31 de dezembro de 2014

NADA MAIS




Nei Duclós

Moro no deserto, o não lugar.
Vivo em campo aberto, o tempo.
Não fico por perto, sou balão de gás
Só vejo o sentimento, que ficou para trás

Te encontro onde não há acordo
te deixo quando sopra o vento
Digo o que não te esconde
ouço o sonho, nada mais


RETORNO - Imagem desta edição: obra de Lawrence Alma-Tadema

30 de dezembro de 2014

ELA ESTÁ VIVA



Nei Duclós 

Ela está viva, mas finge, sumiço no mapa
um pássaro me conta como continua linda
cuidando o cabelo na fonte de água limpa
carregando no ombro nu o ramo pela trilha

Esconde o que mata, coração na costura
papiro de memórias , rodízio de convívios
sou vento nas folhas perdido nas sombras
rastros viram pedras, restos de esfinge

Não decifro a charada, ela fecha as rendas
enfrenta o destino num reino de adivinhos
usa palavras que ninguém mais se lembra

Está viva, ouço seu ruído, pele e rouxinol
sol no rosto mudo, espuma de um perfume
Sinto ciúme do ar, parceiro em sua doçura


RETORNO - Imagem: obra de William-Adolphe Bouguereau

29 de dezembro de 2014

CORAÇÃO DE LÃ



Nei Duclós

Teu aceno é como achar a ponta do novelo misturado às urzes. A mão vai direto ao ponto, e puxa para desfiar teu coração de lã.

Voltaste, flor ausente. Por um segundo, suficiente.

Todos os versos são para ti, desperdício.

Não terei glória, terei abrigo. Casa ao pé da montanha, tetos de madressilvas

Sou instrumento da arte que despertas em minha área. Artífice do amanhecer, flor de oculta aurora.

O poema é caprichoso. Só se revela quando afagas seu dorso. É quando a fera ruge a palavra sincera.

Vem do fundo o amor que negamos.Como vulcão extinto que escuta o chamado de um pássaro de luz dourada.

Foi tarde demais, mas achei cedo. Estava aguardando mais uma porção de eternidade quando então ruflaste as asas de pálida fada

Amor, antes que me esqueça. Amor, antes que feneça. Amor, sempre que floresça.

Desviaste o olhar dos alfarrábios para ver se ainda Cupido continuava com as artimanhas. Ele estava dormindo, depois de jogar a seta barulhenta para meu coração de lata.

Notaste a sombra que faço sobre tuas pétalas? É que cresci na distância, jardim de plantas raras.

Te espero até a primavera, se for necessário. Eu aguento, flor que hiberna

Depois de me cavalgar, sumiste pela neve e me deixaste em casa, Lady Godiva

As coisas me ocorrem quando baixo a guarda, penso em outra coisa. Assim abre-se a margem para a palavra que estava de tocaia, não se sabe aonde.

Todos na aldeia sabiam dos motivos da sua fuga. Por isso o olhavam com a expressão crua.

A falta de fé se apropria da vida por decreto. Põe data na alma sem época

Não quero mais falar esta língua que nunca aprendi direito, disse o exilado. Quero voltar ao nascimento da minha palavra.

28 de dezembro de 2014

PERTENÇA



Nei Duclós

Só fico só quando pensas na lua
e pousas o olhar além da varanda
em busca, talvez, de Paris e sedas

Me abandonas de lábio trêmulo
para algo que foge entre os dedos
não vejo motivo pra tanta fuga

Sou Apolo, estátua em teu acervo
mas Afrodite se imagina sem pertença
seja deus ou poeta ou dramaturgo

Por isso se refugia em Andrômeda
é pura ilusão o amor que compactuas
não posso driblar minhas promessas

Ser teu desejo, duende ou demiurgo
provedor de musa que habita tua estufa
como cristal no vinho, praia na espuma

e vê como é impossível ter companhia
quando desvias o rosto por um segundo
e me larga de vez em direção às nuvens


RETORNO - Imagem desta edição: Vera Miles.