30 de setembro de 2004

O ÚLTIMO DUELO


O goleiro é um animal enjaulado. Preso pela regra e pela ameaça da derrota, ele usa o pulo para diminuir o sofrimento, jamais para inaugurar a fuga. Por mais que se movimente, sempre volta ao mesmo jugo. Tem apenas uma arma de defesa, o reflexo. O resto, como o golpe de vista, é loteria. A vida vale pelos gols que toma e não pelos que salva. Sua humilhação suprema é levar um chute certeiro pelo meio dos braços ou das pernas. O frango, aquele lance em que a bola chocha cisca o chão de maneira arisca e é caçada em vão, é a sua punição extrema. Um frango existe quando a bola dribla o goleiro e cobre a área de vergonha. Nem a ilusão de que exista de fato o morrinho artilheiro é capaz de redimir alguém de um frango. Mas há um tipo de jogo que faz justiça a esses condenados. Ele acontece cara a cara, ao anoitecer.

DESAFIO - Alguns goleiros, como Rogério, do São Paulo, fingem que são livres e vão chutar faltas. Outros, como Higuita, não se conformam em ser testemunha a maior parte do tempo. Mas assim é o goleiro: um bicho enjaulado que se rebela e que, sendo o único a poder jogar com as mãos, tem, por vingança, o chute mais potente, que atravessa o campo. Seu objetivo é acertar o seu semelhante, que no outro lado do jogo, compartilha a mesma maldição. Por isso o jogo da infância, o gol a gol, é único no seu confronto entre duas pessoas que jamais participam de verdade de um time, que é feito de zagueiros, volantes, atacantes, pontas, jamais de criaturas que têm licença para voar. O gol a gol é uma espécie de vingança para quem nasce goleiro e pode, ao mesmo tempo, fazer gols, um atrás do outro, sem que nada nem ninguém interfira. O gol a gol é um duelo ao entardecer, quando todos estão exaustos e só sobra fôlego para quem é goleiro. Esse é o momento do desempate, do desenlace do dia inteiro dedicado ao futebol, ou seja, à arte improvável de combinar retas com curvas e encaixar esferas em retângulos. O que não foi conseguido a tarde toda pode ser definitivo agora, que o sol praticamente se foi e o Cruzeiro do Sul nos cobre com sua madeira de luzes poderosas. O líder, que não tem posição, pois está sempre no centro dos acontecimentos, define as regras. Tira o par ou ímpar e começam as apostas. Os goleiros então se esfacelam nas pedras para ganhar aquela partida, pois é o momento que possuem para apagar um frango, subir na escala da tribo, poder contar vantagem mais tarde, diferenciar-se da situação de mero coadjuvante, contrariar o que foi comum o tempo todo, e já não há mais tempo, pois acaba-se o dia e a infância.

LUA - No subúrbio, na pequena cidade, não existe luz sobrando, apesar do excesso de estrelas. O breu então toma conta do campo (conjunto de terra atirada a esmo) e só se sobressai a bola, lua branca pequena e selvagem, que faz ruído de lua branca. Quando a partida segue, com todos os envolvidos, é a hora de marcar pesado, tirar a limpo aquela rasteira, atacar por baixo e por cima. Quando é apenas um gol a gol, é o momento da gargalhada. Pois é tragédia apenas entre os dois contendores, e comédia para o resto. Ninguém leva a sério um goleiro fazendo gol. Por isso essa modalidade não existe em parte alguma, nem em olimpíada e, desconfio, nem mais naqueles ermos perdidos, que foram arrastados para o abismo do Nada. Deveria ter continuado o gol a gol perdido no último tiro. Deveria haver uma nova chance. Porque a noite é imensa, interminável e quando amanhecer já seremos homens, esses seres sem graça que na frente da televisão olham com desprezo os goleiros e seus frangos, os goleiros e seus pulos, os goleiros e sua grande vocação para a eternidade. Quem viveu naquele tempo, sabe. Fui goleiro, por isso sou eterno. Por isso ainda estou pronto para o duelo.

29 de setembro de 2004

AS PROFISSÕES EXTINTAS

O jornalismo acabou no Brasil em 1979 (pelo menos como profissão razoavelmente bem remunerada, com certa independência e acessível a um grande número de pessoas), quando houve gigantesca greve de jornalistas em São Paulo (lugar com o maior número de profissionais e os veículos mais sólidos e bem sucedidos) sem o apoio do poderoso sindicato dos gráficos. Os patrões então descobriram que poderiam fazer jornais sem jornalistas. Tenho medo que nossa greve seja noticiada amanhã, disse Emir Macedo, veterano da redação da Folha, profecia que se concretizou e foi incluída na seção Frases no dia seguinte. Inúmeras outras profissões já se extinguiram. Duas correm grave risco: a de cobrador de ônibus e a dos bancários.

PRAIA - Greve é instrumento poderoso que perdeu a força ao longo dos séculos. Tornou-se o álibi perfeito para o sucateamento de profissões. Não se trata aqui de acusar o grevismo, mas a metodologia irremovível dos movimentos, sempre a mesma: uma cúpula decide pela maioria (que entra por convencimento ou pressão), aproveitando a demanda da categoria; faz-se os piquetes para evitar o furagrevismo e constrói-se carreiras políticas nas vitórias parciais ou na inflexibilidade das posições. No sistema produtivo, há sempre um estrago econômico. No caso da greve dos professores, o que há é prejuízo para todos, professores, alunos, escolas, governos, gerações, país. Não se encontra uma outra forma de negociação a não ser pela ruptura. A palavra greve para designar movimento operário surgiu no século 19 na França. Victor Hugo nos ensina que na praça da Grève (que significa praia) do Sena, reuniam-se normalmente os desempregados à cata do que fazer. Quando havia movimento, os operários iam até a praça para reivindicar (faire la grève, se dizia). E quanto à greve da Justiça, que já é lenta normalmente, e que agora as previsões apontam para três anos de demora do que já era demorado? Qualquer governo é provisório e está se lixando para o que poderá acontecer no futuro. O importante é arrochar os cofres, impedir que as lideranças se sobressaiam e não dar o braço a torcer por motivos pífios, pessoais ou políticos. A greve se suicida quando pára o trânsito, por exemplo, indo contra a multidão que fica prejudicada. Reclamei isso uma vez em relação ao que faziam na Avenida Paulista e em outros locais. Mas a Paulista só tem milionário, me disse um idiota. Respondi que pela avenida passava uma parte enorme da população, a pé, de ônibus ou de carro. Em vão. Contra a certeza não há argumento.

COLUNISMO - A Febraban agora prepara uma armadilha para os bancários em greve: intensificou o uso da internet e de rotas alternativas, como as lotéricas, para furar o bloqueio do paredismo. Isso torna o serviço bancário cada vez mais impessoal e perigoso, pois como menos gente no atendimento, que escasseia com a centralização dos processos, para quem você irá reclamar quando lhe tungam a conta? O que salta aos olhos é que haja greve no mais bem sucedido setor da economia brasileiro. Ouvi empresário dizer um dia que errou ao montar um negócio, deveria era inaugurar uma agência bancária. Contrato meia dúzia e faturo dez vezes mais sem produzir nada, dizia ele. Não está saindo dinheiro pelo ladrão? Cada vez entendo menos de economia e gosto menos dos especialistas, com suas idas e vindas conforme os interesses que defendem. O colunista de economia é o mais arrogante profissional do jornalismo, pois mexe com dados que dominam nossa vida e não costuma admitir erros, já que lida com números. Precisamos de um Nelson Rodrigues na economia, alguém que esculache esse mundo de fancaria e diga um pouco da verdade, que sempre fica muito clara quando a gente lida com bancos. Por que existe o chamado glamour no noticiário econômico e tanta barbárie na vitória dos juros e dos prazos inadiáveis?

COBRADORES - Aqui em Floripa tem ônibus direto, que dispensa cobradores, já que todos pagam em caixas à parte, fora do ônibus. Mas eles estão lá, firmes. Gosto da presença deles, pois me incomoda um monte de gente sem ninguém que olhe por elas. Esses dias alguém muito bêbado foi fazendo discurso, cantando e desenvolvendo baixarias a maior parte do tempo. O cobrador não fez nada. Pensei: o cobrador não cobra mais, está lá para acompanhar o motorista. Não se responsabiliza pelo que ocorre dentro do veículo. Dificilmente sabe o que está acontecendo no sistema de transporte, portanto nunca dá informações. Não seria a hora de reciclar um pouco a profissão? Ou seria o caso de retomar a essência da atividade? Perguntas que também servem ao jornalismo.

28 de setembro de 2004

A USURA DAS IDÉIAS


Fonte no alto da montanha que forma córregos em direção aos rios e ao mar é a imagem mais verdadeira do que podemos fazer brotar todos os dias. As idéias são a corrente que seguem seu caminho por força da gravidade. Não se pode admitir, diante dessa metáfora, uma visão mesquinha do debate, um apropriar-se permanente do que nasce do Outro, uma vontade de clonar sem dar crédito, um enterrar vivo que a todos enterra. Como a moeda, que precisa de consenso da percepção de todos para que o valor a ela atribuído funcione, o pensamento também depende de um assentimento geral em relação às origens do que é dito e escrito. Senão haverá concentração excessiva em alguns medalhões carimbados e a cultura ficará restrita ao que está no mapa e jamais ao que realmente existe.

MARATONA - Revi o filme iraniano Filhos do Paraiso (1997, dirigido por Majid Majidi) sobre a menina que dividia o tênis com o irmão. Fiquei impressionado com uma coisa: a ligação entre o filme e as Olimpíadas de Atenas. Vanderlei Cordeiro de Lima queria chegar ao primeiro lugar, foi empurrado, se desvencilhou, lutou e chegou em terceiro. O menino do filme queria chegar em terceiro lugar, porque essa posição garantia o que mais cobiçava, um tênis novo. Quando estava no controle da situação, garantindo seu objetivo, foi empurrado. Caiu, conseguiu se levantar e fez tanta força que acabou em primeiro lugar, para o seu desespero, pois vencer significava ganhar uma taça e não um tênis. Vanderlei tornou-se vitorioso ao ser empurrado para o terceiro lugar. O menino sentiu-se derrotado ao ganhar a maratona. As coincidências e cruzamentos entre duas histórias, uma de ficção e outra real, nos carrega para o mundo das representações. Os dois eventos seguem roteiros pré-determinados, na ficção até o seu final, e na a realidade até o momento em que o maratonista é empurrado para fora da pista. O que Vanderlei fez foi improvisar e perdeu saindo-se vitorioso. O que o menino fez foi seguir o roteiro e venceu sentindo-se derrotado. O que surpreende é a capacidade do cineasta de imaginar o que poderia ser real, e a força de Vanderlei que consegue nos fazer ver o filme de outra maneira. O filme, que era datado, visto e sabido, se transforma. A corrida nas Olimpíadas, que estava sacramentada com todas as letras como a apoteose do evento, tornou-se outra coisa. A criação a tudo contamina, como a fonte que desce da montanha e banha nosso sonho exausto, mas ainda vivo.

RESGATE - Desconheço o destino do que coloco aqui, a não ser por alguns retornos, todos eles gratificantes. Mas costumo fazer um balanço de tudo o que é criado neste espaço e que um dia vai gerar livros, para que as bibliotecas abracem esta vivência online. Posso garantir que são abslotumente originais algumas idéias lançadas neste Diário. Uma delas é esta: Para que o país continue sendo saqueado, a linguagem precisa se deslocar da nacionalidade, portanto, do sentido. Esse é o papel da literatura que se consolida a partir da chamada globalização, ou da entrega do Brasil aos estrangeiros (30/08/04). Outra: A invenção literária permanente costuma refletir o desespero, pois é do caos que ela trata, postura gerada pelo desligamento dos cânones. Vemos isso em Kafka, para pegar o exemplo mais notório. Mas o narrador que é persona do autor diante da indiferença e brutalidade do mundo, é obrigado a reconstruir a linguagem numa nova ordenação do caos. O resultado é uma narrativa sinistra, que faz parte do desencanto econômico e político da Europa que gerou a barbárie de duas guerras. Esse parece ser o personagem favorito da literatura brasileira de hoje. O viajante de João Gilberto Noll em vários dos seus livros, o pesquisador do romance Fantasma, de José Castello, o detetive Cid Espigão de Tabajara Ruas são agentes dessa reordenação da linguagem que veio á tona depois de assassinada. Isso se chama liberdade, mas também está profundamente ligado à ditadura que nos surpreendeu, criou e ainda nos mantém numa espiral de insônia. (14/ 9). O link entre John Reed e Chaplin, entre outras idéias, fazem deste espaço uma fonte brasileira de idéias para uso geral, desde que se dê nome à autoria. Há uma convivência forçada de universos paralelos, que ao não se tocarem provocam faíscas de sofrimento. Isso cria um ambiente estranho: jamais reivindique nada, pois te receberão com um sorrisinho maroto, como se você fosse um mendigo na fartura de uma festa a que não foi convidado. Citar sempre, citar todos, citar até o osso: isso sim é que faz bem. Não dói nem tira lasca.

RETORNO - Virson Holderbaum me envia mais um capítulo de suas memórias, literatura de fonte limpíssima, única na construção de uma visão original do Mundo Perdido (anos 40 e 50). Zelia Leal me envia generoso e-mail e conta história terrível de preconceito na grande mídia. Elisa Santos agradece a referência a ela aqui no DF e retira-se para merecida aposentadoria. Camila, estudante de Direito de Lajeado, RS, troca mensagens comigo sobre a ligação entre Weber e Getúlio Vargas. Recebo Rascunho de setembro que traz Noll na capa. E quando aportam nos cinemas os filmes com Miguel Ramos?

27 de setembro de 2004

OS FIOS SOLTOS DA NARRATIVA


Contar uma história é uma arte em desuso. A literatura voltou-se excessivamente para o próprio umbigo e não conta mais com a sua origem, o apoio da conversa ao redor do fogo, já que o fogo (a luminosidade digital e televisiva) tornou-se a própria narração. Mudos, contemplamos qualquer coisa que é inventada indefinidamente. Mas como nas histórias criadas na rua no quadro do Fantástico, tudo o que é solto some no ar (e empobrece pela falta de ligação com a vivência humana). O que resta são técnicas de narrar, que ganham síntese absoluta nos casos de Luis Fernando Veríssimo (onde cada personagem é definido em poucas palavras, a começar pelo nome escolhido pelo autor) ou de Aguinaldo Silva, que em Senhora do Destino usa a técnica tradicional de soltar pessoas aparentemente sem nenhuma ligação entre si e que acabam se cruzando ao longo da história. Isso amarra a narrativa ao pequeno universo que ele pretende desenvolver.

PENSATAS - O termo pensata, tão comum no jornalismo de resenhas, veio de uma comédia italiana com Totó e Pepino de Felippo, como já nos ensinou Mino Carta. Surgiu como deboche e hoje é levada a sério. A pensata nasce da necessidade de preencher espaços na mídia impressa e, dependendo do resenhista, cria vida própria, muitas vezes desvinculada do acervo acadêmico que se debruça profundamente sobre o fazer literário. Quando são acadêmicos que fazem resenhas, espera-se que exista um mínimo de metodologia e geração de pensamento original. O resultado é híbrido. Amarrados pelo rigor da Universidade, que obriga a definição de parâmetros e a sintonia total entre o que se escreve e as referências clássicas, o resenhista especialista nem sempre se sai bem na tarefa. Existem outros limites fora do câmpus, bem no miolo da vitrina jornalística: é preciso referendar o colega que publica, pagar o mico da convivência obrigatória. É difícil desvincular as análises de qualquer outro interesse aparente, para que o texto tenha credibilidade, senão para o público maior, pelo menos entre os pares. Na parte dos jornalistas que fazem resenhas, o resultado também é híbrido. Sem as ferramentas em uso e em contínua mutação no meio universitário, diante do vasto espaço a ser preenchido por dever de ofício ou de contrato, o jornalista que aborda o conteúdo dos livros prefere tomar um caminho que fica entre o rigor da análise e a atratividade da mídia. Poucos autores de resenhas fogem dessa cela. Escrever com a língua solta e ousar criar novos conceitos ou tirar conclusões originais é para poucos. Do outro lado do balcão, há a mútua consideração pelo trabalho alheio, pois quem analisa é autor de romance e vice-versa. Nessa roda de divulgação, perde o leitor, que fica sem saber o que cada um realmente pensa.

ARQUÉTIPOS - Quais são os arquétipos mais comuns da narrativa cinematográfica, hoje, pelo menos no cinema de massa, veiculado pela TV aberta (que sempre reproduz o que foi veiculado nos canais pagos, com pequena diferença de tempo, o que gera uma pergunta: paga-se apenas para ver com antecedência os filmes que vão ganhar o mundo?)? Outro parêntese: veiculação obrigatória de filmes nacionais em cinemas para mim é dose, mas nas redes de TV abertas deveria ser implantada. Tantos filmes brasileiros que vão para a geladeira depois de célere carreira deveriam ocupar o horário nobre, no lugar das baixarias de praxe. Voltemos aos arquétipos. Um deles: o serial killer tem um vínculo poderoso com o detetive, que está no desvio da profissão e vê na resolução do caso a tábua de salvação. Outro: família muito feliz na primeira seqüência está prestes a enfrentar uma barra pesada no envolvimento com o crime, como vítima. Mais um: sujeito perde a memória e tenta encontrar sua verdadeira identidade. Querem mais? Herói vinga-se de um revés com os criminosos e viaja para algum não-país para fazer a justiça que as instituições do Estado lhe negam. Com esses recursos, a narrativa fica cada mais repetitiva e medíocre. O cinema americano é quase todo voltado para a segunda chance. País de formação religiosa que não inclui o perdão (daí vem tantos filmes contra a igreja católica, entidade que eles não conseguem entender) os cidadãos americanos ficam num beco sem saída quando se transformam em perdedores. O cinema então os devolve para a vida normal, aquela situação em que eles tornam-se novamente vencedores. Na América, a perda é ferramenta de humanização dos personagens. Quando eles voltam, estão marcados, prontos para seguir em frente com outra persona, já que a original não poderá mais ser resgatada. Mas a radicalidade da segunda chance só é completa no conto O Duelo, de Guimarães Rosa, transformado em filme, a obra-prima de Roberto Santos, A hora e a vez de Augusto Matraga. O anti-herói é reduzido realmente a pó e só consegue uma revanche quando não possui mais nenhum vínculo com a situação anterior. O final é antológico: Depois, morreu. Somos criaturas com data de validade. A segunda chance, assim como qualquer vitória, é provisória. A não ser que seja transferida para semelhantes ou descendentes. O Outro é a verdadeira salvação.

NOVELA - Aguinaldo Silva, que é um romancista competente, faz gato e sapato na sua atual novela da Globo. A anos luz da terrível Celebridade, que o antecedeu, o autor conseguiu, com a ajuda de grandes atores, criar alguns espaços de excelência na narrativa, apesar de, quase toda ela, ser o que toda novela global é, uma chatice. José Wilker e Raul Cortez estão em papéis e cenas antológicas. Ioná Magalhães, infelizmente, está sub-aproveitada, assim como o grande Flavio Migliaccio. E Gloria Menezes, na caricata baronesa, consegue superar-se. O forte da novela é a amarração de histórias individuais que aparentemente não possuem ligação. Mas o falso sotaque nordestino, a vilania explícita que não convence e os maneirismos de galãs colocam tudo a perder.

26 de setembro de 2004

O PAÍS INSUPORTÁVEL


Uma coisa não me sai da cabeça: a de que os cidadãos brasileiros, desesperados com o país onde vivem, aproveitam as más condições das estradas e o caos do trânsito para praticar suicídio em massa. É a forma mais rápida e eficaz de escapar da realidade que nos é imposta. Aqueles que colocam o som no mais alto grau de decibéis de sua aparelhagem em carros de capô levantado na praia, ou mesmo que fazem propaganda de qualquer coisa, política ou não, em níveis criminosos, compartilham do mesmo sentimento: atordoam-se a si e os outros para criar um outro estágio de consciência, ensurdecendo-se diante do horror para privatizar a loucura que é coletiva. No fundo querem ser salvos: exigem que parem esses motores e essa barulheira, apelam para que os outros os tirem do pesadelo. Mas somos insensíveis: agüentamos calados e tapamos os ouvidos.

LOIRAS - Ou até mesmo, como faz Fernando Gabeira na Folha de ontem, encontram argumentos positivos para justificar qualquer coisa. Se fôssemos uma civilização fundamentalista islâmica, diz o parlamentar e escritor, estaríamos todos proibidos. Ou seja, colocamos como contraponto à situação insuportável algo ainda pior (na visão de Gabeira, que engrossa o coro pós 11 de setembro contra o islamismo) para que encaremos com galhardia o que nos faz o último país sobre a terra. Na Folha de hoje, a contradição entre o que somos e o que os outros conseguem ser está explícita em dois cadernos. Enquanto o magnífico Mais!, entre inúmeros textos imperdíveis, traz uma vigorosa entrevista do dramaturgo Tony Kushner (que nos deslumbrou com o roteiro da sua peça Anjos na América, vencedor absoluto do Grammy americano) na Ilustrada os jornalistas se esforçam em transformar a miséria na TV em algo pensável. A capa do suplemento traz um artigo sobre a decadência das loiras na TV e a comentarista Bia Abramo tentar ver com dignidade uma dessas coisas que assolam a programação de domingo, nesse caso, na Band à tarde. Tony Kushner bate impiedosamente m Bush, enquanto nós sintonizamos a perda absoluta de vigor cívico, artístico e político. O que temos de melhor não sobressai na mídia. Ontem, o tal cantor Daniel estava no programa vespertino da Record (que tinha crianças imitando adultos o tempo todo no palco, num espetáculo de indizível estupor) e no Ratinho à noite, onde o tal Daniel fazia dueto com talentos infantis que imitavam seu estilo horrendo de interpretar. O que passamos para nossas crianças é um mundo cultural deformado. O que servimos ao público adulto leitor é um cardápio intragável.

ESCOLINHAS - O que o Mais! traz de bom, infelizmente, é a cultura estrangeira. Ficamos sem nada a oferecer, a não ser restos de um imaginário que mistura espetáculo de bordel com exploração pura e simples de analfabetismo crônico. Programas de perguntas e respostas atestam nossa indizível mediocridade. Até quando? Até, talvez, baixarem de vez a censura, pois para isso que serve tanta apelação: para provar que numa ditadura como a atual não é possível existir a chance de nos expressar de maneira livre. Brasileiro é tão bonzinho, mas não presta: esse é o recado permanente. Por isso tanto subemprego e educação desmoralizada (vejam quantos programinhas humorísticos que achincalham as escolas). Outras coisa sempre a ser desmoralizada é a atividade política. Na Praça da Alegria, do SBT, um personagem corrupto e ladrão faz a festa, colocando todos os políticos sob o mesmo teto. Fica assim mais fácil conformar-se com César Maia (que surgiu pela mão generosa de Brizola) e não acreditar em Jandira Feghali, a mais articulada, inteligente e contundente parlamentar do país, que deveria ser a próxima prefeita do Rio. Fica fácil votar eternamente contra o Maluf (que está abaixo da crítica) para eleger nulidades com a dançarina e cantriz Martha Suplicy ou o funéreo Serra. Escolas públicas de alto nível geraram uma multidão de especialistas maravilhosos que fizeram a fama do país (gestaram também traidores, mas isso faz parte do processo, pois como vamos saber quem será o próximo a fazer carreira com dinheiro público e depois cuspir no prato em que comeu?). Escola de qualidade tem a ver com políticos com grandeza. Quando as duas coisas estão sendo achincalhadas na TV, é hora de ficar alerta. Afiar o espírito crítico e exigir que os mesquinhos e arrogantes saiam da programação e da mídia e deixem o espaço livre para a inteligência e a ética.

25 de setembro de 2004

O LIVRE PENSAR NA DITADURA

O pensamento granítico de direita está hegemônico na mídia, principalmente na Internet. Há manifestações gerais sobre a necessidade de eliminar moradores de rua (vi isso em comentários de blog), de achar que todo muçulmano é terrorista potencial (como confessou Gerald Thomas) e que roubar faz parte da política e não tem importância, desde que se faça alguma coisa (ouvi isso ao vivo esses dias). Como a direita é um camaleão eficaz, a moda agora é desmoralizar o pensamento progressista confundindo-o com os chamados politicamente corretos (estes, são apenas mais um aspecto, bem disfarçado, de direita). O mais impressionante é achar que não existe mais direita ou esquerda. Esquerda não sei se existe, mas direita é o que mais temos, facilitada pela ditadura em que vivemos.

DISNEYLANDIA - O riograndense Cristóvão Feil, sociólogo e ensaísta, publicou na agência Carta Maior uma bomba: o artigo Disneylandia de bombachas. Partindo de um fato, o de que o movimento tradicionalista é uma representação criada por jovens de classe média na era Vargas, Feil desanca com o seu Estado numa ansiedade que só pode ser entendida como vontade de tornar-se o que não é, um estrangeiro cosmopolita acima das veleidades rurais gaúchas, que o cerca por todos os lados. Vejam as palavras que ele escolheu para definir o Rio Grande do Sul: ideário rude, pastoril cenário austral brasileiro, charqueadas da ignorância. A síntese da sua crítica está no final do texto: Uma mega disneylandia de bombachas é a aspiração mais legítima do tradicionalismo de espetáculo. A estância-fetiche como sagração da vida boa, e o gaúcho, qual quixote temporão, se defendendo na coxilha da vida com um peleguinho já deslanado e a ferrugenta espada do tradicionalismo. Encaro o desabafo, vestido de argumentação científica, do autor como uma reação de alguém que prefere o mundo urbano do Estado livre do assalto do tradicionalismo em seus redutos ditos civilizados. Uma porção de Porto Alegre busca uma identidade própria de capital. Já esteve voltada para o Rio até os anos 50, quando muitos locais se diferenciavam do resto dos conterrâneos forçando um pouco o final das palavras, num chiado charmoso inspirado na fala carioca. Tornou-se bairro de Salvador nos anos 60, quando surgiu o dialeto trilegal. Hoje, com o Brasil soberano sucateado, busca inspiração fora das fronteiras. Londres, Paris, Nova York: qualquer cidade importante serve para traçar o perfil do riograndense que precisa escapar do tradicionalismo. Cumpre a esse intelectual fazer uma crítica do movimento que toma conta das ruas, das festas, das mentes e das crianças. Mas não precisa negar a própria origem, sentir vergonha do que foi construído na sua terra e simplesmente querer detonar as manifestações populares que conquistaram o povo e possuem uma ligação poderosa com a História, mesmo que essa História, como todas as outras, seja também uma representação. Não precisa sentir vergonha, Feil. Faça resenhas críticas de autores estrangeiros e pose de grande intelectual urbano. Ninguém vai te chamar de grosso. Mas não derreta inutilmente sua bílis contra as criaturas que encontram numa vestimenta, numa dança, num churrasco e numa poesia a alegria que lhe é negada pelos donos do poder e da verdade. E não use as palavras de Joseph Love só para confirmar seus ataques. Descubra em Love a grande admiração do brazilianista pela terra que você nega. Fica feio, Feil, distorcer o que os livros nos trazem de mais precioso. E quem disse que o tradicionalismo gaúcho despreza ou ignora Érico Verissimo? O Continente, a obra-prima do grande escritor, é a Bíblia da gauchada, tchê!

PASSOS - O que tem a ver tudo isso com o pensamento de direita? Tudo. O esnobismo pseudo-intelectual, a vontade de arrancar a própria pele e rosto, procurar outra persona fora das fronteiras, fazer joguinho de gato e rato de identidades para parecer o que não se é, deturpar os sentimentos populares, fingir-se de inglês, polonês, americano, tudo isso é isca para grandes verbas públicas desviadas dos impostos. Tudo isso é ditadura civil. Portanto bota o assado na brasa, serve um arroz carreteiro, capricha no chimarrão que vou declamar um poema, de preferência de Jayme Caetano Braun, e vou pedir a alguém afinado que me cante um legítimo Noel Guarany. Pode ser aquele que diz: eu vejo um rio que murmura, um caíque pescador. Silêncio! Meu pai caminha sobre as águas. No meio da escuridão escuto passos. São nossos ancestrais que lutaram pelo país e que foram não só rurais, mas urbanos cosmopolitas de verdade, que criaram um ambiente onde medraram as idéias da modernidade, não apenas as de Auguste Comte. Lugar de debate franco e aberto, de pessoas letradas e muitas delas geniais. Achar que o Rio Grande é uma cavalgadura é típico de quem desconhece tudo, mas adora agarrar-se aos preconceitos para desancar o que é legítimo, mesmo que não contenha as pseudo-verdades que orientam a sociologia de araque. Quem quiser ler o artigo, que procure. Não vou colocar link nenhum.

RETORNO - E mais um viva para a Semana Farroupilha, que se encerra hoje.

24 de setembro de 2004

O OLHAR ESTRANGEIRO E O JORNALISMO ENGAJADO


Gosto de brazilianistas, especialmente de Joseph Love e Stanley Hilton, historiadores aprofundados que destrincharam eventos desprezados por aqui. Mas há a besteirada de praxe quando se trata de pessoas como Michael Kepp, que se acha gringo brasileiro quando jamais deixará de ser o que é, apenas gringo, e que deitou besteiras na Folha Equilíbrio sobre o jornalismo engajado no Brasil. Há ainda pessoas como Marcos Aguinis, psicanalista e escritor argentino de sucesso, que teceu generalidades no Correio Braziliense sobre o que ele não entende, o Brasil. Os dois são exemplos de como estamos à mercê de pseudo-pensadores fora das fronteiras. Eles entram no vácuo deixado por nós, que não conseguimos expor devidamente o que somos e temos de melhor.

BOBAGENS - Kepp sugere nosso analfabetismo ao comentar a reação negativa no Brasil ao filme de Michael Moore, Fahrenheit. Diz que os Estados Unidos tem uma longa tradição de jornalismo engajado (do qual Mike faz parte) e que aqui, ao contrário, a grande mídia no Brasil propaga o mito de que a notícia deve ser objetiva e imparcial. Asneira. Nosso jornalismo nasceu engajado. Basta ver a pesada panfletagem do século 19. No início do século 20, o jornalismo político partidário era o único que havia. Nos anos 50, a poderosa rede de jornais Ultima Hora era totalmente engajada no trabalhismo. Nos anos 60 e 70, a imprensa alternativa, com Pasquim à frente e mais ainda Opinião e Movimento, era o supra sumo do engajamento. Hoje, temos, no mínimo, Carta Capital, que é totalmente engajada, toma partido corajosamente, incomodando os pigmeus de praxe. O que há no Brasil é ditadura, concentração extrema de renda. Todo mundo sabe que a grande mídia é totalmente engajada no poder, seja qual for o poder, pois dele depende para se manter em pé, já que se endividou até o osso e destruiu a profissão de jornalista. Diz Kepp que o mercado aqui é pequeno demais para sustentar qualquer tipo de jornalismo engajado. Outra besteira. O Pasquim vendia 200 mil exemplares em 1969 até ser assassinado pela ditadura. O mercado não é pequeno, é enorme. O que é pequeno é o número de leitores que se submetem à mídia vendida. O resto não lê jornal porque sabe que está tudo dominado. O problema portanto é político e não porque a gente seja asno o suficiente para acreditar em jornalismo isento. Além disso, Michael Moore foi um sucesso no Brasil. Quando o último best-seller dele, Cara, Cadê o meu país, chegou da gráfica já tinha dez mil exemplares vendidos no primeiro dia. Todo mundo foi ver Tiros em Columbine e está vendo Fahrenheit. Articulistas da mídia vendida chiaram porque Michael Moore incomoda a cômoda posição de pseudo jornalistas.

GENERALIDADES - Vamos agora ao hermanito Aguinis, que sustenta a tese insustentável de que as sociedades onde se pretende beneficiar o coletivo são as que fracassam. E cita o exemplo da tal civilização anglo-saxônica (a mesma que hoje inferniza o Iraque e em 1945 matou centenas de milhares de civis japoneses com duas bombas atômicas; gente fofíssima). Esta seria um sucesso porque, segundo Aguinis, protegeu os direitos individuais enquanto a América Latina (essa ficção) acredita que as idéias coletivas vão levar ao progresso. Ele acha que a Argentina era rica até 1930 porque desenvolveu um modelo anglo-saxônico com população que não era anglo-saxônica. Não cito mais porque o nível de abobrinhas já explodiu a cota. Para mim a Argentina rebentou de tanta riqueza quando vendeu-se à Alemanha na segunda guerra e tirou vantagem do conflito enquanto nós fomos lutar na Europa contra o nazismo e o fascismo. A Inglaterra é vencedora porque tornou-se eficiente na pirataria internacional, montou uma Armada invencível e destruiu todo mundo que se opusesse a ela, não porque respeite os direitos individuais. Diz Aguinis que aqui gostamos do homem forte e que na Inglaterra gostam é de um bom administrador. Bobagem explícita. A Inglaterra gosta da força, tanto é que mantém a monarquia, que é a imagem tradicional dessa força. Se Tony Blair é bom administrador então eu sou o Imperador do Acre (a participação no fracasso do Iraque é o exemplo mais vivo da sua eficiência administrativa). Diz Aguinis que a linha demagógica-populista ameaça o que ele chama de continente (essa ficção, a América Latina). O que ameaça os países pobres é a pirataria internacional via juros da dívida eterna e não o populismo (até quando vão insistir nessa tecla?).

RETORNO - 1. Meu texto A Mutação dos Espaços, sobre o clássico Santos e Flamengo, está no La Insignia. É sempre uma honra participar da equipe de colaboradores do editor Jésus Gómez.
2. Neste mês, despede-se da Fiesp para justa aposentadoria, essa pessoa magnífica que é Elisa Santos, a quem muitos jornalistas que trabalham em São Paulo devem demais. Elisa é craque no meio de campo e cuida que tudo corra bem para todos os colaboradores e funcionários de comunicação da grande instituição, onde começou muito menina. Elisa é incansável e atenciosa e jamais perde o bom humor. Este que foi seu colega por muitos anos presta agora pequena mas sincera homenagem, neste momento em que ela vai usufrir do que cultivou em longa e proveitosa vida dedicada ao trabalho. Não esqueça de nós, Elisa!

23 de setembro de 2004

A MUTAÇÃO DOS ESPAÇOS


O impressionante clássico (tudo aquilo que merece ser estudado em classe) de ontem entre Santos e Flamengo foi tão intenso e cheio de eventos que a pressa em escrever cai na tentação de deixar de lado suas principais revelações. Mas, para não perder o mote, podemos definir a pauta da seguinte maneira: a bola disputada nos mínimos detalhes multiplicou o que mais falta no futebol, espaço para fazer a jogada e chutar em gol; o passe de calcanhar pode ser feito seriamente e não expressar apenas uma firula; o comando coletivo flamenguista (Junior e Ricardo Gomes) contrastava com a estratégia do artista solo (Vanderlei Luxemburgo); a composição randômica de craques veteranos e novatos, em ambos os lados, descreve uma solução eficaz para a crise do futebol brasileiro; e o gol de Deivid aos 46 minutos e meio do segundo tempo confirma a tautologia de espantosa profundidade do grande cartola corintiano, Vicente Matheus, de que o jogo só acaba quando termina.

SUPERFÍCIE - O que é um campo de futebol? O vazio dos estádios depois dos jogos, já disse o poeta Marco Celso Viola. Um gramado não é nada, a não ser que os jogadores façam dele um volume de possibilidades. O drible é a invenção da clareira; um passe é o perigoso movimento de uma placa tectônica (que na geografia é uma teoria que não me convence); o resgate da bola no extremo canto é um atentado à verossimilhança. Esse cruzamento de coisas faz com que, na maior parte do tempo, a guerra se manifeste pelo choque entre os ossos, os agarrões na camisa, o debruçar-se sobre o cangote alheio para fazer um cabeceio impossível. Tudo levaria à morte se o futebol fosse um jogo de verdade. Mas como é o fino da representação do conflito, uma brincadeira adotada pela divindade, tudo fica mais fácil de entender: o futebol é a definição de destinos e a glória suprema de heróis que se retiram ainda moços para uma vida intranqüila. Por isso torço por Maradona em sua nova fase em Cuba. E acho brilhante a aposentadoria do Rei Pelé, que vai doar para a caridade seu salário. Eles continuam jogando cada vez melhor. Basta rever qualquer um dos seus gols, feitos neste mundo sem graça, a não ser que Robinho ponha na gaveta o pênalty precioso de uma classificação. Ou que os goleiros Mauro, pelo Santos, e Julio César , pelo flamengo, interponham limites à mutação constante de espaços gerados pelo movimento dos atacantes.

FÔLEGO - De onde os jogadores tiram tanto ar? Como conseguem fazer do fole dos pulmões o instrumento de uma capacidade infinita? É fácil entender isso entre os mais jovens, mas o que dizer dos que nasceram muito antes? O que deu graça, força e gana no jogo foi o equilíbrio entre idades diferentes, que deveria ser o perfil de todo time que se preze. No jogo de ontem, tínhamos, pelo Flamengo, Zinho e Junior Baiano (que limpou sua biografia nos noventa minutos em que disputou com raça todas as bolas e ainda foi decisivo num dos gols do seu time) ao lado de Ibson (que comeu a bola) e Felipe (sempre craque). E do Santos, tínhamos Ricardinho distribuindo bolas para Robinho e o resto da meninada, incluindo Basílio, não tão jovem assim. Todos iam buscar, ninguém desistia de nada. Era um jogo de decisão da Copa Sul-americana, que encerrava um conflito nos bastidores. A Globo teria pressionado o Santos a participar da Copa, o que fez correr o boato de que Luxemburgo e a diretoria do time estavam fazendo corpo mole para a competição. No desabafo de ontem, quando terminou a maravilhosa peleja, Luxemburgo falou em linguagem cifrada, para todos os microfones, menos o da Globo. Disse que nunca quis boicotar nada, apenas pediu um pouco de profissionalismo, reclamando do poder de quem está fora do futebol e que vivem mandando em tudo. Luxemburgo é mestre do conflito. Suas entrevistas nunca são tranqüilas, é sempre um embate de palavras. E palavra foi o que não faltou ontem. Basta ver Ricardo Gomes falando de modo contundente para Dill, que entraria no lugar de Zinho. O jogo terminou nos pênaltis, com a vitória do Santos. Mas o resultado real e justo foi o empate de dois a dois.

VERSÕES - O lance mais incrível foi o primeiro gol do Flamengo. Junior Baiano chutou a falta e a bola caiu nos pés de Ibson, que esperava o biroço já com o pé torcido para desviá-la para o gol. Junior Baiano saiu comemorando, mas a certa altura ficou sozinho. Aí virou-se e viu Ibson sendo cumprimentado por todos. Houve então uma polêmica entre os comentaristas: a bola bateu no pé de Ibson, portanto o gol era de Junior; ou Ibson conscientemente colocou a bola para dentro do gol, o que lhe dava a autoria do feito. Todos deram sua opinião, até consultarem a fonte verdadeira, o próprio Ibson. E aí, a bola bateu em você ou você bateu na bola? As duas coisas, revelou, num insight supremo, o craque. Isso é o futebol: um desafio da percepção, pois trata-se de encaixar uma esfera em espaços retangulares, selecionar curvas e retas e brincar com a percepção alheia para poder vencer. Uma jogada filmada, repetida, vista por milhares, teve que ser debatida e só foi resolvida pela palavra. Futebol é uma arte quântica, com várias possibilidades de realidade. O bom é que o jogo foi transmitido pelo Luciano do Vale, o número 1, pela Record. Luciano faz de um zero a zero um espetáculo inesquecível. Imaginem o que fez no jogo de ontem. Não é só de dotes operísticos (da melhor ópera), mas suas ferramentas, como a repetição da mesma frase para definir melhor a emoção da jogada; sua vocação jornalística para focar o que é mais importante e pedir a opinião de todos os envolvidos; e seu incendiário entusiasmo que a tudo contamina, como o canto esperançoso de um pássaro que anuncia uma estação mais amena.

22 de setembro de 2004

O JORNAL ANTES DE SER SANTA


Fizeram grande festa para comemorar os 33 anos do Jornal de Santa Catarina, de Blumenau, com direito a homenagens e discursos. O motivo foi o novo formato, agora tablóide, do chamado Santa, que no meu tempo era conhecido como JSC. Falou-se muito do pioneirismo do jornal, que hoje é de propriedade da RBS. Mas ninguém se lembrou de resgatar os nomes que fizeram acontecer essa publicação. Pela ordem: Nestor Fedrizzi, diretor de redação e José Antonio Ribeiro, editor-chefe. Também não lembraram de chamar o Mario Medaglia e o Virson Holderbaum, dois jornalistas da equipe original que ajudaram a colocar o bloco na rua e que estão aqui em Floripa. Tem ainda o Renan Ruiz, da Arte, o Sergio Becker, e o locutor que vos fala. Tinha mais gente, como Paulo Becon, colunista social, que como o José Antonio, o Gaguinho, partiu para o Outro Lado. E outros. Nenhum deles foi citado na homenagem, que eu saiba.

PIONEIROS - Os que chegam na frente, os que vêm antes, os que botam a cara para bater (sair de Portinho para encarar Blumenau em 1971 era coragem), os que abrem caminho, os que cruzam o umbral, os que se atiram, os que criam, os que fazem, os que plantam, os que inventam, e depois partem para sempre, esses são esquecidos. Por que? Porque os pioneiros não dão bola, ou não têm noção exata, do que fizeram a partir do nada. E porque os que chegam depois nem sabem o que os pioneiros passaram. Chegam e o jornal já existe. Chegam e o arquivo está cheio de edições antigas. Chegam e já existem leitores, histórias, currículos, tradição. Chegam e sentam-se, mas nem se lembram do que foi possível fazer. Como fomos todos morar ao lado da redação, porque éramos duros de dar dó. Como o trabalho continuava dentro de casa. Como sentíamos a oportunidade de fazer algo bom, inédito, longe dos outros colegas, que se acomodaram, que ficaram para trás, disputando um mercado já conhecido. Fica assim o ciclo completo. Quem abre caminho não dá bola. Quem vem depois nada sabe de quem veio antes. Nestor Fedrizzi, que ajudou a montar a Ultima Hora de Porto Alegre para Samuel Wainer, merece um perfil de página inteira no jornal renovado. Pus Fedrizzi no Google e tinha quatro, apenas quatro ocorrências. Como podemos esquecer nossos grandes jornalistas? Nossa equipe original era bastante invocada e deu trabalho para os donos do jornal ao reivindicar uma ajuda de custo, que foi conseguida como empréstimo. Bolamos nosso movimento no Michel, restaurante do centro da cidade. Discutíamos em voz muito alta e o dono do restaurante nos olhava com grandes olhos de pânico. Mas éramos apenas meninos cheios de leituras e vontades e o movimento acabou quando chegou o vale. Depois, fomos nos dispersando.

CONSULTORIA - Há um movimento geral contra a fajutagem das consultorias. Reservei dois textos supimpas sobre o assunto. Um deles começa assim: Mello tinha mandado derrubar uma parede do escritório, e atrás dela descobriu uma garrafa velha, com uma forma estranhíssima. Quando ele tentava tirar a poeira da garrafa, ela fez puf! e um sujeito apareceu do nada. Eu sou o gênio da garrafa, e vou atender a um desejo seu. Um desejo? Mas não são três? Costumavam ser três - o gênio desengarrafado explicou. Mas a direção da empresa dele havia feito um downsizing no quadro de gênios para melhorar a produtividade sistêmica. Então o serviço acumulou, e alguns desejos estavam com o prazo de entrega estourado. Por isso, só ia dar para atender a um. Então tá - o Mello falou. - Eu quero 1 milhão de dólares. Não é uma boa idéia... - o gênio ponderou. Peraí, que raio de gênio é você? Nunca vi gênio discutir desejo... Sou um gênio consultivo. Meu cartão. E, antes de mais nada, você precisa assinar este contrato de Prestação de Serviços Geniais. Todas as cinco vias, por gentileza. Um gênio consultivo - o Mello ficou sabendo enquanto assinava o contrato, era diferente desses gênios mambembes que andam por aí e que viram fumaça depois de atender ao desejo. Gênios consultivos são comprometidos com os resultados, e por isso tem de primeiro entender as necessidades do cliente, para depois desenvolver e apresentar uma proposta que maximize a solução mais viável para cada caso especifico. Como você alocaria o milhão de dólares? - o gênio perguntou para o Mello. Antes de atender a seu desejo, precisamos elaborar um cronograma de investimentos e um cash flow descontado para os próximos 20 anos. Você está pensando em aplicações de alto ou de baixo risco? Local ou offshore? Offsh... Escuta, não dá para você me dar logo o meu milhãozinho, e depois eu resolvo? De jeito nenhum. Temos um nome a zelar no mercado. Posso lhe fazer uma sugestão? Não peça dinheiro. Peça debêntures conversíveis em ações. O que eu quero é simples. Uma milha! Uma verdinha em cima da outra, e pronto! Você teve muita sorte de eu ser um gênio consultivo, e não um gênio picareta, como há muitos no mercado atualmente. Você tem idéia de quanto é 1 milhão em cash? Mesmo descontando os impostos... Um gênio associado lhe dará todas as coordenadas para o recolhimento. E ainda há a nossa comissão. Dezoito por cento. Sobre o valor bruto. E do valor líquido serão deduzidas as despesas extraordinárias, abatidas em parcela única. É difícil calcular antes de comprarmos o sistema de informática e instalarmos o software tailor-made. Mas eu estimaria algo entre 70.000 e 100.000 dólares. Mas eu não preciso de sistema, nem de software! Sinto, mas está no contrato. Página 49. É inegociável. Além, lógico, dos custos para acompanhamento posterior ao atendimento do desejo, que nós chamamos de pós-venda in loco. O texto termina com uma máxima: Só tem uma coisa pior que sonhar com gênio que pensa que é consultor. É ter de conviver com consultor que pensa que é gênio.

COLHER- O outro é ainda melhor: Semana passada levamos alguns amigos para um novo restaurante. Percebemos que o garçom que anotava nossos pedidos carregava uma colher no bolso de sua camisa, o que era meio estranho. Quando o auxiliar de garçom nos trouxe água e talheres, percebi que ele também arregava uma colher no bolso da camisa. Olhei ao redor e vi que todos os funcionários do restaurante tinham colheres nos bolsos de suas camisas. Quando nosso garçom retornou para nos servir o primeiro prato, perguntei-lhe: Porque a colher no bolso? Bem, ele disse, os proprietários do restaurante chamaram a Consultoria Anderson para melhorar todos os nossos procedimentos. Após vários meses de análises, eles concluíram que a colher é o talher que mais cai no chão. Isso significa uma freqüência aproximadamente de 3 colheres por mesa por hora. Se o nosso pessoal está melhor preparado, podemos reduzir o número de viagens à cozinha para buscar colheres limpas e isso significa uma redução em 15-homens-hora por turno. Coincidentemente derrubei minha colher e ele pôde substituí-la de imediato com a sua colher sobressalente. Irei buscar uma nova colher na próxima vez que for à cozinha ao invés de ir especialmente até lá para essa tarefa, ele disse. Fiquei muito bem impressionado. Aí percebi que havia um barbante pendurado para fora do zíper de sua calça. Olhando em volta, vi que todos os garçons tinham um barbante similar para fora de suas calças. Antes que nosso garçom se afastasse de nossa mesa, perguntei-lhe Desculpe-me, mas pode me explicar porque você tem um barbante pendurado bem aí? Certamente, ele respondeu. Aí ele abaixou a voz e disse: não são todos que observam isso. A empresa de consultoria que lhe mencionei também descobriu que podemos ganhar tempo no banheiro. Amarrando esse barbante o senhor sabe aonde, podemos puxá-lo sem encostar naquilo e isso elimina a necessidade de lavarmos as mãos, reduzindo o tempo gasto no lavatório em 76.39 %. E como é que guarda o dito cujo, após usá-lo? perguntei. Bem, ele sussurrou, eu não sei sobre os meus colegas mas eu uso a colher.

21 de setembro de 2004

O DIA DE PRATA NO MEIO DO MATO

Saímos do acampamento já tarde, depois das dez da noite. Soube do horário pelas ondas direcionais do grande rádio de pilha do funileiro Sadi, companheiro eterno das pescarias da beira do arroio Rodrigues. Fomos em fila indiana, pisando graveto e barro, sendo açoitados pela copa dos arbustos espinhentos. Nosso destino era a corredeira, que a madrugada encerrava para lá do desconhecido, onde só os mateiros experientes chegam. Ainda me pergunto porque me levaram, se eu já estava pronto para dormir, depois de um dia sendo comido vivo pelos mosquitos e com coceiras por todo o corpo, fruto do ataque de micuins e mutucas. Meu cabelo era uma crosta dura de terra seca. Minhas mãos em carne viva lamentavam o tempo todo desperdiçado em escamas e linhadas cheias de nós. No meio da expedição, sendo orientado pelo passos dos que iam à frente e estocado pelos que vinham atrás, desconfiei que todos estavam loucos e me levavam para longe da minha cama.

ÁGUA - Ouvi longe o barulho do rio que naquelas paragens se atira sobre as pedras, caindo mais adiante. O som esperneava em meus ouvidos, mas eu prestava atenção no território complicado onde trafegava, esperando enfim o momento de sentar, descansar, deixar-me levar, entregar-me à noite profunda. Olhei para o céu. Tudo breu, nenhuma estrela. Havia um certo vento, que em vez de sacudir as folhas, me contava causos escusos, soprava segredos inaudíveis, amedrontava o menino que jamais poderia ter chegado até ali. Quando chegamos na água, onde era impossível molhar os pés sem correr o risco de ser levado correnteza abaixo, todos se dispersaram. Cuidavam de seus apetrechos e olhavam como assassinos a toca invisível sob a superfície. Meu pai sentou-se ao meu lado e preparou o bote. Jogou a linha bem na boca, como dizíamos, com chumbada grossa, para que não perdesse tudo. A pescaria era de dourado, animal predador e arisco, que sai à noite para caçar em águas turbulentas e que por isso mesmo tinha a carne mais apreciada de todas as outras, além de ser o troféu maior de quem pesca no rio Uruguai e seus arroios. Eu segurava um pedaço de galho e tentava parti-lo, de raiva. Mas o objeto era flexível e envergava sem quebrar. Comecei a usá-lo para bater nas pedras com insistência, pois também estava furioso por ter esquecido de trazer minha linhada, o que já tinha desencadeado gargalhadas sinistras daquela caravana que mais parecia um pesadelo. O barulho que eu fazia chamou a atenção do meu pai, normalmente absorto na sua milenar indiferença, que era pontuada sempre pela brasa de um cigarro. Te aquieta que já vem a lua, disse ele.

ARCO - Olhei para todos os lados e não vi nada. Via apenas a corredeira começando a aparecer, a destacar-se ao meio do breu, como se alguém tivesse passado cera brilhante sobre seu dorso e a afagava para que ficasse mais mansa e nos desse logo os peixes sonhados, para que eu pudesse voltar logo e me esconder no fundo da barraca. O rio tornou-se mais claro, insensível diante da minha falsa esperteza disfarçada em vontade de fugir, e na margem oposta, acima da copa do mato, um risco vermelho em curva e que tomava quase todo o horizonte desenhava um incêndio que não ardia. Era o luão gordo e vermelho do verão levantando como um arcanjo ameaçador. Comecei a rezar para livrar-me de todos os pecados, pois imaginava que estávamos sendo incendiados sem que ninguém atinasse, e eu estava só e indefeso nas mãos de debochados pescadores do pampa. A ascensão continuou lenta e a lua agora tornava-se prata, fazendo com que todos nós, que tocaiávamos dourados, aparecessem com todos os riscos do rosto e volumes do corpo. Podia ver o riso de um sem fazer barulho, outro colocando a mão na testa para debochar da lua que imitava o sol. Tudo virou prata e inundou a noite com um dia esplêndido e eu franzi a testa para entender o que se passava. De repente, borbulha o salto do dourado preso no anzol. Cezimbra foi o primeiro a gritar. Sadi chegou a chapinhar na beira de tão nervoso. Mas quem tinha pego o bruto era meu pai, que gargalhava seu sorriso vencedor e foi puxando o peixe devagar, gozando com a cara de todos, que tinham medo que o dourado escapasse. Ele então afundou as pernas na água e pegou o peixe pela guerla. Levantou sua prenda até a altura da cabeça e gritou. Os outros quiseram aplaudir, mas a inveja era maior do que o entusiasmo. Houve reclamações de que o prêmio era pequeno demais para o alarido feito pelo pescador vitorioso.

INVENÇÃO - Mas o dourado é manhoso e fingiu-se de morto, arqueando o corpo e abrindo e fechando as guerlas como se estivesse vencido e desesperado. No auge da gritaria e da celebração, o animal deu um safanão e soltou-se. Antes de sumir de novo, só para humilhar, foi até a beira onde eu estava extasiado e tocou sua boca na ponta do meu pé. Depois mergulhou e lá na boca, bem no meio do arroio, deu um salto de misericórdia. Ouviu-se um ala puta que o bicho é brabo. Meu pai ria sem parar, acompanhado pelos outros. A lua, impassível, deitava seu esplendor sobre o menino molhado e taciturno que, de repente, pela primeira vez naquela noite, sentiu vontade de rir também. Era verão, eu era muito pequeno e aquilo que eu estava vivendo era tão absurdamente verdadeiro que decidira inventar tudo. Queria apenas mostrar o quanto aquela expedição fora importante para alguém como eu, que um dia partiu para nunca mais voltar e tentava trazer de volta o que realmente sentiu naquela época. Soube depois que a vivência no mato com meu pai jamais seria resgatada, em toda a sua desenvoltura de lua cheia iluminando o mato sobre a corredeira dos dourados ariscos e guerreiros.

RETORNO - E viva a Semana Farroupilha! A melhor cobertura é, claro do Portal Uruguaiana, capitaneado por Anderson Petroceli, com fotos primorosas do Desfile Farroupilha, que aconteceu no domingo, um dia antes do 20 de setembro, porque havia prrevisão de chuva na segunda. Foi uma decisão estratégica acertada, pois o tempo prejudicou a comemoração em outras cidades. Crianças, mulheres, famílias, cavaleiros, todos mostram a arte de ginetear na tradicional Avenida Presidente Vargas. Quer saber como é o Brasil? Veja a sucessão de fotos no Portal. Imperdível.

20 de setembro de 2004

A BANDIDA BRASILEIRA

É tudo muito divertido: a estréia de Gisele Bünchen no cinema coincide com seu papel de bandida brasileira. Fizeram o mesmo com a Sonia Braga, que sempre desempenhou , nos EUA, a prostituta chicana ou algo parecido. Fizeram com La Braga, que é grande atriz, imagina o que farão com uma bonequinha de luxo, que ficou rica e famosa andando daqui para lá, na passarela. Sempre me pergunto: o que há nessas passarelas da moda? Por que tanta festa para algo que não é arte (rebolar de um lado para outro?), nem cultura (consumo que ostenta status) nem nada (tanto não é nada que a modelo sempre quer ser outra coisa, principalmente atriz). Ora, é a Gisele Bünchen, me falam. Grande coisa. A não ser que seja apenas a representação do país-fêmea a exibir seus dotes para o mundo sedento.

INVASÃO - O que tenho contra a graça e a beleza? Nada. Podem até enriquecer cruzando as pernas diante da mídia. O que me espanta é que o Império não perdoa e transforma toda mulher não-americana em algo desfrutável ou escroto. Desfrutável em todos os sentidos: tanto na vida fácil quanto no abandono pelos machos locais, bandidos toda a vida, dos quais precisam ser salvas pelos gringos com sua macheza ética. O cinema é o braço mais poderoso dos imperadores do Mal. É ali que eles formataram a cabeça do mundo. Tenho ouvido e lido em vários lugares que o bom mesmo é entregar tudo para os americanos, já que não somos de nada. É uma espécie de surto coletivo. Desistiram do Brasil, como se isso fosse possível. Uma matéria ontem no SBT mostrava que as pessoas não entendiam as palavras em inglês que dominam o comércio. Sale no lugar de venda, delivery em vez de entrega, e outros quetais, como shine confundido com palavra chinesa, mostram o quanto é impossível nos adaptar totalmente à escravidão, já que somos seres de outra espécie, civilização e cultura. Na Globo, depois de uma matéria que mais parecia um briefing do FBI, dois repórteres recém formados provavam o quanto as instituições públicas importantes em Brasília eram vulneráveis a bombas. Como se estivessem atraindo bombas para o TSE, o Congresso, o Ministério da Justiça. Querem terceirizar a segurança desses locais para o FBI, esse é o recado? Brasília é totalmente exposta. Paredes de vidro, prédios no descampado, sinal de que nossa proposta é outra, totalmente anti-americana. Nossa força não vem de muros ou paranóias, vem da nossa idéia e experiência de civilização: aceitamos o que o mundo oferece para devolver modificado tudo o que eles nos entregam, seguindo a lógica de Oswald de Andrade. Jamais poderemos ser escravizados, a não ser que o entreguismo triunfante insista que nos invadam para sempre. Contra essa idéia é que existe a Semana Farroupilha, atualmente em vigor, que é afirmação de nacionalidade guerreira, por mais precária que sejam nossas condições de defesa. O importante é ter o espírito desarmado, mas atento. A guerra é cultural, comportamental e política. Venceremos.

ESPINHA - O blog Espinha ,de Hélcio Toth, é um espetáculo (ia dizer show) de cultura brasileira antropofágica. O que o cara faz com uma câmara digital é inacreditável. Não apenas reporta o que há de mais contundente nos eventos oficiais (como a posse da nova presidência da Fiesp, por exemplo), e nos bastidores desses eventos (as fotos da campanha política em Sampa são de arrepiar), como cria em cima do que existe de vivo na megalópole, no interior e no litoral do Brasil. A foto do pequeno arbusto preso na calçada é impressionante. Sobre essa foto fiz o seguinte poema: O que está vivo resplandece. Mesmo amarrada pela fita, mesmo emparedada a céu aberto, mesmo sufocada no concreto, o que sempre será árvore se equilibra. Amparada pelo olhar, ela promete ficar ali, até crescer para além da paisagem de pedra que a mantém cativa. Mas há muito mais. Seu ensaio sobre as praias de Ilha Bela, as imagens do Rio das Pedras, o farol (diz-se por aqui sinaleira) contrapondo-se ao sol do crepúsculo, a composição do piso florido com os tênis e tantos outros flagras geniais fazem do trabalho de Toth um dos mais importantes e contundentes da fotografia brasileira. Contratei Toth um belo dia quando ele ligou para a Fiesp pedindo frila. Até hoje ele não se conforma de eu ter saído de lá. Paciência, Toth, o caminho se faz ao andar, como prova teu magnífico e imprescindível blog Espinha.

CHINA - Somos o novo brinquedinho do mundo. Veja o que diz Lúcio Flávio Pinto direto do Estado do Grão Pará: Atividades eletrointensivas, que consomem grandes quantidades de recursos naturais e que são poluidoras estão deixando de ser praticadas na China para serem desenvolvidas na Amazônia. Até o final da década, uma fábrica de chapas de aço do consórcio CVRD-Baosteel-Arcelor estará produzindo 9 milhões de toneladas, após um investimento de 1,5 bilhão de dólares. A meta, nesse setor, é reduzir dos atuais 70% para 60% a dependência chinesa de carvão. O Brasil é o alvo principal e a Amazônia, a meta específica. Hoje, 380 mil pessoas morrem prematuramente todos os anos nas 11 maiores cidades chinesas, por causa de problemas pulmonares, provocados pela fuligem e outras partículas em suspensão no ar. Essa poluição será transferida para a Amazônia? É o que aguarda São Luís, onde o coque será usado pela usina cuja implantação foi iniciada, sem falar no consumo de água, talvez representando metade de tudo que a capital maranhense precisará, mesmo com a polêmica duplicação do sistema Italuís.

19 de setembro de 2004

O PAÍS EM FARRAPOS

O Brasil foi retaliado em postas para melhor ser servido à mesa internacional. Nações internas, divididas pela geografia e a História, disputam empresas e fazem guerra de impostos. Uma febre aftosa no gado do Pará é encarada como algo externo, até os russos lembrarem que tanto faz no sul como no Norte. A suspensão, por parte do império sangrento de Putin, das importações de carne e frango do Brasil, significa que teremos prejuízo na nossa atividade de exportar proteína enquanto a população briga por um pouco de farinha. Somos uma comunidade em farrapos, palavra que nos remete à semana que começa hoje, e que comemora o consenso gaúcho em relação ao tempo da Colônia, quando um povo levantou-se em armas e hoje sente saudade dessa luta.

DIVISÃO - Imagens da implantação do Estado Novo em 1937 mostram estudantes, em cerimônia cívica, queimando bandeiras estaduais. Hoje essas bandeiras tremulam, imponentes, a provar que vivemos num federalismo radical e que a União continua sendo um sonho distante. Temos antecedentes dessa divisão interna, que hoje serve ao coronelato da ditadura civil. Nosso território dividiu-se, por algum tempo, entre o Estado do Grão-Pará, que pegava toda a Amazônia e o Maranhão, com capital em São Luís, e o Estado do Brasil, que compunha-se do resto do país, com capital em Salvador. Depois da Revolução do Porto (segundo historiadores, a única guerra de libertação da Europa, que em 1820 libertou Portugal do jugo imperial com sede no Rio de Janeiro) enviávamos representantes regionais para as Cortes Portuguesas, que queriam eliminar a centralização do Brasil. Dividiam assim em porções para melhor dominar. Frei Caneca, por exemplo, foi um representante baiano nas Cortes. O sentimento regional tornou-se muito forte, já que cada estado da América Portuguesa era uma nação com representação própria na sede imperial, Lisboa. O Rio de Janeiro, com sua vocação para a neutralidade e de síntese nacional, foi a capital da integração até que o Juscelino Kubistchek deu-lhe um golpe de morte, fazendo a festa das empreiteiras e da inflação ao mudar a capital para o ermo do cerrado. Com o Estado Novo, a capital da República irradiou a imagem do Brasil soberano, tanto pelas ondas do rádio e pelas telas do cinema, quanto pela organização política. Em 1964, para que a direita tomasse o poder, foi preciso que alguns imperadores provincianos (os governadores da época) dos principais estados se unissem para acabar com a nação. Mas a retaliação foi adiada, pois os militares tomaram a rédea do processo e continuaram com a idéia de um Brasil unido, o que encheu de equívocos a integração. Esta, ficou totalmente ligada à idéia de ditadura.

MIGRANTE - Com um plebiscito, a Nova República de Sarney tentou implantar o parlamentarismo, o que consolidaria a federalização do país totalmente dividido. Mas o povo, que é carente da proteína atualmente exportada para outros países, mas não é trouxa, disse não. O presidencialismo venceu, mas só de onda. O que temos é um conjunto de republiquetas, todas com sentimentos nacionais exacerbados, e nem tente opor-se a essa idéia, pois todos dirão que são brasileiros, o que não é verdade. Ninguém é brasileiro. Todos são paulistas, baianos, mineiros, gaúchos, catarinenses. Em São Paulo, todo santo dia, me lembravam que sou gaúcho. Nos outros estados, é a mesma coisa. Para quem é migrante como eu, isso significa ser estrangeiro no próprio país. A argumentação contrária é que te tratam bem, te aceitam. Isso não basta. É preciso sentimento nacional, sermos o que o Brizola dizia em todos os discursos, compatriotas, compartilhando a mesma idéia de Pátria, e não apenas na propaganda ou na seleção brasileira. No fundo, a percepção de um Brasil unido é complicada. Parece que o tamanho do território, a complexidade da nossa realidade, a quantidade gigantesca de etnias e culturas que se cruzam, tornam impossível uma síntese. Mas temos cultura, experiência e História para tanto.

CASCUDO - A Semana Farroupilha, que chega ao auge neste próximo dia 20 de setembro, começou de fato, para mim, num churrasco ontem oferecido em Jurerê pelo meu irmão Elortiz, estudioso e entusiasta tanto da história gaúcha (com ligações profundas com as brigas castelhanas) como da História em geral. Fui presenteado por ele com dois volumes da magnífica História da Alimentação do Brasil, de Câmara Cascudo, um monumento cultural a essa complexidade brasileira a que me referi acima. Hoje a Semana continuou quando me levantei cedo no domingo para assistir ao Galpão Crioulo, programa de música nativista da RBS e que deveria ganhar horário nobre, pela enorme quantidade de informações sobre o que está pegando na cultura do Rio Grande do Sul, que mobiliza multidões e convoca uma geração após a outra para algo impensável em outros recantos. Meu Rio Grande é o único lugar, hoje, onde a História é tema permanente de música popular. Como sou gaúcho urbano, e mais ligado às águas do que à terra, não montarei a cavalo (que aliás, é uma arte que desconheço totalmente) nem desfilarei com bandeiras tremulantes. Ao contrário, como sou implicante, vou lembrar que a festa reduz-se às lembranças do século 19, já que o século 20, quando os gaúchos lutaram entre si e contra os paulistas, ainda está muito vivo para comemorações. Na História, prefiro os anos 20 do século passado. Dos Farrapos sei muito pouco, apenas que lutaram dez anos e acabaram assinando a paz com a União com uma ajuda substancial do Duque de Caxias. A República sonhada pelos farroupilhas tornou-se real no final do século 19 e a partir dos anos 30, virou assunto dos gaúchos, quando seu mais ilustre filho subiu ao poder, graças às divisões internas, para reunir as bandeiras dispersas numa só. A mesma que hoje nos enche de orgulho ao som do Hino Nacional.

RETORNO - 1. O escritor Urariano Mota explica para que serve a literatura no La Insignia. Para comover as pedras. Para fazer justiça. Para chover uma bênção, pequena que seja, para seu querido Canhoto da Paraíba. Leia Urariano e veja onde sua oração, transmitida em rede nacional, foi parar: direto no coração dos contemporâneos. 2. Raul Elwanger envia comentários sobre o que escrevo aqui. Diz ele: Para investigar, pois não sei bem: o genocidio de Hiroshima foi acompanhado de um bombardeio à população civil de Dresden, Alemanha já de joelhos. Sei de orelhada, mas a lógica é a mesma: punir o povo pelos crimes dos safados. José Dirceu: também de orelhada, lembro que ele nunca foi exilado, viveu com uma operação plástica no interior de SP ou Paraná. 11 de setembro: a midia podia ter um pingo de vergonha e lembrar os trinta mil mortos, os desaparecidos, os mutilados, os exilados, os sofridos, os enlouquecidos, os apatriados pelo golpe CIA/Democracia Cristã/Nacionales no Chile em 1973.

18 de setembro de 2004

A LENTIDÃO EM BEN-HUR

O filme Ben-Hur, de William Wyler, ficou famoso pela corrida de bigas, mas essa seqüência memorável só pode ser entendida como o momento intensificado de uma obra lenta, densa, dramática. Há uma série de acusações a esse clássico, todas execráveis. Começa por Charlton Heston, ator magnífico que caiu em desgraça por ser confundido com canastrões e, ultimamente, por ter sido alvo da falta de respeito por parte de Michael Moore (que, mesmo movido por motivos corretos, forçou a mão ao filmar Heston na própria casa para denunciá-lo, abusando da hospitalidade e constrangendo o anfitrião ). Outra, a de que não passa de uma refilmagem, o que é um absurdo, pois a versão anterior era muda e o forte em Ben-Hur são os diálogos (vejam Gladiador para notar como refilmar pode gerar uma porcaria). E terceiro (desta vez a carga negativa vem de Gore Vidal), de que o filme não passa de uma relação homossexual entre o herói e o vilão, calúnia desmentida pelo grande final, com Ben-Hur abraçado às mulheres da sua vida: esposa, mãe e irmã.

JUDÉIA - Hoje é moda fazer filmes horrendos de glorificação do império, com bandidos fantasiados de heróis dando tiro no Oriente Médio e vilanizando os povos de lá. Em Ben-Hur é o contrário. O vilão é o império e a guerra perde a luta para a paz. Besteiras utópicas? Não, recado político a favor do entendimento numa região conflagrada. A solução seria a lucidez, o alto nível espiritual, o perdão, a emoção. O filme aborda o sofrimento humano. O bem-nascido que cai em desgraça, perde a família, mas tem sua segunda chance. Procura a vingança no front, na guerra, mas é obrigado, pelas circunstâncias e o aconselhamento, a trabalhar na representação do conflito, no estádio lotado. As seqüências anteriores à corrida são impressionantes pela força que transmitem. O árabe criador de cavalos e jogador profissional fala sobre Balthazar, um dos reis Magos da estrela de Belém que tenta trazer o herói para a solução pacífica. Balthazar é um grande homem, diz o mercador, um dia todos serão como ele. Mas antes disso vamos manter nossas espadas afiadas. Esse vai-e-vem entre a luta e a paz pontua toda a obra e carrega de emoção o reencontro de Ben-Hur com a vida que tinha perdido. Você se transformou em Messala, diz a noiva para o herói, que cai em si diante da revelação, de que o ódio o estava levando para o que mais odiava. Esse tipo de filme seria, segundo análise tradicional, apenas propaganda dos judeus que dominavam a indústria cinematográfica da época. Mesmo que fosse, é um tipo de filme que não se faz mais. Hoje, temos a barbárie dominando tudo. Não há, para começar, lentidão no andamento, densidade no timing, nada. O que há são explosões e sangue e crueldade. Filmes fora do circuito também apelam para a violência. Vejam essa coisa megalômana chamada Tarantino, que chegou a dizer que a violência existe para ele filmá-la. Ben-Hur foi um mega-sucesso. Provocava emoção e reflexão. Quem nos dera, hoje.

RUSSIA - Grandes filmes costumam ser excluídos, colocados como perda de tempo. Vejam o caso de Dr. Jivago, o espetacular filme de David Lean. Tratado como uma obra água-com-açúcar, foi também acusado de não estar à altura do livro que o originou, de Boris Pasternak. Só a seqüência do reencontro de Jivago com Lara no interior do grande país, ou a cena em que ele a perde para seu arqui-inimigo, com seu amor sumindo no meio da neve no horizonte, ou mesmo toda a viagem de trem, que tem pelo meio a passagem de Strelnikov (Tom Courtenay lembrando Trotsky) bastam para dizer que este é um filme clássico, magnífico, inesquecível. Sem falar no personagem interpretado por Alec Guiness, que procura a filha do irmão desaparecido e a encontra tocadora, como o pai, de balalaika. É um dom, diz ele no final para a moça que some no meio da população de Moscou. Lembro de outro grande filme, esse de Vittorio de Sica, Os Girassóis da Rússia, com Sophia Loren e Marcelo Mastroianni. Filme sobre a perda, filme em que o cenário é a representação da majestade dos sentimentos. Tudo isso levou a arte cinematográfica ao esplendor. Mas achavam uma porcaria. Queriam a crueza, a violência pura e simples, o horror. Agora tem isso de sobra. Bom proveito. Eu prefiro a madrugada de insônia para rever o que me apertou contra a poltrona no cinema, naquela solidão do pampa, em que tínhamos acesso à cultura universal de grande presença estética, esse cinema que corria o mundo com sua grandeza jamais igualada.

17 de setembro de 2004

GOL DO BRASILEIRO FRANÇA

A bola veio do canto do campo, numa altura mínima, como se fosse a roda de um trem que rola sobre trilhos supercondutores, aquele que não faz fricção quando anda. França acompanhou a trajetória da bola como um menino que acompanha um carro, que aposta corrida com ele. Lembrei dos pneus velhos da minha infância, usados para colocar alguém dentro, todo enrodilhado. A turma joga o cara que faz a prova morro abaixo, para ver se ele agüenta ficar rodando dentro daquela borracha fedida. O corpo curvado e as pernas que se juntam aos braços o transformam numa parte do pneu. Os outros acompanham para debochar da cara do sujeito. Um deles é França, o menino que segue a bola como se estivesse num outro tempo, quando havia infância. Os gestos dele se parecem com o que vislumbro na minha lembrança.

PARADA - É uma corridinha típica de garoto do interior. As pernas compridas e magras de França se aceleram como se fosse um Flintstone dando partida no carro com os pés. Há um descompasso entre aquela pressa e a quantidade de espaço palmilhado. Ele no fundo corre alguns metros, mas parece que cruzou toda a rua acompanhando seu objeto de desejo. Os braços também se comportam de maneira típica. Eles se encolhem, para economizar vento e criar o gesto adequado da aceleração. O cabelo de lã do nosso artilheiro segue o percurso do corpo. França não tem corpo de atleta. Suas pernas muito finas, seu corpo aparentemente frágil, seu andar que mais parte para o desengonço do que para elegância significam que ele faz parte dessa linhagem de craques que nada tem a ver com o corpo sarado de outros esportes. Um Maradona ou um Garrincha são aqueles companheiros de rua que, muito pequenos, nada tinham a ver com esporte, a não ser que faziam tudo com uma bola qualquer. França tem um corpo comum, desses que a gente vê todos os dias, nos ônibus, nas calçadas, nos escritórios e fábricas. Não era para estar exposto na mídia mundial, participando da Copa dos Campeões, defendo o Bayern Leverkusen contra o Real Madri. Era para estar na parada de ônibus, preocupado com o atraso da lotação. De rosto carregado, ele está esperando o coletivo e lembra um dia em que acompanhou o pneu com alguém dentro. Seus olhos então se descontraem com a lembrança. Ele correu até lá embaixo, no fim da rua, para ver como o cara saía do pneu, todo tonto. Era então o primeiro a pegar o cara para rodopiá-lo ainda mais, pois o engraçado era vê-lo tentar ficar em pé e depois cair.

SURPRESA - França estava correndo ao lado da bola que não tocava no chão e todos esperavam o clássico chuveirinho europeu. Outros jogadores estavam à espera do seu lance. Queriam receber a bola pelo alto para cabecear em direção ao arco. França poderia fazer o previsível: dar um totózinho esperto por cima dos zagueiros para entregar a criança nos pés de um companheiro, colocando-o cara a cara com o gol. Mas ele estava correndo atrás do pneu, não jogando uma partida de futebol. Sabia que a bola estava na medida para alcançar sua verdadeira rota, a que foi intencionalmente posta em jogo quando alguém passou para ele. A bola precisava ir para o gol, mas deveria passar antes por França, que saberia colocá-la no lugar certo. Mas França surpreendeu todo mundo. Seu corpo todo encolhido, do menino que corre, que dá tudo numa arrancada para participar daquela turma impossível, de repente se desenrola como um novelo de fios de ouro, que um segundo antes davam a impressão que ficariam para sempre na mesma posição. Os pés de Flintstone passam imediatamente para a câmara lenta. O esquerdo serve para dar apoio (ele toca no chão? nunca saberemos) e o direito então consegue pegar a bola meio por baixo, já que ela vinha numa altura mínima. Então ele bate sem dó com o peito do pé, ou melhor, a parte posterior do peito do pé, numa posição de trivela (três dedos) centralizada. Na hora que ele bate, já é tarde demais. Os atacantes podem desistir, os zagueiros lamentar. Só o goleiro não quer render-se às evidências.

TEMPO - O goleiro deveria saber do que se tratava, mas não sabia. Achava que poderia defender o chute certeiro, que partiu bem da base do chão e foi ganhando altura como a águia que já fisgou o peixe antes do mergulho fatal. O goleiro teima em querer saber mais do que artilheiro e atira-se, espichando-se todo. Mas na hora em que França bateu, a bola já tinha cruzado o último reduto da mão do goleiro. Já tinha passado, pois o chute de um artilheiro viaja na velocidade da luz. O goleiro fez bonito, atirou-se com tudo, para sempre. Mas a bola beijou o véu da noiva, como dizia a crônica esportiva daqueles tempos em que havia infância. A comemoração do gol foi reveladora. França imitou o passo em falso de um boneco de mola. Era sua maneira de comemorar. Dizia com isso: meu corpo surpreende, jamais vocês irão me pegar. Ele foi então agarrado, abraçado, sufocado pelos seus companheiros. A sorte é que existe replay. Foi no replay que vi França chutar em gol, depois que ele já tinha feito o serviço. Vi apenas uma imagem de uma representação, o repeteco de algo único. O replay foi feito para aplacar a curiosidade dos distraídos, os que desistem de ver o jogo antes que este chegue ao esplendor. Quando houve o gol, nessa vitória contra o Real Madrid na terça-feira, que tinha fenômenos saindo pelo ladrão, e França saiu pisando em falso como um moleque de rua de antigamente, e todos abraçavam o brasileiro que reinventou a dança do pneu usado, eu já estava fisgado pela mágica que caiu sobre a tarde. Todos viram o que eu vi. Mas só as palavras poderão resgatar o que o lance encerra na sua misteriosa performance de realidade invisível. Foi um gol que estilhaçou a vidraça do dia, provocando algazarra geral na vizinhança e nos lembrando o quanto podemos ser maiores quando somos apenas a mesma coisa de sempre: humana fantasia, prisioneira no tempo eterno e perecível.

16 de setembro de 2004

A DESMORALIZAÇÃO DO TRABALHO


É premeditado: o enterro precoce do trabalhismo coincide com a desmoralização do trabalho. Milhares de pessoas enchem o estádio do falido futebol brasileiro para ter direito ao sorteio de dez vagas. Nada mais sintomático da sociedade lotérica em que vivemos, pois a ascensão via acaso significa tensão permanente. As ofertas que existem são de subemprego de um lado e de outro de meia dúzia de funções super-especializadas, que não são totalmente preenchidas devido ao sucateamento da educação. É por isso que Enjôo Soares fica meia hora debochando de cargos humildes batizando-os de nomes pomposos. Ele acha engraçado.

JUSTIÇA - A geração em massa de subempregos enche a boca do poder com a expressão carteira assinada. Que adianta assinar carteira se o pagamento, ou seja, a distribuição de renda, é uma merreca? Ontem, na série Meu Cunhado, do SBT, o tema era o exagero das indenizações trabalhistas. A exceção foi apresentada como regra, para prejuízo da Justiça do Trabalho. Bronco Golias explorava o cunhado Washington Moacir Franco inventando acidentes de trabalho para arrancar dinheiro. Esse tipo de acusação tem sido comum. Por muitos anos fala-se mal das leis trabalhistas. Primeiro, a universidade manifestou-se mentindo que eram de inspiração fascista. Isso deu luz verde para a pseudo-modernidade do emprego informal, que se acumulou a partir da entrega total do país. Depois o empresariado fez intensa campanha contra as leis de amparo ao trabalhador acusando-as de obsoletas e coercitivas. Precisavam de liberdade para vencer. O que atrapalha é o funcionário, acusado de corrupto, safado, preguiçoso, aproveitador. Como exageraram na dose, recuaram um pouco, mas só de onda. A informalidade via terceirização e a transformação das pessoas físicas em jurídicas são hegemônicas. Para quem está no degrau mais baixo da escala social, qual o custo de uma carteira? Quero ver pagar bom salário e assinar a carteira. Aí o bicho pega. Mas salário, por ser distribuição de renda, é considerado coisa feia no país da extrema concentração, das grandes diferenças sociais, da falta de justiça (e não de punição; punição sobra, o que falta é justiça, o equilíbrio com isenção). O noticiário da TV, que é uma espécie de assessoria de imprensa do poder, vai na fábrica para literalmente gozar com o trabalhador, que depois de muito tempo consegue ganhar um dinheirinho com o suor do seu rosto. Esse crescimento veio bem, não foi? pergunta o segurador de microfone. Com certeza, responde o trabalhador.

ARGENTINA - Mr. Rato, do FMI, foi corrido pelos argentinos mobilizados. É assim que o povo de lá faz. Aqui, além do referido personagem ser recebido às gargalhadas pelo poder, ainda teve um plus na noite carioca, o que só confirma o quanto somos amados pelo mundo. Os argentinos conseguem reagir à destruição do país gerando um Kirchner e ao mesmo tempo colocando-o contra a parede. É por isso que o presidente deles fala grosso com os piratas internacionais e impõe novas condições para que as multinacionais instaladas no Brasil não façam tanto a festa no mercado argentino. Maradona, o garoto do ouro, é retrato de uma glória que já foi grande e hoje luta contra a decadência. Mas há altivez em tudo o que fazem, há principalmente coragem. País limitado, tem o sonho maior de grandeza. Vizinho de um país poderoso, jamais dá o braço a torcer. Numa enquête internacional, a Argentina ocupa exatamente o lugar oposto ao do Brasil. É o país considerado o mais antipático. Melhor assim. O amor à Argentina é um assunto exclusivo deles. Aos outros povos, resta o respeito. Deveria ser assim com o Brasil. Mas, ao contrário, somos muito amados, mas não há respeito por nós. Se fôssemos duros, se não deixássemos tomar tanto conta de nós, se não oferecêssemos tanto nossos encantos sedutores para todo mundo, possivelmente não seríamos tão queridos. Mas teríamos um pouco mais de presença no mercado internacional. Vejam como Kirchner trata Lula: bate o maior papo amistoso com ele e ferra o tempo todo.

15 de setembro de 2004

HISTÓRIAS DE ANIVERSÁRIO


Implico com os aniversários, especialmente os da chamada firma, e nisso a série Seinfeld já se manifestou, num episódio em que Elaine vicia no açúcar das 16 horas, quando se comemorava o natalício de alguém no escritório (ainda chamam o ambiente de trabalho de escritório?). Acho a data íntima demais para ficar submetida a pic-pics e rátimbuns de pessoas desconhecidas. Hoje mesmo é aniversário da minha mãe, que nasceu a 15 de setembro de 1916. Foi-se cedo demais em agosto de 1979. É uma data que jamais poderá ser lembrada com a musiquinha mentirosa americana do happy birthay (que toda a vez que eu ouço, me dá urticária).

REBENTOS - Sempre que falo de meus antepassados, tem alguém da família que implica, dizendo não ser assim (o famoso e clássico não é bem por aí). Mas vou arriscar. Rosa nasceu numa família que vinha, por lado de pai, de proprietários de terra, dos Carvalho daquelas plagas, descendentes de um patriarca militar, de nome Francisco, que no século 19 se instalou com a família em ampla propriedade. O grande número de filhos, nascidos de rebentos com a indiada local (naquele tempo existiam índios na região, que foram totalmente aniquilados ou absorvidas pelos cruzamentos) acabaram subdividindo as terras. O pai da minha mãe, que tinha uma pequena fazenda, morreu cedo, em circunstâncias que desconheço completamente. Por parte de mãe, Rosa descendia de italianos, dos Molinari, que tinham vistosa farmácia no centro. Não conheci meus avós. Apenas um retrato de Elvira Molinari, de perfil, vestida de luto, em moldura oval, como era moda. Minha mãe tinha três irmãs e um irmão. Contava que na revolução de 1924, quando era muito pequena e a cidade foi sitiada, a palavra de ordem na família era: todos para baixo da cama! Depois dizem que não houve guerra no Brasil, mas isso é outra História. Não quero aqui fazer genealogia, que nunca foi meu ramo, mas apenas uma pequena homenagem. Rosa tinha maravilhosa caligrafia. Até hoje guardo cartas dela, na minha casa em Sampa, das quais publiquei alguns trechos no site. Estudiosa e inteligente, foi para Porto Alegre e de lá voltou com diploma de professora, profissão que abraçou ainda muito mocinha. Mais tarde, fez concurso público para o Centro de Saúde, de onde só saiu aposentada. Guardava por 24 horas todo o seu salário no guarda-roupa e só começava a gastar depois dessa quarentena. Essa simpatia servia, penso eu, para que pudesse pensar direito no que ia aplicar o curto e escasso dinheiro. Mas vai entender seus rituais?

CALIBRE - Mãe de sete filhos, com inúmeros compromissos, trabalhando diariamente no seu emprego público, Rosa um dia cometeu a gafe de esquecer meu aniversário, mas no final do dia se recompôs me presenteando com inesquecível abraço e um revólver que pelo tamanho deveria equivaler a um calibre 45. Com essa minha magnum matei dúzias de inimigos imaginários e saí da infância completamente pacificado pela representação que me permitiram dos conflitos na infância. Hoje a demagogia manda sucatear armas de plástico, enquanto grossa dinheirama rola no tráfico pesado de armas, que vai totalmente para a mão de bandidos bem armados, a maioria crianças que brincam de verdade de matar. Mudaram os tempos: hoje os demagogos estão no poder. Naquela época existia infância, nós puxávamos nosso revólver de mocinho e todo mundo ria. Hoje, todos choram. Mas é politicamente correto, não é mesmo? Sobra lição de moral para distribuir. E ai de você se criticar alguém. Jogam-se contra teu pescoço como feras cheias de razão. Minha mãe debochava da mediocridade. Ria sem parar da idiotice do país. Emocionava-se com seus eventos mais importantes. Gostava de ler Jorge Amado e Érico Veríssimo. Adorava Chico Buarque e Roberto Carlos.

SONHO - Dificilmente sonho com ela. Esses tempos, ela me apareceu enquanto eu dormia, com seu rosto sóbrio, sério, triste, grandioso. Levantei com sua presença poderosa. Um dia eu também esqueci seu aniversário, por pura distração. Eu já morava em Porto Alegre, estava taludo e passava alguns dias em casa. Ela sentou-se no sofá com a mão no rosto e chorou por dentro. O filho já tinha ido embora. Perdia os rebentos de sua numerosa prole, que migravam para longe dela. Antes de completar 63 anos, despediu-se de todos, um por um. Depois que se foi para sempre, minha irmã Védora veio me repassar um dinheiro. Dona Rosinha sabia que eu estava duro e me deixou o suficiente para a viagem de volta a São Paulo. Haverá um dia alguém como Rosa Molinari Carvalho Duclós? Duvido.

RETORNO - 1. Tomzé deu uma aula de vanguarda. Ensinou como a música popular pode desencadear um processo criativo sofisticado e como, dialeticamente, soube enxergar-se a tempo para mudar e transformar-se num criador de verdade. Enjôo Soares contribuiu com a entrevista constrangendo Tomzé ao notar uma diferença sutil entre os dois pés de tênis que o artista usava. Os tênis eram parte integrante da aula de Tomzé. Aquele serviçal, Bira, que se comporta como serviçal e é pago para rir no programa, ficou tirando um toco do professor de vanguarda, para reiterar a grosseria do patrão. A mediocridade está sempre atenta.

2. Dizem que o Brasil é moda e considerado o país mais amado do mundo, segundo versão oficial. A China não precisa ser amada, diziam os chineses. Basta ser respeitada. Os estrangeiros não precisam amar o Brasil. Nós damos conta desse recado. Desconfio que esse amor feérico pelo país-fêmea tem a ver com a nossa total falta de proteção. Um dia levaram as riquezas naturais (continuam levando). Mas agora eles extraem é o suor da população, via juros da dívida externa. Não vamos nos enganar: o Brasil vai crescer até chegar novembro, fim das eleições. Aí a situação muda.

3. A partir de hoje, meu texto sobre a representação do jornalista nos filmes e novelas globais está no La Insignia. A sugestão, como sempre, foi de Urariano Mota, e a edição de Jésus Gómez. O pernambucano Urariano classificou o texto de porreta. Dispomos de palavras magníficas neste país que precisa voltar a ser soberano.

14 de setembro de 2004

A LIBERDADE TOTAL DA LITERATURA


A literatura é a oportunidade que a linguagem tem de se reinventar. Diferente do jornalismo ou das ciências humanas, que obedecem a paradigmas e precisam do consenso do entendimento, de um acordo prévio para ser debatido e desenvolvido, a literatura caracteriza-se pela liberdade de suas falas, do desenraizamento total e da radicalidade de suas experiências. Já que por natureza possui amplo espectro, proporcionado por essa liberdade, ela presta-se mais a uma abordagem seletiva, pois fica difícil abraçar esse vasto mundo ou fazer seu inventário. A saída é definir um conjunto de células para tentar nele soprar nele um pouco de sentido.

LIMITES - Meu álibi para estreitar os limites dessa minha conversa também inclui uma necessidade própria de trafegar pelas leituras que decidi adotar como insumos básicos, tanto do que produzo quanto do que costumo analisar como resenhista. Trata-se de uma deliberação e não de uma desistência diante da complexidade do tema. Por fazer parte do exercício da liberdade, numa época de transformações profundas e cada vez mais rápidas, a literatura desvencilhou-se das últimas escolas e partiu para a aventura radical. Mas isso não a tirou fora do jogo político. A invenção literária permanente costuma refletir o desespero, pois é do caos que ela trata, postura gerada pelo desligamento dos cânones. Vemos isso em Kafka, para pegar o exemplo mais notório. Mas o narrador que é persona do autor diante da indiferença e brutalidade do mundo, é obrigado a reconstruir a linguagem numa nova ordenação do caos. O resultado é uma narrativa sinistra, que faz parte do desencanto econômico e político da Europa que gerou a barbárie de duas guerras. Esse parece ser o personagem favorito da literatura brasileira de hoje. O viajante de João Gilberto Noll em vários dos seus livros, o pesquisador do romance Fantasma, de José Castello, o detetive Cid Espigão de Tabajara Ruas são agentes dessa reordenação da linguagem que veio á tona depois de assassinada. Isso se chama liberdade, mas também está profundamente ligado à ditadura que nos surpreendeu, criou e ainda nos mantém numa espiral de insônia.

DIÁSPORA - Meu romance Universo Baldio (Francis, W11 Editores, 2004) é a composição de duas falas que tentam se complementar. A primeira é a desse caminhante perplexo que vive o desmoronamento do mundo e rearticula sua presença literária para não perder a identidade que arduamente construiu no meio do caos. Nessa primeira fase, há a perplexidade diante da diáspora humana que gerou aquela história, que acaba, como começou, na estrada, dentro de um coletivo que coleciona monólogos. Na segunda parte, a persona que encarna o narrador divide-se diante dos seus fantasmas e ao tentar, desesperado, reencontrar-se, acaba descobrindo o quanto perdeu na sua trajetória. Pior: sabe então que sua perda veio de longe e que nunca houve remédio para ela. Mas ainda se mantém a esperança de que o tecido desfeito possa ser refeito no final, onde o happy end seria uma forma de vingança, e não um lugar comum. Mais não posso dizer desse romance escrito num intervalo de vinte anos e que é uma síntese de várias incursões na prosa literária que se dispersa hoje em crônicas, memórias, contos e projetos de novos romances. O fazer literário não basta, pois ele enfrenta primeiro a dificuldade de exposição pública, por motivos demais conhecidos. É preciso aborda-lo na análise, fazer parte da composição de falas que descem sobre a literatura como uma chuva de conceitos. Minha participação nessa área tem sido constante e compreende desde autores como Rilke, Simões Lopes Neto, Vinícius de Moraes e Borges, como escritores que na minha geração ajudam a compor um universo literário pautado pela liberdade total. Na resenha, procuro incorporar a liberdade literária, encarnar o verbo para ser fiel à fala alheia. Costumo partir para lances não pautados na intenção inicial do texto, mas que felizmente transformam-se, a seu modo, parte da minha literatura.

FEIRA DO LIVRO - A Feira do Livro de Porto Alegre neste ano vai receber dois poetas que naquela mesma praça, a da Alfândega, inauguram sua vida literária, expondo poemas em cartolina e gritando seus versos para o povo que passava (isso em plena ditadura, em 1969, que na definição do amigo poeta era o Ano da Graça). Marco Celso Viola já tem quase pronto seu Poemas para ler em voz alta, estréia mundial de fato da sua profunda, pujante, original e magnífica arte literária, e estará comigo para conversar com o público, num evento que ainda vou divulgar aqui. Marco notou esses tempos que somos poetas longevos, o que é uma surpresa, pois tínhamos tudo para uma vida breve e uma longa presença literária. Sorte que só a segunda parte se concretizou.

13 de setembro de 2004

O JORNALISTA DE FILME E DE NOVELA


O ator José Mayer (que insistem em chamar de galã) faz o papel de um colunista diário em Senhora do Destino, a novela das nove da Globo. Quando decide trabalhar, arregaça as mangas, literalmente. Faz toda uma performance física para um trabalho mental. Lembro de Antonio Maria que incomodou um político poderoso com um artigo e acabou sofrendo um atentado. Os meliantes quebraram suas mãos. Antonio Maria saiu-se com uma pérola. Idiotas, disse o grande cronista, eles acham que eu trabalho com as mãos. Na novela anterior, Celebridade, os jornalistas retratados eram da pior espécie. Parece ser difícil reproduzir essa profissão numa obra audiovisual. Os americanos são mestres em consolidar equívocos.

PASSAGENS - A melhor atuação foi a de Clint Eastwood, que faz o veterano repórter caído em desgraça mas acaba resolvendo um crime e assim salvando um condenado à morte. Outra atuação admirável é a de Kirk Douglas em A Montanha dos Sete Abutres (The Big Carnival). Ele faz o papel do repórter também fora do circuito que tenta voltar à ativa com sensacionalismo barato que acaba em tragédia. Mas normalmente os jornalistas são reproduzidos como uns grandes boas vidas, que nada mais tem a fazer do que ocupar-se de uma determinada história. Todo jornalista é um produtor de caracteres, já que o jornal tem espaço de sobra para ser preenchido. Raramente existe o repórter que se debruça sobre um só assunto durante dias ou semanas. O jornalista é confundido com detetive ou simplesmente galã. Mas o maior equívoco é no telejornalismo, com as famosas passagens, que é a aparição do repórter com o microfone na mão falando sem parar (se for Caco Barcelos ou William Waack, pode). TV é rádio: o áudio é gravado para depois ser preenchido com imagens. É por isso que tem tanta gente querendo ser jornalista: parece ser uma profissão cheia do chamado glamour, feita de grandes aventuras (como a do chato do Fantástico que fica perguntando para onde ele vai) ou de viagens sobre a neve e as montanhas. Jornalismo é um trabalho diário, duro, sem fim-de-semana nem feriado, feito sob as ordens dos mais diversos e duros algozes, a começar pelo seu colega de profissão, os editores, os editores- chefes, os diretores de redação, os patrões, as agências de publicidade e as autoridades em geral. Parece aquela história do Henry Ford, de que os carros poderiam ter qualquer cor, desde que fossem pretos. Você pode escrever o que quiser, desde que obedeça a todo mundo.

CENSURAS - Amigo, aqui é da delegacia de polícia. Teve um acidente aí na avenida tal envolvendo fulano, não é para divulgar nada, falou? Gelei quando recebi esse telefonema nos anos 70, em Vitória do Espírito Santo. Posso te fazer uma pergunta à socapa? perguntou o famoso editor. O que tem a ver esse teu texto com a revista? Peguei tua reportagem para dar uma garibada, disse o editor de texto quando entreguei a primeira matéria da minha vida. O texto não foi mexido em nada, mas não saiu assinado por mim. Tirei a matéria principal da tua edição e coloquei mídia interna; não gostei, me disse outro, depois de eu ter passado uma madrugada inteira fechando algumas páginas. Lembro que essa reportagem, da jornalista Izilda Alves, era sobre um crime misterioso em São Paulo e meu título era: a máfia tem voz de mulher. Os melhores textos e títulos são geralmente boicotados. Se existe algo sempre alerta é a mediocridade que faz a censura das mais variadas formas. Parece que farejam. Na hora que você vai dar o grande bote, sempre tem um boi-corneta, como diria meu pai. Você então vai colecionando camas-de-gato ao longo da sua vida e essa carga acaba te fazendo menos confiante do que antes. O perigo é deixar-se abater. É preciso redobrar a atenção e preparar o troco. Quando menos esperam, lá está você com um bela investida. Agüente o repuxo, pois virá bala. Vão te infernizar, te copiar, desqualificar, demitir, fazer de tudo para eliminar o estrago. Mas dez anos depois de você ter dado aquela cravada, alguém liga no teu celular e diz: soube desse número e precisava te falar; aquele poema, aquela reportagem, cara, mudaram minha vida.

DESTINO - Aí você sabe que escrever não significa arregaçar as mangas para mostrar que trabalha. Escrever é ser recebido no coração dos teus contemporâneos.

12 de setembro de 2004

O MENSAGEIRO DE BRONZE


Nei Duclós

Minha estréia no Diário Catarinense teve caprichada edição do jornalista Dorva Rezende, com belíssima ilustração de Samuel. O artigo está na edição deste domingo no caderno Donna. Vou participar uma vez por mês neste suplemento, graças à recepção de Dorva e do editor-chefe Claudio Thomas, responsável por um jornal que faz História aqui em Santa Catarina. A seguir, reproduzo o texto que já está disponível, para quem se cadastrar, no site do jornal.

HISTÓRIA - Maratona é mídia. No exemplo clássico, o mensageiro usa o fôlego e o físico para transmitir uma informação de importância estratégica: o desfecho de uma batalha e a necessidade de proteger o flanco desguarnecido da retaguarda. O esforço brutal do atleta não era só para chegar a tempo, como dar o recado certo, para que não houvesse dúvida sobre o seu conteúdo. Costuma-se apontar apenas causas físicas para explicar a morte do mensageiro logo depois de cumprir sua missão. Prefiro entender a morte de Filípides, o corredor, como a metáfora mais contundente da função do jornalista: o de colocar a vida na tarefa e sair de cena quando é plenamente realizada, para que a notícia, e não o mensageiro, seja o verdadeiro destaque. O primeiro maratonista fez História ao cumprir sua função de mídia (com perdão do anacronismo da palavra). Assim também o jornalismo, que só pode fazer História quando faz jornalismo e não quando ocupa postos-chave de testemunha ocular sobre fatos previamente escolhidos como momentos especiais. A História não pode ser vista a olho nu. A Revolução Francesa, por exemplo, foi inventada pelo gênio de Michelet, que, quarenta anos depois da Queda da Bastilha, desceu aos porões dos arquivos públicos e de lá tirou o tesouro de uma história sobre o povo francês e a radical transformação do mundo. É conhecido o fato de que não havia quase ninguém na prisão famosa, que mais tarde serviu de ícone de um tempo em transformação. Assim também a História da nossa Independência, inventada como incruenta pelo talento do diplomata Oliveira Lima, autor do clássico Dom João Sexto no Brasil. Faltam historiadores para compor a presença da guerra na História do Brasil. Com oito milhões e meio de quilômetros quadrados, o território foi conquistado palmo a palmo por nossos ancestrais, a ferro e a fogo, não apenas pelo brilho da diplomacia, que negociava nos fóruns internacionais o que tínhamos conseguido na marra. A Guerra da Independência, que ocorreu entre 1821 e 1823, teve batalhas de mais de quatrocentos mortos no Nordeste, segundo o relato do historiador José Honório Rodrigues na sua grande obra sobre os eventos que eliminaram o domínio português entre nós. É tida como obsoleta a História do momento histórico, tão hegemônica no império da imagem que nos domina. O que vale é a composição da História por meio das várias metodologias disponíveis, a cargo ou não de historiadores. Esse tecido invisível que se transforma em acervo do conhecimento humano está a anos-luz do que a mídia hoje entende como História.

PAUTA - A lição do maratonista Vanderlei Cordeiro de Lima é que ele não estava programado para vencer, não fazia parte da pauta, totalmente voltada para outras expectativas. O que houve, primeiro, foi a surpresa do seu desempenho, que o colocou na ponta da corrida. Essa aparição sem nenhum aviso prévio trazia a mensagem de um país que pode se superar desde que se acredite no povo que ocupa o seu território. Mas essa notícia foi boicotada por outra, a do fim do mundo. No fundo, o ex-padre apocalíptico colocou Vanderlei no lugar a que estava destinado pela indiferença da cobertura. Roubou-lhe a glória, mas não a missão, que foi retomada com o espírito desarmado de um herói moderno, o que encarna a paz e reage com o perdão. Não ganhou ouro nem prata, metais de extração, mas bronze, que é uma composição humana a partir de tesouros naturais. Simbolizou portanto a independência de quem assume a responsabilidade e dribla as cartas marcadas da percepção. Esse é o desafio que o jornalismo deve entender ao convencer-se que está a reboque dos fatos que não obedecem a explicações prontas. A História é outro departamento e pode surgir numa curva, nas pernas de um atleta anônimo.

PASSAPORTE - Cumprir o próprio destino exige desprendimento e preparo. Abrir mão da ansiedade do reconhecimento, mas não da meta, parece ser o segredo de um novo tipo de sucesso, o que humaniza o protagonista e não o destaca pela exclusão em relação aos outros. Em plena agonia, Sérgio Vieira de Mello preocupava-se com a continuidade da missão da ONU no Iraque. Ele sentira o quanto o mundo poderia chegar perto da paz, desde que houvesse determinação para isso. A coragem nasce dessa força interior que combina o pânico de estar vivo com a necessidade de cumprir uma tarefa essencial, que seja a marca da nossa passagem pela terra. A predestinação apenas confirma o que o espírito humano criou para si mesmo: se queremos chegar ao destino, mesmo que nos joguem para o canto, é melhor estar disposto a dar a vida por essa missão. Ela vale mais que nosso corpo exausto e datado. E é o único passaporte para uma vida plena, a que não se deixa levar por decisões prévias, inspiradas na mesquinharia.

RETORNO - What is Brazil? perguntou um dia Charles Bronson. A resposta correta é: o Brasil é o site Fotogarrafa, de Marcelo Min. É impressionante: além de acompanhar o povo em Sampa, Min foi até o sertão nordestino e trouxe de lá não apenas fotos inesquecíveis (a das menininhas de vestido comprido rosa é de chorar) como denúncias, procissões, gente perdida deste país-continente, um material que merece estar em toda a imprensa. Sorte que a ficha dos editores começou a cair (sempre tem um dia em que eles acordam). A Carta Capital já está usufruindo do talento do nosso genial fotógrafo, um cara tão contundente e talentoso que tenta nos convencer que o Fotogarrafa é apenas enrolação virtual, o que é a única inverdade do site. A foto deste blog, em que estou abraçado a uma das minhas obras, as edições da revista Notícias Fiesp/Ciesp, é dele. O Diário da Fonte nivela pelo alto.