3 de novembro de 2008

O AVESSO DO EXÍLIO


Nei Duclós

O presidente deposto Mauro Jindre Calvano Castro encontrou no Uruguai seu exílio dourado. Sentia-se no Brasil, para desespero de sua assessoria, que não conseguia explicar direito a confusão que o estadista fazia entre a antiga província Cisplatina, do tempo do Império, e o estado soberano que agora o recebia. Achava que os uruguaios eram riograndenses mais urbanos e cultos e, o que era melhor, habitantes de uma civilização que há muito no Brasil tinha sido destruída. Toda vez que o Doutor Mauro Jindre entrava num café e via aqueles garçons com guardanapos longos pendurados no ante-braço, começava a cantar Noel Rosa.

Mas a política, ou melhor, a percepção coletiva do jogo político, é um espaço virtual que subsiste com suas próprias leis. O presidente era prestigiado e tinha carisma. Conseguira, no seu curto governo eleito pelo voto trabalhista tardio, retomar alguns lances eliminados pela longa ditadura que tomara conta do seu país por seis décadas. Em 2024, assumiu o poder acenando com a volta dos trens, desta vez todos em aço inox, dos colégios públicos de qualidade, dos edifícios com no máximo três andares. Prometeu impor a calça curta para a meninada, o fim da MTV, fuzilamento de traficantes e consumidores de drogas, aproveitamento da madeira cortada da Amazônia para fabricação em massa de barcos de todos os calibres. E, o ponto focal da sua campanha, o Rio de Janeiro novamente como capital da República (Brasília iria virar uma cidade universitária e de alta tecnologia).

Tinha prometido dinamizar a Marinha, atualizar o Exército, colocar a Força Aérea na Lua. Deu certo. Foi eleito por uma lavada de votos. Mas as forças do Mal se recompuseram para destruí-lo e em apenas dois anos e meio de governo foi colocado para rua num golpe de estado que contou com a participação decisiva de um exército para-militar, privatizado, formado por solados de cinco continentes. Posto para fora do país, o Doutor Mauro deixou-se ficar no Uruguai, com a esperança de voltar rapidamente. Desta vez, teve o cuidado de não comprar nenhuma fazendinha.

Mas como poderia realizar seu intento se a nova ordem tinha retomado o que havia sido destruído no seu governo? Não apenas a volta dos clipes da MTV, mas o novo sucateamento dos trens, o câmbio paralelo, os juros altos, o tráfico de armas, a favelama, a cana-de-açúcar, a soja. Havia dinheiro no país, fartamente distribuído pelo governo americano republicano, que voltou com tudo depois de três presidentes negros, dois reeleitos e o último deposto com um tiro na nuca. Saíra tudo errado. O exílio, que no início prometera ser de pompa e glória, revelou-se frio, amargo e sombrio.

O Doutor Mauro, que antes recebia estadistas em sua limousine preta, colocada à sua disposição pelo governo socialista uruguaio, agora usava um velho Gol encardido, que mandara buscar de suas propriedades na fronteira. A toda hora ficava a pé, porque o carrinho afogava, batia biela, entupia. Esperando o socorro do mecânico, o presidente encostava-se no veículo lendo algum jornal popular, para disfarçar. Mas suas entranhas ardiam. O que mais o incomodava era seu biógrafo. Este, o jornalista aposentado Afrânio de Couto Magalhães Pereira, inventara de exagerar tudo o que o presidente fazia no exílio. Se tirasse uma foto em frente ao Rio da Prata dizia que era um gigante como Netuno. Se posava numa escadaria de shopping, falava em ascensão ao poder.

O presidente não suportava mais Afrânio, escoadouro de recursos, pois insistia em ficar num dos hotéis mais caros do Uruguai, enquanto ele, presidente, se entocava num quarto barato de pensão no subúrbio. Tudo pelo marketing, dizia o indigitado.

Afrânio chamava o hall do hotel onde se hospedava às custas das doações que amealhava passando o chapéu pelos nichos culpados do mundo, de Catetinho, pois o Doutor Mauro realmente tinha mudado a capital para o Rio e talvez esse tenha sido o fator principal de sua deposição. Ninguém mais estava acostumado a suportar os cariocas como centro do universo. Era preciso voltar ao normal, a Niemeyer, a Delfim Netto, a Jarbas Passarinho. Quem agüentaria uma parada com a banda dos fuzileiros navais tocando Cisne Branco? Era preciso impor novamente o tunc tunc eletrônico, o sertanojo, o heavy metal.

E assim foi feito. O Doutor Mauro até se reacostumara ao país que decidira desconstruir. Via normalmente as novelas da Igreja Interestelar, brasileira e multiplanetária. Precisava era dar um jeito em Afrânio, o único que acreditava na volta do presidente deposto ao poder. Quem sabe mandava colocar umas trouxinhas de fumo no bolso do vagabundo para que apodrecesse na cadeia? Ou o acusasse de assédio? Já sei! disse um dia o presidente, Doutor Mauro. Vou mentir que o convidaram para ser correspondente em Montevidéu do New York Times. Arranjo até passagem para ele pagar esse mico. Do jeito que é trapalhão, será preso quando passar por Miami.

Doutor Mauro Jindre era um estadista e tanto. O problema é que ele estava gostando da sua vidinha. Tinha até colocado o olho numa uruguaia formosa, que passava todos os dias na frente da janela de seu quarto barato de pensão, e que Afrânio jurava ser uma espiã. Talvez pudesse até dar uma bimbada. Tudo é possível no mundo da política.

RETORNO - Imagem de hoje: edifício Palácio Salvo, situado na Praça Independência em Montevidéu. Foto de Rubens Montardo Calliava Junior.

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