31 de março de 2006

VÉSPERA DE LINGUAGEM






Nei Duclós

A palavra não se instala nas criaturas por prazo de validade. Não é porque a criança completou determinado número de meses que estará automaticamente apta para articular a ponte com seus semelhantes. É um trabalho árduo.Os instrumentos disponíveis para a fala entram em fase dura de exercício desde o primeiro instante. O choro e, quando necessário, o berro, são as primeiras manifestações que servem para alertar sobre o uso dos recados. Mas entre manifestações desse tipo e a primeira palavra, há uma série de eventos que incluem as nuances definidas pelo som que passa na garganta e depois encontra a gruta onde mora a mágica, a língua em movimento, os dentes e o céu da boca, limites que decidem sobre as consoantes em choque com as vogais trazidas do berço.

Vejo isso na minha neta, que me resgatou a memória dos bebês, da qual estava apartado por ter sido pai muito cedo - aos 24 anos, coincidindo com minhas primeiras redações. Quando entrei na Folha da Tarde, da Caldas Junior, abraçado a uma versão traduzida e resumida dos Quatro Quartetos, de T. S. Eliot, além de provocar o comentário debochado dos veteranos (?pronto, mais um intelectual de sovaco?, disse Jorge Escosteguy) eu no fundo queria levar para o novo ofício o que me seduzia desde muito cedo: a possibilidade de, num mundo escasso, conseguir sintonizar com a força da permanência. Tarefa impossível para quem foi jogado no mundo real, o de contar buracos de rua e fazer plantão no aeroporto.

Assim como toda família espera a primeira palavra com o coração na mão de tanta ansiedade, no jornalismo fomos empurrados para a criação de um estilo, ou seja, a linguagem conquistada com esforço, diante de uma platéia de leitores radicais, os colegas da redação. Para isso era preciso humildade. Mas não totalmente naquele ambiente liderado por Walter Galvani, que tinha Danilo Ucha, Luis Fruet, Scotch (que me contava mais tarde, às gargalhadas, sua primeira impressão sobre o foca que chegava esperançoso de ler um livro no intervalo dos textos), entre muitos outros . Fui estimulado a colocar na roda o que me cercava e foi assim que fiz meu primeiro lead inesquecível.

A notícia era saborosa. Um teco-teco vinha pelo campo e bateu numa vaca. O caso foi ao tribunal porque o fazendeiro não se conformou com a perda do animal. O juiz então perguntou para o piloto:
- A que altura o senhor vinha voando?
- A uma altura de meia vaca, Excelência, disse o piloto.
- Pois na próxima vez, advertiu o juiz, venha na altura de vaca e guampa.

A abertura inusitada provocou gargalhadas na redação e foi publicada. Foi assim que fui festejado na primeira vitória diante desse trabalho insano que é articular as palavras para que todos entendam e fiquem com vontade de ler.
Quando migrei para São Paulo, empurrado pelo estreito mercado de trabalho na terra de origem, cheguei com as fumaças daquela festa e imediatamente fui colocado no meu lugar. Woile Guimarães me chamou num canto e sussurou: estes lugares comuns que você colocou aqui, seu gaúcho, são uma grande porcaria (não exatamente com essa abordagem família, mas com uma saraivada de outras, ainda impublicáveis). Redescobri então que deveria começar de novo, não para agradar o chefe rigoroso, mas porque essa era pedreira que precisava encarar.

No rodízio que cumpri religiosamente pelos veículos, encontrei textos encarnados em pessoas brilhantes. Vi Macedo Miranda, filho, definir os contornos do texto de uma revista, de estrutura circular e com os parágrafos sintonizados sem nenhum vício; vi Ricardo Vespucci, de olho saltado, cinzelar textos perfeitos a partir de matérias de repórteres inigualáveis como Caco Barcelos e Audálio Dantas; vi Genilson César e Antenor Nascimento, nas madrugadas, conseguirem repassar para a publicação pequenas jóias do jornalismo e acompanhei o trato com a escrita que Humberto Werneck, Nirlando Beirão, Mino Carta e Wagner Carelli davam em cada linha, como se fosse a última.

Foi assim que passei o tempo que me deram para viver sobre a terra. Plantado no jornalismo como um eterno aprendiz, me perguntava quando chegaria a hora de também colocar preto no branco algo que poderia ler muito tempo mais tarde. Foi nessa luta com a primeira palavra que inaugura um texto para se destacar do rebanho, e que define uma identidade sem esperança de que ela terá permanência, que trafeguei entre jornalismo e literatura, como vasos comunicantes que jamais se negam. Era a maneira de encarar os dois ofícios como um só, limpando de cada trabalho toda a veleidade que transforma sonho em papel datado.

Uma criança, como o eterno foca, compõe a roda de sons com a alegria dos iniciantes, que aprende a sobriedade em contato com quem chegou antes. Depois das vogais dos primeiros instantes, surgem algumas consoantes para desencadear a pressa dos mais velhos. Ela disse mãe, ela disse vô, ela disse titio, exultam os adultos. Mas a criança guarda seus segredos trazidos da além vida. Uma sílaba pode batizar várias coisas e a celebração de uma vitória aparente entra em dúvida quando a mesma emissão de voz serve para mais de um batismo. É cedo ainda, nos dizemos. Ainda não veio a primeira palavra.

Moramos nessa expectativa enquanto a criança deita e rola na véspera da linguagem. Ela engatinha, depois anda e aponta com os bracinhos esticados o que quer. Pássaros são chamados com gritos agudos. Um choro específico é a fruta fora do alcance. Mas chega o momento em que todos correm para registrar o que seria enfim o som, tão esperado.
- Baia baia didi tum, diz a neta, para espanto da assistência.

Para que não fiquemos frustrados, ela faz seu gesto característico: franze o narizinho e emite um sopro que é puro charme. Quem precisa de palavra quando o espírito é vasto e o amor rege nossas vidas fora dos esquemas poderosos que tentam nos esmagar com suas leis?

RETORNO - 1. A ilustração é de Juliana Duclós, sobre foto da sua filha Maria Clara, minha netinha da crônica. 2. Este texto inaugurou minha participação, ontem, quinta, no espaço Literário, do Comunique-se. Site interativo e dinâmico, o Comunique-se ousou inovar colocando na roda um antigo sonho das redações: o de publicar a literatura produzida pelos jornalistas. O time é de 25 pessoas, com cinco textos novos por dia. Um acervo e tanto, que inclui crônica, poesia, conto etc.

30 de março de 2006

BARULHO DE CORRENTES




Aconteceu. O consenso da mediocridade está fazendo água. A revolta vem do coração do monstro, a mídia comprada. Primeiro foi Lima Duarte, que fez barulho das correntes que o amarram ao merchandising. Sem querer comparar, apenas elencando exemplos, agora é Luiz Cláudio Cunha, em primorosa carta para o novo diretor de redação da Istoé, Carlos José Marques,que vale a pensa ser lida no Observatório da Imprensa. Selecionei alguns trechos da carta, que é puro Diário da Fonte (com a devida licença de Luiz Cláudio Cunha, um dos maiores jornalistas do Brasil, de extensa e digna biografia):
"Vivemos tempos muito estranhos, em que as coisas que precisam ser ditas ficam escamoteadas, camufladas, sussurradas, caladas. Nada se reclama, nada se critica, para preservar amigos, cargos, salários, posições, espaços de poder, enquanto o jornalismo vai se diluindo e dissolvendo na sua incapacidade de autocrítica"


DEBATE - "Quero quebrar esta caixa preta e propor, com a serenidade recomendável e a prudência necessária, um debate sobre o papel que todos nós temos no empobrecimento continuado de algumas de nossas principais revistas semanais. A crise econômica, o custo do papel, a retração dos anunciantes, a concorrência da TV, o surgimento da internet e outros quesitos geralmente justificam a recorrente onda de enxugamentos nas redações de jornais e revistas, nivelando por baixo salários e profissionais. Esta é uma dura realidade, que não é nova nem parece prestes a acabar. Pelo contrário".

"Neste quadro recessivo, que inquieta patrões e assusta empregados, é natural o surgimento do "jornalismo de resultado" e seus profetas ? os executivos moderninhos que prometem redações baratas, revistas idem, amenidades muitas e reflexão zero. Apostam no padrão do leitor que consome mas não pensa, no perfil Homer Simpson que se satisfaz com o atendimento às suas demandas meramente consumistas, do estilo shopping center que simboliza o templo de devoção da classe média e seus periféricos. Para este tipo de leitor, com tanto a comprar e tão pouca disposição para ler, o jeito é o modelito USA Today, o jornalão fast food destes tempos midiáticos para uma leitura rápida, calórica e saborosa como um Big Mac".

"Assim, nossas semanais sofrem cada vez mais a tentação de atender a este novo mercado emergente, abdicando de sua função primordial: o texto mais consistente, mais abrangente, para refletir e ponderar sobre a salada de informações frenéticas e redundantes que o dia-a-dia de jornais, rádios, TVs e internet enfia goela abaixo do cidadão".

"A revista, que devia ser o oásis de reflexão para ajudar o pobre leitor a atravessar esta overdose semanal de notícias e mais notícias, abdica de seu papel e mergulha no turbilhão do jornalismo rápido e rasteiro. A estética vale mais do que a essência. A forma se impõe ao conteúdo. O texto curto confina os detalhes. A foto, espelhada e escancarada, come os espaços de uma informação cada vez mais estrangulada. Tudo induz uma leitura ligeira, quase leviana, para não afrontar o relógio e a agenda do nosso leitor tão apressado. E, em vez de procurar saciar a fome de informação e conteúdo, a revista sucumbe e se submete à magra dieta jornalística que ela diz ser exigência do leitor moderno. Alguém está enganando alguém neste jogo".

GRIS! - Chegou o outono e resgato do fundo da estante o abrigo gris (cinza) da hora. Os fios que um dia foram novos, firmes, vistosos, hoje estão embaralhados em algo inconsistente, mas meu corpo já está acostumado, como diz a canção. Bateu o vento, ameaçou a friaca e chego na sala vestido com minha armadura antiga e dou meu grito de guerra: Gris! Nada do que tenho agora se compara ao original, o casaco que comprei um dia numa loja chic do shopping e que cruzou os anos tem ter rival (como dizia o hino do bloco uruguaianense Pichichê). Ele me cobria braços , peito e costas com um gostoso abraço de puro algodão, desses que não se fazem mais (ou, se fazem, devem estar custando os tubos). Acordava e dormia com o casaco. Chegaram a escondê-lo, quando mostrou algumas feridas abertas depois de tanto uso. Mas eu sempre encontrava o esconderijo e, triunfante, chegava na área trespassada pelo frio com minha palavra de ordem, para espanto dos que me rodeiam: Gris!

Acho a maior graça nessas bobagens. Só não rio quando lembro daquele casaco que um dia esgarçou-se inapelavelmente. As roupas também morrem.

RETORNO - 1. Agora os repórteres poderão se informar sobre o mensalão, que foi confirmado no relatório da CPMI dos Correios. Basta clicar no link da Câmara. 2. A letra do hino do Pichichê, bloco do Clube Caixeral (o do Comercial era o Big Ben) conforme está guardado na memória, é esta: "Cruzando os anos/ sem ter rival/ O Pichichê/ está fazendo o seu cartaz/ na grande farra/ do carnaval/ Ele entra no salãããão.../ O Pichichê entrou/ todo o pessoal cantou/ e o resto se apagou/ Pa-ra-ra-rá.

29 de março de 2006

HOUVE UMA VEZ A REPORTAGEM




Não existem mais repórteres. Os jornais se limitam a reproduzir o que o novo ministro da economia falou. Na hora, ninguém fez a pergunta óbvia. Vejam o que Guido Mantega disse ao tomar posse (segundo pesquisador americano, expressão que só existe no Brasil): "Em 2004 o Brasil deu início a um ciclo de desenvolvimento continuado com as características de desenvolvimento econômico, distribuição de renda, geração de empregos e redução da pobreza. Em grande parte tudo isso se deveu à tenacidade e à competência do ministro Antonio Palocci, a quem rendo minhas homenagens e o respeito de companheiro de longa data". A pergunta é: como assim, desenvolvimento continuado, se o Brasil cresceu menos de três por cento, abaixo da média mundial e só superou o Haiti, um país em frangalhos e em guerra? Um repórter não tem que fazer salamaleques para o que chamam de liturgia do poder (como se o governo fosse um conjunto de Papas). Não tem que colocar as mãos em xis na altura dos países baixos e sacudir afirmativamente a cabeça, e de vez em quando torcer toda a boca para baixo e os lábios para frente, e olhar para os lados, como a confirmar o que o poder está proferindo, como fazem os papagaios de pirata.

CPI - Sr. Ministro, estamos retrocedendo, a miséria toma conta do país, os empregos de carteira assinada são subempregos em sua maioria. Já sei: não fazem essas perguntas e observações porque senão o repórter será acusado de tucano. Essa é a arapuca: destruíram o jornalismo para transformar tudo em publicidade e jogaram a reportagem no lixo. Mas se um dos maiores e gloriosos repórteres confessa publicamente que não existe mensalão e que houve excesso ou pressa da mídia nas denúncias, sem se dar o trabalho de ver o que a CPI recolheu de informação? A mesma CPI dos Correios que tem seu relator e a família, conforme denúncia do senador Pedro Simon, sendo ameaçada pelos gângsters? Srs. repórteres: os srs. não foram um dia nos arquivos da polícia para descobrir a seqüência de assassinatos de jovens pobres e inocentes? Agora mergulhem nos dados da CPI e façam o mesmo. E perguntem ao ministro: como a pobreza reduziu se as crianças estão sendo assassinadas no tráfico, na guerra entre gangs? Costumo me perguntar como esse tipo de gente consegue dormir. Vivem num mundo paralelo, com dinheiro público subsidiando o combustível deles. Não tiro meu carro do meu bairro. Ando daqui para mais ali. Pois gasto uma grana preta com gasolina. Sempre foi assim, desde que conheço esta ditadura e faz tempo.

TUBARÕES - Em qualquer ambiente profissional ou doméstico, quem é pego em flagrante sai escorraçado. Não é o caso dos tubarões que assumem cargos. Eles saem lampeiros, homenageados e daí a pouco são contratados por algum banco ou agência financeira. Porque a ditadura, que é do capital financeiro especulativo, precisa da corrupção para se manter. Nada menos confiável do que a ética. A honestidade causa calafrios. Para começar, não existe. Sempre somos culpados de algo, queiramos ou não. Não podemos criticar nada também, pois fazemos parte dessa curriola, segunda a ótica bandida que nos governa. Mientras tanto, como dizem os hispânicos, uma garota mata outra em frente ao colégio porque estava disputando namorado; qualquer chuva alaga São Paulo; a atriz da Globo e ex-esposa de Flavio Rangel cai do décimo andar de um edifício. Tudo normal. Rendemos (de renda, bufunfa, grana) nossas homenagens ao ministro que está sob suspeita. Quanta injustiça, nem permitem que o homem toque sua fantástica política econômica. É como dizia aquele sujeito: não me deixam mais matar em paz.

RETORNO - 1. O velho armeiro Mario Chimanovitch, grande repórter com quem trabalhei na época da revista Senhor, confessa que teve súbita saudade do poeta e me envia urgente mensagem.: "Por onde andas ? Todos ou quase todos se desvaneceram, como um caminhão de mudanças que se perde na fumaça, para onde ele passa ? Quando o orgulho esmaga as asas, o tempo é um pássaro de natureza vaga... Dê notícias. Ximana". É que o jornalismo acabou, Ximana. Para onde foram aquelas redações? Não podemos fazer essas perguntas, pois senão nos chamam você sabe do quê. 2. Minha estréia no Literário no Comunique-se é amanhã, quinta-feira, e não hoje, como anunciei ontem.

28 de março de 2006

QUANDO A MENTIRA ARMA O ESCÂNDALO





A verdade, na infância, faz parte da vida social. A criança fala o que sente e pensa para quem quiser ouvir. Quando chegamos na idade adulta, a verdade migra, não totalmente, para o foro íntimo. Fica complicado dizer com todas as letras que estamos mentindo para sobreviver, mas isso geralmente acontece. Para os longevos, esse processo acumula alguns esqueletos no armário. Mas chega uma hora da vida que a curva inflete sobre si mesmo e eis que nos vemos novamente livres, como se estivéssemos começando. Essa libertação, que pode ocorrer em qualquer idade, livra não só a pessoa do remorso, mas contribui para que a nação também se torne adulta com mais responsabilidade. O que vemos hoje na vida pública é uma sucessão não só de mentiras, mas de crimes fundados na inverdade. O Ministro Palocci caiu porque o segredo do caseiro foi violado, e foi violado para que a mentira triunfasse. Não é justo, portanto, que seja tratado com tanta reverência pelo noticiário, nem que sua política econômica fique imune às críticas. Se a pessoa, conforme as evidências e os resultados do evento, mente para destruir uma pessoa do povo que fez um depoimento, imaginem o que é capaz na condução das nossas vidas.

ARAPUCA - A verdade é que estamos todos presos numa armadilha. Quem acreditou no Lula precisa que ele não seja envolvido nos escândalos, pois isso iria colocar a perder vidas inteiras dedicadas à militância que acabou resultando num governicho. Quem trabalha na Globo está preso a um monstro, a consolidação do imaginário que arrocha o país na ditadura. Duvido que grandes atores adorem estar fazendo programas pífios. A Globo se tornou tão poderosa que é preciso, a bem da sanidade do país, confrontá-la com todas as forças. Não para ser substituída por coisas como as redes do Bispo Macedo, de Silvio Santos ou da Rede TV! Mas para que se desate o nó dessa herança maldita, esse peso que o fundador da rede colocou na mão dos seus herdeiros e que tende a se perpetuar se nada for feito.

OPOSIÇÃO - As tentativas de confrontá-la deram poucos resultados. Livros e filmes sobre os excessos da rede tornaram-se praticamente marginais, enquanto o plim plim continua firme, sem adversários à altura. Na internet, sobram críticas, mas tudo fica por isso mesmo. A luta contra a mentira personificada na TV brasileira precisa ter oposição, sob pena de sucumbirmos para sempre. O fato de podermos nos libertar desse jugo fará bem não só a quem se opõe à Globo e suas clones, mas aos que estão dentro e não tem como sair (e quando saem, voltam correndo).

DOMÍNIO - O que é mais grave é que a TV não se contenta em mentir apenas na telinha. Está começando a dominar a produção de filmes e entrou pesado na área de livros. Isso cria um círculo horrendo de servidão. Na área de responsabilidade social, ao invés de termos políticas públicas perenes e eficazes, temos iniciativas cacifadas pelos meios de comunicação (que usa o dinheiro público) para dizer o quanto poderemos ser politicamente corretos, preservando tartarugas e ensinando capoeira.

SABOR - Conversa de padaria, de Fábio de Lima , A voz do dono, de Deonísio da Silva, "Cicilha kirida", de Cecília Giannetti e Estranhas relações, por Anna Lee, inauguram o espaço Literário do Comunique-se (link ao lado). Textos saborosos, saudados como uma boa respirada em meio a tantos releases. Urariano Mota faz parte do time e já esquentou os tamborins para entrar na avenida na sexta feira. Amanhã, quarta, é minha estréia. Comentários serão bemvindos.

RETORNO - Fausto Wolff, na sua coluna do JB, colocou o seguinte: "PS: Tive de saber, através da imprensa italiana do sucesso que faz naquele país um romance brasileiro do qual os nossos cadernos literários decidiram não tomar conhecimento: o belo Os corações futuristas, do pernambucano Urariano Motta". Enfim, justiça ao mais importante romance brasileiro dos últimos 20 anos - como foi batizada por mim a obra aqui no DF e no jornal Rascunho.

27 de março de 2006

A ESCRAVIDÃO EM LIMA DUARTE



O ator Lima Duarte, da Globo, soltou os cachorros na Ilustrada de ontem. Reclama da escravidão (ele não usou essa palavra, mas está na cara que esse é o tema) que o obriga a ser garoto propaganda da ração de gato, sendo dirigido por alguém do merchandising, tendo de colocar o logo do produto na frente da câmara. Lima Duarte se sente bem protegido. Recebeu convite milionário da Record, ganha bem, está com cinco filmes para chegar à praça. Mas seu grito não é um gesto de liberdade. É, antes, a evidência que serve aos poderes aos quais se entregou pela vida inteira, representando o que nos obrigam a pensar sobre o povo brasileiro.

Ele acha que é autêntico, que seu Sassá Mutema é o povo do qual saiu. Não é. Seu Sassá Mutema é o idiota que representa o povo inventado pelo poder. Com seu talento, Lima Duarte convence. Mas ele não representa o povo que gerou Dorival Caymi e Baden Powell. Ele encarna a submissão, o jugo da ignorância. É por isso que o Fantástico, como ele mesmo reconhece, transforma toda entrevista em merda: é porque os editores da Globo querem que o povo seja imbecil, por isso idiotizam tudo e colocam a culpa no povo. Ah, o povo quer assim, diz Lima Duarte sobre a mesma novela há 40 anos. Não, quem quer assim são vocês. Não sei quem manda na Globo hoje, diz. Não sabe? É a ditadura. Simples assim.

BABA - É triste chegar à velhice ainda amarrado a todas as cadeias de uma vida inteira. Submeter-se à ditadura do merchandising, ao sotaque forçado do seu personagem na novela, à mesmice crônica que toma conta do horário nobre, sem deixar opção para mais nada. É triste, e não me refiro só a Lima Duarte, sermos um país de escravos, onde todo mundo se entende como senhor (claro, quem vai admitir que precisa arregar para sobreviver?). É triste ver pessoas insistindo em votar nos mesmos escroques, pois nenhuma evidência do Mal é suficiente. Você aí que apóia a escrotidão que nos governa: você é escravo, e dos piores, pois tem a chance de se libertar e com isso libertar os outros, mas continua embaixo da canga, lambendo a própria baba. O problema é que a liberdade parece ser ainda o aeroporto. O caseiro Francenildo diz que quer distância do país. A família de Celso Daniel já está no Exterior.

NORMAL - Candidatos italianos vêm para o Brasil fazer campanha. É que os brasileiros agora são cidadãos italianos. Dá para acreditar? Deixamos de ser um país. Uma nação soberana acaba com a festa da dupla cidadania. O país não está no chamado sangue, isso é pura eugenia, nazismo. Lembram da Pan-Germania? Era o esquema nazista de dominar o mundo, convocar todos os descendentes de alemães no mundo todo. Agora temos a Pan-Italia. Quem optar pela bandeira italiana deve ser tratado como estrangeiro, apenas isso. Sou alemã pura, me disse esses tempos uma atendente brasileirinha do comércio. Então você é igual a um cavalo árabe puro sangue, pensei. Não sei em quem vou votar, me disse alguém em São Paulo. Não conheço os partidos da Itália. Isso é um desplante. Mas todos acham normal. Não existirmos como país parece ser um alívio. Ontem, Real Madrid deu um toco no adversário. Tinha cinco brasileiros em campo. Roberto Carlos já é espanhol. Normal.

MONSTRO - Lima Duarte confirmou o que se disse aqui: o problema Tony Ramos. Ele diz que adora o Tony, mas criticou aquele sotaque falso de grego, que acaba interferindo na percepção do personagem. Lima Duarte faz a mesma coisa com Murat. Lima e Tony são da mesma cepa. Se consideram grandes atores, mas estão subjugados por um sistema anti-povo. Só quando o Brasil se libertar dessa prisão no imaginário, fruto das correntes econômicas, é que teremos atores livres. Temos poucos atualmente. Quem tira a cabeça para fora, é absorvido pelo monstro.

HITCHCOCK - Participo, no Orkut,de algumas comunidades. Na do Hitchcock, dei uma contribuição pra um trabalho de comunicação escrevendo o seguinte sobre Janela Indiscreta: O protagonista está imobilizado. Sua única ação é ver. O crime, sugerido ou vislumbrado, está misturado à rotina de todos os olhares. O criminoso se oculta graças à preguiça do olhar. O protagonista, profissional do olhar (é fotógrafo) tenta compor a cena do crime a partir de suas fotos. É uma representação do cinema. O cinema existe apenas na nossa mente, pois trata-se de uma ilusão: é o resultado do movimento rápido de fotogramas fixos ("o cinema é a verdade 24 vezes por segundo", já disse Godard). O conflito essencial é entre o espectador imobilizado, que tem como defesa o seu olhar, e o criminoso em movimento, que tem como defesa o ocultamento (é preciso que ninguém veja o crime; se ninguém vê, o crime então não existe, segundo a ótica do criminoso; não ser visto é o álibi do assassino). A ação vitoriosa não é de quem consegue andar, mas de quem consegue enxergar. Olhe direito a vida normal para enxergar os crimes que se ocultam nela, nos diz o Mestre. Não se deixe enganar pela rotina e a aparência. Há um cadáver bem na frente da sua janela(Nei Duclós).

RETORNO - Colocar Milton Gonçalves na Zorra Total, Othon Bastos na Sinhá Moça e Paulo Betti na Malhação é crime cultural. Libertem os grandes atores. Ou melhor: grandes atores, se libertem.

26 de março de 2006

O ÂNIMO DA DIREITA




Estimulada pelo governo, que ficará na História pela expulsão da família de Celso Daniel e a quebra de sigilo do caseiro da mansão, a direita aparece diariamente em campanha no Jornal Nacional e ocupa a capa das principais revistas. Uma chama o candidato de Presidente Alckmin, outra mostra de FHC por FHC, o sujeito que aparece com aquela gargalhada de boca mole e torta, triunfante sobre os escombros da nação. Todos estão muito à vontade. Uns, pela certeza da impunidade, outros pela glória de ter provado, com a mídia comprada, do que a pseudo-esquerda é capaz. As provas ficam por baixo do pano e a opinião pública sabe que não pode mais confiar em ninguém. Enquanto a Argentina faz grandes manifestações para relembrar o golpe de 1976, o Brasil amarga uma derrota política completa. A diferença é gritante: os argentinos lutaram contra a ditadura, política e financeira, enquanto nos contentamos com aparentes vitórias políticas, deixando que o arrocho da economia tomasse conta de tudo.

PROTEÍNA - Kirchner fez o que foi mencionado aqui inúmneras vezes: proibiu a exportação de proteína, pois não poderia trocar divisas pela fome do povo. Nós apostamos alto na exportação e hoje amargamos o dólar abundante e mais sucatamento na indústria nacional. Agora as fábricas brasileiras estão importando tudo da Chiuna. Esse é o detalhe: depois que invadiram e tomaram conta do mercado, os espertos chineses tomam conta das indústria, exportando para nós, pobres incautos, kits completos, insumos. O parque fabril do país passa a fazer parte da indústria chinesa. Para isso Lula foi lá em Pequim puxar o saco dos ditadores, para receber de troco uma boa rosca. Não foi para servirmos de capacho para a China que João Goulart rompeu o bloqueio e fez a primeira visita oficial do Ocidente à República Popular. Foi um gesto de soberania, que lhe custou o mandato, pois quase foi apeado do poder em 1961 por estar lá, e acabou sendo expulso do Planalto porque o parlamentarismo foi um golpe branco contra a vitoriosa campanha da Legalidade.

BIODIESEL - Mas o monstro continua vivo. Surgem as memórias do general Sylvio Frota e é possível que a extrema direita tenha candidato próprio, com chances de vitória. A esquerda tenta se articular com o PPS e o PDT, ou ainda via PSOL e PSTU, mas o amadorismo com que encaram os mais importantes momentos da História recente me faz prever mais um desastre. Num encontro do PT, havia apoio a Lula mas não para sua política econômica. Lula é essa política econômica, portanto não pode haver dois pesos e duas medidas. Vai votar no Lula? Votarás contra a soberania. No Alckmin? Pior ainda. O PDT vem com essa história de biomassa, mas prefiro energia limpa de fato, via sol ou vento. Transformar planta em combustível me cheira mal. Que me desculpe o Gilberto Vasconcellos.

RETORNO - A exemplo do comentário postado ontem, nesta seção, de Luis Arraes, pesquisei outros, que se referem a textos a partir do ano passado. São manifestações colocadas no espaço dos comments depois de algum tempo da publicação.

1. Caro Nei, permita-me chamá-lo assim! É certo que "no mar, veremos"... estava eu navegando pelas águas infindas dessa rede quando encontrei o seu Blog. Para minha surpresa lá estava meu nome, com link para minha página no Jornal de Poesia do querido Soares Feitosa!! Eu por muito tempo pensei que os poetas não existiam, que eram seres que viviam no limbo, num mundo estacionário entre esse o o outro. Mas desde um tempo tenho tido a alegria de fazer contato com poetas como Soares Feitosa, Helena Ortiz (Jornal Panorama da Palavra) e você meu caro poeta. Comprei o seu livro, já me dei por feliz em poder lê-lo... mas agora até mesmo trocar algumas palavras com você eu posso... Poetas existem!!!!!!! Mesmo que eu não seja nunca poeta, um dia quero ainda ser um ser de livro... quero está num livro... Um forte abraço desse seu leitor...
Celso Brito | Homepage | 03.11.06 - 5:12 pm |

2. Ótimo blog. Parabéns!!! Aproveito para indicar meu site Salada Cultural (www.saladacultural.com.br) com canal exclusivo sobre culinária e gastronomia, mais de 300 receitas, dicas para saúde, mais de 80 artigos e notícias. O Convite está feito. Gostando do site, coloca a gente na sua seção de Links. Abraços, João Veríssimo | Homepage | 02.15.06 - 1:22 pm |

3. Com certeza os brasileiros tem muita coisa a aprender com a história relembrada e contada aqui...Abraços, Everton Gomes | Homepage | 12.19.05 - 2:10 pm | #

4. Nei, você não me conhece, fiz esses dias um blog para poder também começar a colocar a disposição o que tinha guardado em arquivos e na cabeça. Caçando blogs que tratassem de temas dos que o meu começou a tratar, sabe como é, para haver intercâmbio bloguial, achei o seu e gostei muito, se não se importa irei adicioná-lo aos meus favoritos. Eu também não te conhecia, morei algum tempo em POrto Alegre e agora voltei para SP, sou um poetinha em formação, meio sem estilo definido ou idéia do que quero fazer na poesia, mas gosto e tanho escrito com certa frequência. Se puder visite tbm o meu blog. Saudações, espero que possamos trocar algumas experiências.
H. Pimenta | Homepage | 11.24.05 - 1:34 am

5. Parabens pelo blog. Moro na prov. de Alessandria. Mariana Brasil | Homepage | 10.26.05 - 8:21 pm |

6. Ola, Nei Li se artigo sobre o brasileiro Castaneda, e fiquei surpreso. Surpreso por encontrar nele, palavras lúcidas, inteligentes e muito bem colocadas. Percebi na hora que você no mínimo é um admirador do trabalho dele, assim como eu. Mesmo que todos os livros do Casnateda fossem ficção, a obra nao perderia seu valor, cita você. Isto é uma grande verdade. Mas, e eu sei que você sabe disto, tudo que Castaneda mencionou faz parte do universo desconhecido e que nos circunda a eras. Apenas a maioria prefere fazer de conta que ele não esta ali. Passei por aprendizados semelhantes nos ultimos anos nas montanhas dos andes e vivi a lenda pessoal de Castaneda, a minha maneira, em pleno terceiro milênio. Não me surpreendi em saber que tudo aquilo existia, porque ja o sabia na teoria. Fiquei surpreso, sim, por saber que era capaz de obter este conhecimento, cujo qual transformou minha vida. Sem querer parecer misterioso, cito aqui meu nome cujo qual sou conhecido no Peru e Bolívia. Isto o faço porque sou escritor e não desejo tentar parecer sábio aqui. Aliás, nunca escrevi nada assim para quem eu não conhecida. Mas a lucidez de seu artigo me empolgou as 03 horas da madrugada, principalmente por saber que em meio a uma sociedade humana adormecida, algumas xispas divinas de Luz ainda se sobressaem. Luz e Paz... Dom Luiz Gonzalez Escritor | 10.18.05 - 3:28 am | #

7. O Fim do Silêncio - O nosso país tornou-se uma casa sem pai.Com o engodo das Diretas Já, o povo brasileiro submeteu-se a um jugo doloroso.A dita democracia que tanto foi enfatizada, pasmem, hoje é sinônimo de baderna, empobrecimento da nossa língua por meio das manifestações musicais de baixo valor cultural, dentre outros fatores que, sem pudor algum, são transmitidos por meio da comunicação televisiva.E quem, especificamente sofre influência com tudo isso??As nossas crianças, os nossos adolescentes e aqueles que não são capazes de discernirem o contexto político e social em que vivem. O povo brasileiro precisa ser conscientizado do jugo a que está submetido.Adquirir uma nova visão e reivindicar a verdadeira paternidade com princípios morais e éticos elevados; mostrar-lhe o que é realmente democracia.Dói e muito a um pai ver os seus filhos sofrerem. Que neste dia 23 de outubro, "Dia do Aviador", o povo brasileiro comece a reivindicar a verdadeira paternidade com o voto NÃO. Hélio Claro de Oliveira | 10.18.05 - 2:08 am | #

25 de março de 2006

O LUTO DE MARÍLIA PERA




Se a série JK, da Globo, que chegou ao fim, foi o início da campanha presidencial da direita, agora encarnada no candidato Alckmin; se ignorou, para sepultar, Leonel Brizola e Samuel Wainer em favor de Carlos Lacerda (caricatura que se humaniza no final), Roberto Marinho e Adolpho Bloch (tratado como grande figura humana); se mentiu sobre a posse de Jango em 1961, ao não citar a resistência da Legalidade; se foi um desfile de atores gordos e velhos se deliciando com atrizes jovens, como sempre acontece nas produções da rede; se tenta livrar a cara da Arena (civil) com um personagem cheio de remorso, para jogar toda a culpa da ditadura nos militares; se fez de JK um herói acima de qualquer coisa, em detrimento de suas origens varguistas; pelo menos no último capítulo houve um momento de alta dramaturgia, graças a Marilia Pera, a maior atriz do Brasil.

No fundo, acho que a falta de densidade da trama, que precisou mentir sobre fatos e personagens recentes, sua extrema superficialidade, empurrou a responsabilidade para Marilia Pêra, que, se fez uma Sara Kubistchek sem muito destaque, acabou detonando na hora do luto, quando encara o telespectador ao som de Milton Nascimento (o que revela toda a riqueza da letra de Peixe Vivo) e no momento seguinte, berra, desesperada, sem som, para a câmara que está situada no fundo do caixão, na maior representação da perda que a produção audiovisual brasileira já mostrou.

ELA - Marilia Pêra sobra em tudo o que faz. Tive a oportunidade de assistir o espetáculo Elas por Ela, em São Paulo, e fiquei abismado. Marília Pera não costuma fazer agrados a ninguém. Se segura nas suas opiniões e chegou a ser execrada quando, num gesto profético, alertou sobre Lula. No capítulo final, ela/Sara exige de JK/ José Wilker o amor que lhe falta no fim da vida, cobrando a conta de uma vida dedicada ao marido. A personagem se torna patética e humana, longe da sua imagem pública. É uma performance diferente da de José de Abreu, que ao humanizar Lacerda com um choro que se esforça para ser sincero, esconde o principal sobre a sinistra criatura que ajudou a derrubar todos os presidentes até implantar a ditadura entre nós.

GOLPISTA - Até hoje lembro da capa da Fatos & Fotos, uma das picaretagens de Bloch. A grande revolução, dizia a manchete da revista , mostrando Lacerda rodeado de cumpinchas. Quando o golpista morreu, passei por acaso na hora do velório pelo Cemitério da Consolação, em São Paulo. Era meu caminho para o trabalho. Não havia ninguém. O homem que pregou o ódio a vida inteira teve seu troco. Não adianta agora a Globo inventar que a Frente Ampla foi uma grande coisa ou que Lacerda mudou depois da ditadura. Foi sempre o mesmo. Segundo a principal testemunha (apresentada no Fantástico), deu um tiro no pé para incriminar Vargas no famoso atentado da rua Toneleros.

CALDEIRÃO - Fico pensando: os autores de tanta mentira acreditam mesmo que podem fazer ficção descomprometida com a História em plena campanha presidencial? Será que acreditam nessas mentiras ou estas são implantadas de cima? É o dono que liga e diz: "Mostra meu pai como o rei da cocada preta, senão vai ter!" Ou: "Nem pensar em Leonel Brizola e a Legalidade. Nem pensar!" A demiurga então dá um gritinho e começa a mexer na grande panela de ferro. "Vamos fazer uma série bem ao gosto dos patrões, ih ih ih". Mas dos ingredientes voa uma sombra luminosa É Marilia Pêra, de frente para nós, destruída pela dor. O talento, quando quer e tem compromisso com a própria vocação, cumpre seu destino. Torna-se antológico.

RETORNO - "Prezado Nei Duclos, sou o oitavo filho de Arraes(de um total de 10) e queria apenas dizer que seu artigo me comoveu.Chorei quando como próximo de sua partida. Lula. luiz arraes | 03.23.06 - 12:15 pm"

24 de março de 2006

O DESPLANTE NO PODER

A dança da deputada na Câmara é uma demonstração de força de quem nos governa. Não se trata do PT nem do Planalto, ou do PSDB, se fosse o caso. O que nos governa é o desplante. Assim funciona a ditadura. Baseados em artigos críticos de especialistas, podemos traçar o roteiro. Primeiro, coloca-se os juros no teto para atrair bastante moeda estrangeira. O excesso de oferta acaba colocando o dólar lá embaixo, certo? Não é o real que se valoriza, é a abundância do dinheiro estrangeiro que arrocha o câmbio. Os custos fazem crescer rapidamente a dívida interna, pois a bufunfa precisa sair de algum lugar.Ao mesmo tempo, se enxuga a demanda interna para não estragar o banquete (e assim, à custa da estagnação, debelam a inflação) . O que chamam de política econômica raspa a poupança do país, pois os juros excessivos provocam altas despesas, não é mesmo? Uma das maneiras de tapar o buraco é aumentando imposto, o que já se revelou insuficiente. Por que fazem isso? Porque são capachos da pirataria internacional e porque levam algum (e não é pouco), já que todo o sistema, para funcionar, precisa da corrupção.

MIAMI - O mais perverso é que o dólar acessível restaura um dos mais sagrados direitos em época de ditadura: o de gastar a rodo em Miami ou Buenos Aires. Subornar parte da classe média - via dólar barato e remuneração régia de aplicações financeiras - é um dos mais velhos truques do regime instaurado em 1964 e que até hoje está em vigor (o movimento Diretas-Já foi derrotado, lembram? Quem assumiu em 1985, inaugurando a atual fase autoritária, foi o ex-presidente do PDS, José Sarney). O truque alimentou o chamado milagre brasileiro. Já podemos antever que a festança dura até outubro, nas eleições. Como o PSDB já confessou, via FHC, que a política econômica não vai mudar, e já se disse que a saída de Palocci também vai manter esse quadro inalterado, então é esse desplante, esse cinismo diante da miséria do país que faz a deputada dançar alegremente pelo ambiente luxuoso onde se instalou com o voto do povo, iludido em sua boa fé. Eles vivem no melhor dos mundos: o dinheiroduto está ligado a mil, enquanto a nação, na seca, olha bestializada o comportamento dos seus governantes.

FUTUM - Meu zap é muito ativo, já que disponho apenas de alguns canais de TV aberta. Fujo tanto dos programas que esses dias me flagrei vendo propaganda: tem menos baixaria. Uma passadinha pelo Bigbroder me fez, horrorizado, enxergar uma seqüência sobre o cheiro daquela casa, em que o futum que saía das partes impudendas ganhavam dimensão de computação gráfica, com glégous coloridos exalando das cavernosas reentrâncias desumanas. Isso tudo pontuado por conversas divertidas entre os participantes e o moderador Pedro Bial. Não houve um tempo em que esse sujeito se autodenominava poeta? No fundo, ele representa esse desplante no poder, que tudo faz e tudo se perdoa, pois a engrenagem nacional está nas mãos deles. Quatro redes de TV num país de 180 milhões é puro monopólio. Colocar goela abaixo do telespectador sem opção um espetáculo triste desses faz parte do jogo. No fundo, os confinados representam o povo brasileiro: inativos, iludidos com a ascensão lotérica, e em guerra de todos contra todos.

RECREIO - Antonio Callado explicou um dia que nossa democracia é como um recreio no internato. Os alunos correm, fazem algazarra, mas bate o sino e todos voltam ao normal. Agora intensificaram e inovaram o processo: a algazarra é a própria ditadura. Deixem a macacada gargalhar, é para isso que servem. Eles precisam sobreviver, certo? Então a gente raspa o cofre deles todos os dias, enquanto eles brincam de votar. Não é preciso mais chamar a farda. Um professor, um operário, dão o recado. O importante é destruir o Brasil, essa nação utópica que já foi soberana e hoje amarga a ressaca de um dia ter tido essa ousadia.

23 de março de 2006

AINDA TEMOS A TERRA




O amanhecer está indeciso entre as pinceladas de aurora e a hegemonia do cinza, que as nuvens modelam meio a contragosto. Vaidosas, elas preferem sempre o tempo bom, que a lua nova, no zênite, anuncia mais uma vez, usando aquele colar invisível que traz como pingente a derradeira estrela. Daqui a pouco tudo poderá voltar ao normal, mas por enquanto é essa flor que brota de um ar fino quase frio. É fim de verão e o outono, velho tio encapotado que visita a família sempre que pode, já envia telegramas pelos pássaros ariscos, desses modernos, que não confiam mais em quintais. Perdemos o principal neste longo tempo duro, que é o de ficar confinado em paredes de um domicílio mutante, mas sempre o mesmo, que nos afasta do que temos de melhor. Sorte de quem vive cercado pela abóbada que faz um estádio de luz azul sobre seu teto e pode pisar a grama ainda molhada de orvalho, o sangue tardio da noite que se foi.

TRILHA - Herdamos o paraíso, meu pai, e deles fizemos proveito até arrasarmos com tudo. Hoje vivemos sob a ameaça do eucalipto e da soja, do pasto onde deveria haver mato. Quando visitei as cataratas de Iguaçu, junto com alguns engenheiros, avisei: não vão destruir isto aqui, como fizeram com as Sete Quedas. Vemos o solo fértil e dele queremos tirar óleo, álcool, enquanto o sol, inútil, despeja sua força motora sobre os novos desertos. Os ventos sopram em vão para que possamos sonhar alternativas que vão trazer o saara para cá. São os últimos dias do planeta Terra, meu pai, ou sou apenas um pássaro que descobriu ter chegado sua hora de partir? Para onde, se já migrei tanto? Para que lugar devo ir, se aqui ainda existe o que devíamos jamais esquecer, o horizonte pontuado de morros ainda com árvores? Para cá todos se dirigem, como náufragos de um pesadelo. Chegam e se deparam com o Brasil, esse fabricante do caos, e acabam sentindo saudades do que perderam. Mas é cedo para partir. Venha, que te levarei pela trilha.

CHEIRO - Basta dobrar à esquerda daquela estrada que virou rua e está rendilhada de casas que tapam a vista da praia. Entre pelas servidões e becos, para se chegar às dunas, onde alguns carros encostam desabitados. Ali paramos e vamos enfrentar os morros de areia. Cruzamos então a barreira e no outro lado, junto à grande pedra, a praia do Santinho, agora deserta, acaba. Ali fica o pintor da ilha, com seus barcos e naturezas vivas. Saltamos pela subida e vamos até o lugar onde existem mistérios. Lá somos rodeados pelas atentas gaivotas. O mar prometia baleia, daqui a pouco tainha. Ou talvez apenas uma tarde de sol, com banho fora de cogitação, pois a água começa a temperar seus sais de inverno. Assim mesmo muitos se arriscam, mergulhados no sonho de viver à parte do país construído com ruínas e metais, enquanto aqui sobra espaço para a vista larga, o corpo agradecido e o cheiro de uma paixão ardida.

GRÃOS - Na volta, abrimos o jornal para nos assustar. Os produtores de grãos queimam sementes e comida diante do Ministro da Agricultura. A Petrobras vai gastar 37 milhões de reais na campanha publicitária pela autosuficiência de petróleo. Tiramos sujeita do mar para continuar escravos das multinacionais do automóvel. Os trens dormem na memória, mas para que trilhos quando temos carrões cruzando comerciais? Continuo no balanço da terra arrasada. Primeiro ministro se refugia no Planalto para se esconder do escândalo. Presidente coloca cocar de índio e diz que não teme maldição. Por que haveria o Mal num simples chapéu de pena? São os espíritos que continuam intactos, atentos, aprontando. O Brasil está voltado para o que perdemos, enquanto a Terra continua no seu esplendor de sempre. Falta-nos a poesia quando o assunto é amanhecer. Queremos luta, mas estamos cansados. Quem sabe os primeiros raios de sol que agora batem como setas nos muros deste subúrbio me avisem que é hora de parar, de dizer adeus a tanto sofrimento e abraçar definitivamente o poema que salva? Pode ser.

CORAÇÃO - Levanto da cadeira e prometo colocar as coisas em ordem: o coração em primeiro lugar, o abraço sobre todas as coisas e estas palavras, que servem não para o consolo, mas para a verdade que assoma como uma ventania prestes a depositar as folhas deste outono que chega luminoso e claro como o país que sonhamos.

RETORNO - 1. Bebeto Alves abre sua grande boca em blog estreante. 2. Carlos Moraes, "industriado" por Geraldo Hasse, visita o Diário da Fonte, que considera "literariamente sumarento". 3. Marco Celso Viola entra no Orkut e de quebra cria a comunidade Poetas Loucos. 4. Adriana Jorgge, que conheci autora na W11 Editores com o livro "O Pai e a filha do Pai", envia convite para seu Espetáculo Marcas, junto com Marcelo Portela. É sobre uma Mulher que conta sua trajetoria a partir das lembranças dos antepassados. Essas histórias estão gravadas em seu corpo como marcas das mulheres que viveram antes dela.No Sesc da Prainha, em Floripa, cidade que hoje faz aniversário: 280 anos de vida. 5. A propósito do aniversário, é bom visitar o Maisdeum, que estará com mudanças e em festa.

21 de março de 2006

DITADURA MATA MENINOS

Há um falso espanto no ar, mas o diagnóstico dói de tão simples: as crianças morrem no tráfico porque o dinheiro que falta na favela está na corrupção. A classe política e a pirataria internacional concentram-se em si mesmas e por isso jogaram a população no lixo. Essas coisas não vêm à tona porque não há democracia. E as sumidades convocadas para o debate são, essas sim, de espantar. Logo depois do documentário Falcão, no Fantástico, o apresentador anunciou as cabeças pensantes. Primeiro, Manoel Carlos, o autor de novelas, confessou não ter noção que isso existia entre nós. Depois, Camila Pitanga, um quase inaudível LFV e finalmente Gloria Perez, que arrematou sua intervenção com uma flor do obscurantismo: basta de discussão teórica, disse ela, vamos partir para a ação. Agir sem definir o que será feito pode, por exemplo, intensificar o massacre. Tem muita gente que acha que só matando. Então parte-se para a ação com esse pressuposto teórico: matar. Sem debate, não há salvação.

CARINHOSOS - É tocante ver os dois candidatos da ditadura se trocarem afagos pessoalmente, tão certos que estão de que um deles sairá vitorioso, já que tudo está definido, como na República Velha. Há um avanço sobre os quadros políticos disponíveis e com presença forte na partilha do butim - PMDB e PFL. Eles disputam quadros da elite política e estão se lixando para o eleitorado. Não precisam de povo, precisam de fulano e beltrano, do partido tal que tem tantos minutos no horário gratuito, do beltrano que está à venda e assim por diante. Lula escande as sílabas na sua demagogia (poucos lugares do munnn-dô são mais bu-ni-tos do que Santa Catarina, disse ele; que coisa, que frase, que percepção, puxa vida, emocionante). Alckmin inaugura o multibilionário Museu da Língua Portuguesa em São Paulo, um projeto com a Rede Globo. Eles falam em iniciativa privada e recursos públicos, mas é tudo dinheiro do povo.

O Museu é uma forma de descolar definitivamente a linguagem do livro. Para isso existe Bia Lessa, a que está em todas. Vi a arquiteta favorita do filho de FHC (autora daqueles projetos milionários dos 500 anos, lembram?) dizer que o Grande Sertão, no museu, está representado por bandeirolas, como a significar que a literatura de Guimarães Rosa é assim como um folguedo popular. Mentira, claro. Grande Sertão é sobre a guerra e não sobre brincadeiras populares embandeiradas. Corre bala no sertão e ninguém está a passeio. A não ser os diluidores da cultura, a fazer o serviço sujo da destruição do país. Enquanto destroem as veredas reportadas por Rosa com o deserto verde da soja, ficam colocando no museu uma versão estética da genial brutalidade literária do livro maior. Tudo o que cheira a seriedade no Brasil é enterrado vivo. No Orkut, existe uma comunidade desesperada atrás do filme A Hora e a vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos, que, claro, não está disponível . A música de Vandré nesse filme diz tudo: O terreiro lá de casa/ não se varre com vassoura/ varre com ponta de sabre/ bala de metralhadora.
LUTA - Outros versos muito sumidos são estas, de autoria de Ferreira Gullar: O morto morreu cercado/ de muita luta e agonia/ seu sorriso agora é nuvem/ sua festa ladainha/ seu amor cama vazia/ numa varanda do céu/ seu amor cama vazia / numa varanda do céu. É como canta Caymmi: morreeeeu, mooorrrreu. A morte não provoca falsa indignação. A morte é a verdade. Os meninos do tráfico são fuzilados todos os dias, matam e morrem. Oh, que chocante! Ora, vão cagar pedra. Salário decente, oportunidade de emprego, vagas nas escolas, presença ética do estado. E debate, muito debate. Convidem Emir Sader, Marilena Chauí, Maria Victoria Benevides, Padre Lancellotti, Roberto Schwarz, Nicolau Sevcenko. Convidem professores, psicólogos, autores de literatura e teatro, engenheiros, sanitaristas, juristas. E entrem para valer no problema. Os meninos pedem socorro, assim como suas vítimas.

19 de março de 2006

A CAMPANHA DA ILEGALIDADE




Ninguém me contou, eu vi. Na série JK, da Globo, passa diante dos milhões de telespectadores a seqüência sobre a renúnica de Jânio Quadros. Houve tentativa de não deixar o vice-presidente, João Goulart, tomar posse, dizia o texto. Então aparece o José Wilker no papel de Juscelino franzindo o cenho e dizendo que Jango (que estava em viagem oficial para a China) tinha o direito de assumir. JK pega o telefone e liga para Jango, garantindo que ele venha para o Brasil. Nem uma linha sobre a resistência armada no Rio Grande do Sul, a Campanha da Legalidade, que foi quem garantiu a posse de Jango (com apoio da Brigada Militar gaúcha e do II Exército). Uma campanha traída, como nos diz Jefferson de Barros no livro "Golpe Mata Jornal", pois o parlamentarismo que se instalou, mesmo sendo depois derrotado no plebiscito, foi a ante-sala do golpe de 64. Passar por cima da Legalidade não é erro histórico, é manipulação pura e simples.

LOTT - Nada também sobre o Marechal Lott, que se manifestou contra a ameaça golpista e por isso foi colocado em prisão domiciliar. Como comentei aqui, Lott foi tratado como coadjuvante de Juscelino nesta série paga para mentir. Um programa que se esbalda em Carlos Lacerda (interpretado por José de Abreu) e não faz referência (pelo menos não vi) a Samuel Wainer, que era o alvo favorito de Lacerda. No lugar de Samuel, os autores da novela colocaram o Roberto Marinho como a grande figura da imprensa da época. Não era. Marinho só teve importância mais tarde, com o golpe de 64. O caradurismo é impressionante. Wilker/Juscelino pede para o dono do jornal Globo comparecer à inauguração de Brasilia. O doutor Roberto então fala mal da gestão do presidente e da nova capital, que geraria inflação. Depois, na festa de inauguração, JK recebe com pompa o proprietário de jornal que não tinha a importância que teve depois. Isso não é manipulação apenas, é distorção. Querem reescrever a História? Isso se chama Campanha da Ilegalidade.

CULPA - A culpa é de todos: políticos, professores, jornalistas, escritores, acadêmicos, atores. A Universidade enterrou a era Vargas e a Legalidade foi erradicada do imaginário do país pela direita (conseguiram, e só recentemente obras como a de Paulo Markun sobre o tema fazem justiça da Brizola, o líder da oposição ao golpe de 1961). Tornou-se lugar comum limpar toda a obra do trabalhismo dos anais da História. Distorcem tudo, mentem descaradamente, e ninguém reclama? Ei, ninguém me contou, eu vi a Campanha da Legalidade. Nós, os garotos da época, simulamos um quartel e fizemos ronda com cabos de vassoura ao ombro. Estávamos mobilizados contra o golpe. Fomos nós, não foi o Juscelino! Fomos nós, e ninguém mais. Nós, naquele quartel de brinquedo, nós na redação da Ultima Hora armada com Taurus 38, nós, no Palácio do Piratini aguardando o bombardeio ordenado pelos golpistas, que no final não veio, nós, ouvindo Brizola, fomos nós! O povo mobilizado, armado contra a ditadura. Essa glória ninguém nos tira. Nem mil anos de mentira vão destruir aquela vitória.

16 de março de 2006

NÃO ENCABRESTE SEU VOTO





Não vote útil, não coloque seu voto no cabresto. Não caia nessa armadilha na hora de votar: voto neste para aquele não vencer. Não vote contra a sua consciência, vote de acordo com ela. Não vote novamente no mesmo candidato porque ele emocionou você na campanha anterior - veja o que o sujeito fez com seu voto. É por contar com o voto útil que eles repetem as mesmas fórmulas. São sempre os mesmos, com modificações de superfície. Será a quinta campanha do Lula, será o Lula versus o anti-Lula. Será o que se entende por povo contra o que se entende por elite. Lula levou décadas absorvendo o papel de bicho papão da esquerda, e assim promoveu os vitoriosos da direita, como Collor e FHC. Depois assumiu e foi apenas continuísmo. Era apenas um jogo de cartas marcadas. Não entre nessa.

As campanhas serão as mesmas: câmara lenta, musiquinha, acusações, baixarias e lugares comuns. Eles contam com o voto útil. Manobram com as urnas por meio de pesquisas suspeitas. Não dão chance para a escolha. Os candidatos fazem parte do esquadro geral da ditadura, que não dá vez às forças vivas da nação. Não pense que digo isso porque não entendo de política. Quem não entende de política é quem me chama. Então, votar em quem? Já falei, vote de acordo com sua consciência. Não pense que viramos estrategistas na hora do voto. A única estratégia é a verdade. Não tens candidato? Vote nulo. Teu candidato está na rabeira das pesquisas? Vote nele. Se não for para o segundo turno, anule no segundo turno. Diga não ao jugo, à canga, ao marketing, à idéia pronta.

PERDAS - Votei de cabresto no segundo turno até a última eleição, quando ajudei a eleger um traidor. Ajudei a eleger Quércia e Fleury, temendo Maluf. Queria votar em Bautista Vidal, o candidato de Gilberto Vasconcellos. Parece que a disputa no PDT está entre Jefferson Peres e Cristóvão Buarque. Prefiro Peres. Buarque é paraquedista, foi sempre do PT. Acha que nosso grande problema é educação. Não é. É a canga à dívida externa impagável.

Quanto custou a reeleição de FHC? Cinqüenta bilhões de dólares, segundo o repórter do The Guardian, Greg Palast. Depois Brizola falava em perdas internacionais e todo mundo ria. Esse Brizola, ora já se viu, perdas internacionais, diziam, enquanto baixavam as calças para os gringos. Cartacapital deu onze páginas com Greg Palast. Repercussão: zero. Ora, ora, perdas internacionais, que caduquice. Palast é considerado o maior repórter investigativo do mundo. Meses depois que saiu a matéria sobre ela na revista de Mino Carta, a Veja deu outra matéria, sobre outro melhor repórter do mundo. Eles são assim. Eles ocupam todos os espaços e fazem tua cabeça. E você embarca, você acredita, você acha mesmo que não perdemos nada para o capitalismo financeiro internacional. Eles apenas estão por aqui pelas chicas, claro. Nossa política externa é oferecer mulher para todos os povos. Mick Jaegger, faça um filho nas gurias!

CIA - Quando Brizola descobria alguma falcatrua ao seu redor, intervinha imediatamente. Agnaldo Timóteo, fora, Garotinho, fora, José Brizola, o próprio filho (que bandeou-se para o PT) fora. Segundo Jefferson Barros, no seu livro sobre a UH gaúcha, a CIA ofereceu um milhão de dólares para comprar as fichas do Dops gaúcho (era pré-64). Brizola denunciou e mandou queimar tudo. O governador seguinte, Ildo Meneghetti, refez as fichas e completou a venda. Um milhão de dólares no início dos anos 60: assim se comporta um estadista. E confronta pessoalmente a roubalheira, não se esconde no biombo de quem não tem nada com isso.

RETORNO - Da entrevista de Urariano Mota no Musibrasil (reproduzida no La Insígnia, em português): " O que se vê comentado em resenhas de revistas brasileiras muito longe está da criação do Brasil. Os críticos fazem uma linha de transmissão da indústria editorial. E disto falo com a viva experiência. Quando Os Corações Futuristas foi publicado, enviei-o para os comentaristas do Rio e São Paulo. E um deles, de uma poderosa revista, me disse: O teu livro é bem escrito, mas ... Mas o quê?! Por Deus, o que se pede a um livro, em primeiro lugar, a não ser que venha bem escrito?

Não há, na grande imprensa, um sujeito de fibra que se diga: Vamos ler isto, sem olhar pro selo editorial. Os prêmios literários, por sua vez, se tornaram uma briga de editoras. O resultado disso não é bom, e nada de bom vem daí. Quem quiser saber o novo do Brasil, há de alcançá-lo por meios marginais, pela web, por exemplo, porque a criação está fora do circuito. Por outro lado, há uma nova linha, meio bárbara, que por meios bárbaros, imediatos, quer expressar a barbárie da vida brasileira. E isto não é bem literatura. É depoimento gravado, roteiro de reportagem policial, flashes indiscretos de casas de massagens. O lugar insubstituível da literatura, como o lugar da reflexão sobre o destino humano, está fora do circuito."

14 de março de 2006

A HISTÓRIA NO ACOSTAMENTO





O ônibus parou e todos desceram. Fiquei lá dentro, me perguntando o que tinha acontecido com a viagem. Ao meu redor só havia árvores. Estávamos num acostamento e até mesmo o motorista sumira. Eu vinha de Porto Alegre, convocado para participar do lançamento do Jornal de Santa Catarina. Resolvi descer e perguntar. É o fim da linha, me disseram. Isto é Blumenau? perguntei. Era. Foi quando conheci Nestor Fedrizzi, que fora chefe da redação da Ultima Hora gaúcha por quatro anos, e estava catando jornalista no grito, já que ninguém queria ir para o interior de Santa Catarina. No telefone, dissera para ele: quero ir, mas estou duro. Pago tua viagem, foi a pronta resposta.

Sem saber, eu estava trafegando no acostamento da História. Naquela redação do Vale do Itajaí, o braço direito de Fedrizzi era José Antonio Ribeiro, o Gaguinho, ex-repórter da mesma Última Hora. Ambos personagens de Jefferson Barros no seu obrigatório Golpe Mata Jornal, da Já Editores, sobre a UH gaúcha, que comprei na Feira do Livro de Uruguaiana no ano passado, quando fui patrono a convite da Prefeitura. O livro, que resgata a história do jornal assassinado pelo golpe de 64, é de 1999. Alguns anos depois, o próprio Jefferson encontrou o mesmo destino: morreu na miséria, sozinho, esquecido, num hospital público de Porto Alegre. O ex-editor do Jornal da Nacional, um dos maiores e melhores textos das redações por onde passou (Jornal do Brasil, Estadão, Correio do Povo etc.), erudito e autodidata, crítico de cinema de primeiro time, cometera um crime: entre seus seis livros (romance, poesia, ensaios), escrevera a mais importante análise sobre o assassinato da imprensa brasileira.

Vou dizer porquê. Primeiro, porque Jefferson Barros trabalha as contradições, os conflitos que regeram o nascimento e o crescimento da cadeia UH, criada por Samuel Wainer. Segundo, porque mergulha fundo nas origens da imprensa gaúcha e a situação em que se encontrava quando a UH do Rio Grande do Sul veio à luz. Terceiro, porque o espírito livre do autor não abre mão do rigor metodológico. Esse aparente paradoxo - a liberdade da abordagem vestindo a luva do racionalismo dialético - faz do texto de Jefferson uma aula de História. Pior para todos nós: é um roteiro de como a História foi jogada no acostamento.

O que se destaca não é apenas a denúncia do assassinato, mas como as contradições influíram para que o jornal perdesse o rumo para depois recuperá-lo; como seus jornalistas, divididos em correntes diversas, atingiram a unidade quando a onça bebeu água (a campanha da legalidade de 1961); e como o golpe de 1964 se prefigurou nos desdobramentos das edições, reflexo das poderosas forças sociais e políticas que engendraram primeiro a vitória democrática da posse de Jango, depois o limbo perigoso do parlamentarismo e finalmente o pesadelo do putsch reacionário, que vitimou a nação.

A coragem de Jefferson Barros ao colocar todas as cartas na mesa, sem fazer concessão para absolutamente ninguém, é fruto da sua ética e de sua lucidez. Seu talento e preparo promovem milagres. Ele não abre mão da alegria, pois seu resgate profundo nos leva de roldão pelo jornalismo acima, como se, ao ler, fôssemos também protagonistas. Ao mesmo tempo assume ser o narrador de um choque de trevas, ao abrir o ventre do golpe que abortou o país e ao soprar o pó acumulado nas hostes progressistas, nacionalistas, esquerdistas e populares. Mas toma posição firme a favor do projeto que morreu nos braços do povo: sua obra, especialmente o último capítulo, " Silêncio suspeito sobre ícones jacobinos",em que faz um paralelo entre o governo de Robespierre e a experiência da Última Hora gaúcha, é uma peça da cultura política do país que não deveria faltar na biblioteca de ninguém.

Jefferson Barros não é bem-vindo em nenhum reduto, a não ser nos que contam com a verdade. Por isso merece estar junto conosco, ele que se foi precocemente, reconhecido por seus pares, mas desconhecido das novas gerações. Nesta época em que impera o deserto, o melhor de nós está enterrado em algum baú, em algum canto, em algum ermo nos rincões desconhecidos da imensa pátria. Precisamos dessa voz silenciada, desse texto liberto, dessa guinada que um escritor dá, à custa da própria vida, para tirar a História do desvio e jogá-la de novo na rota segura do entendimento.

RETORNO - 1. Urariano Mota brilha em longa entrevista para o site Musibrasil, de língua itliana e especializado em Brasil. É mais uma cravada do romancista maior, que discorre sobre seu trabalho e especialmente seu grande romance "Os Corações Futuristas", resenhado por mim, em texto publicado aqui no DF e no jornal Rascunho. O mais importante é que os italianos fazem justiça a um talento ainda oculto, mas não por muito tempo. 2. O poeta Marcelo Ariel publica mini-entrevista comigo no blog Teatro Fantasma. Por que escrevo? Leia a resposta.

12 de março de 2006

REALIDADE CONTRA ENGANAÇÃO





Abismado com o horror de mais um filme de Martin Scorsese, Gangues de Nova York, que foi ao ar neste sábado pela Globo, decidi não deixar barato, como sempre faço com o Grande Enganador. Antes decido dar uma volta na internet e descubro algumas jóias. A começar pela revista Argumento (http://www.argumento.net/) do RS, em que um dos editores é Paulo Kralik. Um bom espaço cultural que merece ser visitado. No site do adorocinema, Kralik desanca com o filme, apesar de admirar o diretor. Mas o que ele coloca é pertinente. A começar pela violência gratuita, a péssima direção de atores, a inexistente química no casal principal. Mas vou adiante. Gangues de Nova York é uma porcaria inominável por Scorsese ser o arrogante que é. Enfeixa uma serie de lugares comuns como se fossem arte. Começa pela velha fórmula Romeu e Julieta, o amor de duas pessoas de quadrilhas rivais. Continua com o cenário inicial que tenta imitar aquela estrutura de Oito e Meio, de Fellini, seguido de um narrador à moda do Mestre, como fosse possível imitar Fellini. E os cenários, os atores, meu Deus.

MAIZENA - Leonardo di Caprio não é só o ápice dos atores criados a maizena, é a própria maizena. Vocês sabem do que se trata: é aquele pozinho branco quase granulado sem gosto, que serve para fazer mingau. É um não-ator. O não-diretor aponta para os telespectadores e diz: este é o ator. Como seu personagem quer vingança, ele faz caratonhas e olhares de vingativo, forçando uma feição prognata (de queixo para frente) que não faz rir porque antes faz chorar por perdermos tempo vendo o filme. Daniel Day-Lewis, coitado, está tão ruim (ele que é um dos grandes atores da atualidade) que se esconde por trás de vasto bigodão. Está irreconhecível. Talvez por sentir o fracasso iminente, convenceu Scorsese de que precisava do moustache, mas é pura vergonha de aparecer. Há também essa conotação viada (homossexual é outra coisa) do cinema americano, que é a paixão dos fortes. No fundo, só agora os americanos admitem que o que vale para eles é o amor violento entre homens, mocinho e bandido no destaque, e amiguinhos em segundo plano (Zorro e Tonto, Tango e Cash e por aí vai). Os dois adversários se unem provisoriamente para depois explodirem em tragédia, tudo pontuado por facas sangrentas enormes e pontiagudas. Nos degraus que levam ao desfecho, há o amor impossível entre companheiros, que acaba em morte de um deles e outras quinquilharias. É terrível. Scorsese, que inventou o canastrão Robert de Niro, é o cineasta da atual crise do cinema mundial, feito de lugares comuns, estupidez e grossura. Finge que denuncia quando se locupleta com o horror que é viver nas cidades sem lei.

HAF - Expulsos do cinema, damos uma lida no excelente jornal Zero, dos alunos da UFSC, que tem como diretor de redação o competente professor Ricardo Barreto. Lá tem uma longa entrevista de Paulo Markun sobre seu novo livro, Meu amigo Vlado. Na internet, cisco uma belíssima entrevista de Milton Severiano da Silva, o Myltainho, no site de Luiz Maklouf Carvalho. Lá ele fala da revista Realidade, com detalhes e lembra o livro-reportagem de Hamilton Almeida Filho (apelido Haf) , A sangue quente: a morte do jornalista Vladimir Herzog (São Paulo: Alfa-Omega, 1978). Diz Myltainho: "Na verdade, A sangue quente foi uma carona que tomei do sucesso de vendas de A sangue frio, do Truman Capote ,sobre famoso crime nos Steites, uns bandidos que mataram uma família para roubar, crime reconstituído com minúcias pelo jornalista-escritor. Com A sangue quente batizei a reportagem chefiada pelo Haf, quando ele a publicou em livro, pela editora Ômega. No ex-, a reportagem se chamou simplesmente A morte de Vlado. Qualquer conotação que irritasse a linha dura podia levar-nos em cana ou ao túmulo. Colegas do sindicato vieram até a redação no dia do fechamento, pedir que não publicássemos nada. Foi patético. Nós, implacáveis, decididos a publicar, e os colegas jurando que estavam tentando nos proteger ao pedir que não publicássemos".

FUNDAMENTAIS - No blog português /, de Tiago Barbosa Ribeiro, leio sobre os portugueses fundamentais: "As piores memórias podem surgir quando menos esperamos. De acordo com o Público, a sub-directora-geral da Saúde afirmou que cem mil portugueses considerados fundamentais para o país, devido aos cargos que ocupam, vão receber antivirais em caso de pandemia provocada pelo vírus da gripe das aves». Isto apesar da vacinação universal estar incluída nas recomendações do plano de contenção da epidemia. Ficamos sem saber quais os critérios de inclusão nestes eleitos de Noé. Mas aposto que a sub-directora-geral da Saúde é certamente uma portuguesa fundamental".

RAIMUNDO - No mesmo site de Maklouf, espio a entrevista de Raimundo Pereira, que diz textualmente: "Acho que a reeleição do Fernando Henrique Cardoso se deu num quadro de sonegação de informações essenciais aos eleitores. E o próprio presidente é o principal responsável por essa falta. Ele passou semanas, antes das eleições, negociando, junto com seus porta-vozes na área financeira ? Pedro Malan, Gustavo Franco, Pedro Parente ? um acordo que acabaria promovendo a atual recessão que o país atravessa. Na campanha eleitoral, no entanto, falava de um outro programa de governo: na vez do social, da geração de empregos, etc. A imprensa só mostrou essa contradição em linguagem cifrada, através dos colunistas que noticiavam as negociações com os credores, praticamente clandestinas, abertas apenas para os altos círculos financeiros que até participavam delas. Aliás, alguns colunistas da nossa imprensa se transformaram nisso: repórteres dos grupos privilegiados. E uma massa até ampla de repórteres se transformou no contrário: em catadores de informações escolhidas para sustentar matérias definidas de antemão por teses em estoque nas redações".

11 de março de 2006

ARTIMANHAS DE ENJAM-BRYVER





O múltiplo MacGyver não é o ídolo de certos caras que conheço. Teve um que deixou pingar a torneira da cozinha por dois anos e, irritado enfim com a falta de conserto, tascou epóxi na bruta, que imediatamente parou de verter. Falo daquele tipo de sujeito que nasceu brigado com a furadeira e que, ao ser pressionado para tomar uma atitude, destrói a parede novinha ao tentar pregar uma tacha. Ou o que raspa o chinelo na grama alta sem atinar que pode cortá-la. Quando, sem querer, derruba um balde de água suja na sala, coça a cabeça e aposta que tudo um dia evapora. Não se trata de um preguiçoso, é até uma pessoa trabalhadora e cumpridora dos deveres. Sá que não tem aptidão nenhuma. Os mecanismos são segredos inexpugnáveis e até hoje ele se admira com o funcionamento de um martelo. Atribui todos os milagres eletrônicos à intervenção divina, mesmo que já tenha lido pilhas de artigos sobre física quântica. É o cara que não serve nem para abrir uma compota e assim fica fora das utilidades masculinas tão destacadas pelas feministas.

HORTA - Também está fora da ordem quando se trata de fazer qualquer força. Colegas de trabalho um dia quase foram esmigalhados por um armário diante dos olhos do inútil, que se recusava a ajudar. Depois que o perigo passou, com algumas seqüelas para as vítimas, ele explicou que o problema vinha da infância, quando o pai o obrigava a regar súbita horta inventada para que aprendesse a ser homem. O evento se dava depois de fartos almoços e certamente foi praga dele que deu-se o acontecido: um belo dia um boi solto na vizinhança entrou pelo portão aberto e fez o maior estrago nas alfaces que eram celebradas a cada manhã de colheita. Não que não se esforce. Até tenta sobreviver em lugares ermos, quando sonha em plantar alguns canteiros. Mas os bichos tomam conta e basta a primeira capinada para dar distensão muscular grave.

AEROPORTO - Enjam-bryver é um outsider. Sofre de desgaste muscular crônico e decidiu que seu reino não é deste mundo, apesar de tentar transformá-lo por meio de fantasias em que costuma colocar as pessoas na ordem correta. Não entende como motores de explosão não leva todo mundo para os ares e mesmo aceitando racionalmente o fato de que vozes e imagens rodam pelo éter sem cerimônia, ainda é aquele menino que achava que um homenzinho vivia dentro do aparelho de rádio a deitar falação. Quando clica o mouse, é como estivesse tendo uma experiência mística e sempre sente saudade das palavras que somem pelo vídeo do seu computador. É instigante pensar que ele ainda consegue casar e, o que é mais importante, criar filhos, mesmo que um dia, ao descer do aeroporto com malas bem contadas (ele se esforça!) deu falta de um dos garotos. Enquanto gritava desesperado em plena pista, a esposa, entre penalizada e assustada, lhe avisava: Mas o guri está no teu ombro! É que o menino estava tão grudado nele, há tanto tempo naquela viagem tensa, que já fazia parte do seu corpo.

SUSTO - Mais grave foi quando furou um pneu na curva da marginal Tietê, na exausta volta de um feriadão na praia. Raspou o pneu por alguns quilômetros, pois tudo estava absolutamente escuro. Decidiu então parar e alcançar o recorde da troca, enquanto dois mal encarados se aproximavam. Você me dá uma carona? perguntou um dos facínoras. Não, muito obrigado, disse ele. Jogou as ferramentas dentro do carro e saiu em louca disparada. No quilômetro seguinte freou bruscamente: Fulana está dentro do carro? gritou, desesperado. Pô, pai, tu ia me deixar lá na estrada hem?, balbuciou numa voz sumida a filha então com cinco anos. Não foi má fé. Enjam-bryver é uma pessoa sensata. Só que não nasceu para o mundo real. Não dá para coisa, como dizem na fronteira. Esse guri vive no mundo da lua, advertia o pai fazedor de hortas súbitas. Não vai conseguir estudar, é uma pilha de nervos, lamentava a mãe. Para provar que estavam enganados, era o primeiro a buscar lenha no acampamento. Mas não conseguia visualizar um bom carregamento. Pegava então um longo graveto fino e o partia em mil pedaços. Com aquela pilha pífia chegava exultante no acampamento. É que, quando guri, Enjambryver era bem pior.

10 de março de 2006

PESADELO VISTO PELO TELEFONE





A conversa estava, como sempre, a dois passos de mim, num banco de trás do ônibus. É a lei de Murphy: todos viajam quietos, menos quem está ao alcance do meu ouvido. Sempre acho que são os espíritos atormentados que querem fazer contato e usam a mediunidade proporcionada pela idiotia para me atazanar. Era uma conversa interminável ao celular. Tão infinita que a mulher, depois de falar por 40 minutos, desceu do ônibus com o aparelho grudado na orelha. Pelo vidro, vi que ainda mexia os lábios, sinal que continuava desovando suas histórias. Quando sumiu do meu campo de visão, imaginei que ela jamais largaria seu objeto de consumo e continuaria, pelo cosmo afora, falando sem parar. O telemóvel, como dizem os portugueses, trouxe a vida íntima de cada um para a Ágora, o espaço público de debate. No caso em questão, custei um pouco a me contaminar com o papo, que a uma certa altura se referia ao fato de a moça ser migrante. Viera de Porto Alegre e construíra casa na ilha.

SOTAQUE - Seu sotaque era evidente. É, como todo tom adventício, cantado, ou parece ser. Todas as frases terminam em , mas não o né japonês, mas o né magrinho, vindo dos anos 60, quando a meninada, com muita bola na cabeça, desencadeava a falar, e como era pouco escutada, insistia com o interlocutor para ver se ele estava ouvindo, nééé? Dizia a mulher: "Minha casa está pronta, só falta o acabamento, ninhé! Fulana, nunca mais foi a mesma. Ela se acha um modelo de felicidade. Cada um tem seus problemas, nééé? Nunca vi. Mas o aluguel aqui no centro é muito caro, eu estou a 150 metros da praia, no fim de semana vou ao mar. Como está Fulano? Viajou com a esposa? Coitado. Aquela louca é capaz de se separar dele e ainda levar a casa. Desejo toda a felicidade para ele. Você pode vir aqui no verão. Em agosto faz um ano, então a gente combina. Se for o caso eu passo aí um tempo contigo, néé" . Seguiam-se as despedidas. Era uma a cada dez minutos. Parecia que o pesadelo ia acabar, mas a mulher engatava uma segunda e continuava. Por que ela escolhera o ônibus para colocar a conversa em dia? Ou era um ser mutante, fruto da tecnologia irresponsável?

TEATRO - Tapei os ouvidos para não escutar mais. Já me disseram para comprar um walk-man, vir escutando Brahms pelo caminho, mas não gosto de qualquer coisa me atrapalhando, seja relógio, anel, fio, fone de ouvido, o que for. Venho de cara limpa, pronto para escutar o mundo. "Então tá, querida, liga para mim pelo menos uma vez por mês para me dar essa injeção de ânimo". Como não vi que sua vítima tenha tido qualquer chance de replicar, ou entusiasmá-la mais do que já é ao natural, estranhei esse falso diálogo, que substitui quem ouve com todas as frases possíveis. Isso se chamava solidão, mas agora é apenas doença. Imaginei que louca do celular fosse um atriz, com script decorado e não tinha ninguém no outro lado da linha. Já tive celular, custa uma fortuna cada ligação. Eu comprava 30 reais de créditos, fazia duas ligações de dois minutos, recebia um recado em trinta segundos e a operadora já estava me informando que kaput, era preciso tilintar mais. Por isso desisti. Fico admirado com a bufunfa disponível por gente que gosta de falar. Ou serão essas promoções, compre uma Gisele Bunchen, ponha Ronaldinho no bolso e vá à Copa pela Internet? Sei lá.

FIO - Sou do tempo que o telefone tinha a cara de uma máscara de comédia. Dois olhos eram a campanhia, o bocal era isso mesmo, uma boca espichada de metal amarelo brilhante e o troço que se punha no ouvido, comprido em forma de fone, ficava dependurado, quando fora de uso, e ocupava o lugar da orelha. A gente dava manivela (não estou brincado) e a telefonista atendia. Numerô? perguntava ela. Era assim mesmo, numerô. Eu entendia lorô? Aí a gente dizia: 274. A mulher então fazia a ligação. Interurbano era uma impossibilidade. Falar para outra cidade era berrar sem escutar. Para o interior do município, a mesma coisa. Por isso que existia, e existe até hoje, os avisos pelo rádio: Fulano, vem logo, tua mãe morreu. Traz o dinheiro para as velas. Meu pai um dia se esgoelava no telefone, tentando orientar parceiro de negócios que estava esperando uma mercadoria. Fica na expectativa!, dizia meu pai, pela milésima vez. Era para o cara continuar aguardando. Mas onde fica isso? perguntava, desesperado, o pobre homem. Agora sei onde fica. É onde estou agora. Na expectativa. Espero que um dia as torres de celular pifem todas ao mesmo tempo e as pessoas voltem a se encerrar para falar em telefones pretos. Tínhamos paz e não sabíamos.

9 de março de 2006

O TEMPO É A PÁTRIA DO MIGRANTE




Julio Monteiro Martins, o mais importante escritor brasileiro em atividade no Exterior, abre o verbo: Tudo está por ser escrito. Temos poucos escritores diante da velocidade e profundidade das mudanças. O escritor contemporâneo está em busca desesperada de uma nova forma de romance. A literatura é o único discurso com força suficiente para enfrentar a manipulação feita pela publicidade e pelos governos. Temos hoje a distorção histórica dos fatos, mesmo os recentes, que são apresentados como eventos não ligados à cultura, à política, e à ideologia, como é o caso da invasão da Manchúria feita pelos japoneses e que estava sendo ensinada para os estudantes como se fosse uma expedição científica de pesquisa e não uma invasão militar (manipulação presenciada pelo próprio Julio quando morou no Japão). A pátria do migrante é o tempo em que vive, é a sua época. O migrante morre quando perde seu país e sua identidade, e vai renascer em outro lugar. Julio diz que no Brasil ele é tratado como um escritor do passado (o que acontece com várias pessoas da nossa geração). Sou um escritor planetário, diz, nessa entrevista importantíssima dado ao médico pediatra e também escritor Franco Foschi para a Associazione Scrittori Bologna

REVOLUÇÃO - Toda a maravilhosa conversa de Julio está no endereço http://www.arcoiris.tv/. Optei pelo formato MP3, que carrega rápido. O que preocupa Julio, que fala um italiano limpo e totalmente compreensível para seus conterrâneos (graças ao domínio que conquistou dessa língua que ele reforça ser muito amada em todo o mundo), é que o neoconservadorismo, inaugurado por Tatcher e Reagan, já vai para a terceira geração. O Pensamento revolucionário está morrendo junto com as pessoas que se formaram fora da hegemonia da nova direita, diz Julio. Os destaques da entrevista são a sua contundente análise sobre o que vivemos hoje e a importância de nunca mais termos censura. O motivo da entrevista é o lançamento do seu terceiro livro escrito em italiano, Madrelingua, que é um trabalho de experimentação literária, escrito em pleno estado patrimonialista (segundo sua definição) do governo Berlusconi. Madrelingua é a hipótese de um novo romance que possa espelhar o homem contemporâneo , diz. Ou seja, é uma das suas inúmeras contribuiições, pois como assinalou na entrevista, na sua estréia como escritor no Brasil lançou Bárbara, que é um conjunto de contos breves que formam um romance. O mesmo personagem costura as narrativas, com a diferença de que em cada uma delas está numa idade diferente. Essa é uma das suas inúmeras experiências, neste oficio que lhe toma todas as horas do dia.

LAVAGEM - Vivemos hoje um processo sofisticado hegemônico de lavagem cerebral, diz Julio. Contra o sistema imposto, a literatura oferece a ambigüidade, a manifestação humana livre e utópica. É preciso resgatar e aprofundar a utopia para encontrarmos uma saída para esse impasse. A literatura está no coração da resistência ao sistema. Hoje não é mais possível fazer um jornalismo alternativo( acrescento: já que a ditadura financeira internacional tomou conta da mídia, como já alertam os estudiosos). Dizer a verdade é o canal. Por isso o escritor é uma reserva ética da humanidade e seu oficio deve ser estimulado e preservado. A literatura é a consciência, e está a serviço de uma visão não pasteurizada da realidade. Trata-se de uma missão não imposta, nascida da próprio senso de humanidade do escritor . Por sua extraordinária liberdade, a literatura é um ato perigoso. O maior risco do escritor é o da autocensura. É emocionante ouvir Julio falar da sua Sagarana, a melhor revista cultural on line do mundo, consideradissima na itália. São mil e cem acessos únicos por dia, diz Julio e 48% são da Itália, os outros são de outros países.

PERFIS - A seguir, reproduzo os perfis do entrevistado e do entrevistador. No original, numa homenagem à língua de Dante.

Julio Monteiro Martins è nato a Niteròi in Brasile. Ha insegnato scrittura creativa in alcune prestigiose università americane del nord e del sud. In Brasile ha pubblicato nove libri, tra romanzi e saggi. Avvocato, ha difeso i meninhos de rua nei processi che li riguardavano. E' uno dei fondatori del Partito Verde ambientalista brasiliano. Da anni vive in Italia, dove insegna all'Università di Pisa Lingua Portoghese e Traduzione letteraria. In italia ha già pubblicato tre libri di narrativa. Di assoluto interesse la sua splendida rivista on line SAGARANA (www.sagarana.net). In questa lunga e brillantissima intervista si parla di letteratura, ma anche di politica, di globalità e migrazione, e di straordinaria fiducia nel futuro dell'umanità, nonché dell'incessante bisogno di 'resistenza'. A partire dal suo ultimo romanzo, "madrelingua", uscito per l'editore Besa"

Franco Foschi, pediatra e scrittore, dopo l'esordio con una sceneggiatura radiofonica e racconti su varie riviste, ha pubblicato tre romanzi, Niente è come appare (Hobby&Work, 1998, ristampa 2004), Maria e le pistole limate (EL, 2000) e Un inverno dispari (a quattro mani con Guido Leotta, Mobydick, 2003), due raccolte di racconti, Beltenebros e altre amene crudeltà (Mobydick, 1998, premio Città di Bologna) e Piccole morti senza importanza (Todaro, 2003), più un paio di libri decisamente atipici, Il re dei ragni (Mobydick, 2000, con prefazione di Stefano Benni) e H (Mobydick, 2002).

8 de março de 2006

O FALSO FÓRUM





Como não há democracia, não há debate que influa diretamente na política. O que existe é uma exposição de interesses em conflito, que jamais chegam a um acordo, já que as posições estão tomadas com antecedência. Como a democracia é falsa, é preciso então forjar a existência de fóruns. Sobram convites à reflexão, como se reflexão precisasse de convite, e caras de conteúdo. Os fóruns na internet, que são os mais numerosos, facilmente descambam para o ataque pessoal. Em alguns espaços há de verdade interesse em debater, mas sempre tem um boi corneta analfabeto que se atravessa e mela tudo.

Na televisão, o velho esquema do povo-fala cria falsos fóruns, como se houvesse realmente um debate sobre determinados assuntos. Nesses casos, o que há são reiterações da pauta ou da passagem do repórter. Está frio? Com certeza. A área cultural sofre da mesma síndrome. O contra-ataque de Marcelino Freire, escritor da chamada geração 90, contra o resenhista Jerônimo Teixeira, da Veja, é puro deboche. Jerônimo no fundo quer fazer parte da turma, diz Freire. Como não li nenhum dos dois lados (os livros de um e as resenhas do outro) não posso opinar. Mas vejo que não há debate, mas ataques, parece que dos dois lados.Ou será que debate é isso? Vai saber...

ESCASSEZ - Nessa cumbuca braba não quero colocar a mão. Vejo que estou anos-luz distante do mundo literário. Já me acostumei ao exílio. Saí desse mundinho muito cedo, pois antes dos 26 anos eu estava na mídia, como poeta militante, com livro publicado, batalhando por espaço nos jornais. Entendi a precariedade de todo esse sistema, a escassez de seriedade na maior parte dele, a falta de um ambiente cultural verdadeiro que entenda e aceite nosso ofício. Fui escasseando nas aparições e acabei me recolhendo por vinte anos. Voltei no final do século passado e já no início deste apareci com meu livro havia mais de uma década na gaveta, No mar, veremos, que saiu pela Editora Globo. Não houve repercussão. Ignoraram olimpicamente (eles tem critérios de seleção, nos disseram). Lancei então um romance, Universo Baldio, pela W11/Francis. Repercussão zero na grande imprensa. Vi então a ocupação dos espaços por parte de inúmeros escritores, com vasta exposição na mídia. Nas antologias, jamais sou citado. Já está escrito com antecedência que não faço parte da literatura brasileira, assim como outros autores. Nunca vi uma resenha sobre Moacir Japiassu na grande imprensa. Deve ter tido alguma, mas desconheço. O cara tem três romances poderosos. Tabajara Ruas tem seis romances, jamais foi resenhado no Brasil de maneira adequada, enquanto na França é festejado como o grande autor que é. Estou bem acompanhado.

PRESSÃO - Agora começa a haver pressão para romper esse tipo de barreira. Mas como há muita gente excluída, inclusive pessoas que são adotados por algum tempo na mídia e depois esquecidas, o embrulho está feito. Todos se arvoram a lutar contra a exclusão. É um angu de caroço e não vou meter a mão de novo. Tentei, não deu certo. Vi que o fórum (por e-mail) criado para o movimento escancarava espaço para quem nada tinha a ver. Ataques frontais me fizeram desistir. Faço 58 anos no próximo outubro. Preciso me cuidar. Só aceito de maravilhoso para cima. É assim que vai ser. Não há debate? Então só vale elogio. Quem bater, leva.

LOST - Fui premiado com uma boa citação na mídia impressa graças ao escritor e jornalista Rodrigo Schwarz. O tema é Lost, que abordei aqui. Quanto mais, melhor, me disse Rodrigo, e enviei um livro. Felizmente, o amigo soube editar o catatau e nos brindou com um bom parágrafo no prestigiado caderno Anexo, do Jornal A Notícia, de Joinville, que reportou o lançamento da caixa de cds da série. Reproduzo aqui o texto de Rodrigo,agradecendo a lembrança:
"Para uma legião de fãs, a série Lost representa uma ilha de qualidade dentro das programações da tevê a cabo e aberta. Em Florianópolis, o seriado conquistou um expectador exigente. Escritor que já foi saudado por Mário Quintana como um dos cinco melhores poetas brasileiros e que conseguiu resgatar RaduaNassar de seu exílio para escrever o prefácio de um de seus livros, Nei Duclós enxerga Lost como uma alegoria da América. 'Cada personagem é um outsider: a ex-presidiária, o golpista, o filho de pai alcoólatra, o filho de pai separado, a mãe solteira, o guitarrista fracassado, o caçador burocrata, o ex-soldado iraquiano. O grupo é feito do que há de mais diverso na América: negros, asiáticos, hispânicos, caucasianos, segundo a definição deles de povo. Todos precisam abrir mão de sua identidade em nome de algo maior, a sobrevivência. Isso se chama Estados Unidos', diz Duclós.
Segundo o autor de Universo Baldio, o fato de a ilha fornecer recursos básicos, como alimentação e água, faz como que os personagens mantenham sua aparência civilizada (diferente de O Náufrago, estrelado por Tom Hanks). 'Essa é uma ajuda da produção, famosa nos filmes americanos, desde a época em que as estrelas cruzavam o deserto sem perder o prumo do penteado. É uma obrigação: o cidadão americano jamais pode deixar de aparentar o que é. Ele vive numa civilização de aparências, de representações', assinala. Duclós elogia a qualidade do roteiro de Lost, em especial, o uso bem calculado dos flashbacks. 'A tática traz para o centro do drama outro aspecto de grande importância na cultura audiovisual americana, que é o da segunda chance. Ou seja, lembrar o que levou o personagem a embarcar na viagem fatídica é sempre a maneira de mostrar o quanto ele está em dívida consigo mesmo e os outros. Não é de espantar que o avião tenha caído: cada um levava uma carga pesada nos ombros'". (Rodrigo Schwarz)


RETORNO - A) Dois reparos: 1. Quintana me saudou como um dos quatro (e não cinco) melhores poetas do Rio Grande do Sul (e não brasileiros), junto com Carlos Nejar, Walmyr Ayala e Armindo Trevisan. Sua declaração foi publicada no Caderno de Sábado do Correio do povo, da Caldas Junior. 2. Raduan Nassar não fez o prefácio do meu livro, apenas escreveu um parágrafo sobre ele que coloquei na contra capa, com a licença concedida pelo número 1 do Brasil (que se retirou cedo do mundo literário).B) A imagem deste post é uma foto de Anderson Petroceli, Cruzando os campos, tirada da janela do trem.

6 de março de 2006

TALENTO A SANGUE FRIO





Reconheci Philip Seymour Hoffman numa madrugada dessas, quando o Programador do Traço, no auge da sua missão demolidora (a de colocar bons filmes quando todos vão dormir) pôs no ar, para seu próprio desfrute, o Perfume de Mulher, com Al Pacino. Apesar de ser uma refilmagem do Profumo di donna, com o magnífico Vittorio Gasmann, esse filme americano consegue ser tão bom quanto o original, graças a Pacino, o maior ator vivo. Quero comentar a ponta que Seymour fez, o papel do garoto mimado sacana que tenta destruir seu colega num tribunal escolar. Seymour já está pronto, ainda muito menino (ele nasceu em 1967 e o filme é de 1992), mas com sua marca: o espírito destruído de uma elite, com os dois pés no Mal e que ao mesmo tempo nos humilha e fascina. Ele fez isso como ator coadjuvante em O talentoso Ripley, em que engole o filme protagonizado pelo anódino Matt Damon. E agora, ator consagrado vencedor de Oscar por Capote, entendemos melhor sua biografia: ele é também um premiado ator e diretor de teatro. Ou seja, Seymour é um profissional raro, completamente oposto aos seus pares, esses galãs cevados a maizena.

CULT - Seymour tem uma inteligência poderosa, uma percepção aguda da sua arte. Pegou uma brecha: a personalidade complicada de pessoas que aparentam ser vilãs, mas que apenas revelam ser humanas. Em Ripley, ele é o filho de milionário, solto em Roma, disponível para tudo, que abraça e beija o personagem pobretão e fingido que entra no círculo dos bem nascidos. Seu personagem conhece os papéis sociais e persegue Ripley, que não passa de um espião da família rica. Ele é o Mal bem posto, a sociedade de classes vista da cobertura, que usa essa privilégio com o maior desplante. Com o desaparecimento do camarada de farras, todas as suspeitas caem sobre a diferença de classe encarnada no novo protagonista e é aí que Seymour revela seu talento dramático. Este ator explosivo mas de sangue frio já tinha dado um show em Quase famosos, em que interpreta um jornalista cult e underground, guru do foca que tenta vender uma matéria para a revista Rolling Stone. Nesse papel, uma pré-estréia de Capote (para usar um recurso do anacronismo, o de projetar o presente no passado), ele é Lester Bangs e nos deslumbra com sua competência. Nós realmente acreditamos que ali está o jornalista desiludido e terrível. Seymour assusta com o que desvela das mentes brilhantes e perigosas. Capote é a sua festa, sua consagração.

ELITE - Interpretar pessoas complicadas, a elite intelectual, política e financeira, é uma das especialidades da América. No Brasil, é uma tristeza só. Temos atores especializados em escravagismo, que é o máximo que nossa pobre cultura consegue suportar. Não temos interpretações seguras e marcantes de pessoas que fizeram História. O JK de Wilker é de dar dó. Normalmente, os gente fina da produção visual brasileira são um bando de ricos, no tom dado por Mario Lago quando lhe perguntaram sobre seu novo personagem numa novela. É mais um rico, disse ele, e disse tudo. Como na América todos são ricos, o buraco é mais em cima. É preciso descobrir e revelar o que há de humano nas pessoas com algum poder. Muitos tentam e dão com os burros n'água. Mel Gibson no papel do milionário que tem o filho seqüestrado, por exemplo, é ridículo. Seymour no papel do playboy americano em Roma, enfrentando Ripley, é assustador. Sua crueldade implode em cena. Não é para qualquer um. Precisa talento, fúria determinada, contenção obsessiva, certeza do que se está fazendo. Tudo isso Seymour tem. Há tempos não me alegrava com um Oscar de melhor ator. É o prêmio para uma carreira, de alguém que só terá 40 anos em 2007.

AMERICA- Volto ao tema Nuestra América. A diferença entre a América gringa e a dita latina, é que eles são uma nação, nós não, somos um amontoado de hispânicos cucarachos. Nós, vírgula. Não somos hispânicos e não vivemos em Nuestra América. Chavez, fora. Nasci e me criei na fronteira com argentinos e uruguaiaos. Respeito e muita distância. Allá y acá. Essa história de ser loco por ti, América deu para a bola. O Tropicalismo foi uma forma de desengessar a MPB, de resgatar vetores perdidos e de projetar uma identidade internacional mais condizente com a complexidade do país. Mas virou uma grande arapuca. Carlinhos Brown ser Carlito Marrón é de chocalhar os intestinos.

RETORNO - Na imagem, Seymour no papel de Lester Bangs em Quase famosos.

4 de março de 2006

TODAS AS CHANCES DA ESCRAVIDÃO




A ditadura que nos governa não é de esquerda, como quer a direita. Está acima das ideologias e é puro pragmatismo: se serve de qualquer um, de qualquer indignação e luta para continuar imperando. Os lucros estratosféricos dos bancos, as pesquisas encomendadas, a grana preta da corrupção e da publicidade, o exílio da família Celso Daniel, perseguida por pessoas conhecidas, nas fuças de todo mundo, tudo isso são as chances aproveitadas pela escravidão que nos mantém no jugo. O mais perverso é dividir o eleitorado entre uma pretensa esquerda, o lulismo e seus asseclas, e a direita, os tucanos e sua entrega profissional do país. Entre os dois gumes, resiste o fio torto da nossa soberania. Nela devemos depositar nossa luta e esperança. Defender este governo, compactuar com a divisão entre os que são contra ou a favor do povo, são duas faces do mesmo crime. Tudo isso se reflete na mídia, cada vez com menos leitores, amarrada pelo pescoço pelo mal que nos pune.

ERROS - Por que, quando querem fundar um novo jornal, apostam na imbecilidade? Por que querem fazer cada vez pior, achando que esse esquema, o de evitar o talento e a coragem nas redações, é o caminho certo? Por que apostar ou no ranço da resistência ultrapassada, ou no marketing do bundismo militante são cartas sem contestação nas mesas de negociação, quando se quer criar um veículo novo na praça? Querem fazer sucesso com um jornal? Lancem um jornal independente, feito por espíritos livres. Coloquem a publicidade no seu devido lugar. Não é possível que os anúncios substituam as fotos, impondo suas presenças na leitura dos textos. Ninguém compra jornal ou revista para ver os anúncios e parece que isso deixa a publicidade enlouquecida de despeito. As pessoas querem ler algo que preste e não ficar olhando como a cervejaria clonou a musa para distribuir mulher como brinde para jovens e velhos. O desplante asqueroso da publicidade é fruto da nossa conivência. Todo mundo acha que deve baixar as calças para as agências, quando devia ser o contrário. Quando você fizer um veiculo de qualidade, a publicidade vai correr atrás. Você libertará os publicitários da própria armadilha. Eles te agradecerão. Estão exaustos de fazer gato e sapato em jornais com cada vez menos leitores.

ÂNCORA - E a queda tem sido brutal. Em cinco anos, dizem as pesquisas, jornalões perdem de 30 a 45% de leitura. É a internet, dizem os pobres de espírito. Internet coisa nenhuma. É o vandalismo da mídia comprada, fajuta e mal escrita. É a superconcentração de renda. Como podem pagar 400 mil reais por mês para o chamado âncora mudar de rede? Isso é uma fortuna, pago pela publicidade. Dividam esse dinheiro com jovens talentos, eles se tornarão celebridades em pouco tempo. Se você fizer um jornal decente, as pessoas vão disputar nas bancas, vão chorar quando não conseguirem seu exemplar, tenhamos internet ou não. Nos restaurantes de luxo, onde se fazem os acertos para destruir os jornais (achando que os estão salvando da ruína) se insiste sempre nos mesmos lugares comuns. Gosto das frases lapidares sobre jornalismo, de autoria de Mino Carta, que tive a oportunidade de ouvir ao vivo. Isto chama-se matar uma revista, dizia ele quando cometíamos erros. Ontem, na espera do dentista, folheei Caras. É de amargar. O Mick Jaegger ficou olhando, diz a capa, a Luciana Gimenez no Copacabana Palace, acompanhada do marido. Pelo amor de Deus. Vamos parar com isso.

TRÊS MESES - Tem jornal moribundo pronto para ir embora para sempre. Me dêem três meses, com garantia de pagamento de salários (médios) para alguns repórteres e fotógrafos. Como sempre, ficarei na minha. Vou deixar a meninada deitar e rolar. Levanto o bruto num trimestre. Não eu, mas qualquer um que faça o contrário do que pregam consultorias e idéias fixas. Ranço fora, falsa indignação fora, denuncismo plantado fora, texto ruim fora, foto ridícula fora, preguiça fora, falta de paixão fora, departamento comercial fora da redação, patrão longe de nós. Jornalista na rua, pautando e editando suas matérias. Três meses, cara. Three days, man, dizia aquele apresentador louco de Woodstock. Basta uma fresta de sol na gruta do horror para que o anjo da lucidez desça sobre nós. Junto dele, nossa amada musa, a liberdade.

RETORNO - Uma foto fisgada por acaso: a velha redação do Correio do Povo, no tempo em que se fazia tudo manuscrito. O Correio foi o jornal que deixou de lado a divisão na política gaúcha e se tornou o primeiro veículo independente do Rio Grande do Sul. O que fez depois com a independência são outros quinhentos.