30 de maio de 2020

BEM ESCONDIDO

Nei Duclós

Não sinto mais vergonha
Por enquadrarem meu sentimento
como amor platônico ou outro conceito
É vasto o sonho, real o espanto
Acordar abraçando à esperança
Servir-se de agua de remota fonte

Passam os comboios e em cada tenda
Mora meu coração ainda verde
Escondido nas vestes da princesa


SEI

Nei Duclós


Sei o que sentes
Pelos sinais que deixas
Um beijo prudente
Um olhar desatento
Um cheiro que prende
Um balanço na rede

Sei o que aprendo
Contigo ao relento



A NADO


Nei Duclós

O amor estranho no início
com o tempo virou um pesadelo
Deveria ficar atento aos sinais

Mas somos carentes
e descobrimos tarde demais
que o fim da solidão
era uma barca furada

Venta, coração, em direção ao porto seguro
antes que eu naufrague
com o peso deste amor sem rumo
para o profundo esquecimento

Cruzo a nado
o mar das tormentas



29 de maio de 2020

ESPINHO SEM TRÉGUA




Nei Duclós


Ficou ferida. Não pelo amor partido
que não havia em tantos planos frios
Mas pelo remorso de tê-lo ferido
Sem que soubesse do teu coração

É um espinho. Que não permite
trégua nem perdão. O tempo não cura
Quando a cicatriz pulsa em vão
Não consegues dormir, bela vilã

Podes ir brilhar na recepção
Ele estará lá, vestido ainda
com tuas promessas. Cara no chão
Ao te ver, esplendor da criação


O CERCO


Nei Duclós


O cerco se fecha contra a liberdade
O que dizemos fazemos nos comportamos
Tudo está sendo criminalizado
Pelos verdugos da injustica de falsas virtudes
Cobranças denúncias boicotes
Exclusão monitoramento virada de cara
Gangs se formam espontaneamente
É M de Fritz Lang e O Processo de Kafka.

A diferença é que não há para onde migrar
Destruíram o país e dizem que somos culpados
Nos levam ao canto  da cela
Querem que despertemos em nós o que neles está desperto

Surra nos cidadaos, mordaça
A única libertação é a dos criminosos
Soltos dos presídios porque são injustiçados

A lei está de olho aberto
E aparelhada


27 de maio de 2020

AS TIMING GOES BY

Nei Duclós


No final da leitura de Casablanca - A criação de uma obra-prima involuntária do cinema (Estronho, 128 pgs.) - noto que o autor, Renzo Mora,  encerra sua obra como Ricky (Humphrey Bogart) se despede de Ilsa (Ingrid Bergman): de maneira lúcida, determinada e amorosamente amarga. Pois Renzo, como Bogart, é o que dizia Jack Hawkins sobre Peter O'Toole em Lord Jim, de Richard Brooks: um dos nossos.

A força e a coragem de Ricky segura o filme, que é uma confluência de motivos para um fracasso, mas que a soma de talentos envolvidos e de personalidades que servem de bagagem aos protagonistas contribuem para o mais amado filme  da História do cinema.

Também como Ricky , Renzo tem a grandeza de servir de âncora para resgatar os detalhes minuciosamente pesquisados e que nos são dados de bandeja,  e, como um autor honrado, abre mão da prenda maior, o crédito. Parece que tudo foi dito, já que o livro elenca inúmeros trechos de escritores, ensaístas e memorialistas célebres. Mas Renzo se reserva o principal.

Primeiro, a importância do timing, que tanto na sucessão de capítulos quanto das cenas e personalidades na frente e atrás das lentes, obedece à sedução do suspense. Segundo, sua quase imperceptível contribuição para a originalidade da montagem que faz do livro - o que torna esta obra escrita amada e sedutora. Ela  foi entregue a nós, leitores, beneficiados pelo desprendimento do herói que fazia tudo errado e num lance definitivo decide a parada.
E, o mais importante: a transcendência do pacote todo em que o Acaso, esse deus laico muito considerado pelo agnóstico Renzo, se impõe como um raio de luz não previsto, mas real.

A não ser que Deus exista e seja escritor - e escreva sobre cinema.
Nei Duclós 

ENTREGUE-SE


Nei Duclós

Não negue o amor, negar é inútil
Não tema o remorso, deixe que venha
O espinho tardio um dia passa
Mas nada supera a doçura precoce

A véspera prepara o que não desiste
O dia seguinte se arrepende, pois
a dúvida paga o preço da felicidade

Entregue-se, tudo se renova
quando o amor segura as rédeas



DE VERDADE




Nei Duclós


Cercado pela beleza
Marco uma ponte contigo
Sintonia de grandezas
Fazes parte da paisagem
Onde o mundo se revela
Em maravilha suprema

Teu carinho sem o cânone
Teu rosto sem traquinagens
Teus grandes olhos de amei
Teus gestos que me convertem

Eu era bruto mas vens
Com identidade de estrela
Não há em todo planeta
Lugar para outra conversa
Não necessitas da arte
Para convencer os espelhos
Musa sem fama nem prata
És poema de verdade


ILHA DESERTA


Nei Duclós

Tenho pressa de dizer o que imagino
Porque tudo avança para um desfecho
Preciso marcar com meus avessos
Esta fase terminal do mundo exausto
Para que eu não perca meus tesouros
Histórias de amor, memórias sem porto
O corpo secreto dos sentimentos

O poema é a ilha deserta
Onde somos jogados sem apoio
Cuidamos da sobrevivência
Estes versos fora do cânone



PROVA DE AMOR


Nei Duclós

O que pensamos é a prova do nosso amor
Os rumos da nação,  a História das idéias
Tomadas de posição

No fundo não importa
O que é pontual na relação
Os ventos sobre as ondas
Naufrágios sem razão

Podem virar barreira
Se o conflito prevalecer
Ninguém cede no tempo
Em que tudo fica para trás
Faço as malas em noite de chuva
Enquanto me observas de braços cruzados


Mas há o sentimento
Que nunca dorme
E fechas a porta antes que eu saia sem nada
Fico e fazemos uma trégua
Bebo tua água, sorves meu sonho



25 de maio de 2020

SUBIR


Nei Duclós

Não podes do amor tirar pedaço
Como prato na mesa, fruta da estação
Nem levar embaixo do braço
Como antigamente faziam com jornais
Jamais o amor é porção, é todo o espaço
E nele cabe o coração
E o sangue, o sarro
Quando beijas na boca
E sobes comigo ao ultimo andar



HOJE O CONFRONTO


Nei Duclós

Estranha amizade que no âmago
Cultiva o confronto sem consolo
Conflito de estômagos, onde mora
A fome e outras desavenças
Ideias que se abandonam
Momentos já esquecidos

Ficamos sós, não há mais tempo
Para renovar a carta dos vinhos
Sumiu o conceito de vizinho
Caiu o convite de estar juntos
Falsos profetas aproveitam
Para fazer dinheiro com o pânico
Éramos fortes, irmãos de sangue
Em fronts opostos hoje somos
Repasto do sonho que matamos

A não ser que o amor resista
e venha em nosso socorro



24 de maio de 2020

LANCES MATINAIS


Bolsões sinceros, mas radicais, de romantismo

Nei Duclós

É POUCO

É pouco o que mostras
Apenas o esboço de uma conversa
As linhas do rosto
Preciso mais
Não o teu corpo
Oculto patrimônio
Mas tua voz
Flor do meu sonho

REMORSO

O que chamas de tentação
É só a realidade
O que buscas e negas
Por puro remorso
Venha logo
em vez de ter um troço

ABSURDO

Não misture as estações
Disse ela
Não confunda meu alô
Com entrega
Nem sempre verão
É primavera
É como a flor
ainda na estufa
Qualquer descuido
Quebra o clima
Esqueça que eu exusto
Mas não se fie muito
Distraído

A conquista é um absurdo
Ficar mudo diante do explícito
Fingir que temos tempo
De espera

DIÁLOGO

Ela disse: Deus me fez
mulher só para te querer

Não encomendei
Mas recebo e assino
embaixo, falei
Cuidado com a sorte
que te dei, disse
a divindade
E acrescentou:
Para o amor chegamos
à terceira idade
Você errou quando moço
Agora presta atenção
nas tuas bobagens

O poema tem disso
Nos leva pela mão
Até a coragem

FUNDURA

Não me custa dizer
Quando me escutas
O duro é saber
Que não te atinjo
Sou pedra que rola
Em teu profundo
Ser
Riacho que brota
No topo da montanha
e na fundura do abismo

DEVOTO

Ninguém entende o amor que te devoto
Sem retorno, porque é conscrito
Estou preso ao sentimento e nele me atenho
Dizem perda de tempo mas me pergunto

A melhor opção seria desistir do que nos pega
E manter-se neutro como um embaixador em férias?
Ou descer o rio em precária barca
Rumo à sereia que se banha em rosas?


DESEJO

Fogo aceso no sangue do desejo
Que expões no teu rosto vermelho
Salpicado de pimenta do reino
Que arde no beijo e no cheiro

Brasa que queima, tua pele eterna moça
Sem a febre ansiosa das donzelas
Com o brando calor de uma doçura
Que crepita como palavra suja

Vens de pés descalços, sinais de loucura
E o vestido molhado na fissura
Dura tua vontade, água na fervura
Que faz crescer a chama
até atingir a chuva

19 de maio de 2020

ESTÁ NA HORA


Nei Duclós

Está na hora de fazer outra coisa
Puxar o coração fora do peito
Mudar a direção do espanto
Romper em oração e vinho tinto
Descobrir de onde vem o vento
A soprar na praia asas de gaivotas
Escrever memórias inexistentes
Viver enquanto é tempo



PENSANDO


Nei Duclós

Pensando em voltar
antes de ir embora
Sair é corpo que retorna
um dia a pé fora de hora

Fico para não perder a viagem
Vivemos fixos como árvores
Estamos só de passagem

18 de maio de 2020

SINUCA


Nei Duclós

Deus existe e não precisa que se diga
Senão seria como o chato do cinema
Que ao ver o touro tomando toda a tela
Te cutuca aos gritos de olha o touro

Ou então é como o sabichão soberbo
A vibrar livros nas fuças dos incautos
Por achar que a fé segue ao pe da letra
Os textos dos santos e filósofos

Qualquer um pode negar Sua existência
Ele jamais se incomoda com quem pensa
Gosta de todos e com ateus joga sinuca

Como teorema impregnado no papiro
Sua obra dobra as margens do futuro
Por isso não venha de veja bem ao leito



GANA DE AMAR


Nei Duclós

Poemas de amor são como o vento
Passam, e depois esquecem
Nada dura quando há sentimento
A vida é de outra espécie

Não diga que é eterno o verso bobo
A baba do amante ao pé do verbo
Pode funcionar no primeiro encontro
Depois se perde quando desaponta

Mas o núcleo do drama não desanda
Não é feito de açúcar ou conversa
A poesia dança, não a gana
De amar mesmo sem apoio



17 de maio de 2020

SACRILÉGIO

Nei Duclós


Fiquei feliz dentro do poema
Mas fora dele permaneço fera
Será possível manter humana a pena
E ao vivo cometer um sacrilégio?

Quem me vê de frente acha que sou outro
Tenho a marca do mal dos simbolistas
E mesmo sonhando com arcadismo
Acordo em pesadelo no parnaso

Sou feito de verbo, que é minha natureza
Não adianta confundir verso com carne
Fujo de mim na ilusão da verve

Aguardas que passe a quarentena
Que sofro no clima do deserto
E me recebes rindo, beduína sem caráter



IDENTIDADE


Nei Duclós

Melhor decidir qual imagem
Revela tua personalidade
Se aquela da viagem a Creta
Com selfie junto ao Minotauro

Ou a que apareces no fundo
De uma festa mal organizada
A de cabelo solto, a sem maquiagem
Ou a executiva em mesa de mármore

Prefiro a da piscina, rosto fora dagua
Em que adivinho enrosco bravo
Ou a antiga, você com sardas
Menina de vestido claro
Talvez todas sejam uma só
A que procuro ver sem disfarces
Mas isso não mostras, flor fechada
Preferes ver o mar, deusa da praia



TIRANO




Nei Duclós


Tudo o que você diz é suspeito
Tua fala pertence ao aparelho
Ao mecanismo subserviente
Dos idolos aos quais você serve

Tudo o que eu digo é poema
Não significa que seja inocente
Tenho a culpa dos sobreviventes
Somos vítimas de um tirano, o Tempo


IMPERMEÁVEL


Nei Duclós


Já era proibido antes desse troço
Tua pele de perigo seduz até o osso
Agora és impermeável num tempo louco
Ficou russo chegar e te falar bobagem

Tua fé em excesso alimenta o remorso
Aguas internas contra  ti se voltam
A culpa é do Ogro, que te pôs devassa
Só com a palavra, que não tem amarras

Na hora agá veio a quarentena
Viraste monja, flor de Madalena
E eu mendigo num amor do avesso


16 de maio de 2020

TREINAMENTO

Nei Duclós

Estávamos treinando, sem saber
Para este exercício coletivo de solidão
Ao cultivar por anos o abraço a distância
O beijo sem sabor de lábio
O namoro virtual, a amizade falsa

Na superfície remávamos por opção
as relações mais tempestuosas, os conflitos, os bloqueios
Tínhamos softwares como intermediários
Que evitavam o aborrecimento de sermos humanos

Hoje isso é obrigatório
Não podemos mais nos conhecer ao vivo
Nem nos tocar nem ver o que apenas imaginávamos

Fomos punidos
Perdemos a chance de romper a ilusão
Estamos nas janelas acenando
Nas varandas cantando
Com máscaras que somadas são um só rosto


14 de maio de 2020

CATACLISMA


Nei Duclós


A terra foi criada plana e infinita
Generosa em recursos
Que sustentavam criaturas gigantes
Mas um cataclisma curvou-a gerando uma esfera
Talvez pelo próprio peso não tenha conseguido se manter
Isso gerou grandes desertos que foram preenchidos com mar e areia
Sucumbiram dinossauros e atlantes
Sobraram as selvas e as divindades de água doce
Em continentes e ilhas cobertos de vestigios e monumentos

Tu sereia do rio veio dessa lenda
Por isso te banhas malvada sem me deixar vê-la


UMA PRESENÇA


Nei Duclós

Uma pessoa linda nem desconfia
O quanto ele inspira com sua graça
O quanto encanta só com a presença
Não sabe que ela é a prova viva, testemunha
Do toque divino da criação
Não fosse seu gesto sua voz
Seriamos apenas terrenos
Com o pé no barro
E não nas estrelas

Beleza é um delírio
Flor de canteiro íntimo



O FIM

Nei Duclós


Para onde foram os campeonatos os espetáculos as sessões de teatro e cinema?
Para onde foram os passeios as excursões os cruzeiros?
Para onde foram os aniversários batismos festas de casamento?
Os desfiles as procissões os escritórios hotéis e restaurantes?

Para onde foram os beijos os abraços as torcidas os auditórios os estádios?
Para onde foi o que parecia eterno?
Mesmo Deus talvez se pergunte se era assim tão radical o texto profético



AVALANCHE


Nei Duclós

Não escreva sobre nada, disse o anjo da guarda
Evite a leitura de capa e espada
Viva à parte no seu disfarce

Monte sua oficina no Himalaia
Oriente-se pelo faro do urso polar ártico
Tua verdadeia identidade

Depois solte a avalanche
Teus versos de amor soterrado



ALVO

Nei Duclós


Só há um caminho: ser sincero
Dizer com todas as letras o mesmo verso
Nas manhãs repetidas desta farsa
Em que aguardamos não sei o quê nos dias sem futuro

Pode ser eu te quero
Ou preciso, desde que tenha algo
Do nosso amor, fogo água ar e terra


ESCORPIÃO


Nei Duclós

Um escorpião traz dentro de si seu antídoto
Depois de seduzir, expulsa
Paga o próprio amor com indiferença
Chuta o que inventou com gana

Esse perdão com clima de vingança
Esse coração que cultiva o remorso
Esse remanso de fera depois do banquete

Essa desconfiança por toda a obra humana
Seu veneno mortal o condena
Saiba o que te espera, Diana, a Caçadora



FOGO NA PLANÍCIE

Nei Duclós


Enjoei do amor e decidi
Não mais sentir o abismo
Preferi o livre andar
Sem amarras ou vínculos

Te encontrei na mesma sensação
De não querer abrigos
E fizemos fogo na planície

Para afastar os lobos
Nos amamos



13 de maio de 2020

HABITE-SE




Nei Duclós
 

Há espiritos habitando a casa
A louça lavada revela contornos de alguém tomando um chá
A cadeira giratória jogada fora por excesso de uso
aguarda o caminhão dd lixo reciclável
fazendo sombra de um cão inexistente
Há um guardião entre as luzes do quintal
E alguém passa na madrugada movimentando a sala

Não são espiritos conhecidos
Da família ou vizinhos falecidos
Nem mesmo de outra dimensão
Ou seres quânticos de teorias da Física

Sao fenômenos autônomos que vivem das formas confusas da nossa percepção
Existem fora ou dentro de nós?
Leio Kant e não mato a charada

RESTOS, FAGULHAS


Nei Duclós

O que tenho para te dar não são migalhas
Restos de amor, fagulhas
Mas o intenso momento a dois, farol da barra
Sinais de um naufrágio já não bastam
Faço outra flor, eximia barca
Oferta de quem seguiu viagem

Ao voltar suba até o cais, traga suas malas
Do trem do interior venha com tudo
Tu és o esplendor, eu a borrasca
Chego inteiro, neste minuto



ÁGUA DO BANHO


Nei Duclós


Teus amores não interessam
Assim como a fantasia
A realidade é o que acontece
à nossa revelia

Abrir os olhos para encarar o que não espero
Ouvir o desconforto da ignorância
Sentir que perdemos tempo
E fomos jogados fora junto com a água do banho

O sonho é inventar o cosmo e nele sobreviver
Não entregar-se à ilusão
Nem ao jogo bruto
Por isso aguardo na varanda
De onde descortino outro sistema
De rotação suspensa
E o sol nascendo em segredo


10 de maio de 2020

MINHA MÃE


Nei Duclós


Minha mãe se foi cedo, aos 62
Para mim, que hoje sou nove anos mais velho
ela era uma anciã, de lentes grossas devido à catarata
E ficava em pé cada vez mais frágil
Nunca vi minha mãe correndo
Andava devagar e a tudo observava
Parada e só como árvore isolada no pampa

Criou sete filhos, sendo quatro marmanjos que lhe deram trabalho
e cada um jura que era o favorito
Levava as gurias para os bailes e a todos encaminhava nos estudos

Lecionava multidões de alunos que iam dividir o café da tarde conosco
Só sei até o ginásio, dizia
E isso bastava

Tecia puloveres com mangas enormes pois cresciamos e a lã durava mais de um inverno

Decifrava charadas dos jornais usando dicionário Lello
E foi a primeira leitora das minhas poesias
Aos dez anos eu já era um intelectual e dizia para ela
Fiz um poema mas acho que tu não vai entender
Ela achava a maior graça e contava para as amigas

Foi assim que eu não sendo nada virei coisa
Pela mão de quem representava a divindade na terra
 

DESEJO DE CONQUISTA

Nei Duclós


E quando menos esperas
Já estou mergulhado em tuas águas
Grudado aos corais que cultivaste
Em meio a palavras antigas, como procela
E estarei em situação de dicionário
A solfejar o prazer como sinfonia
Que te envolve e arrasta para mais acima

Basta que acenes ou responda ao grito que dou
Desde o lugar onde estou, sem teu abrigo
Casa de palha, doce convívio

É o que eu desejo e confundo com conquista



9 de maio de 2020

UNIFORMES


Nei Duclós


Somos como estrelas que se apagam
Tardamos na praça olhando nuvens
A lua sente pena do nosso grupo
Espalhado em bancos no crepúsculo

Todos se foram para outra porção do mundo
A que chamam vida
Sentimos falta da mocidade
Não essa que nos joga pedras
Mas a que fomos um dia
Quando íamos com a banda tocar em cidades vizinhas
Como são lindos, diziam as gurias
Inflando nosso uniforme de futuros fracassos


TELÉGRAFO


Nei Duclós

Procuro a palavra que te ache
Entre escombros e ruínas do mundo
Única jóia no monturo da cidade
O corpo que aliso em minha busca

Estás escondida íntima beldade
Recitas o mantra no teu telégrafo
Farejo sem fio o núcleo do drama
Teu gosto de ser apesar da penumbra

Ouço o silvo de ave ferida
Teus grandes olhos me localizam
Envio um sinal e já me respondes
Amor é o canal deste salvamento


PESCA

 Nei Duclós


A única paisagem é a memória
Cheiro de fogo na manhã
O sol entra suave no campo
Há gritos por cima das árvores
Algo mergulha fundo no raso arroio
O inverno ainda não chegou mas o frio promete
Subimos no barco para pescar de caniço
Enquanto os mosquitos nos comem vivos

Há barro por toda parte
Cachorros sem dono invadem o acampamento
O peão traz milho e carne para os pescadores
Que somos nós, que viemos de Candango
O jipe brasileiro com tração nas quatro rodas
Basta puxar uma alavanca junto ao volante
Para o herói cruzar o brete tomado pelo mato molhado

O pampa é pesca
E a infância. Peixe que nenhuma rede pega

6 de maio de 2020

NOVO EBOOK: PAREDES DE BARRO

Nei Duclós


O que o confinamento faz conosco? O foco principal do novo ebook que lanço hoje , PAREDES DE BARRO, incorpora nossos medos, coragens, esperanças, depressões, sonhos, tudo misturado numa época de recolhimento e dúvidas. De quebra, poemas sobre o ofício da poesia, sobre a memóri etc. Cinco meses e meio de trabalho. Para quem gosta de poesia e acompanha meu trabalho ou quer conhecer o que faço por aqui.

Diga seu email que eu mando o livro com meus dados bancários. Fale pelo messenger ou pelo neiduclos@gmail.comf

PAREDES DE BARRO
Poemas
Nei Duclós
Edição do Autor
2020,
132 páginas
R$ 25
Capa: Juliana Lobato Duclós, designer

APRESENTAÇÃO

Este ebook em PDF com Edição de Autor reúne poemas publicados nas redes sociais( facebook, twitter e blog) do final de novembro de 2019 a início de maio de 2020. O foco principal é o confinamento geral provocado por um vírus que atinge todo o mundo. Mas não é um livro sobre doença, mas sobre o que acontece conosco quando ficamos presos de verdade. De quebra há poemas de memórias, sobre a palavra, e outras diversidades desta arte a qual me dedico diariamete.O ebook é uma forma de registrar a obra feita neste período de tempo. E é para quem gosta de poesia , que assim pode ter nos arquivos um trabalho organizado.

O Autor

PAREDES DE BARRO

Confino o momento em paredes de barro
Cozido em fornos de granito e aço
Sinto que é dia, vejo pela janela
Lá fora a manhã, aqui dentro o cansaço

Espero sair sem ter mais cuidados
Os bancos da praça, as praias lotadas
Ficar de castigo quando há tanta vida
Qual foi o crime, guardião dos pecados?

Não finjo inocência, sou fruto do tempo
Mas há uma parcela de humano convívio
Que me dá o direito de ser perdoado

Desenho a paisagem que me absorve
É o poema, esse acervo da sorte
Sossego de outono sem a primavera



EXAGEROS

Nei Duclós


Vamos morrendo um a um
Tanto o próximo quanto o ausente
Todos nos fazem falta

Não temos mais o que dizer
Força, meus sentimentos
Vai passar, nada melhor que o tempo
Falamos sem certezas
A não ser a proximidade da morte
Que estava longe e hoje invade o bairro

Ir às compras é temerário
Não há mais funerais; velórios
A não ser as tumbas, as cinzas, as orações sem despedidas
Cartas de suicídio, depressão
A não ser a lua que se soma
Às nossas necessidades de beleza

Venha musa, amiga, princesa
Cubra o mundo com teu manto puro
Diga que me vê
E aos meus semelhantes
E diversos seres humanos
Junto aos animais e as plantas
Vida é o que devemos
Vida. E seu exagero



LÍNGUA PORTUGUESA

Nei Duclós


A língua portuguesa é a unica que conheço
Que mora na minha casa
E divide o almoço
As outras são adventícias
Incompreensiveis, palavras
Que parecem ruídos
Faladas por pessoas que se entendem na algaravia

Tem palavra estrangeira que adotamos
E usamos por puro charme
Mas dormem no pátio
Não fazem parte da família

Com a língua portuguesa me entendo
Na versão mais íntima, a brasileira
Porque filme português precisa de legendas

Pena que agora escuto pouco
E as frases chegam truncadas ao entendimento
Parece língua estrangeira
No fundo sou fluente apenas em silêncio



3 de maio de 2020

CATIVEIRO

Nei Duclós


As piores barreiras são as de dentro
O que nos limita são as mãos de ferro
Que se instalaram todo este tempo
Nem precisaram de grade ou corrente

Mesmo que soltem os cadeados doentes
Ainda estaremos presos, como elefantes
Criados no cativeiro

Aprendo com o vento a noção que liberta
Encontra saidas nas frestas das portas
Circula em lugares que estão proibidos
E toca os cabelos da amada distante



LUZ DE PRATA

Nei Duclós

Pego carona na tua beleza
Comboio de flor cruzando o deserto
Colhemos amor nos olhares de encanto
Somos a nova da anunciada promessa

É tudo tão simples, despida beldade
Teu corpo de ouro e sagrada alma
Tua mente chegada ao sonho dos anjos
E eu, poeta de intimas quebradas

Só desço se for para acender o fogo
Deixar pistss da nossa passagem
As nuvens e a lua te beijam surtadas
E eu te celebro, minha luz de prata


PAREDES DE BARRO

Nei Duclós


Confino o momento em paredes de barro
Cozido em fornos de granito e aço
Sinto que é dia, vejo pela janela
Lá fora a manhã, aqui dentro o cansaço

Espero sair sem ter mais cuidados
Os bancos da praça, as praias lotadas
Ficar de castigo quando há tanta vida
Qual foi o crime, guardião dos pecados?

Não finjo inocência, sou fruto do tempo
Mas há uma parcela de humano convívio
Que me dá o direito de ser perdoado

Desenho a paisagem que me absorve
É o poema, esse acervo da sorte
Sossego de outono sem a primavera



2 de maio de 2020

MEU PAI

Nei Duclós


Coragem tinha meu pai
Que me levava à noite pelo mato até as corredeiras atrás de dourados
Que dormia na calçada no verão
Que tinha uma peça sem porta cheia de armas onde até as crianças podiam ficar
Que nos punha ao relento em acampamentos de dois graus negativos
Que criou nove filhos sendo dois fora do casamento
Inventando fontes de renda como a lenheira do quintal e o armazém no galpão de casa
Que não obedecia fronteiras para seu comércio
Que pescava o ano todo e na semana santa punha seus peixes para vender
no ombro dos que andavam pelas ruas caminhando de maneira estranha
Que às vezes era atencioso e gentil com os filhos e sempre com quem conversava
E dizia o que pensava e era querido em toda cidade por ser franco e leal

Coragem tinha meu pai
Eu sou outra coisa
Este me saiu poeta, dizia ele.



ESGRIMA SEM FERIMENTO

Nei Duclós

Disseste amiga te respondi amor
A diferença é a esperança que dediquei
Algo mais fundo na paisagem da flor
Não por engano mas por eu ser assim
Fico mais perto se eu decidir ser teu
Mesmo que aches um exagero meu
Vivo no reino da imaginação
Sem te magoar na pele ou no coração

Dizes enfim amor por me querer
Depois de tentar evitar a comunhão
É quando descubro o dom da amizade
Que cultivaste neste tempo bom

Assim nos entendemos em cada canto
Jogo de esgrima sem ferimento
Fôlego curto, máscara de amianto
E eu insistindo contigo dentro


A VERDADE

Nei Duclós


Não quero saber das palavras
Das histórias das pesquisas
Dos amores das notícias
Das opiniões das artes
Dos poemas das sinfonias
Dos filmes dos exercícios

Não me interessa a economia
O desperdício das políticas
Dos governos dos golpes
Dos poderes dos crimes das denúncias
Das comidas dos licores cervejas vinhos
Dos jantares encontros contatos
De familias de vizinhos

Não me interessa a idade a sociedade a comunidade
A alteridade a resiliência a ciência e o imaginário

Não faço questão dos corpos da saudade
Nem quero saber dos cuidados amizades vontades

Não quero viver amarrado a contas promessas esperanças fugas

Quero só ver de frente
O que pega. A verdade
Seja ela qual for
Séria, antiga. A coragem
A cavar fundo para encontrar
O que evito nestes versos covardes