilhos para arrancar teus trocos, como fazem nos bancos com a tal CPMF? O que mais precisa fazer? Vão apertar mais a canga em volta do nosso pescoço? E dizer que lutamos séculos para ter isso, e ainda por cima aturar pessoas que se dizem esclarecidas apoiar este governo, ou os governos anteriores desse sistema de expropriação permanente.

Esclarecidos uma ova. Vocês são coniventes, parceiros da ditadura. Se você acha o presidente uma gracinha, assim como seu antecessor, se você engole todo esse monte de estrume e diz que “pelo menos” temos a bolsa família, então você faz parte da quadrilha. Não me venha de borzeguins ao leito, como diria o português.
RETORNO - Imagem de hoje: Galinhas para o abate, foto de Regina Agrella (link ao lado).

9 de outubro de 2007

MOMENTO HISTÓRICO


Nei Duclós (*)

Por motivos que desconheço, sou indiferente a momentos históricos. No início dos 60 fiquei sozinho no meu colégio enquanto a cidade inteira comparecia ao encontro entre Jânio Quadros e o presidente argentino Arturo Frondizi. Foi nessa ocasião que flagraram Jânio com o pé totalmente virado, imagem usada pelas décadas para ilustrar a postura de um estadista trapalhão. E se eu estivesse perto dele, o que veria? Tudo, menos a História.

Não existe testemunha ocular da História, como gosta de proclamar o noticiário. E sim testemunhas de fatos, incendiados pelas versões do Tempo. Os vestígios, costurados pelos estudiosos segundo variadas metodologias, formatam essa ciência complicada, que se presta a inúmeros equívocos. Principalmente porque ela não pode ser vista a olho nu, já que é uma composição, uma formatação feita a partir desses rastros.

Minha implicância talvez venha de um certo desconforto diante dos exageros. É involuntário, mas um bocejo costuma coroar o anúncio vibrante das cenas a serem lembradas pelas futuras gerações. Na grande concentração que foi o movimento (derrotado no Congresso) das Diretas-Já, estive na Praça da Sé a trabalho, mas prestei atenção mesmo numa pequena banda uniformizada de música vinda do interior que pedia passagem na multidão. Passei batido pelos discursos, os aplausos, os gritos, a aglomeração. O que me cativou foi aquele aceno de um espírito nacional, encarnado na banda, que tinha sumido.

Não foi muito diferente na destruição das torres gêmeas em Nova York. Preso no trânsito enquanto os aviões furavam os edifícios, cheguei perto da TV tarde demais. Vi apenas fumaça, ruínas e o replay. É espécie de sina. Quando o homem desceu na Lua, só fiquei sabendo horas depois. É que estava envolvido numa viagem de carona ao Rio de Janeiro com um grupo de amigos, e o grande passo da humanidade me passou em branco. Pelo menos enquanto ele era anunciado em rede mundial.

Acordei para a realidade na maré baixa da novidade. Na manhã seguinte, um sambista improvisava dentro do ônibus o feito americano no ritmo de sua batucada. E na visita que fiz a uma favela na Zona Sul, um morador me garantiu que tudo não passava de armação dos gringos. Mas se não havia credibilidade na Nasa, era certo que John Kennedy tinha sido assassinado. A notícia foi dada pelo meu irmão, sentado no sofá na sala, escutando o rádio. Lembro do seu ar preocupado e seu silêncio, mas de nenhum transtorno interior de minha parte.

Meu pai era diferente e pelo menos uma vez lamentou perder algo que envolvia a atenção mundial. Numa pescaria, longe da mídia, ficou sem saber da candente morte de Marilyn Monroe. Descobriu a tragédia só depois que voltou do mato direto para o chuveiro, e de lá para uma circulada no centro. Voltou nervoso do passeio e cobrou de minha mãe. “Como que a Marilyn morre e ninguém fala nada!” Dona Rosinha deu de ombros. “Era o que me faltava”, teria dito. “Ter que anunciar o fim da estrela para o meu marido”.

Não sei se foram exatamente essas as palavras. Mas não importa. As histórias familiares grudam e jamais se soltam da memória. Valem mais, imagino, do que o bater de bumbo de momentos grandiosos. O que importa não é o status transferido pelo Tempo, mas o sentimento e a sabedoria que ele nos transmite.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 9/10/2007, no caderno Variedades do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Marilyn Monroe.

8 de outubro de 2007

FANTÁSTICO, A OVERDOSE


Vi neste domingo uma boa parte do Fantástico. A Globo faz parte da paisagem, para onde você se vira ela está presente. Como tinha queimado todos meus dvds antes das oito e meia (conseguir escapar do Faustão já é um feito) e como as outras redes conseguem ser muito piores, e como me recuso (nem posso) pagar pela propaganda maciça nas televisões a cabo, e como as TVs a cabo, em sua maioria, além de cobrar os tubos nem chegam onde moro, então vi a revista eletrônica de domingo. É sempre uma aula de manipulação.

Vejam o caso da consultora de moda, a Gloria Kalil, que ontem deu dicas, ao lado de uma espetacular e glamourizada Renata Celiberi (vestida para matar, com enormes brincos de argolas). Não contesto que tenha razão no que ela convence que entende, mas o fato de que os desempregados não dispõem daquele guarda-roupa todo para ter tantas dúvidas na hora da entrevista. Se a pessoa consegue encher a cama de vestidos, ou camisas, ou calças de todos os tipos e cores e desfila inúmeros modelitos em frente ao espelho, ele já está empregado, pois não? O desempregado não tem cacife para manter um guarda-roupa cheio e atualizado. A não ser que a produção da Globo tenha providenciado a roupaiada.

Também implico com o sussurro da Ceribelli sobre “roupa de trabalho”, como se ninguém tivesse o direito de inovar, de sair do padrão dentro da empresa e fosse obrigada a pagar o mico da servidão absoluta, transformada em regra pela consultora. “Se você vai à balada, então pode se vestir como quiser, mas no trabalho não!” Mas a funcionária não estava fazendo nenhuma grosseria, estava apenas se vestindo conforme sua auto-estima e seus sentimentos. Quis romper o círculo de ferro e a consultora foi em cima. Faltou uma pergunta; qual a roupa adequada para entrevistar uma consultora de moda? E qual a roupa que a consultora de moda deve usar para pontificar sobre a roupa alheia? Tudo básico e chic, claro, sem dar bandeira, que é coisa de pobre.

Tivemos também uma aula de não-história sobre os bandeirantes, capitaneada por Eduardo Bueno e Pedro Bial. O quadro teve o cuidado de lembrar que História é uma versão, que é construída, mas o próprio quadro faz parte de uma construção. Isso, claro, não foi dito nem percebido. Ficou assim: os dois jornalistas destacam que a História pode ser inventada, mas acabam se entregando à saga dos bandeirantes na mais tradicional abordagem possível, a de que foram necessários para o país. Roubaram, mataram, pilharam, escravizaram: quanta coragem! Foi o que Bueno falou para um pobre poeta (de boné, todo poeta usa boné), que ousou dizer que os bandeirantes eram vilões, ou seja, bandidos.

“Vá fazer poesia em outro lugar, que aqui é lugar de gente com coragem”, disse Bueno, numa cena de teatro amador no vão livre do Masp. Ou seja, poeta é covarde, corajosos são os caras que prearam 500 mil índios. Nem heróis nem vilões, concluíram os dois apresentadores dentro da representação maior da manipulação da História, o Museu do Ipiranga, que foi erigido como centro da História do Brasil. Bueno e Bial obedeceram assim ao cânone da historiografia paulista, que agora posa de politicamente correta ensinando que História é pura representação. Sim, claro. Inclusive, a própria denúncia de que História é uma representação pode se transformar numa nova representação. No caso do Fantástico, vira palhaçada.

Depois tivemos o Eduardo Giannetti da Fonseca colocando todas as fichas do desenvolvimento econômico das nações na educação, o que é de uma brutalidade sem igual. ( eu me pergunto: por que estudam tanto, se aceitam ser pagos para mentir?). O Brasil estaria na pior porque não sabe poupar, ora vejam. Para poupar é simples: basta se sacrificar hoje para colher amanhã, como fizeram a Coréia, o Japão, agora a Índia. E se nos endividamos foi porque não soubemos poupar. Conversa para boi dormir.

A dívida impagável é obra do imperialismo político e financeiro, que impôs suas garras a partir da Segunda Guerra e foi intensificada na implantação das ditaduras dos anos 60, 70 e 80, e ganhou impulso nas falsas democracias dos anos 90 para cá. Essa imposição aconteceu graças à corrupção interna, de uma canalha, em que se incluem os economistas (muitos viraram banqueiros), que enriqueceu entregando a soberania do país. Não é porque não poupamos e ó, como os indianos são fofos! Com seus oclinhos intelectuais, sua vozinha metida a convincente, Giannetti é o retrato do pensamento sob encomenda para a ditadura civil.
Essa ditadura de roupa "adequada" terceirizou a responsabilidade da barbárie para cima da população, que, como lembram sempre, elege os políticos, como se não vivêssemos num sistema fechado nos mesmos fantasmas de sempre. Eles atribuem toda a culpa ao povo ou à nacionalidade de última categoria, que somos nós. Pastem, que vocês precisam de grama.

RETORNO - Imagem de hoje: a estátua de Borba Gato, o paradigma de coragem do Fantástico.

6 de outubro de 2007

TEM DEMOCRACIA PARA TODOS



Vejo o auditório lotado de figuras provectas e antiqüíssimas, super-atentas ao gigantesco juiz que profere algo sobre o que realmente interessa à platéia: se o mandato pertence ao político ou ao partido. Não existe essa concentração, essa vontade de escutar e seguir milimetricamente um assunto quando se trata do que os políticos mais comentam em tempos de campanha, ou seja, a tal de educação, saúde...Eles querem saber se podem pular de galho em galho ou não. O resto vem atrás. Aí o grande tribunal resolve que o partido é quem possui o mandato. Não deveria ser esse o veredicto, pois o mandato pertence ao eleitor, que é seu legítimo dono.

Hoje, no Brasil, o eleitor se desfaz do poder quando coloca seu voto na urna. É o que chamam de democracia. Depois de perder o poder, o votante ainda tem que aturar os apresentadores e comentaristas despejando catequeses sobre como somos responsáveis pelo que o sujeito faz em Brasília. Ou seja, não te oferecem alternativas e ainda te cobram. É assim que funciona. Já sabemos a solução para tudo. Se você for pego com a boca na botija, não hesite, diga logo: "Isso faz parte do jogo democrático".

Se o seu lugar tenente for indiciado como o principal falcatrueiro de banco regional e se você é pré-canditato a presidente e ainda tiver aquela boquinha de bem nascido, que é espichada toda vez que sai em defesa da destruição do rio São Francisco, diga como seu chefe: “Não tenho nada a ver com isso. A democracia é assim mesmo”. Tudo é democracia. São uma espécie de gigolôs da ditadura. Usam a palavra democracia porque a ditadura pertenceria ao passado. Vai nessa.

A CPMF é justa porque todo mundo paga, diz o presidente. Mas todo mundo paga tudo que é imposto, basta ficar em casa tomando café ou sair à rua para pegar a condução. Todo imposto (no caso brasileiro, extorsivo) então é democrático. Se for democrático, pode. Por exemplo: se alguém sair matando todo mundo, está liberado. Faz parte da democracia.

Se você se insurgir, brigar, reclamar, pressionar, denunciar de verdade, então você é anti-democracia. Tsk tsk tsk. Quem diria. Você, um cara culto, vem agora ser contra a democracia. Um sistema que entrega a floresta para a iniciativa privada, que devasta o Mato Grosso inteiro, que planta soja e milho nos terrenos que por lei deveria preservar, que vai transformar o Rio Grande do Sul numa grande plantation para movimentar os automóveis dos países ricos, que devastou o cerrado, que entregou todos os bancos públicos aos banqueiros, é profundamente democrático. Tem merda para todos.

Vemos como se intensifica a crueldade contra a infância. Primeiro matavam os jovens, depois os adolescentes, depois as crianças. Agora estão matando bebês, jogando os rebentos nas águas poluídas dos arroios, abandonando semi-mortos em lixões, cada vez com mais freqüência. É o Brasil sem futuro, que suicidou-se, que não tem soberania, que renega seu berço, que não assume a dor de criar um filho nesta democracia em que está todo mundo saindo da pobreza, comprando cada vez mais, se enchendo de quinquilharias chinesas, enquanto falam sem parar em agregar valor e em qualidade de vida.

Se você coloca na praça um supérfluo e paga os tubos em publicidade para todo mundo consumir, e para isso destrói o ambiente e suja o chão nacional, se você faz tudo isso com dinheiro subsidiado, tungado de quem está entalado nos ônibus e favelas, se você participa de grandes eventos coloridos cheios da nota e para isso precisa se locomover de helicóptero, então você é democrático até o osso. Seja de qual partido for. Acene para a platéia. Estão todos de olho no seu lugar.

RETORNO - Imagem de hoje: anta corre no Mato Grosso devastado, de Marcelo Min.

5 de outubro de 2007

OITO DIAS NA SEMANA


O sonho, quando se realiza, sofre de uma overdose de realidade. É tão concreto o momento que nem nos damos conta que um dia imaginamos tudo aquilo. Agora, diante do fato, parece que nem sequer sonhamos, ou que teríamos inventado outra coisa. Mas foi exatamente isso que um dia formatamos no nosso coração. Com a vantagem que a realidade é muito mais complexa, mais convincente e gratificante do que qualquer delírio. É tão intensa a experiência que podemos correr o risco de não enxergar o que estamos vivendo como a realização de um sonho.

Aconteceu comigo algo semelhante na semana que começou sábado, dia 29 de setembro, até ontem, dia 4 de outubro. A sensação foi de oito dias numa semana, parafraseando os Beatles (como sabemos, não existem ex-Beatles, como insiste a mídia de maneira obscura; quem são os Beatles atuais? Os mesmos de sempre, logo o ex está descartado). De cara, faço um balanço: quantas vezes sonhei em recitar meus poemas em Porto Alegre, recriando os recitais da juventude? Milhares de vezes. Pois aconteceu.

No dia 29, na sala Barbosa Lessa do Centro Cultural Érico Veríssimo, na rua da Praia, numa sala ampla, limpa, iluminada, para uma seleta platéia atenta, recitei vários poemas, recentes e antigos. Na platéia, uma seleção brasileira: os poetas Oliveira Silveira (um dos homenageados do evento, Porto Poesia), Isaac Starosta (que tive a honra e o privilégio de conhecer pessoalmente), Emílio Chagas (poeta ainda muito oculto, que não via há tempos), Mario Pirata (um dos organizadores do evento) e Marco Celso Viola (também organizador do Porto poesia e autor de alguns poemas que recitei naquele momento). Marco me escreveu o seguinte logo depois que voltei: “Queria agradecer a menção do meu trabalho durante a tua palestra e ressaltar a beleza dos teus novos poemas que ouvi”.

Logo depois, caminhei alguns metros General Câmara acima até a livraria Roma, para participar de um evento promovido pela própria Livraria e o Jornal Vaia. Junto com Cláudio Levitan, conversamos sobre inúmeros projetos de música e literatura. Quantas vezes imaginei reencontrar Cláudio Levitan, o múltiplo talento que levou sua “Longa Milonga” para a Suíça, que é autor de estupendos livros infantis, que musicou Pé de Pilão, de Mario Quintana, que agora tem uma gravadora, que produz seus cd caprichados e maravilhosos?

Esse é Cláudio Levitan, autor dos belíssimos desenhos que ilustram meu livro de estréia Outubro, o cara dos mil instrumentos, que mantém o segredo da criatividade permanente, e que, ainda por cima, nos canta uma versão do clássico Coração de Luto, de Teixeirinha, com letra vertida para uma língua inventada pelos duendes que povoam sua literatura. Convenhamos, é demais. De quebra, o cara ainda me canta a canção que ele fez sobre poema meu, publicado em Outubro, que diz assim: “O desespero é uma flor/ que come carne/ e arde no meu peito de cantor/ Levei uma surra de navalhas, preso num eterno elevador/ Num sanatório de sonho, tenho a mão sangrada, quero o silencio de uma estrada, nova e calada”. Levitan sobra.

Nesse evento, lancei a semente de uma idéia: produzir um cd com meus poemas musicados por inúmeros talentos. Vamos fazer um balanço: Claudio Levitan, Bebeto Alves, Mutuca Weyrauch, Raul Elwanger, Zé Gomes. A unidade do cd seria o poeta, disse Levitan. Já pensou?

Pois bem. Voltei para Florianópolis e o que acontece? No dia quatro, participei da inauguração da Feira Intermunicipal do Livro de São José (que fica até dia 14, no Shopping Itaguaçu), situado na chamada Grande Florianópolis. Foi em São José que escrevi a maior parte de três livros meus: Universo Baldio, No Mar, Veremos e O Refúgio do Príncipe. Pois foi nesse município que recebi a medalha Mérito Escritor “Cruz e Souza”, alta honraria da Câmara Catarinense do Livro. Estou com a medalha em casa. Recebi os cumprimentos do presidente da Câmara, José Vilmar da Silva (esposo da escritora e livreira Irene Rios da Silva), o poeta Alcides Buss, o escritor Jair Hamms, entre outros.

Na seqüência, expus meus livros dentro do Shopping, inaugurando assim a presença de autores nos espaços reservados para autógrafos. É muita coisa para uma semana. Tudo pontuado, bem no meio, por uma gripe alérgica, que graças a Deus foi embora devido à minha insistência em cumprir meus compromissos deste ofício árduo e gratificante.

RETORNO - Imagem de hoje: o catarinense Cruz e Souza, glória da poesia brasileira.

3 de outubro de 2007

MAIS ENCONTROS



A foto acima, inédita aqui no Diário da Fonte, foi tirada quando o poeta Alcides Buss, que está à esquerda, me convidou para uma conversa com leitores na livraria da Editora da UFSC, que ele lidera na maior competência.
Agora um lembrete, não inédito aqui no DF: neste dia 4 de outubro, quinta-feira, vou autografar na Feira Intermunicipal do Livro de São José, aqui perto, no Continente, uma promoção da Câmara Catarinense do Livro, que na inauguração vai me outorgar a medalha do Mérito Escritor "Cruz e Souza".

O presidente da CCL, José Vilmar da Silva, explica que essa é uma distinção "oferecida por ocasião das nossas Feiras do Livro, que destaca contribuições pessoais importantes em atividades de valorização e difusão do livro e da leitura ou formulação de políticas relacionadas com a educação". Será no Shopping Itaguaçu às 10h30 (cerimônia de abertura e medalha) e às 13 horas (autógrafos).

Será uma honra receber a medalha e entrar em contato com os leitores dos meus livros, especialmente os dois mais recentes, "O Refúgio do Príncipe" e "Meu vizinho tem um rottweiler (e jura que ele é manso...)", escrito junto com Tabajara Ruas. O retorno dos leitores da saga juvenil de Diogo e Diana, do qual este é o primeiro volume de uma trilogia, tem sido gratificante.

Meu irmão Elo escreveu: "Tá bom demais. Tá fluído, parece que vocês ainda carregam o rio Uruguay dentro da alma, ou na ponta dos dedos. História boa, rápida, sem frescuras, direta, como o pessoal gosta.Mas é intrigante, dá vontade de conhecer a ilha, fala dos pontos que eu conhecia bem, nos meus tempos em que pescava nos costões. "

Clovis Heberle escreveu o seguinte: "As aventuras de Diogo e Diana na ilha de Santa Catarina têm aquela magia, encantamento e densidade dramática que me prendiam por horas sem fim, durante a minha adolescência, ao ler as aventuras de Tom Sawyer, do Tarzan, de Alice no País das Maravilhas. Me impressionou o texto descontraído sem perder a elegância e a riqueza de vocabulário, acessível a qualquer idade. Adolescente temporão, já espero o segundo livro da trilogia. A obra de vocês (tua e do Tabajara) enriquece a literatura brasileira. "

Daniel Duclós disse que o livro tem pinta de best-seller. Há uma unanimidade (inteligente): o livro fisga desde a primeira linha e empolga o leitor. Vamos que vamos.

2 de outubro de 2007

APAGÃO DIGITAL


Nei Duclós (*)

Desde o tiro n´água que foi o bug do milênio (aquele pânico de o universo digital zerar completamente com a chegada do ano 2000) houve uma desmoralização desse tipo de ameaça contra a tecnologia. Mas é bom lembrar que moramos numa ilha, onde a explosão de um liquinho na ponte é capaz de nos deixar à mercê da natureza por alguns dias. O que nos liga ao mundo está por um fio e quando a tragédia se impõe, quase ninguém sabe o que fazer.

No caso do famoso apagão de 2003, tivemos a sorte de contar com aqueles veteranos profissionais da eletricidade que gostam de trabalhar no potencial, ou seja, na rede em plena carga. Correndo o risco de virarem carvão, eles estenderam uma linha alternativa e foi assim que saímos da idade da pedra e voltamos aos insumos fundamentais como água, gasolina, banco, supermercado.

Como tem acontecido vários mini-apagões aqui no norte da ilha, fico de coração na mão, temendo a repetição daqueles momentos terríveis, em que realmente estivemos ilhados. A mitologia pagã de viver num pedacinho de terra perdido no mar tornou-se o pior dos pesadelos. Para complicar, soprava o vento sul e pelo rádio movido a pilha acompanhávamos os insucessos dos bravos rapazes elétricos, que lutavam contra a tempestade enquanto o impasse se mantinha intacto.

Para que lembrar dessas coisas, se a temporada se aproxima? Pelo que vi em feriado e fins de semana, este vai ser um verão de rachar. O sol ardido, ermo de ozônio ou de qualquer outra camada protetora que foi devorada irremediavelmente, cai sobre os turistas ainda atarantados pelo inverno, que aqui despencam em busca de alguns sonhos mínimos, como acordar com alegria num ambiente onde a natureza dá as cartas. Mas pressinto o óbvio: excesso de automóveis, areia superlotada e algumas armadilhas típicas, como um dia abafado recebendo brisa venenosa gelada pelos flancos.

Tenho tentado em vão convencer os adventícios que a ilha não é janeirão o ano todo. Quando confessamos que moramos aqui, exclamam: “Quanto privilégio!” Eles não sabem o que é ficar sem ver o e-mail por dias e dias, não conseguir atualizar o blog, não poder enviar o texto providencial que ajudará a pagar as contas no fim do mês. Mas para quem fica a maior parte de um feriadão parado na Imigrantes, o que vier é lucro quando chegam por estas bandas.

Não ouso mais dizer como as coisas funcionam no lugar que escolhi para morar. Estou recolhido às orações, pois um novo apagão seria um desastre completo. Fico imaginando as proporções de uma catástrofe em que todos os computadores pifassem e um gigantesco isolamento se abatesse sobre nossas vidas. Teríamos como companhia apenas os bons e velhos livros.

Poderíamos ler do amanhecer até o crepúsculo. Voltaríamos a ser pescadores e coletores. Abateríamos pombos (dizem que as gaivotas são indigeríveis). Seríamos como os antigos habitantes deste lugar de pedras empilhadas. Talvez até esquecêssemos o resto do mundo e nos concentraríamos em atividades erradicadas por aqui, como a lavoura, a conversa ao redor do fogo e o transporte marítimo.

Quando a luz voltasse iluminando as telas, estaríamos em outra realidade. Quem viesse com essa conversa de site, e-mail ou blog seria expulso a flechadas.
RETORNO - (*) 1.Crônica publicada nesta terça-feira, dia 2 de outubro de 2007, no caderno Variedades do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Caboclo, de Debret. 3. Estive no fim-de-semana em Porto Alegre, onde fiz um recital de poemas no Portopoesia e participei de uma conversa com Claudio Levitan na livraria Roma. A viagem foi uma maravilha e aos poucos vou desovando as experiências, impressões e tesouros dessa rápida estadia em que reencontrei amigos e fiz novas amizades.