31 de dezembro de 2006

O ANO VIRA A PÁGINA






O Tempo é o livro onde estudamos. Não podemos nos desconcentrar. No meu colégio, havia uma intervenção do professor, uma frase que considero insuperável: "De pé quem está conversando!", dizia ele quando a bagunça tomava conta em algum canto da sala. E os culpados se levantavam! Essa era a glória da nossa civilização, que perdemos. Havia responsabilidade de quem errava, autoridade de quem chamava a atenção. O exemplo assim se destacava. Não se tratava de uma acusação fora de quem cometia o deslize. Era um chamamento para a consciência. Praticávamos o exercício do livre arbítrio, em favor da ética, pois a bagunça atrapalhava os estudos, que estava em primeiro plano.

REPETÊNCIA - Soube que em São Paulo, onde os alunos passam por decreto, que o horror tomou conta das salas de aula. Para que se comportar se a aprovação está garantida? Só tem um jeito de reprovar: por faltas. Assim mesmo, sei de casos em que o sujeito faltou quase o ano todo e foi aprovado. O diretor da escola disse para os professores: dê tantas presenças para ele, porque precisamos aprovar. É para efeito de estatística: desse jeito os governantes se orgulham da falta de repetência e ficam de boca aberta esperando verbas para sua grande competência.

DESTAQUE - O crime maior é que a juventude de hoje só pode se destacar pelos esportes. Quando eu era estudante, não jogava nada. Mas todos me respeitavam, desde os mais marombados aos mais frágeis, pois eu fazia parte do grupo que tirava notas altas. Quem jogava o fino no futebol, que tinha corpo de atleta, invejava o bom aluno. Esse era o parâmetro: o cara que estudava, o resto vinha a reboque. Hoje quem se aplica nos estudos é punido. Se o companheiro de sala, que não está nem aí, bagunça o tempo todo e ainda é brindado com a aprovação, para que estudar então? Precisamos resgatar a meritocracia, sob pena de afundarmos ainda mais no poço onde nos metemos.

EXEMPLO - Vejo o mau comportamento na praia onde vivo. Os invasores chegam com seus corpos sarados, bêbados, querem todos os espaços das ruas e calçadas. Berram, tocam som alto. Estão à vontade, no não-país. Não existe exemplo dos que estão no poder. Se a autoridade não se comporta, não tem consciência, então tudo pode. Uma garota explodia a baba do seu chiclete na minha cara, no ônibus. Perguntei se ela queria cuspir em mim. Sim, respondeu ela e continuou mastigando sua gosma horrenda. As férias perdem o sentido se elas se transformaram numa continuidade das aulas. Se todo mundo brinca em classe, o que fazer na folga? Atacar os outros, claro. Vejam quem detém uma bola na praia: o objetivo é acertar o semelhante. Enquanto não te acertam, não descansam.

ESCOLA - O poder no Brasil foi tomado pelos últimos da classe e, pior, pelos que não freqüentaram a escola. Somos o país do "nóis vai". A escola é demoralizada pelo humor escroto das televisões. Vejam a ironia. A escolinha fajuta, de falsos conhecimentos, é uma invenção do tempo em que a escola imperava. Então ficava engraçado um professor lidando com alunos burros, todos humoristas. Agora, que a coisa degringolou, fica sendo apenas insumo para a barbárie.

MARIA - O ano vira a página e estamos em plena época de vigília e oração. Queremos proteção, Senhor, para nossas vidas tão expostas. Queremos te celebrar, Senhor, pelas inúmeras graças. Rogai por nós, Maria cheia de graça. Dai-nos a paz.


RETORNO - Imagem de hoje: meu colégio Santana em 1932, foto de Theodor Preising.

29 de dezembro de 2006

MATOU O PAÍS E FOI AO CINEMA





Dois tipos de quadrilhas disputam o rentável lixo do Brasil, o povo marginalizado pelo Estado, que abriu mão de suas responsabilidades. Um tipo é o tráfico milionário de drogas, que tem como cliente principal a população que ainda está na classe média para cima. O outro é a chamada milícia, que descobriu, com as privatizações, o filão de ouro que é um povo trabalhador que precisa pagar para sobreviver. Ambos são fruto da ditadura instaurada em 1964, preparada pela direita interna e externa, que teve primeiro um perfil militar , e que assumiu a caratonha civil a partir de 1985.

Éramos um povo ordeiro e pacífico, pelo menos de 1937 a 1964. Foi difícil pacificar o Brasil, obra do presidente maior, Getúlio Vargas. A revolução de 30 foi exigência popular e a Era Vargas instaurou a distribuição de renda via leis trabalhistas, o nacionalismo na economia, a multiplicação do emprego impulsionado por políticas públicas, salários compatíveis com os dos países ricos, extinção da dívida externa etc. A partir da destituição do presidente trabalhista João Goulart pela força das armas e da propaganda mentirosa (que assumiu o poder), a corrupção instalou-se definitivamente na máquina do Estado e de lá não sairá, a não ser que a nação tome providências. Costuma-se chamar as Forças Armadas. O buraco agora é mais embaixo. É preciso chamar o cidadão adormecido e em pânico para a dura missão de reconstruir o país.

Mas a notícia mais importante do dia não é o horror dos assassinatos em massa, em que entram mulheres e crianças, além dos idosos queimados em ônibus. O que é importante mesmo é que o presidente Lula ficou muito preocupado e seguiu o noticiário. Isso eu, que sou cidadão comum, faço. Fico preocupado e sintonizo o noticiário. Um estadista vai lá, com a força total do estado e acaba com o puteiro. Precisa ter coragem, espírito público, liderança. Mas sabemos que Lula marcou, para depois de sua posse, dez dias de férias. Merecidas. Matou o país e foi ao cinema.

Esbagaçaram o patrimônio nacional, suas estatais, seu povo, seus recursos, suas florestas. Deixaram os americanos invadir, os chineses invadir, todo mundo invadir. Quando os holandeses invadiram, o povo em armas lutou décadas para mandá-los de volta aos países baixos. Quando os franceses resolveram fazer no Rio a França Antártica, levaram chumbo grosso na cara. Quando os hispânicos invadiram nossas fronteiras para anexar territórtio, foram escorraçados pelas nascentes forças armadas do Brasil soberano. As gerações anteriores deram conta do recado. Não deixaram invadir e nos presentearam com a jóia da terra: o torrão nacional, deitado no berço esplêndido de sua soberania. Agora estamos numa cama de pregos. Tem gente que gosta.

RETORNO - Imagem de hoje: Guerra contra os holandeses, o nascimento de um povo em armas.

EXTRA - Nem tudo está perdido. Recebo e-mail de Mario Chamie, poeta maior:

"Nei, meu querido poeta e amigo,

Só hoje me deparei com o seu texto "Dois Poetas". É limpo, límpido, sereno,justo e de bela finura perceptiva. Esse seu texto é o meu raro e inesperado presente de Boas Festas, às portas já abertas de 2007.

Que, neste Ano Novo, saúde, alegria e felicidade sejam as nossas bênçãos
divinas!

Abraço."

O VERÃO POR ESTAS BANDAS





Vou trabalhar no solaço do meio dia. Fico na parada do ônibus, esperando o Amarelinho, oásis de ar condicionado sem escalas para o Centro. Um morador da ilha se aproxima e senta ao meu lado. A estrada onde estamos é o caos de tanto ônibus, caminhão, carros de luxo, ciclistas, motoqueiros e pedestres. O Barulho é tremendo. "É por isso que eu não gosto do verão", me diz o nativo. "Eu moro na praia, mas não posso chegar perto do mar. É gente demais. Para mim, o verão não deveria existir". Ao lado de uma blasfêmia dessas, bem temperado pelo banho matinal, de água limpa e fresca que me embalou por mais de uma hora, acabo pegando meu ônibus sem me despedir do interlocutor. Ainda há lugares, graças a Deus. Enfrentar o trânsito na estrada principal pendurado num verdão, que tem escalas e é sufocante, seria o pior.

Sento num dos bancos da frente e o único lugar vago que fica é depois preenchido por um turista furioso. Estou há mais de uma hora esperando esse troço. Governo de merda que não coloca ônibus aqui. Venho passar vinte dias e acabo ficando cinco porque nada funciona. E faz ameaças. Mas ninguém dá bola. Ninguém se mexe. Somos habitantes da ilha, moradores tranqüilos, acomodados nos nossos assentos. Estamos aqui há tempos. Cruzamos o inverno. Não nos despencamos pelo país à procura de um canto no litoral.

À noitinha, quando volto do trabalho, levo Maria Clara para seu passeio vespertino de verão. Olho para a multidão e umas duzentas pessoas estão lambendo cada uma o seu sorvete. Corpos vermelhos, roupas folgadas, corpo cheio de sal. Não existe delícia maior do que o verão. Temos litoral, não temos é planejamento, políticas públicas voltadas para o lazer de massa. As pessoas, trabalhadoras de todos os cantos, chegam para alguns dias sem stress, para descarregar a pele, a carne e os ossos de tanta violência e são recebidas assim, com engarrafamentos e tudo o mais.

Pelo menos aqui na ilha não é o caos. É um lugar civilizado, urbanizado, com sólida tradição, pessoas identificadas com o,lugar. Isso faz mais o charme de Florianópolis do que seus morros verdes e praias deslumbrantes. É uma cidade imensa, espalhada, com serviços de todos os tipos. Não comporta tanta gente, mas aqui você não fica abandonado num ermo, como acontece em tanto lugar. Mas deveria haver uma infra-estrutura à altura. Pelo menos nosso prefeito caprichou e a entrada do bairro de Ingleses está exibindo uma calçada fulgurante, maravilhosa.

Viva o verão e seus dias perfeitos. Viva o mar de energias e vibrações que a cidade recebe. Viva seus moradores e visitantes. Mas quanta coisa precisa ser feita! A estrada da qual falei é de fato uma avenida. Mas é uma estrada sem acostamento, cheio de postes atravancando o lugar dos pedestres. Muito complicado tudo isso. Precisaria uma intervenção estatal forte para mudar para melhor. Por enquanto, vamos levando, nesta véspera de ano Novo, esperando que Deus nos cumule de suas graças.

RETORNO - Foto de Daniel Duclós, tirada da Praia dos Ingleses de cima do morro das Aranhas.A imagem serviu de base para Juliana Duclós fazer a capa do meu livro "O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento", que está vendendo bem. Tem livraria pedindo reposição de estoque.

28 de dezembro de 2006

É TEMPO DE PERDÃO





Nei Duclós


É tempo de perdão pelo tempo perdido
É a perda de tempo que nos mantém cativos
Não o tempo sem valor ou a chance fria
Mas o tempo do coração em queda livre

É tempo de perdão pela vida no exílio
Tempo sem razão do obscurantismo
Tempo escoado pela falta de um grito
A fala enterrada do tempo partido

É tempo de perdão pelo que poderia ter sido
Por jogarmos o tempo pela janela de vidro
Onde não vemos o tempo que o vento sibila
E perdemos a canção sem tempo nem brilho

É tempo de perdão pelo poema sem sentido
A palavra que o tempo repassa sem ruído
Pelo tempo que arranjamos longe do espírito
Esse tempo não redime o estranho convívio

É tempo de perdão para dizer meu amigo
De construir uma fogueira do tempo antigo
Que se aviste de longe, no tempo redivivo
E que nos faça curar o tempo e sua ferida

É tempo de perdão no ano que se fina
Tempo de comunhão mesmo que termine
Quando temos tempo no instante tísico
É só um aperto de mão no tempo assassino

É tempo de perdão, venha ter comigo
Algum tempo que desperte a pedra insensível
E que tenha tempo composto no capricho
mesmo que o tempo devore seus filhos

É tempo de perdão e não de arrependidos
É tempo de oração, do pão que é repartido
Lugar comum do tempo, feito de granito
Onde pousamos o rosto do tempo infinito

RETORNO - Imagem de hoje: foto maravilhosa de Regina Agrella, que acompanha este poema feito agora.

27 de dezembro de 2006

A DANÇA DO NOTICIÁRIO




O noticiário assusta não pelo seu conteúdo, mas pela falta dele. Se o cara matou uma família de nipo-brasileiros, a causa não foi asfixia, como diz a matéria, mas ira, revanche, soberba, astúcia, desespero, cobiça, vingança. Ninguém mais lê romance policial? Ninguém mais lê. Vejam o balanço das televisões, feito pela Folha Online: "Neste ano, artistas aprenderam a dançar diante das câmeras, uma nova geração de anônimos teve seus 15 minutos de fama graças aos reality shows, as novelas de elenco com pouca roupa e enredos erotizados deram boa audiência, enquanto fizeram sucesso os programas com conselhos sobre como melhorar o sexo, educar os filhos ou fazer bons pratos na cozinha. Nem todas as atrações capricharam na qualidade". Que importância tem essas merdas?

Como disse alguém aqui perto de mim, eu abro jornal para ler as notícias e fico sabendo que o Rappa ainda está apaixonado pela Débora Secco. O jornalismo está hierarquizado: meia dúzia de excelentes repórteres têm chance de produzir reportagens premiadas e o resto pasta na mesmice, sob o tacão da mediocridade. Fica difícil seguir o noticiário.

CORNETA - A morte de James Brown bem na hora em que o Braguinha se foi, com quase um século de vida, serviu para aquelas emoções estúpidas dos apresentadores, que apertam os olhinhos para pegar carona nessa coisa fantástica que é o cara que dançava e cantava soul e era incomparável. Pode ser o grande coisa que dizem que é, mas sempre achei JB a fonte dessa barulheira gritada que tomou conta da música. Não gosto de corneta pontificando o tempo todo, nem acho que a dança espasmódica seja uma grande contribuição à cultura mundial. Prefiro Leslie Caron e Gene Kelly, se é que se lembram, ou West Side Story. Mas Brown serviu para deixar de lado o Braguinha, que descobri só agora, caiu em desgraça porque fez um hino a Getúlio.

PASTORINHAS - Vejam a coincidência: o cara que praticamente fez tudo em música popular, de Carinhoso à Canoa virou, de as Pastorinhas ao pirata da perna de pau, o cara que fez aquela versão maravilhosa de Fascinação, enfim, o cara, adorava Getúlio. Por que será? Mais coincidência: veio 1964 e Braguinha, junto com o Brasil Soberano, sumiu. Tinha 200 músicas inéditas. Morreu com elas. Talvez agora o redescubram. É sempre assim: adoramos tratar dos mortos, pois os vivos nos incomodam. No Brasil, é proibido admirar os contemporâneos, a não ser que apareça na TV dizendo asneiras e barbaridades. Aí todo mundo cai de quatro.

FESTA - Ontem foi ao ar uma série de gags do mundo global, que vive voltado para o próprio umbigo. Meu Deus, como eles se divertem. Como são maravilhosos, profissionais, coisinhas de Jesus. O país se estiola na miséria, na corrupção e na violência, mas a televisão está em festa. É o paraíso da barbaridade. Como este ano fui brindado aqui em casa com o um dvd, graças a Deus fiquei de fora de tanta bandalheira. Praticamente não vejo mais nada em TV aberta, e nem fecvada, pois TV a cabo não tenho há anos (mais despesa!). Vi grandes filmes e consegui me atualizar um pouquinho, pois me sinto superdefasado em relação ao cinema deste século. Em cada dvd tem o making of, que é um curso permanente de como fazer cinema. O troço dá trabalho demais.

MULTIDÃO - Nos Estados Unidos e Europa, cinema é uma indústria, onde os filmes convencem pela excelência técnica que atingiram. No Brasil, cada obra vai da cabeça do diretor ou produtor. Não temos continuidade e não sabemos ainda fazer cenas com presença coletiva. Nossos extras são uns pandorgas, não são atores e dificilmente há direção de muita gente em frente às câmeras. Como se tem feito cena dos anos 60 e 70 de maneira tosca, meu Deus. Cenas de rua. Não temos consolidado um imaginário do nosso passado. Cada um faz o que quer. O resultado é uma barafunda só.

RETORNO: Imagem de hoje: cena de West side story, no tempo em que havia dança na massa media. Essa arte foi substituída pelos movimentos catatônicos do soul, que depois desandaram no rap e hip hop.

25 de dezembro de 2006

SEGUNDA-FEIRA DE NATAL





O dia de Natal tem tudo para ser domingo, mas não é que me cai numa segunda? O motor da semana, já emperrado por tradição no primeiro dia fatídico e útil, entra em repouso e faz algumas revelações. A primeira delas é o pássaro amarelo, de tamanho médio, e que não é um bentevi (tem a qualidade do silêncio no bico) faz evoluções na grama do quintal e dá um passeio, meio rei destes domínios. Depois se manda. O beija-flor verde escuro, especialista em manter-se em zigue zague por entre escassas flores, faz composição com os vários tons de verde das plantas, desafiando o olho cansado a acompanhá-lo. A pátina do amanhecer amassa fiapos de nuvens no céu que se avizinha azul recém pintado, mas esse aspecto diáfano da alvorada vai cedendo ao sol que se agiganta e promete praia. Uma gripe te deixa dúvidas se deves visistar o mar, agora tão perto e tão distante nos longos meses de frio. Há quero-queros no ar. Eles fazem sua sentinela, mesmo sem pampa. Onde houver natureza e gente, lá estão eles, a provocar a percepção com vôos e gritos, chamando a atenção da criança, que tenta imitá-los com a garganta afinada de soprano. Agora os quero-queros toldam o céu. Será uma praga? Ou é novamente a fronteira que me envia sinais?

COLEÇÃO - Tenho revisitado este blog para ciscar poemas e vejo que, reunidos, já formam praticamente um novo livro. Fico assombrado com a quantidade de trabalho investido nele. Às vezes me sinto tão fluvial quanto o Emilio Salgari, que escreveu sem parar e não conseguia colher os frutos de tanto esforço. Tem gente que pegou Outubro desde 2004 e está lendo cada post. O Diário da Fonte é uma vitrine informal do nosso tempo. Eleições, referendo, datas importantes, junto com poesia, crônica, conto, ensaio, tudo conflui para no futuro existir uma coleção de brochuras, dessas que se acomodam nas estantes e vão sendo manipuladas por várias gerações. É o sonho de todo escritor, principalmente os que são reconhecidos apenas em alguns círculos e que ainda não alcançam o grande público. Escrever todos os dias, produzir alguma coisa e colocar no ar: eis o ofício sem trégua ao qual nos entregamos. A partir dessa produção, posso abastecer inúmeros compromissos, já que o primeiro alô que dou ao dia é aqui, neste espaço próprio, inventado por pura necessidade e vontade de lançar pontes por cima de todas as águas.

ENCONTROS - Pessoas me escrevem e dizem: não sei se lembras de mim. Lembro de todos e de tudo. Este ano foi pródigo em reencontros. O diagramador Faraó, da Ilustrada, o fotógrafo da Fiesp Paulo Gil Soares, a repórter Jailda, além de pessoas que me conheciam pelos poemas, como Rodrigo e Gislaine, conhecer Gerson Pasa, que muito menino descobriu meu livro Outubro perdido numa estante do seu colégio. Tudo isso é alegria pura. A internet é um paradoxo: voa tão breve, depois de leve oscila, precisa que haja vento sem parar, como disse Vinicius. É virtual, na prática não existe. O que pega é o link que faz entre as pessoas, tão distantes entre si e que se aproximam na grande rede. Tenho amizades virtuais completas, ou seja, conheci pela internet, brigamos digitalmente, fazemos as pazes e até conversamos como se fosse num boteco à beira mar. Nada substitui a realidade, mas o que temos serve. Pelo menos é melhor do que ficar passando.

INFÂNCIA - E a segunda feira de Natal? Nada a fazer, nem mesmo balanços. Acordar com a comida já pronta, tomar aquele guaraná amanhecido de tão bom, partir para a areia e a água salgada, fazer as pazes com o corpo, se espreguiçar. Enfim, uma segunda-feira perfeita. Com direito até a um Papai Noel criado coletivamente e que encantou minha neta com um presente daqueles grandes, que a deixaram distraída por horas. Na hora de dormir, lá se foi ela carregando seu tesouro. Nada existe igual à infância. Deus criou a infância. A idade adulta é criação nossa.

RETORNO - Imagem de hoje: uma das magníficas mandalas de Paulo Gil Soares.

EXTRA - Morre, na véspera do Natal, João de Barro, o Braguinha, nosso compositor maior. O destaque na mídia é para a morte de James Brown, claro. Braguinha foi enterrado a partir de 1964. Lembro de uma entrevista dele nos anos 80, em que dizia ter na gaveta 200 músicas e que ninguém queria gravar. Na era Vargas, o talento tinha oportunidades e canais de expressão. As políticas públicas culturais eram a favor da criatividade do povo. Um dia entrevistei Zé Keti e ele me cantou inúmeras músicas inéditas, uma mais linda do que a outra. Nunca ninguém gravou. Tudo isso aconteceu a partir de 1964. Foi de propósito. Braguinha continuava vivo e compondo, mas não servia mais. Sua longevidade era um incômodo. O governo, todos os governos pós 64, estavam muito ocupados em enterrar a nação. Os sonhos mais lindos sonhei, escreveu Braguinha na sua versão de Fascinação. Sonhamos contigo, gênio. E agora, culpados, o enterramos.

Agora ouça o Hino a Getúlio Vargas, composto por Braguinha em 1958:

Getúlio Vargas,
Tu vais na História ficar.
Deixas os braços do povo
Para subir ao altar.

Getúlio Vargas,
Teu vulto audaz, varonil,
Há de ficar para sempre
No coração do Brasil.

Dorme, teu sono tranqüilo,
Dorme que a tua bandeira
Há de pairar altaneira
Sempre no azul da amplidão.

E as gotas que deste de sangue
Teu povo amigo há de tê-las
Brilhando junto às estrelas
No dia da redenção.

23 de dezembro de 2006



A CEIA DE TIA SARINHA

Nei Duclós


Todo ano Tia Sarinha ficava num canto da ceia do Natal e falava tudo o que lhe vinha à cabeça. Era um pilequinho tradicional, dizíamos, mas hoje vejo que sua presença significava mais alguma coisa. Tia Sarinha tinha o rosto das fotos antigas, daqueles emoldurados com cabelos pretos, blusa abotoada até o pescoço, uma pinta no rosto, que nunca sabíamos se era de verdade ou enfeite. Trazia os olhos puxados de uma ancestralidade índia e o rosto liso e branco da ascendência italiana.

Víamos Tia Sarinha uma vez por ano, exatamente na véspera de Natal, quando cruzávamos a meia noite com os ingredientes tradicionais, do peru às nozes. Quando muito pequenos, nos encantavam também algumas invenções caseiras, como o guaraná na salada de frutas. Enquanto avançávamos na idade, mais próximos ficávamos do pileque natalino que era marca registrada da Tia Sarinha. Experimentávamos o malte forte de um uísque trazido em grandes caixas e bastavam duas doses para começarmos a fazer e a dizer bobagens.

Mas isso só acontecia depois que cruzávamos outros ritos de passagem, como entrar no ginásio, dançar no primeiro baile, ficar sozinho no acampamento da pescaria. O Natal era a celebração de nossas pequenas conquistas e meu pai juntava toda a família para que pudéssemos ver o que tínhamos vivido em cada ano. Ou, pelo menos, é assim que eu gosto de entender agora, depois que todos eles se foram, essa geração desassombrada de brasileiros que pegou o país na carroça e nos devolveu no avião.

Tia Sarinha morava em Porto Alegre e era lotada em Palácio, como se dizia, fazia parte dos quadros do Piratini. Quando ficava alta gostava de brincar com a estampa, que encantava as mulheres, de determinado governador. Era uma forma debochada de ver o próprio trabalho, e nós rolávamos de rir. Ganhávamos assim o combustível da mesma anedota para o resto do ano: a tia que comentava o emprego burocrático e se divertia à custa dos sobrinhos e outros parentes na casa da sua irmã rodeada de filhos.

Tia Sarinha apresentava-se solitária, com a aura dos espíritos independentes. Sua vida pessoal era um segredo bem guardado para nós, sobrinhos menores que não compartilhávamos jamais qualquer detalhe do mundo adulto. Nunca soube quase nada dela. Foi casada, separou-se ou enviuvou, depois morava só ou com amigas fiéis. Reservada, tinha um relacionamento distante, quase frio, com a criançada que via de vez em quando. Mas toda essa carapuça caía por terra quando, depois do vinho, da cerveja e até mesmo do uísque, ela se punha a matraquear a fala recorrente nas ceias de Natal.

Enquanto todos eram mais ou menos bem comportados, Tia Sarinha se destacava pela extrema liberdade de dizer naquela hora o que imaginava ser importante. Nem lembro exatamente quais os assuntos que ela abordava, mas o importante é que era a única voz dissonante num mundo que eu acreditava imutável, eterno. No fundo, talvez, Tia Sarinha queria nos alertar para o que viria depois. Passando sua vida dentro do Palácio, no miolo dos acontecimentos principais do estado, vendo como o país evoluía da agitação à ditadura, Tia Sarinha soltava seu verbo nas noites de Natal para dizer que tudo o que nos rodeava era precário, escasso e teria fim algum dia.

Ela fazia parte de uma família que teve a amarga experiência na infância de ficar órfã de pai. Por isso possuía a aridez dos espíritos que muito cedo precisavam se cristalizar em alguma frieza para sobreviver. Quando chegava o Natal, separada de todos, num canto da mesa que lhe pertencia por tradição, ao lado de seu copo que entornava só nessa ocasião, ela era a cálida voz de uma época que se despedia. Éramos pequenos demais para saber disso. Apenas a víamos com suas excentricidades.

Mas ela fazia parte do Tempo que mostrava a cara: distante, de rosto duro e com uma aura de tristeza. Só mesmo o Natal para romper com aquele velado sofrimento. Era quando Tia Sarinha escancarava o que tinha de melhor. Sua personalidade cheia de verve, com tiradas inesquecíveis, marcou profundamente os Natais da minha infância. Aqueles que não voltam, porque sempre estarão conosco.

RETORNO - 1. Crônica publicada neste fim de semana no caderno Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: a pintura de Juliana Duclós sobre lua, céu e estrelas. 3. Meu irmão Luiz Carlos me liga para desejar feliz Natal e diz que gostou da homenagem à tia Sarinha. 4. Daniel e Carla Duclós chegam de Sampa e já começam a matar as saudades do amigo Oceano Atlântico. 5. Miguel Duclós incorpora mais um ebook na seção de textos introdutórios e biblioteca do site Consciencia. É o antigo manual de Manuel Garcia Morente "Fundamentos de Filosofia - Lições Preliminares". 6. Ida Duclós escreve sobre seu avô baleeiro no seu blog, cada vez melhor. 7.Feliz Natal para todos.

OS ANOS SESSENTA




Nei Duclós


Nosso futuro ficou nos anos sessenta
Quem nos dera chegar aos anos sessenta
Hoje somos o passado dos anos sessenta
Não tínhamos saudade nos anos sessenta
Vi a capa de Credence nos anos sessenta
E a alma de borracha nos anos sessenta
E tinha a lágrima na banca nos anos sessenta
e gracias señor nos anos sessenta
quero todos os filmes dos anos sessenta
e todos os debates dos anos sessenta

Eu tinha vinte anos nos anos sessenta
E sessenta quilos nos anos sessenta
Meu cabelo nos ombros nos anos sessenta
As guitarras eram anjos nos anos sessenta
Para onde foi a luz dos anos sessenta
Gastamos tudo nos anos sessenta?
Nada ficou dos anos sessenta
A não ser o sonho acabou dos anos sessenta
Mas juro que não era sonho os anos sessenta
Era real como pimenta os anos sessenta
E woodstock foi overdose dos anos sessenta
Achamos que eram eternos os anos sessenta

Fomos para a rua nos anos sessenta
E para todas as estradas nos anos sessenta
E expusemos poemas nos anos sessenta
E hoje ninguém lembra dos anos sessenta
O que querem tirar dos anos sessenta?
Se a juventude se foi nos anos sessenta
E restou essa ressaca dos anos sessenta
Esse verso recorrente dos anos sessenta

E quando me chamam de antigo, dos anos sessenta
Eu discordo porque não sou dos anos sessenta
Eu passei como o vento nos anos sessenta
Juntei meus pedaços nos anos sessenta
E estou aqui muito perto dos anos sessenta
Aqui pesam sessenta anos dos anos sessenta
E vê se atenta aos anos sessenta
Não que eles voltem, os anos sessenta
Mas porque nunca se foram os anos sessenta
Estão apenas dormindo os anos sessenta

E quando disserem que os anos sessenta
Acabaram para sempre nos anos sessenta
Haverá um súbito acordar, como nos anos sessenta
A era de aquarius foi nos anos sessenta
As profecias estavam certas nos anos sessenta
E nós somos os profetas dos anos sessenta
Nossa voz vem dos anos sessenta
E chegam até vós pelos anos sessenta
Ouçam o que vemos dos anos sessenta
O que sempre ficará dos anos sessenta

Essa verdade dos anos sessenta
Esse som dos anos sessenta
Essa eternidade dos anos sessenta
Que nos faz assim exilados dos anos sessenta
Expostos ao riso desde os anos sessenta

RETORNO - Recebi os melhores votos de Boas Festas de uma seleção brasileira: Moacir Japiassu, André Falavigna, Pedro J. Bondaczuk, Marco Celso Viola, Eduardo Sanmartin, Julia Zillig, Delmar Marques, entre muitos outros. E retribuo com os mais sinceros votos de felicidades nestas festas. O Diário da Fonte continua. Aqui não tem recesso nem férias.

20 de dezembro de 2006

OS MELHORES DE 2006





Minha lista anual já é tradição aqui no Diário da Fonte. Chegou a hora de fazer o balanço dos principais acontecimentos culturais, sob a ótica da preferência pessoal, da estratégia de inclusão e da banana que costumamos dar a tudo o que é lugar comum, idéia fixa, ou certezas graníticas. Uma lista sincera, inspirada pelo que conseguimos enxergar neste período que está se encerrando, quando nos voltamos sobre nossas vidas com o olhar atento de quem sabe o quanto temos ainda o que fazer. Vamos aos destaques.

POESIA

A imitação do amanhecer, de Bruno Tolentino.
O assombroso livro que devolve a poesia brasileira a seu esplendor clássico foi o maior acontecimento cultural do ano. Tudo nesse livro é solene, perfeito e admirável. Bruno, já anunciava Wagner Carelli no início do século, é o maior poeta do Brasil. Uma constatação que decidi colocar mais duas outras preferências minhas, que são Ferreira Gullar e Mario Chamie.

Viver a paixão de cada passo, de Marco Celso Huffel Viola.
O Grande Poeta Oculto nos deslumbra com seu talento , ritmo, música e contundência. Temperado por décadas de reflexão e recolhimento, Marco Celso diz a que veio, para provar que a fonte generosa de onde jorra o poema jamais poderá ser banida, interrompida ou desmoralizada. Uma diversidade poética que abarca desde o hai-cai ao poema épico, desde a poesia de amor ao dilacerado canto das ruas, desde a trova até a modernidade.

O menos vendido, de Ricardo Silvestrin
Um livro que é filosofia pelo que entende da palavra, é proposta pela enorme conjugação de vetores da poesia brasileira, é reportagem pelo convívio criativo com os contemporâneos, e é só poesia pela nudez com que convoca o leitor. É muita coisa num livro só, que se lê como se estivesse viajando de trem.

ROMANCE

Ensaio do Vazio, de Carlos Henrique Schroeder
Minimalista, enxuto, mortal: o romance que nos tira do sério e revela o fundo do poço onde a cabeça do Brasil está enfiada.

CRÔNICA

André Falavigna, do Espaço Literário do Comunique-se.
Costumam comparar André Falavigna a Nelson Rodrigues, mas André é um autor incomparável, que solta o verbo sem dono por vários assuntos e funciona como um novo furacão literário que ainda vai dar muito o que falar.

CONTOS

Tranversais do Tempo, de Tailor Diniz.
Histórias assustadoras de um escritor que agora se revela noir, mas que sempre teve o principal: talento de sobra e esmerada técnica narrativa.

EDITORAS

Alegoria, de Porto Alegre
Uma pequena editora urdida em silêncio e que surge de sopetão trazendo de cara vários lançamentos com autores consagrados, como Affonso Romano Santana, Adélia Prado e Arnaldo Antunes, além de revelar autores como Aline Isaia (sócia da editora) e de trazer de volta Marco Celso Huffel Viola.

Letras Brasileiras
A pequena editora catarinense tomas vulto este ano multiplicando seu catálogo, diversificando seus títulos e trazendo boa ficção com escritores como Jackzam Kaiser, Eliziario Goulart e Werner Zots.

Bertrand Brasil
A editora carioca, que faz parte do grupo Record, e tem como diretor editorial o escritor Paulo Bentancur, avança na praça com inúmeras obras de autores como Fabrício Carpinejar, Tailor Diniz , Miguel Sanches Neto, Carlos Nejar, entre muitos outros.

CINEMA

Zuzu Angel, de Sergio Rezende.
Um filme que é resgate e denúncia, nos devolve o Brasil soberano, assassinado pela ditadura e eleva o nível da cinematografia brasileira da retomada.

As cartas do domador, de Tabajara Ruas.
Filme que vi no copião, é disparado um dos melhores filmes dos últimos tempos e será grande destaque em 2007. Como vi este ano, entra nesta lista. Destaque para a cena da chibata, protagonizada por Miguel Ramos, o maior ator do Brasil.

EVENTOS

Feira do Livro de Porto Alegre
A explosão anual da cidade da cultura tudo costura em dias de grande alegria de convívio entre autores e leitores. Imbatível como clima, proposta e perspectiva.

Reativação da Academia Uruguaianense de Letras
Numa terra que tem busto de poeta na praça, a Aul, que tem como presidente a escritora Vera Molina, concentra os talentos de uma região que luta pela sua inclusão cultural no cenário cultural contemporâneo.

BLOGS

Novaklaxon
Um blog sobre literatura, Eduardo Sanmartin, que resgata o grande poeta Emanuel Medeiros Vieira e o escritor Eduardo Sanmartin, autor de vários livros e que estava sumido da rede, poderá se transformar num acontecimento cultural em 2007.

Renato Modernell
O escritor de Rio grande acerta a mão e o passo num blog instigante e criativo, em que aborda assuntos variados sempre com a mesma poderosa força de quem veio de longe e sabe onde quer chegar.

Evanildo da Silveira
Revelação do ano: o blog jornalístico de Evanildo já começa a fazer estrago, repercutindo na rede, devido ao seu forte teor informativo, com reportagens importantes, bem escritas e bem apuradas.

ORKUT

Orlando Lago
O poeta cria a comunidade Poesia e Luz e dá um banho de como fazer cultura no site de relacionamento.

REVISTAS VIRTUAIS

Cronópios, de Edson Cruz.
Melhor revista cultural nacional, é uma enciclopédia de criação literária que merece ser visitada todos os dias.

Sagarana, de Julio Monteiro Martins
A melhor revista cultural do mundo continua firme, em Lucca, na Itália, nos colocando diretamente em contato com o que há de mais importante na produção contemporânea.

RETORNO - 1. Esta lista poderá ser ampliada nos próximos dias, conforme eu for lembrando.2. Imagem de hoje: Werner Schünemann e Tarcisio Filho no elenco de "As cartas do domador", de Tabajara Ruas.

19 de dezembro de 2006

O MAL NÃO RECEBE CARTAS





Os parlamentares decidiram aumentar em 91 por cento seus parcos proventos. Aí a gente recebe mensagens de estímulo para que enviemos e-mails para protestar. Imagino o sujeito recebendo uma cartinha indignada dessas (quando chega; parece que estão voltando). "Ei, Bigode, veja esta da Velhinha de Taubaté". Abordei o assunto com Sinistrus Joe, que foi duro na resposta: " Não escreva para quem pega toda a grana para eles. Imagine um paredão..." Senti um calafrio. Joe estaria radicalizando? Mas ele continuou: "...um paredão onde poderíamos ler o discurso sobre Dívida Externa Européia, do embaixador Guaicaípuro Cuatemoc, descendente de indígenas. Foi dito na cara dos principais chefes de Estado da Comunidade Européia. Foi em maio de 2002 em Madri. É assim que se fala".

DISCURSO DE GUAICAÍPURO CUATEMOC

"Aqui estou eu, descendente dos que povoaram a América há 40 mil anos, para encontrar os que a "descobriram" só há 500 anos. O irmão europeu da aduana me pediu um papel escrito, um visto, para poder descobrir os que me descobriram. O irmão financista europeu me pede o pagamento ¬ao meu país¬,com juros, de uma dívida contraída por Judas, a quem nunca autorizei que me vendesse. Outro irmão europeu me explica que toda dívida se paga com juros, mesmo que para isso sejam vendidos seres humanos e países inteiros sem pedir¬lhes consentimento. Eu também posso reclamar pagamento e juros.

Consta no "Arquivo da Cia. das Índias Ocidentais" que, somente entre os anos 1503 e 1660, chegaram a São Lucas de Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata provenientes da América. Teria sido isso um saque? Não acredito, porque seria pensar que os irmãos cristãos faltaram ao sétimo mandamento! Teria sido espoliação? Guarda¬me Tanatzin de me convencer que os europeus, como Caim, matam e negam o sangue do irmão. Teria sido genocídio? Isso seria dar crédito aos caluniadores, como Bartolomeu de Las Casas ou Arturo Uslar Pietri, que afirmam que a arrancada do capitalismo e a atual civilização européia se devem à inundação de metais preciosos tirados das Américas.

Não, esses 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata foram o primeiro de tantos empréstimos amigáveis da América destinados ao desenvolvimento da Europa. O contrário disso seria presumir a existência de crimes de guerra, o que daria direito a exigir não apenas a devolução, mas indenização por perdas e danos. Prefiro pensar na hipótese menos ofensiva. Tão fabulosa exportação de capitais não foi mais do
que o início de um plano "MARSHALL MONTEZUMA", para garantir a reconstrução da Europa arruinada por suas deploráveis guerras contra os muçulmanos, criadores da álgebra, da poligamia, e de outras conquistas da civilização.

Para celebrar o quinto centenário desse empréstimo,podemos perguntar: Os irmãos europeus fizeram uso racional responsável ou pelo menos produtivo desses fundos? Não. No aspecto estratégico, dilapidaram nas batalhas de Lepanto, em navios invencíveis, em terceiros reichs e várias formas de extermínio mútuo. No aspecto financeiro, foram incapazes, depois de uma moratória de 500 anos, tanto de amortizar o capital e seus juros quanto independerem das rendas líquidas, das matérias¬primas e da energia barata que lhes exporta e provê todo o Terceiro Mundo. Este quadro corrobora a afirmação de Milton Friedman, segundo a qual uma economia subsidiada jamais pode funcionar e nos obriga a reclamar¬lhes, para seu próprio bem, o pagamento do capital e dos juros que, tão generosamente, temos demorado todos estes séculos em cobrar. Ao dizer isto, esclarecemos que não nos rebaixaremos a cobrar de nossos irmãos europeus, as mesmas vis e sanguinárias taxas de 20% e até 30% de juros ao ano que os irmãos europeus cobram dos povos do Terceiro Mundo.

Nos limitaremos a exigir a devolução dos metais preciosos, acrescida de um módico juro de 10%, acumulado apenas durante os últimos 300 anos, com 200 anos de graça. Sobre esta base e aplicando a fórmula européia de juros compostos, informamos aos
descobridores que eles nos devem 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata, ambas as cifras elevadas à potência de 300, isso quer dizer um número para cuja expressão total será necessário expandir o planeta Terra. Muito peso em ouro e prata... quanto pesariam se calculados em sangue? Admitir que a Europa, em meio milênio, não conseguiu gerar riquezas suficientes para esses módicos juros, seria como admitir seu absoluto fracasso financeiro e a demência e irracionalidade dos conceitos capitalistas.

Tais questões metafísicas, desde já, não inquietam a nós, índios da América. Porém, exigimos assinatura de uma carta de intenções que enquadre os povos devedores do Velho Continente e que os obriguem a cumpri¬la, sob pena de uma privatização ou conversão da Europa, de forma que lhes permitam entregar suas terras, como primeira prestação de dívida histórica..."

RETORNO - Perguntarão: o que tem isso com o aumento da bufunfa parlamentar? Muita coisa. A dívida externa crescente e impagável precisa de uma classe política assim para poder continuar existindo.

18 de dezembro de 2006

SEMPRE TEM UM BOI CORNETA





Se existe uma coisa que irrita realmente muitos leitores é falar mal de seus cineastas favoritos. Oliver Stone, Martin Scorsese ou Quentin Tarantino, essas nulidades que assumiram o papel de autores no vazio deixado pela morte dos gênios insuperáveis, possuem uma legião de fãs que caem de pau toda vez que coloco no ar alguma coisa contra eles. É que chegamos ao fundo do poço em termos de arte cinematográfica. Os melhores hoje são apenas filmakers sólidos como Clint Eastwood, Lars Von Triers, Gus van Sant. Nenhum excepcional, que eu saiba. Há uma tabula rasa da produção, descambando para a mediocridade assumida, tudo em função do tal consumo de massa. Repetir velhas fórmulas não é apenas tentar atingir o máximo de incautos, é reiterar papéis sociais e econômicos.

CACHO - Ontem dei uma zapeada no filme que passou no SBT, O Último Samurai, com o Tom Cruise apertando os olhos, fazendo carranca de fodalhão e ensinando japonês a atirar, em cenas explícitas de superioridade branca sobre esses amarelos. Logo depois ele vira guerreiro japonês e acaba matando seu cacho (pois é disso que se trata) numa cena de representação sexual explícita no final, em que não faltam até expressões extremas de gozo diante da morte. É o fim da picada. Tom Cruise consegue ser bom em filmes onde é bem dirigido, como Guerra dos Mundos, que causou o maior espanto pois não é Tom que acaba com os Tripods e sim os vírus. Queriam que Tom desse um jeito em tudo, mas Spielberg, mais amadurecido, deu um cambau no olhar idiotizado e ofereceu uma solução que desagradou.

SEGREDO - Vi também, em dvd, o filme dos cowboys veados, O Segredo de Brokeback Mountain. Porque foi tão celebrado e ganhou tanto Oscar é um mistério absoluto, pois é um filme raso, que finge ser corajoso ao abordar o homossexualismo na parte macha dos Estados Unidos (aquela em que os caras usam esses chapeuzinhos de abas reviradas e exibem fivelas prateadas no cinto). Todo faroeste é um far-gay e os antigos tinham mais competência, pelo menos em termos de cinema. Não existiam cenas explícitas como este sobre o frescor da montanha, mas a representação poderosa da paixão dos fortes era totalmente exposta. Os americanos se amam perdidamente e seu cinema é a reiteração do Mesmo. É a redundância elevada à categoria de indústria grandalhona. Vejam Tom Cruise matando com um espadaço seu grande amigo samurai. Eles se agarram, de uma forma parecida com a do filme da montanha, e seus olhos brilham de um estertor sem igual. Vão parar com isso.

TROMBETA - Neste 2006, dediquei boa parte do Diário da Fonte para o cinema. Coloquei mais ou menos em dia minha defasagem, que tinha mais de três anos. Vi muito filme bom, mas também muita porcaria. Tem leitor que prefere ler aqui outros assuntos, pois o cinema já oferece um bom quadro de jornalistas que fazem análises bem mais atualizadas. Mas não abro mão desse tema e tenho até formatado um livro inteiro com minhas crônicas cinematográficas, especialmente sobre o grande cinema que se perdeu no tempo e que jamais voltará, a não ser que você coloque algo no dvd e reveja. Foi quando o cinema atingiu o ápice e os imbecis e invejosos cuidaram de estragar tudo, como acontece invariavelmente. É como dizia meu pai: sempre tem um boi corneta.

MENTIROSOS - Agora querem nos empurrar Tarantino, Scorsese e Stone como cineastas. São comerciantes do mais baixo nível. Atendem a seus patrões, os donos do mundo. Espetacularizam a violência (Taratino), mentem sobre as guerras imperialistas (Stone) e sobre o glorioso passado cultural do cinema e da América (Scorsese). Fora com eles.

RETORNO - As duas imagens são do filme "O Último Samurai".

15 de dezembro de 2006

OS ANJOS RESISTEM





Nei Duclós


O espectador é o menos privilegiado dos autores. Quase nada sobra para quem vê um filme, a não ser o olhar sobre o que já foi decidido. Não há abstração no cinema, diz o cineasta maior, Sergio Rezende, a mais sólida obra do cinema brasileiro contemporâneo. Tudo tem de ser posto para ser visto. Nessa participação escassa, o espectador veste a beca da percepção para enxergar o que por anos foi preparado, suado, criado, tirado a fórceps, imaginado, feito, abraçado, chorado. É o momento de gala, quando somos convocados para que enfim o filme cumpra o seu destino. Nada mais podemos fazer, porque tudo nos é servido de bandeja. Isso intensifica nossa responsabilidade. Não podemos devolver ao que vemos o que temos de pior, a indiferença, ou o de mais precário, a emoção que se perde já quando os letreiros enfim sobem. Somos responsáveis pelo filme que nos é entregue como a carta do maratonista que morre ao cumprir a missão. Estourou a guerra, diz a mensagem. Convoque o que você tem de melhor.

ESPÓLIO - Quando o filme é Zuzu Angel, que se soma à galeria de grandes personagens de Rezende, junto com Mauá, Tenório Cavalcanti, Antonio Conselheiro, Lamarca, já começamos em dívida desde o início. Em dívida porque Rezende traz para a tela o que é profundamente poderoso no Brasil assassinado e que ficou fácil de esquecer depois de décadas de ditadura. Para isso foi feito 1964: para abandonarmos o Brasil Soberano. Rezende vai lá e pega de volta algo que pertence a esse espólio e joga a nossos pés, jamais na cara. Rezende tem a delicadeza dos fortes, a contundência dos bravos, o fôlego dos sobreviventes. Ele traz, com equipe formada ao redor da esmerada produção de Joaquim Carvalho, não apenas uma personagem, que por tanto tempo ficou oculta (Zuzu Angel era um sussurro nas redações contaminadas pelo medo). Não o Brasil, que se foi para sempre. Mas o sentimento que deixamos de ter quando os fatos aconteceram. Nosso alheamento, nosso pavor, nossa fuga. Ele faz Zuzu Angel sentar na sala e então podemos compartilhar desse terror que é o esquecimento, e o que é mais importante, a noção exata de quanto isso nos fez mal e o quanto é importante trazer de volta a emoção que não tivemos.

TRIBUNAL - Isso ele faz recuperando as pessoas que conviveram com Zuzu Angel, por meio de representações possíveis, quase próximas. Essas personagens são vividas por Ângela Vieira (essa solidez suave que a tudo costura), Luana Piovani (atriz de verdade, quando um diretor de primeira está por perto), Leandra Leal (o talento que tem a delicadeza de implodir para não assumir o próprio excesso), Regiane Alves (o conforto de quem aparentemente fica na sombra). Todas cercam Patrícia Pillar, uma solidão seduzida pela luz. O amor pelo filho, Stuart (interpretado por um brasileríssimo Daniel de Oliveira, biotipo oposto ao original - de estampa americana - a revelar a opção feita a favor do país onde nasceu e se criou) desencadeia a reação. Quando Patrícia peita o tribunal, o cinema brasileiro levanta de uma só vez, como se estivesse homenageando um rei que volta ferido da guerra. Pois é ao cinema que esta cena pertence, mais do que à História. O cinema precisa desse reconhecimento, para que a História sobreviva. Para chegar a esse momento supremo da sétima arte entre nós, foi preciso que Patrícia fosse cevada pelo Mal, encarnada pelo gênio. Pois é de gênio que falamos quando temos Othon Bastos com seu duro olhar diante da tortura, um olhar que movimenta o circo da maldade encarnado por vários atores que estão perfeitos em seus papéis de algozes (com destaque para Aramis Trindade, assustador como o Tenente que se vinga da ditadura, e Flavio Bauraqui, o torturador que mostra as várias faces da brutalidade). O Mal sem caricatura amadurece o país quando é mostrado em toda sua crueza.

SUSTO - Um filme como Zuzu Angel elimina qualquer possibilidade de o Brasil repetir seu velho papel de palhaço. Não se enquadra nos adjetivos que acompanham os lançamentos para ajudar a esquecê-los. Não se trata de uma obra-prima, de um grande filme ou algo parecido. Mas da ponta mais evidente de uma descoberta ainda submersa. É uma obra sólida, de narrativa enxuta, que convoca nossa omissão e nos abraça com seu drama. É um filme para ser visto com a parte de criação que nos toca: o de reinventar o que nos é mostrado na tela, resgatar (para quem viveu a época) o tempo perdido, descobrir do que foi feito de nós e avançar na arte que o cinema proporciona ao envolver tanta gente. Precisamos dizer: é o filme de um cineasta maior. Fruto de um país que amadurece aos trancos, como tudo na vida. E que ajuda a compor um conjunto de trabalhos que Rezende produz como se nos sacudisse pelos ombros, falando diretamente nos olhos, no momento em que recebemos uma carga de artilharia no front e achamos que tudo se perdeu.

Acordamos do susto com Sérgio Rezende falando para nós, quando vemos que já amanheceu e que todas as lições da longa escuridão precisam ficar conosco para que não possamos repetir a tragédia. Resista, diz ele, resista. Os anjos ainda estão do nosso lado. Acordamos então ao som de Angelica, de Chico Buarque, a canção feita para a coragem punida pelo horror.

RETORNO - Imagem de hoje: Patrícia Pillar em Zuzu Angel.

EXTRA - Fui citado no Relatório Direitos Humanos no Brasil 2006, da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. Mais precisamente no artigo, que consta do documento, Tráfico de pessoas no Brasil, da antropóloga Márcia Anita Sprandel, que escreveu o seguinte: "O poeta Nei Duclós, numa poesia chamada Lição de Travessia, afirma que o mundo não tem lado certo e que todas as margens podem ser pisadas. Que sua certeza sirva de inspiração a todos que trabalham na defesa dos direitos humanos de pessoas discriminadas por sua situação migratória ou por sua inserção no mercado do sexo, como vítimas ou como profissionais. " O artigo reproduz o poema, publicado no meu livro de estréia, Outubro: "Sempre que vejo um rio/parece que do outro lado/está a Argentina// As balsas carregadas da infância/sumiram do meu olhar/mas a ponte permaneceu/como eterna promessa/de que todas as margens/ podem ser pisadas// O mundo não tem lado certo/ pois há uma ponte sólida/ por cima de todas as águas".("Lição de Travessia", Nei Duclós, 1975).

13 de dezembro de 2006



FAZER ESPERAR

O chá de cadeira é uma herança da escravidão. Assim como dar ré (ir contra o fluxo do trânsito, sem olhar a quem, a toda velocidade) é poder, fazer esperar é a mesma coisa. Exemplos sobram. A fila do pão aumenta, mas a atendente está ocupada com um gordinho na lanchonete. O gordinho quer determinado pedaço de bolo. Negocia peso, preço, sabor, validade etc. A fila vai engrossando. A atendente acha que se livrou dele, quando é chamada de volta. O sujeito quer mais alguma coisa. Nos terminais de ônibus, enquanto a fila aumenta, dúzias de motoristas gargalham entre si. Se divertem com a situação. Estão fazendo esperar. Estão cumprindo suas oito horas.

TRELA - Se as pessoas estão exaustas e lotam as filas, não importa. Em repartições públicas, é preciso mais do que paciência. Além de te fazerem esperar, você atura o ar arrogante de quem está com a vida garantida. Nos bancos, caixas adoram dar trela para boys que levam toneladas de coisas para protocolar, pagar, carimbar. Eles acham muito engraçado, enquanto o resto desmaia na fila. Por que fazem isso? Porque podem. Porque deve ser gostoso. Por que assim todos ficam prestando atenção neles.

REPASSE - Lembro a fúria do Mino Carta quando ligavam para ele e o faziam esperar. Ou seja, o cara pede para a secretária ligar para o diretor de redação, o jornalista atende e fica dependurado, pois a moça diz: um minutinho por favor que doutor fulano vai falar. Mino batia o telefone na cara, o que fazia muito bem. Quer ligar? Liga, cacete, não repassa esse encargo para os outros. É hábito repassar encargos para quem quer que seja. Tu, que é escritor, faz essas cinco linhas, não custa nada para ti que tem facilidade de escrever. Quem tem facilidade de escrever é locutor, já dizia Chico Buarque em depoimento para Humberto Werneck, que me contou a história. Escritor chora diante do papel em branco. Fica difícil escrever de uma forma que parece ter sido feito sem nenhum esforço. Como a leitura escorre sem dificuldades (esse era o objetivo) então as pessoas acham que tudo saiu assim no bate pronto, no mijo, como dizem. Vai sentar em frente à tela em branco para ver se sai petróleo.

TREINO - Trabalhar na internet implica novos conhecimentos, um treinamento intenso. Se isso não for feito, você vira o chefe que pede para os outros realizarem as tarefas mais automáticas da rede. Por mais que os manuais empresariais sapateiem contra isso, esse tipo de comportamento continua em vigor. Não saber procurar no Google, por exemplo, é mais comum do que se imagina. Puxa, você anda sumido. É verdade, existem 23.600 ocorrências minhas no Google, basta teclar meu nome entre aspas. Com a internet, ninguém mais está sumido, nenhum escritor deveria ter gaveta, acabou o jornalista bem informado, já que todo mundo está bem informado, é só querer, chegou ao fim a agenda exclusiva, já que qualquer número de telefone pode ser achado nas buscas. Acabou a frescura, tudo é muito prático e rápido. Num mundo desses, somos trogloditas fazendo uns esperar os outros. Quer? Então senta aí que depois te atendo.

MOSCAS - As pessoas imitam os animais. São moscas voejando ao teu redor. O sacolão está vazio, mas está a criatura atrás de ti, disputando frutas e legumes e depois ainda te empata na caixa. Tem outra caixa, por que não vai lá? Não, a pessoa quer ficar ali, me esperando, impaciente. Estou fazendo esperar, sem querer. Gostaria até de mudar de caixa para dar-lhe lugar, mas é tarde demais. Já estão pesando o que escolhi. Me atrapalho na hora do troco. Saio em desabalada carreira, com a pessoa atrás, te pisando os calcanhares. Como resolver isso? Todo mundo amontoado, se atrapalhando uns aos outros. O planeta é gogantesco, o mundo não é pequeno como gostam de dizer os globófilos. Tem espaço para caramba. Vão se roçar numa tuna.

RETORNO - Imagem de hoje: Istambul, por Cartier Bresson, o número 1.

12 de dezembro de 2006



CHILE, O VERDADEIRO LUTO

O ditador morreu de velho. Nada há a celebrar. Chile está de luto desde a derrubada do governo eleito de Salvador Allende, um golpe que acabou levando também Pablo Neruda. Para eles dediquei dois poemas, que foram publicados no meu livro "No mar, veremos" (Ed. Globo, 2001). Quando falam em democracia, lembro que presidentes democraticamente eleitos foram derrubados pela barbárie dos ditadores e dos imperialistas. Não me falem em democracia. Ela foi assassinada, junto com milhares de pessoas que se insurgiram. Nós, que vimos pelos jornais, que fugimos, que lutamos precariamente, que sobrevivemos, que nos tornamos invisíveis, devemos render-lhes tributo. Quando alguém citar Allende ou Neruda, é preciso que todos fiquem de pé.

SALVADOR

Salvador Allende morre combatendo
O seu corpo dói e está atento

O doutor vestido de soldado
me digam onde está enterrado

Salvador Allende não se entrega
e morre, como a esperança, em La Moneda

Alguém bate no Chile e não atendem
Estão matado o presidente

Quem me devolve Salvador Allende
com a arma na mão e o rosto tenso?


PABLO

Da cordilheira desce a lava que fecundou as ilhas
o sêmen das águas profundas
a mão que alimentou o arco-íris

Da cordilheira desce Neruda, o passageiro noturno
pai que nos jogou no meio do mar
braço possante colhendo a mínima flor

Do Chile desce o diamante que força o túnel
magia da clara mina onde o sol resiste
duro perfil de pássaro ferido

Das cidades sagradas da América desce Neruda
coração a serviço diário do futuro
ninho de um povo que ainda será livre.

RETORNO - Quatro autores já estrearam no blog coletivo NovaKlaxon: Marco Celso Hufel Viola (de Porto Alegre), Emanuel Medeiros Vieira (de Brasília), Eduardo Sanmartin (de Nova York) e eu (de Florianópolis). Falta ainda José Fonseca e outros que virão. O objetivo é debater poesia, literatura. O nome, dado por Sanmartin, é uma referência à revista modernista Klaxon. Vai correr bala.

11 de dezembro de 2006



O TEMPO EM SUA GLÓRIA

Nei Duclós


O Tempo, passei ao largo
Não vi o presidente nem o Papa
Nas Diretas-Já pensava em outra coisa
Não atinei quando ganhamos a Copa
Não assisti o astronauta pisar na Lua
O desfile aconteceu na hora da sesta

Mas o presidente foi-se (era o Jânio Quadros)
E João Paulo II está por toda parte
Na manifestação encontrei algo mais valioso:
A banda do interior cruzando a praça

Perdi uma Copa, mas vi todas as outras
E por muitas vezes fui campeão
Sem a Lua, inaugurei o Rio de Janeiro
E o pior que fomos presos perto do Forte
O desfile, dizem, foi um porre

O Tempo, costurei ao meu modo
Nada do que fiz faz parte da História
Se quiserem saber como era esse agora
Terão que bater em outra porta
Eu nada tenho a oferecer, palavra
A vida embarcou em novos horários

Daqui a pouco toca o sino do colégio
Preciso voltar e assistir anjos em aula
Vou tirar nota dez para visitar Deus
Deus, sim, em toda a sua glória

RETORNO - Imagem de hoje: converso com o Irmão Arno (que gosta de brincar com seu apelido, Chulé), diretor do meu colégio, o Santana, aos 80 anos de idade. Foi nesse lugar que fiquei jogando futebol sozinho enquanto a cidade toda ia ver o Jânio se encontrar com o presidente argentino, Frondizi. Foi nas salas de aulas que estão ao fundo que aprendi tudo o que sei. A foto é de Anderson Petroceli.

9 de dezembro de 2006



O QUE REALMENTE INCOMODA

Não é o Iraque nem qualquer governo que te incomoda. Nem o trânsito ou a fome. Nem o salário ruim ou os problemas de saúde. Tudo isso faz parte da vida, você vai levando. O que realmente incomoda é o vazio provocado pelos teus interlocutores. É a bola quadrada que te devolvem quando tens a pachorra de expressar um mínimo de entusiasmo. O espírito de porco te aguarda na dobra de qualquer alegria. Há sempre a falsidade celebrando o que dizes, mas no fundo do olhar aquela vontade de que te ferres. Chega a ser involuntário, muitas vezes. As pessoas estão marcadas pelo não e desprezam qualquer tentativa de superação. Então o importante é te puxar para o vale de lágrimas, de onde jamais tentarás sair. Dizer essas coisas te incomoda? Talvez este texto seja o que ele próprio condena. Assim caminha a humanidade.

PASSEIO - Quanto contamos algo a alguém, queremos compartilhar o espírito das coisas. Queremos também que nossos pensamentos e sentimentos tenham uma vida social. Levamos a emoção para passear. Damos uma volta no parque com nossos sonhos. Levamos projetos impossíveis para festas. Convocamos uma reunião para apresentar o power point da nossa utopia. Mas isso não é visto com bons olhos, só com os maus. A verdade é que existe um fosso entre o indevassável mistério que habita o coração selvagem e a vida que precisamos viver para continuar em frente. Há um abismo entre a poesia e o emprego. Ninguém atura transcendência num espaço que é pura guerra. Mas costumamos insistir. Não é possível que iremos passar a vida mentindo sobre nós, ou então exibindo espetacularmente nossas fraquezas, o que dá no mesmo. Não se trata de fazer psicoterapia de grupo em ambiente de trabalho. Mas de dividir a humana presença entre seus pares, projetar o que há de melhor em ti, encaminhar o abraço sincero quando nos falta o chão. Mesmo que ninguém precise dessas baboseiras aqui descritas, é bom saber que é possível romper a barreira do tédio e da brutalidade, deixar de lado as frescuras psicológicas e investir na arte que podemos gerar todos os dias.

ARTE - Porque é de arte que se trata. A arte que em algum momento ganha enfim as ruas em forma de livro, peça, concerto. Ou então fica como algo inesquecível para quem convive contigo. Alcançar o estado de arte na vida diária é o desafio para que deixemos para trás o que nos incomoda. Compor essa galeria de quadros soberbos que só tu, pintor precário, poderás criar. Assobiar essa música do instante, compor aquela velha canção que ficará restrita a teus redutos, fazer o gesto que redime, dizer a palavra que semeia, compor em grupo uma valsa sem notas musicais, apenas com silêncios cúmplices de quem sabe que estamos nesta vida para alguma coisa, e essa coisa é produzir arte em todos os sentidos. O vazio que tem impõem é porque existe perseguição à arte diária, não é permitido que alcances a eternidade sendo apenas a pessoa que não te tira o sono. Há esforços para te impedir de chegar a algum resultado. Mas sabes que nem todo mundo é assim. Há cumplicidade e teu papel é saber que a arte é múltipla e está por toda parte. Quem te rodeia tem grandeza e se eles geram o vazio dentro de ti é porque não estás entendendo direito como funciona essa difícil arte da sobrevivência. Cada momento ruim tem uma lição eterna. Aprendemos todos os dias diferentes modos de fazer da terra um lugar habitável.

RETORNO - Imagem de hoje: Menino sobre o tronco, Curionópolis, de Marcelo Min, o cara que cria arte no cotidiano, com o olhar sintonizado nos excluídos.

8 de dezembro de 2006



O JORNALISMO SOBREVIVE

Gostei do Prêmio Embratel. Marcelo Tavela, no Comunique-se, dá detalhes das premiações, a maioria delas para o chamado jornalismo investigativo. Todos sabem que jornalismo mesmo é o investigativo. É como diziam nas redações antigas: jornalismo é pau, o resto é propaganda. Para não dizer que o Diário da Fonte só bate na mídia (o jornalismo acabou, cheguei a dizer aqui, ao abordar a miséria do noticiário, o que, diante do volume de inutilidades, continua valendo), transcrevo a seguir o texto de Tavela, que revela as origens das denúncias feitas por jornalistas de primeira, dedicados e todos merecedores do prêmio. A reportagem sobrevive, mas ainda é muito pouco.

JORNALISMO INVESTIGATIVO VENCE PRÊMIO EMBRATEL

Marcelo Tavela


"Se algo une os principais vencedores do 8º Prêmio Imprensa Embratel é o jornalismo investigativo. Muitas das reportagens premiadas envolveram profissionais infiltrados e um longo trabalho de investigação e acompanhamento das pautas. A cerimônia, realizada na quarta (6/12) na casa de shows Canecão, zona sul do Rio de Janeiro, foi apresentada por Márcia Peltier e Ronaldo Rosas - reeditando parceria da antiga TV Manchete - e distribuiu R$ 166 mil em prêmios que variaram de R$ 5 mil a R$ 20 mil.

O Grande Prêmio Barbosa Lima Sobrinho, o principal da noite e último a ser entregue, foi para a reportagem As ambulâncias da fraude, publicada pelo Correio Braziliense, em dezembro de 2005. Escrita por Gustavo Krieger, Marcelo Rocha, Leonel Rocha, Luciene Soares, Ana Maria Campos, Lúcio Vaz e Ugo Braga, a matéria revelou o superfaturamento na compra de ambulâncias pelo deputado Nilton Capixaba (PTB), em Rondônia. Acabou virando uma série, que terminou somente em agosto de 2006, mostrando a ramificações pelo país do que ficou conhecido como Máfia dos Sanguessugas.

A equipe foi representada por Marcelo Rocha e Lúcio Vaz, jornalista gaúcho radicado em Brasília, que lembrou seu primeiro dia como estudante de Universidade Católica de Pelotas. "Um professor perguntou o que eu queria ali. Respondi, ingenuamente: Estou aqui para mudar o mundo. A tarefa é árdua, mas acho que tenho feito a minha parte", contou Vaz.

Tânia Lopes, irmã do jornalista assassinado Tim Lopes - "há 4 anos, 6 meses e dois dias" - entregou para o repórter Giovani Grizotti, da RBS TV, de Porto Alegre, o prêmio de Jornalismo Investigativo - Troféu Tim Lopes, pela reportagem A farra dos vereadores turistas. Infiltrado entre parlamentares, Grizotti flagrou o uso de verba municipal em uma viagem dos vereadores de Sapucaia do Sul (RS) para um curso sobre redução de gastos públicos em Foz do Iguaçu. Os políticos, na verdade, fizeram compras no Paraguai e visitaram as cataratas. "Graças à reportagem, 25 vereadores são alvos de processos", informou Grizotti.

Ainda em televisão, os jurados do Prêmio Embratel decidiram dar um prêmio especial, hors-concours, para Falcão - Meninos do Tráfico, especial produzido pelo produtor cultural Celso Athayde e pelo rapper MV Bill no Fantástico, da Rede Globo. "Eles podem não ser jornalistas registrados ou sindicalizados, mas se isso não é reportagem, eu não sei o que é", declarou o representante do Fantástico que recebeu a premiação.

Jornal, TV e Rádio
O prêmio de Reportagem em Jornais e Revistas foi para os repórteres Sérgio Torres e Raphael Gomide, da sucursal carioca de Folha de S. Paulo, por Exército recupera armas após fazer acordo com facção de traficantes, que evidenciou a negociação de militares com o Comando Vermelho para recuperar armas roubadas em quartel no Rio. O Exército negou o acordo.

Reportagem em Emissora de TV foi para a série Célula-tronco, de Luiz Carlos Azenha e Maria Cândida, veiculada na TV Globo. Os jornalistas mostraram médicos que receitavam medicamentos não-autorizados com falsas células-tronco. Os remédios eram prejudiciais à saúde.

O jornalismo infiltrado voltou à cena na categoria Reportagem em Emissora de Rádio. Cid Martins, da Rádio Gaúcha, ganhou com Nazistas sulinos, que acompanhou os encontros de grupos neonazistas em Santa Catarina e Rio Grande do Sul. "O que mais me impressionou não foi só a participação dos jovens, mas também de seus pais e avós", comentou Cid.

Casal vencedor
Nos prêmios sobre imagens, dois flagrantes da violência em São Paulo. Wilson Araújo, da TV Globo, levou Reportagem Cinematográfica por São Paulo punguistas, que mostrou uma estratégia em grupo para furtos de carteira na capital paulista. E Marcos Fernandes, fotógrafo do Diário do Comércio, ganhou Reportagem Fotográfica com Os meninos da luz vermelha, que flagra menores quebrando vidros de carros parados no semáforo vermelho na Avenida do Estado para roubar bolsas.

E outros dois prêmios ficaram em família. Vandeck Santiago, do Diário de Pernambuco, ganhou, pela segunda vez consecutiva, na categoria Reportagem Cultural com Vauthier - A história que a França desconhece e o Brasil esqueceu. Caderno especial de 12 páginas, o trabalho abordou a atuação do engenheiro francês Louis Léger Vauthier em Pernambuco, no século XIX, tanto nas obras públicas como na noite de Olinda.

Esposa de Santiago, Silvia Bessa, repórter de política do Diário de Pernambuco, recebeu o prêmio de Reportagem sobre Telecomunicações em Veículo Não-Especializado por Nordeste conectado. A série de reportagens mostrou como regiões pobres do sertão estão encarando a internet. "Vi crianças trabalhando em plantação para poderem pagar LAN houses e acessar o Orkut. De certa forma, elas fazem a inclusão digital que o governo não consegue", relatou Silvia.

O prêmio de Reportagem sobre Telecomunicações em Veículo Especializado foi para a dupla Ana Paula Oliveira e Ceila Santos, da revista Computerworld, com O futuro das telecomunicações. O Prêmio Embratel é a única forma de reconhecimento para a mídia especializada, disse Ceila.

Açougueiro e bibliotecário
Solange Calmon, da TV Senado, recebeu emocionada o prêmio de Responsabilidade Social das mãos de Zuenir Ventura. Ela concorria com duas reportagens na categoria, Casa Paulo Freire e Biblioteca T-Bone, e ganhou pela última, sobre a biblioteca montada por um açougueiro de Brasília. Lemos muito pouco. E eu ouvi isso de um açougueiro alfabetizado aos 18 anos, relata.

O prêmio de Reportagem Esportiva foi para Lúcio de Castro, repórter do Sportv que percorreu o Brasil exibindo diferentes formas de torcer durante a Copa do Mundo na série ?Os passos da paixão?. O escocês Andrew Downie, do The Daily Telegraph, recebeu o prêmio de Correspondente Estrangeiro com a reportagem Guardian of the stone age tribes.

Os prêmios regionais abordaram dramas sociais, em cidades grandes e no interior. Para a Região Norte, ganharam Orlando Farias e Castelo Branco, do Correio Amazonense, por O delírio da morte - os dois não conseguiram comparecer graças à crise nos aeroportos. Na Centro-Oeste, o prêmio foi para Ana Beatriz Magno, que já recebera o mesmo prêmio em 2003, do Correio Braziliense¸ por Órfãos de guerra.

Para a Região Nordeste, foram contemplados os jornalistas Ciara Carvalho, João Valadares, Cláudia Vasconcelos e Verônica Almeida, do Jornal do Commércio, de Pernambuco, com a matéria Retratos da infância. No Sul, ganharam Carlos Etchichury e Nilson Mariano, do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, com O retrato do Pampa. E no Sudeste, venceu a série 21 anos depois. As lições dos Cieps, de Selma Schimidt, Paulo Marqueiro e Ruben Berta, do jornal O Globo."

RETORNO - Imagem de hoje: Dustin Hoffman e Robert Redford no clássico "Todos os homens do presidente". Precisamos de filmes sobre as fraudes.

7 de dezembro de 2006



O CONFLITO TRATADO COM GRANDEZA

O Natal não existia antes do Natal. Hoje se faz a festa muitos dias antes da data: presentes, jantares, abraços, votos. Quando eu era criança (uns 200 anos atrás) o Natal era na noite de 24 e o dia seguinte inteiro. Presente, só no dia 25, de manhã. A grande ceia, com o peru festivo, salada de fruta, champagne, cerveja, uísque e vinho, reunia família e parentada ao redor da enorme mesa, à meia noite, na virada da véspera para o dia. Hoje, as pessoas, parece, se desvencilham dos compromissos natalinos, antecipando tudo.

O bom é que sobra tempo para o melhor da festa: os filmes de Natal. São todos maravilhosos. Por mais babaca e infeliz que seja o filme, se tiver luzinhas, presente embrulhado, Papai Noel e essas baboseiras, é tiro certo. O motivo é simples: não há nada mais artificial do que o Natal. Votos de paz e harmonia num mundo em guerra. Então o filme de Natal rema contra a corrente, destaca o conflito que emerge nesse momento. Por ser conflito em confronto com a festa oficial, todo filme de Natal é um deslumbre. Desde a obra-prima de Capra, A felicidade não se compra (It´s a wonderlful life), até Anjo de Vidro, de Chazz Palmintieri.

NARRATIVA - Devido ao excesso de grana e poder, os americanos e europeus dispõem de recursos técnicos e humanos para fazer o que querem como bem entendem. Foi assim que eles transformaram os filmes de Natal num gênero, que aborda o conflito em tempos que deveriam ser de harmonia. Não lhes falta o principal: escritores, roteiristas, que decifrem o enigma que é colocar algo na tela e que funcione como cinema, seja do tipo que for. Se você pega uma obra como Germinal, de Emile Zola, e dali tira um filme soberbo com Gérard Depardieu, todo mundo é capaz de enxergar uma representação das grandes greves das minas no século 19. Mas existe a visão de Zola, sua arte, sua narrativa. Nós, o que temos? Escritores magníficos, mas nos falta essa visão grandiosa da nação e do seu povo. Tudo aqui tem que ser desconstruído. Brasileiro não presta, dizemos o tempo todo para todo mundo.

GARRINCHA - Ruy Castro, por exemplo, escreveu livros maravilhosos como Chega de saudade, sobre a bossa nova, e a biografia de Nelson Rodrigues. Mas cometeu um livro como a biografia de Garrincha, onde a maior parte das páginas estão voltadas para a tragédia do alcoolismo. Ou seja, Garrincha bebia e morreu por isso, ponto. O resto fica em segundo plano, principalmente a grandeza do personagem. O filme A Estrela Solitária é mais do que isso: é crime hediondo. Nele, Garrincha trepa, ponto.

SOMBRA - Garrincha, que na visão de Joaquim Pedro era a Alegria do povo, é no livro de Ruy o fígado podre e, no filme, que é baseado no livro, o pau grande. É de lascar. O negócio é chafurdar na sombra, esquecendo que Garrincha significa o esplendor de uma época, junto com Pelé. Assim como Pelé não é ET (por isso o filme sobre ele se chama Pelé ETerno), Garrincha não era uma estrela solitária (entendi, é a estrela do Botafogo, ok, mas fica sendo a metáfora da solidão do personagem). Fazia parte de um grande time, jogava ao lado de grandes craques. Era a expressão de um conjunto, de uma sociedade, de uma nação vitoriosa, não um bebum que se suicidou à toa no álcool. Os americanos tratam seus personagens que caíram em desgraça com extrema generosidade, pois isso faz parte da sobrevivência de uma nação. Não se pode enterrar o país todos os dias como fazemos. Até o Bobby Darin, que era um cantor de segunda, ganhou magnífica cinebiografia. Por que Mané tem que aparecer trôpego se esfregando em tristes carnes em todas as cenas e dando sorrisos marotos de grande comedor?

BAIXARIA - Para mim essas baixarias estão na cabeça de quem escreve ou filma. Não se trata de esconder o conflito, mas tratar o conflito como algo humano, e não um caso sem solução. A desgraça pode ser redimida, o conflito pode ser tratado com menos brutalidade. Isso não se faz. No fundo, é o velho ódio contra o Brasil Soberano: é imperioso destruir o Brasil e tudo o que ele significou.

RETORNO - Na foto maior, Susan Sarandon à beira do suicídio em "Anjo de vidro", de Chazz Palmintieri (2004). Na menor, a alegria de Garrincha, a imagem que fica.

6 de dezembro de 2006



A ERA DO BOCEJO

Como todo mundo sabe tudo e não costuma escutar nada , basta tentar dizer alguma coisa para na sua frente surgir aquele vasto, inextinguível, titânico bocejo. O cara primeiro vai desenhando na boca o que virá em segundos. Aí ele vai se abrindo, se abrindo, até escancarar as mandíbulas e projetar um jorro de ar quente sobre você. Não satisfeito, como as articulações fazem grande esforço, é preciso de uma força extra para que o queixo volte ao normal. Isso implica um final apocalíptico, com um háhaaa vindo do fundo da alma. A mão serve só para disfarçar. O bocejante ameaça tapar o bocejo com a mão, resquício atávico de alguma ancestralidade chamada boas maneiras ou educação. Mas a mão desiste no meio do caminho e acaba reforçando o bocejo com o braço dando estirões finais para deixar bem explícito que a pessoa está cagando e andando para qualquer manifestação do Outro, mesmo que seja algum monossílabo. É a maneira de acabar com a intervenção antes que você esboce uma palavra. O interlocutor te brinda com um bocejo para dizer quem manda naquela conversa.

GOLPE - O bocejo de casais é também bastante comum. Os dois estão agarrados em frente a um grupo ou alguma pobre vítima. Como são um casal e tudo está certo e nada pode mudar, ninguém tem nada a fazer ali a não ser o próprio casal, então o cara ou ela esboçam um tremendo bocejo, para avisar que a relação está completa e fechada nela mesma. Existe também o pós bocejo, que pode ser mais demolidor do que o próprio. Com o corpo todo transido pelo monumental gesto de indiferença e desprezo (jamais de sono, se você está com sono você vai dormir, não precisa ficar bocejando), e depois do golpe final do hããã de ar quente, a cabeça pode ser jogada para frente em sinal de extrema gargalhada. Isso se o interlocutor, remando contra a corrente, conseguiu dizer algo inteligível, já que lutou bravamente contra o golpe de barbárie do qual foi vítima. O pós bocejo fecha a conta com um gesto sinistro da cabeça, um olhar de mofa, uma interjeição de exclusão absoluta. Está feito o serviço. Todos voltam para suas solidões.

BIFAS - Quem boceja em público, de maneira explícita, quer dizer que nada tem a ver com o ambiente, que está acima dele, que seria melhor estar na cama e não ali naquela joça, que as pessoas ao redor não interessam e que é preciso todo mundo deixar de ser idiota. Bocejar em público é a facada certeira contra o convívio humano. Mas é natural, dirão. Faz parte da vida saudável,outros vão acorrer com a explicação. É preciso expulsar o ar viciado dos pulmões, os que ficam no fundo do poço. Sim, mas na nossa cara? Para enfrentar essa praga é bom armar-se de boa vontade e aplicar uns tabefes em quem fica bocejando. Uns taponas, uma bifas, uns pé de oreia, umas arraias. Vai bocejar no banheiro, seu.

FOTOGRAFIA - Vivemos na Era do Bocejo porque tudo já foi dito e explicado. Aos sobreviventes só resta admirar, comprar, consumir e comentar, bocejando: que filme! a fo-to-gra-fiaaaa!!! Sempre me pergunto o que quer dizer "a fotografia" nos filmes. O filme é mais ou menos, mas a-fo-to-gra-fia... O cinema é a verdade 24 vezes por segundo, disse Godard. Cinema é a ilusão da fotografia em movimento. Todo filme é feito de fotogramas, agora na era digital é pixel, que sei eu. Mas você elogia a fotografia de um fotógrafo, não de um cineasta. Duvido que alguém diga para um filmaker: que fotografia! Ele vai ficar pasmo. Sim, trata-se de um filme, O filme é a imagem em movimento, só pode ter fotografia. Do que você está falando? Ah, as belas paisagens? Ah, o claro-escuro? Ah, o contraste, o bom gosto do enquadramento, a eficiência do design visual, ah, sim, pode ser. Mas me diga uma coisa. O que você achou do filme, sem citar a fotografia? Ou se citar, vá à frase seguinte. Ei, não boceje.

RETORNO - Imagem de hoje: Danny de Vito, como o policial em "Quem não matou Mona", de Nick Gomez (2000). Um filme sobre a indiferença.

5 de dezembro de 2006




ESTÃO TIRANDO O COURO

O problema não são os medicamentos que os motoristas tomam para ficar acordados, mas sim as condições escravas de trabalho. A mídia foca a culpa na vítima e deixa livre quem explora a mão-de-obra abundante no Brasil. Repórter que chegou de uma estadia de um ano nos Estados Unidos me confidencia que, em São Paulo, teve editora que ofereceu 14 reais a lauda para uma reportagem. Ou seja, em 20 mil caracteres, que é um assombro de tamanho, mais de 15 laudas, você consegue uns 200 pilas, o que nem dá para pagar as ligações. Mesmo com a Justiça do Trabalho funcionando e pelo que me dizem, muitas vezes de modo satisfatório, o fato é que o desplante tomou conta e a ordem é arrancar o couro dos brasileiros, à mercê de súcias de nababos estatais, que furam os tetos salariais com fortunas todo mês. Por muito menos se fez a revolução de 30, que não por acaso foi desconstruída pela historiografia oficialesca, que sob o manto do politicamente correto enterrou uma experiência política que propôs e implantou um sistema que buscava o equilíbrio social.

EMPREGO - Está quase impossível conseguir emprego decente. Milhões de pessoas se atiram nas ruas para vender qualquer coisa. Antes eram os miseráveis que ficavam nos postos do nosso capitalismo de farol. Hoje são as classes médias. A repressão baixa sobre os ambulantes, mas qual o jeito de levar algum para casa no final do dia a não ser vendendo alguma porcaria chinesa para os que passam? Acabaram com a indústria, os empregos e colocaram tudo na mão do terceiro mundo asiático, que leva os craques do Figueirense, aqui de Floripa, e de outros times. Os mais cobiçados vão para a Europa. Enquanto isso, aumenta o crime. Ontem, bem no centro da capital catarinenses, os caras assaltaram o Besc, o banco estadual, depois foram a pé até o Banco do Brasil, que fica a 150 metros e também levaram dinheiro dos caixas. Estavam com reféns e a polícia disse que não podia fazer nada. O povo gritava para os policiais atirarem, em vão. Está todo mundo desarmado e vai ficar ainda mais. É proibido ter arma no Brasil, a não ser a bandidagem e os policiais. Fica uma moleza pegar a grana dos cidadãos. Não tem policial suficiente para o descalabro.

BIRRAS - Mas o grande assunto é o novo ministério. As negociatas, as concessões, as ameaças, as birras. E tem as tais reformas. Nada pode ser reformado com um sistema desses, em que os tubarões tomam conta. Tudo é feito para cair no colo deles. Não temos opinião pública, espírito público, homens públicos. Temos uma grande privada. Lembro um documentário sobre o quarto centenário de São Paulo, que vi há tempos. Filmaram o povo. Todo bem vestido, nutrido, pacífico. Os caras usavam ternos, as mulheres vestidos caprichados. Era povão mesmo, pessoas pobres, mas havia mais equilíbrio social. Não era o paraíso, as contradições sempre existiram no Brasil. Mas a época dava de dez na nossa. Hélcio Toth foi numa exposição em que aparece São Paulo muito antiga. Lá fotografou gente de agora no ambiente do passado. O resultado é impressionante (imagem desta edição). Como um cara como o Hélcio Toth, que é sem dúvida um dos grandes fotógrafos do nosso tempo, precisa se incomodar para pedir emprego nos jornais? Deveria estar sendo caçado pelas propostas se houvesse mídia correta.

RETORNO - O escritor amazônico/brasileiro Euclides Farias diz que agora é leitor assíduo do Diário da Fonte. Vou ter que caprichar!

3 de dezembro de 2006



TODO MUNDO ESTÁ POSSESSO

Nei Duclós


Todo mundo está possesso
Ficar bravo virou moda
Cumprimento é no tabefe
Despedida é rogar praga

Todo mundo se incomoda
Conviver agora é guerra
Um aceno é puro assédio
Qualquer coisa te processo

Todo mundo tem a manha
Conversar é uma tragédia
O debate é na porrada
Um favor custa uma nota

Todo mundo sabe tudo
Ninguém aprende com nada
Ficar na sua é o que pega
Quem manda ser tão babaca

Todo mundo se celebra
Cara, eu sou mesmo foda
Amor é burro de carga
Gostar é vaca no brejo

Todo mundo se acha fera
Só o poder possui graça
Pedir desculpa, nem morto
Pedir licença é comédia

Todo mundo está no topo
A base perdeu a glória
De cima vemos miséria
Do alto damos as cartas

Todo mundo salta fora
Socorro já nem se fala
Amizade é coisa velha
Coração feito de pedra

Todo mundo se pergunta
Os motivos da tragédia
Os espinhos dessa cerca
A fúria da nossa época

Todo mundo se responde:
aqui só tem inocente
Os outros é que nos jogam
No fosso que nos carrega

RETORNO - Imagem de hoje: um bósnio e um sérvio, antes cidadãos de um mesmo país, presos numa trincheira minada, pedem socorro no filme "Terra de Ninguém" (No man´s land), filme belga dirigido por Danis Tanovic e lançado em 2001.