24 de janeiro de 2003

EM NOME DA LITERATURA

[ENTREVISTA CONCEDIDA POR JULIO CESAR MONTEIRO MARTINS AO JORNALISTA LUÍS ROCHA E PUBLICADA NA REVISTA SEMANAL DO JORNAL DIÁRIO DE NOTÍCIAS, MADEIRA, PORTUGAL, EM 12 DE JANEIRO DE 2003.]


No mundo contemporâneo, entregue a um hedonismo, a um facilitismo e a um consumismo sem limites e onde o dinheiro e o poder são os valores mais acarinhados, fazem falta mais como ele. Julio Cesar Monteiro Martins, escritor brasileiro radicado em Itália, esteve recentemente entre nós, visitando a Madeira a convite do casal António Fournier – São Moniz Golveia. O primeiro, como Julio Cesar Monteiro Martins, professor numa universidade italiana; a segunda, escritora. Do nosso encontro resultou uma conversa franca ao longo da qual este autor de Terras de Vera Cruz se revelou um empenhado e militante amante da literatura, não só pelo seu valor artístico que é apanágio da mesma, mas também pelas suas faculdades redentoras, quer da humanidade quer da própria civilização.
Julio é protagonista de um percurso interessante: além de escritor, foi fundador do Partido Verde brasileiro, em 1986, e desenvolveu atividades no âmbito da ecologia. Nascido em Niterói, no Estado brasileiro do Rio de Janeiro, em 1955, licenciou-se em Direito em 1977, por uma questão de conveniência familiar. Desde cedo apostado numa carreira literária, todavia, confessa nunca ter pensado trabalhar como advogado. Para mais, a sua área de eleição era o Direito Constitucional, pois queria ajudar a sua nação a restabelecer um Estado de Direito. Mas a vida naquela altura decorria “num pais sem Constituição. Vivíamos numa ditadura militar, em que o chamado Ato Institucional número cinco substituíra, arbitrariamente, a Constituição Federal”.
Toda a sua vida tem sido consagrada à literatura. Mas em 1991 exerceu a advocacia, por uma única vez na sua vida, trabalhando de graça para uma ONG intitulada “Centro Brasileiro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente”, atuando em defesa dos direitos dos meninos de rua, ameaçados de morte depois da horrenda Chacina da Candelária. Recorde-se que este grotesco acontecimento consistiu num assassinato coletivo protagonizado por policiais brasileiros à paisana, que metralharam uma série de meninos marginais durante o sono, quando eles dormiam em plena rua, na área da Candelária, no Rio de Janeiro.
Julio Cesar Monteiro Martins conhecia o pessoal do Centro, que apoiado por financiadores europeus, era dirigido por uma advogada, contando também com um grupo de psicólogas e assistentes sociais, e por isso pediram-lhe que atuasse em prol da manutenção da integridade física dos meninos sobreviventes, para que estes tivessem a oportunidade de testemunhar em tribunal, acusando os autores dos assassinatos.
“Eles estavam todos ameaçados daquilo a que no Brasil chamamos ‘queima de arquivo’, que é assassinar as testemunhas antes que elas tenham a oportunidade de depor. Tivemos, então, de providenciar a proteção física dessas testemunhas até que elas pudessem acusar os executores – porque aos mandantes, é muito difícil chegar”. A tarefa do advogado e escritor brasileiro não foi fácil. “Por incrível que pareça, o poder público não era a nosso favor. Estava conivente com o princípio da maioria silenciosa da classe média local, que no fundo aprovava aquelas mortes. Tinha medo daqueles meninos. Eu morava num prédio de luxo em Niterói. Naquela época, apareci no telejornal local, explicando por que os meninos, ameaçados de morte, tinham de ser protegidos. Quando voltei para casa, ninguém, no edifício em que eu morava, falava comigo. Os outros moradores subiam no elevador e não me cumprimentavam”.
Talvez esse tipo de atitude das classes média e alta brasileira – de apoio aos esquadrões da morte para resolver o problema dos pobres e dos marginalizados que se viram para o crime como modo de vida, num país cheio de assimetrias certamente não resolúveis pela violência – tenha contribuido para o auto-exílio a que Julio Cesar se votou.
“Os meninos de rua são conseqüência de uma sociedade que os abandonou. Os roubos são a única forma de sobreviverem. Se não o fizerem, morrem. Alguns dos meninos assassinados tinham seis, sete anos. Pequenininhos assim. É uma coisa de bárbaros. Um país decente não contrata assassinos para matar as suas crianças”. Quando os policiais assassinos foram presos, Julio abandonou de vez a advocacia e nunca mais exerceu.
Foi a preocupação com estes e outros problemas sociais que leva este brasileiro a crer profundamente no poder da literatura como um veículo de alerta e de denuncia, absolutamente necessário para a manutenção dos valores humanistas numa sociedade civilizada.
“De fato, na América Latina, Brasil inclusive, a literatura teve um papel importantíssimo no restabelecimento da democracia. Eu creio, realmente, que a literatura tem um valor, talvez mais alto do que o seu valor estético, e que é o seu valor ético. A literatura é um instrumento de formação da opinião pública, e sobretudo de formação dos formadores de opinião, porque não é consumida pelo público como os filmes ou as novelas… Mas forma a opinião de quem depois vai escrever essas coisas. Toca mais fundo. A literatura, a narrativa, não é uma perfumaria da sociedade, um ato de distração ou de lazer. É um meio potente, eficaz, de intervenção social. Ezra Pound, por exemplo, escreveu textos muito fortes sobre isso. Num deles, ele diz: um país que cai na má literatura, na literatura de best-seller, de consumo, está em risco de perder a sua autonomia. É um sinal de atraso social e de falta de identidade, que outro país mais forte vem e ocupa. A independência, a autonomia de um país, depende inclusive da qualidade da literatura que produz”, sublinha o nosso entrevistado. Foi para combater a tendência para a banalização e para a perda de profundidade e de conteúdo na moderna literatura que Julio Cesar Monteiro Martins fundou, em Itália, a “Scuola Sagarana”, que funciona em Lucca e, inclusive, edita a sua própria revista on-line. Trata-se de uma escola de criação literária que resulta da vasta experiência que o escritor que a fundou possui nesse campo, tem sido, como foi, professor de Criação Literária em Narrativa no Goddard College, no Vermont, EUA (onde também lecionou na Universidade de Iowa), na Oficina Literária Afrânio Coutinho (Rio de Janeiro), no Instituto Camões e na Universidade Nova, em Lisboa, e na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Foi um verdadeiro pioneiro nesta área em Portugal, como também o foi no Brasil, trazendo a experiência acumulada nos Estados Unidos, onde se encara a literatura como uma arte que, além do talento, também precisa da preparação de que desfrutam os aprendizes de outras artes.
“Tanto um pintor de talento como outro sem talento fazem a Academia de Belas Artes”, defende o nosso interlocutor. “Ambos obtém a mesma preparação”. Uma instrução de que desfrutam também os músicos, os bailarinos, os cineastas, por exemplo. Mas não os escritores. E porque não hão-de eles também aprender como se deve escrever um romance? Para Julio Cesar, o direito a essa educação é inquestionável. E existe também uma outra razão de peso: a falência das tertúlias e da vida boêmia intelectual que alimentava, em vários países, a discussão crítica e a troca de idéias indispensável ao florescimento dos movimentos artísticos, filosóficos ou, de uma maneira geral, intelectuais e criativos. Vergados sob a pressão, a velocidade e a desumanização da vida moderna, os criadores vêem-se hoje confinados, assaz freqüentemente, ao espaço do seu próprio individualismo, numa época em que já não se convive para discutir, para debater, para partilhar, em que já não se fazem visitas, em que já não se recebe em casa, em que os espaços de culto são os locais da noite que silenciam qualquer conversa produtiva com o ruído atroador de altofalantes que debitam, em altos decibéis, música alienante.
“O escritor, para a sua formação, necessita de estar em contacto com os seus pares, com a experiência humana. Precisa de ter a quem mostrar um texto que acabou de escrever. Como isso já não existe de modo espontâneo e natural, os laboratórios de escrita criativa recriam, de um modo mais preparado, menos natural, essa realidade. Sem eles, os jovens escritores ficariam isolados, privando-se das sinergias indispensáveis para o desenvolvimento de uma literatura”.
Para Julio Cesar, “o gênio não nasce do nada. O gênio literário é o cristal, digamos, que se forma de uma massa intelectual. Se se anula la massa intelectual, anula-se o gênio. Todos os grandes movimentos artísticos e intelectuais – a Grécia antiga, o Renascimento italiano – surgem do intercâmbio de um conjunto de pessoas brilhantes, mas não necessariamente geniais, que comunicam. A “Scuola Sagarana” promove esse intercâmbio. Recebe centenas de alunos vindos de todo o pais para aprender e conviver com professores, com outros escritores e filósofos afamados e experientes, e também para conviverem com outros alunos como eles”. A revista da “Scuola Sagarana” é bastante lida, registrando uma média de 450 visitas diárias. Nela são publicados os textos dos alunos, mas também traduções de textos de autores portugueses e brasileiros, e não só. Republica textos de autores italianos esquecidos, e publica inéditos de grandes escritores, ensaios, contos e poesia. “É uma revista de amplo espectro, muito completa”.
Em Itália, Julio Cesar criou para si uma nova vida. Tendo mantido durante anos o Brasil como base, apesar de entretanto ter residido em vários países, como a França, Portugal ou os EUA, mudou-se definitivamente para terras italianas em 1994.
“Em 1994, resolvi fazer uma ruptura radical com o Brasil, totalmente insatisfeito com o rumo da cultura e da própria democracia brasileiras da época. A esquerda anterior, quando chegou ao poder, mostrou-se mais conservadora que a própria direita, o que foi uma decepção tremenda para a minha geração. Decidi, então, que mudaria de país”. Casou-se com uma italiana, de quem tem hoje um filho de seis anos. Aprendeu a língua. E recomeçou do zero.
“Do zero, mesmo”, acentua. “Ninguém ali sabia quem eu era, só alguns professores universitários que tinham estudado a minha obra. Mas o público leitor não sabia quem eu era. Nem os editores italianos. E eu fui começando como se fosse um autor inédito, publicando aqui e ali os meus primeiros textos naquela língua”.
No Brasil já tinha publicado, em várias editoras, os livros de contos “Torpalium”, “Sabe Quem Dançou?”, “A Oeste de Nada”, “As Forças Desarmadas” e “Muamba”, os romances “Artérias e Becos”, “Bárbara” e “O Espaço Imaginário”. Textos seus haviam sido incluídos em múltiplas antologias, no Brasil e no exterior. Escrevera também peças teatrais como “Por Motivo de Força Maior”, “Aula Magna”, “A Histeria do Mármore”, “Os Tuneiros”, “Menino Jesus” ou “Apenas Meninos”. E havia já ensaios críticos sobre a sua obra, por docentes universitários brasileiros e estado-unidenses. Na Europa, prosseguiu a atividade dramatúrgica, narrativa e poética. Publicou “Il Percorso dell’Idea” (poemas em prosa), “Racconti Italiani” (contos), e escreveu vários artigos, além das peças “Occultamento” e “A Piede Libero”. Também viu peças suas, escritas anteriormente, serem levadas aos palcos italianos.
Dentro em breve, refere, provavelmente em Março, sairá um novo livro seu em Itália, intitulado “La Passione Del Vuoto” (“Paixão pelo Vazio”). Pouco antes de visitar a Madeira, concluiu também o seu primeiro romance em língua italiana, “Madrelingua” (“Língua Mãe”).
Os seus escritos têm sido bem acolhidos, porque originais. “É uma literatura escrita em italiano, sobre assuntos italianos, com personagens italianas, mas é uma literatura brasileira, porque o olhar é brasileiro”, refere. “Eu não sou um italiano, mas um estrangeiro que lá vive, e, como tal, consigo ver coisas que os outros não vêem. porque as coisas que um estrangeiro consegue entender sobre uma sociedade, o olhar que sobre a mesma consegue lançar, é freqüentemente muito mais agudo do que o de uma pessoa nativa”. Julio Cesar Monteiro Martins é bastante crítico da realidade italiana, até porque a mesma enferma de alguns dos males que são sua preocupação, e que se multiplicam à escala mundial. Como a ditadura da comunicação e o capitalismo selvagem.
“Elegendo Berlusconi, a Itália fez a escolha livre de cair no vazio, no consumo, na ambição pelos bens materiais, no egoismo neoliberal. E a cultura, as coisas sérias, realmente, foram todas colocadas à margem. Há coisas que preocupam a Itália, e que preocupam o mundo. Como a chegada ao poder através da lavagem cerebral feita com o auxilio do monopólio dos meios de comunicação social. É um novo modelo de poder que a Itália está a inaugurar, como inaugurou o fascismo com Mussolini: o do empresário que, para ser político, adquire todos os meios de comunicação”, sublinha. A perda de independência dos jornalistas é, na sua ótica, lamentável: “O jornalismo é um antídoto para o totalitarismo, mas hoje em dia pouco sobra de um jornalismo independente. O jornalista converteu-se num mero agente de publicidade”. Nessa perspectiva, afirma, mais do que nunca a literatura é a jangada de salvação das consciências, a única linguagem capaz de sobrepor-se, pelo conteúdo, ao discurso publicitário. O temor dos intelectuais italianos em relação ao modelo berlusconiano é tão grande que muitos participaram na feitura de um livro, intitulado “Não Estamos à Venda”, um autentico manifesto publicado pelo jornal “L’Unità” e onde assinaram textos de narrativa ou ensaio, numa tentativa de interpretação da atualidade italiana, nomes como o do escritor Antônio Tabucchi, o dramaturgo (e Premio Nobel) Dario Fo, ou o realizador de cinema Bernardo Bertolucci. Julio Cesar Monteiro Martins também escreveu um texto incluso nesse livro. Um modo de alertar as consciências para o papel de denúncia que a literatura deve exercer, numa época em que se privilegiam os livros facilmente vendáveis e apreensíveis, por parte do grande público, em detrimento das grandes obras. Em Itália, como no resto do mundo, as atenções da grande imprensa e das grandes editoras apontam, sobretudo, no sentido da literatura a que Julio Cesar chama 1-7-1, o número do artigo do Código Penal brasileiro que aborda o estelionato, ou falsificação.
“Somos constantemente vítimas do estelionato cultural”, acusa. Extremamente crítico da facilidade na linguagem ou no tema para chegar ao grande público, aponta o dedo a autores sul-americanos de relevo como Paulo Coelho, e mesmo Luís Sepúlveda ou Isabel Allende, considerando-os fraudes.
“Daqui a dez anos, ninguém se lembrará deles. Paulo Coelho faz uma literatura acaciana, de Conselheiro Acácio, a personagem de Eça de Queiroz que só diz banalidades, mas tem uma moldura de importância. Aquela coisa supostamente mística, destinada a preencher o vazio das massas, faz-me lembrar autores como Lobsang Rampa (um inglês que se fazia passar por lama tibetano) que já fazia sucesso quando eu era criança. Isso é um engodo, que se quer fazer passar por literatura de verdade. Houve a grande literatura hispano-americana dos anos 60, de base rural, e que conta entre os seus maiores representantes nomes como Gabriel Garcia Márquez, Mário Vargas Llosa, Julio Cortázar, Jorge Luís Borges. Mas a geração seguinte, ao invés de criar o seu próprio movimento literário, resolveu pegar no movimento anterior e enfraquecê-lo, para que fosse mais facilmente consumível pelo grande público. Popularizou o gênero de criação da geração precedente. Um livro como “A Casa dos Espíritos”, de Isabel Allende, é um livro de realismo mágico reciclado. A mesma coisa faz Luís Sepúlveda. Essa é uma literatura que não tem mais nenhum valor. Mas no entanto é promovida pela crítica como o prolongamento daquela grande literatura latino-americana, quando não é mais do que uma cópia popular, no mau sentido”. Entretanto, são muito menos conhecidos excelentes escritores brasileiros como Rubem Fonseca, Clarice Lispector, Dalton Trevisan ou Caio Fernando Abreu, representantes de uma literatura caracterizada, desde os anos 50, por um pós-modernismo urbano, fazendo o diagnóstico de uma sociedade cosmopolita onde convivem tanto o céu como o inferno.
“A literatura brasileira”, diz Julio Cesar, “é muito rica porque o Brasil é uma mistura incrível, um país de contradições, com o contraste, o pior e o melhor da natureza humana, onde não falta material literário, humano, grandes e pequenos dramas da vida quotidiana que são o alimento temático da literatura”.
Mas, como Faulkner acreditava que o melhor da natureza humana eventualmente prevaleceria, Julio Cesar Monteiro Martins acredita que os grandes autores, como Thomas Mann, como Ítalo Calvino, como Garcia Márquez, como Hemingway, como Franz Kafka, jamais cederão lugar aos atuais produtos publicitários. Há sinais de que os grandes escritores ainda são considerados como uma referência moral. No final da ditadura militar argentina, após a Guerra das Malvinas, foi ao escritor Ernesto Sábato que convidaram para presidir a uma comissão destinada a pesquisar o desaparecimento dos opositores do regime e os crimes contra a Humanidade, na República Checa, também foi um escritor, Vaclav Havel, o eleito para conduzir no país a chamada “Revolução de Veludo”, a evolução para a democracia.
Nas suas aulas na Universidade de Pisa, onde é professor, e na “Scuola Sagarana” (www.sagarana.net), Julio Cesar Monteiro Martins prosseguirá a sua contribuição para a formação de novas consciências e novos escritores. Muitos dos seus alunos aderem à sua maneira de ver a arte e a literatura. “Para mim a literatura”, frisa, “não é um modo de auto-promoção, nem de ter sucesso ou ganhar dinheiro. A literatura, para mim, é um sacerdócio, a minha missão na vida, o que dá sentido à minha existência. Dedico-me a ela independentemente de ser lido ou não lido, conhecido ou não. E acredito que, como eu, há muitos outros. Há que apostar na grandeza humana. E na formação de um núcleo de uma geração de escritores que sirva, num futuro que caminha na direção que sabemos, como uma reserva ética da humanidade”.