28 de julho de 2021

DUAS VIDAS

 Nei Duclós 


A fantasia não te salva da vida verdadeira

A que te põe  para baixo a vida inteira 

Vida paralela não preenche teus desejos

É sempre a mesma  vida que  chega primeiro


É palavra repetida no verso e no avesso 

Vida que te cobra pelo sonho sempre o mesmo 

No fundo não  tens vida, mas um espelho

Onde vês a vida sumindo na areia


A não ser que resolvas quebrar

 a vida falsa

Aquela verdadeira vida sem sossego  

E abraces  a vida que ficou prisioneira 


Para isso tens a vida quieta em teu peito 

Um dia ela grita, como um sino submerso 

De uma catedral que é a vida em outro tempo

Ao afundar no mar de uma vida incorreta 


 

27 de julho de 2021

PALAVRAS

 Nei Duclós 


Palavras doces beijam melhor

Palavras  amargas melhor evitar 

Palavras fortes dobram o mar

As poderosas fazem amor

As complicadas confessam a dor

As ritmadas imitam tambor

Apaixonadas  levam  de roldão


Meu coração pertence às  palavras


Nei Duclós

23 de julho de 2021

INSONIA

 Nei Duclós 

 

Pessoas operadas

Tem hábitos bizarros 

Dormem o dia todo

E à  noite ficam em claro


Sua sombra está gelada 

E as cobertas pesam 

Até os cães invasivos 

Não querem mais conversa 


Quem se manifesta 

Nessa vigília insone 

É Deus em seus detalhes

Café ou chá com bolachas


Assim esperam o sol

Que aquece as fantasias

Na cama limpa e o pijama

Enquanto passa a semana 


A única companhia

É a fina marcenaria

Da poesia sem vicios

Que dizem pobre mas sonha

Em ser a arte perfeita


Nei Duclós

22 de julho de 2021

ESPERAN⁸ÇA

 Nei Duclós 


Pessoas operadas 

Vivem o momento 

Cada gesto conta

O sono, o alimento 


Andar, só com prudência 

A rua está fechada

Para todo movimento 

Mas as janelas abertas

Trazem o dia para dentro


Pessoas operadas

São outras criaturas

Marcas de bisturi 

Lhe deram a sobrevida


A sorte e a medicina 

Traçam um novo rumo

Tempo de esperança 

Sob proteção divina

18 de julho de 2021

PLUMA DE PÉTALA

 Nei Duclós 


Pluma de pétala, roçar de penugem, bóia no éter, louça de estrela: flutuas no beijo que componho.


Nada mudou, a não ser teu rosto crispado de amor diante do segredo que enfim nossos corpos revelaram.


Fico esperando que me fales no ouvido. Mas só escuto o mar, minha solidão ao vivo


Quando nos sintonizamos, na conexão funda, andar depois fica difícil.


Acordei com a palavra fazendo café. Cheiro de você rompendo o cerco do inverno.


Desconfias que fiz a esmo os versos que cultivo. Sou lavrador de sentimentos, flor púrpura.


Amanhecemos num terraço avulso. Próximos de um desatino, um beijo desencadeando chuva.


Dê uma volta para eu ver você em seu vestido. Depois desfaça em parafuso como se fosse uma valsa.


Amor é invasivo. Paradoxo de algo que depende de mútuo acordo.


Querer é livre. Chegar mais perto desde que consintas.


Você tão parecida com aquela estrela longínqua. Com a diferença que és minha


Já faz uma cara que pediste um tempo. Fico irreconhecível sem teu espaço.


Saudade é um elástico que te traz de volta em poucas horas.


Nunca estive perto de você, mas já estive mais perto.


Estou cada vez mais longe, olhos de violeta.


Só vou se me chamar. Senão volto para o mar.


Poesia é assombro. Por isso beijo teu ombro


É amor? perguntou-se.

Era.



EXISTIR-ME


A moeda brasileira é dívida. Sempre fui rico.


Tudo me inviabiliza. Construí um mundo à parte, onde possa existir-me.


A noite é quando o dia pensa.


O amanhecer é imaginado pela noite alta.


Do mundo bruto, temos a manha: aceitamos que seja real, desde que ceda depois da curva


Ficamos cada um numa ilha. Formamos um arquipélago de suspiros.


Fantasia, território livre, onde estabelecemos acordos inverossímeis. Maná que alimenta vigílias.


Não fosse o sol, estaríamos fritos.


Estamos de férias. Imaginamos uma viagem em cada esquina. Espere o sol, que vem de carruagem.


Daqui a pouco tudo passa: o frio, a madrugada, a saudade.


Isso não faz sentido, mas podemos imaginá-lo


Pense num diálogo. Sou o que te responde.


É simples. Basta impregnar a palavra com o que ela sonha.


Nei Duclós




PROCURO

 Nei Duclós 


Não sei o que procuro

Miudezas me confundem

Objetos, alimentos

Memórias, amizades

A idade, o isolamento 


Olhar de pouco espaço 

Apertado entre os estreitos 

A alma já exausta 

O  corpo resistente


Procuro uma palavra

O  corte mais direto

O fôlego consciente

O teu amor violento 



INVENTEI

Nei Duclós 


Mistura de plantas

No improviso do jardim 

Tua beleza desafia 

Minha saudade


Amiga da arte

Pintura de exímio perfil 

Inventei de te amar

Entre os jasmins


VOLTAR

 Nei Duclós 


Pessoas operadas

Que voltam ao batente

Tem a alma lavada 

Depois de tanta ausência 


Tudo faz sentido 

E não era sem tempo 

A casa ganha vida

De sonhos já  refeita


Feridas cicatrizam

Exames não surpreendem 

E os pássaros recitam

canções do amor contente


Poemas de açúcar 

Cabem nesse caso

Viver no fundo é  isso

Cruzar o mar  a nado



17 de julho de 2021

ACERVO

 É pequeno o acervo que possuo 

E não está à  venda

O amor, palavra gasta

E a solidão 

Que me acompanha


TINHA GATO NA⁸ BRIGADA

Nei Duclós 


Com 17 anos meu pai Elo mudou sua idade para 18 e assim conseguiu seguir os passos do irmão mais velho, Valdemar, e entrar para a Brigada Militar gaúcha.  Órfão do pai José Ortiz Duclós desde os 9 anos, quando saiu da escola para vender pastel na rua, a farda era a salvação: soldo, rancho, uniforme e armas. Só tinha um problema: a guerra.


E assim com 18 anos incompletos, o moço nascido a 14 de julho de 1913, partiu com as tropas da Brigada para lutar na revolução de 1930. Houve luta, não foi um passeio. Ele conta:

- Todos gritavam te abaixa! para o soldado que atirava em pé. Mas ele não obedeceu e levou um tiro na testa.

- A noite inteira sufocaram o soldado engasgado com um osso de galinha. Não podia tossir senão revelava nossa posição. 


Grande Elo Ortiz Duclós. Fez a guerra moço e uma família grande até partir para a eternidade. Tinha um ano a mais por merecimento. Era gato, como dizem no futebol  dos craques precoces com gana de maioridade.

16 de julho de 2021

PROCEDIMENTOS

Nei Duclós 


Banho de gato na maca

Injeção na veia bailarina 

A que dança diante da agulha e  que a enfermagem desafia 


Almoço às 11 e 30

Mantenha a postura da lateralidade 

Para a operação não desandar


Os procedimentos são  de quartel

Passo em marcha batida 

Horários rígidos 

Hierarquia dos maqueiros ao anestesista

Do raso da limpeza ao general doutor 

Que tem tua vida nas mãos  


Na despedida dizem não voltem

Vivam


DESTINO

 Pessoas operadas são outras  criaturas

não ficam nas calçadas  não cantam para a Lua

Não andam pelas ruas no rastro das costuras 

Enfrentam seu destino

Nas mãos do Absoluto

Nei Duclós 

GESTO

 Nei Duclós 


Pssoas operadas

Não tem rota de fuga 

Permanecem amparadas 

Por obra da família 

Um dia desamarram

O gesto hoje impossivel


Nei Duclós

DECISÃO

Nei Duclós 


Escrevo quando não tenho nada a dizer

Leio quando  já disse tudo

NA CAMA DO HOSPITAL

 Nei Duclós 


Na cama do hospital 

As noites são eternas 

Alguém alcance água

Ou traga roupa seca


Voltamos à  infância 

Sem margem para a lágrima

Valei-nos   ó Senhora

De Lourdes e de  Fátima

FIEL

 Nei Duclós 


Sou fiel à  tua beleza

Mesmo que dilua 

 O poema


A palavra  dói    menos

Passageira

TOQUE DE SILÊNCIO

Nei Duclós 


Como pode ser distante um país  que ocupa 1 quinto do território do planeta?

O Brasil fica perto

E ignorado pelos que estão  longe 

Assim é meu poema

Cercado de silêncio 

Sua voz é  amiga do vento 

Sopra por todos os quadrantes 

Poesia de um país presente 

Como diz o hino

Impávido gigante 

Claro clarim entre as nações que o contemplam 



AS MÃOS NÃO OBEDECEM

Nei Duclós 


As mãos não obedecem

Os olhos tem granizo

Pernas sem memória

O corpo esse enigma

Viver vira tortura


Mas chega o belo dia 

Que vem em seu socorro 

O amor e a medicina 

Que assumem

 o comando

Com Senhora Aparecida

UMA PESSOA OPERADA

 

Nei Duclós 


Uma pessoa operada

Escolhida para o cargo 

Não exerce seu poder

Agora fica amarrada


Imóvel como pássaro

 no miolo da tempestade 

Depende das orações 

Do bisturi e sua

 arte 


Às nações do seu país

Brigam por tudo ou nada 

Falta paz na diferença 

Conflitos viram vingança 


A pessoa operada 

Tem pouca margem de erro

A vida  além do extremo

Acima da voz suprema


Diante desse momento

O poema então se cala

Silêncio no fio da faca

Rondando o tempo sem trégua.


TEMPO NOVO

 Nei Duclós 


Adoro  meu trabalho

Lavoura do poema

Semear em terra bruta

Suar em sua colheita 


Ninguém me obriga a nada 

Promessa, sonho , desfeita

Faço sem compromisso

Dos pés até o cabelo

Todo meu  corpo se expande

Pousando em pele alheia


Amor , ou como se chame

É  ofício , missão ,

reclame

Notícia de um tempo novo