Nei Duclós (*)
Há medo no ar. A intimidade está sendo devassada. Ninguém se sente seguro. Querem saber tudo de você. Na caixa do supermercado, como alertou uma leitora desta revista, aquele que ocupa um lugar atrás na fila se debruça para saber RG, CIC, telefone e endereço de quem está sendo atendido. Mesmo sem ficar interessado nos dados do outro, essa pressão significa que há vontade de ocupar o espaço alheio.
Nas casas a situação é idêntica. Você levanta o muro e sempre tem alguém que sobe ainda mais alto para poder espionar. É um desaforo que você se feche em copas. É preciso se entregar à bisbilhotice. Foi decretada a transparência total. Podem clonar um perfil. Podem telefonar com ameaças. Podem multiplicar os exemplares dos cartões. Você está distraído, mas todos sabem quais são seus hábitos, suas demandas.
E não invente de deixar a porta do carro com um milímetro de afastamento do lugar certo, pois a humanidade cairá em cima de você gritando, desesperada: “A porta está aberta!”. Essa síndrome realmente me deixa intrigado. Por que mexe tanto com as pessoas? Elas não admitem que você trafegue sem que esteja totalmente trancado no automóvel. Talvez porque esse seja o último refúgio da privacidade. Como não há mais como escapar, só é possível cultivar o anonimato e a intimidade sentados ao volante, bem protegidos por uma película escura grudada no vidro. A porta aberta seria o caos, o sinal de que o reduto mais extremo estaria enfim nos braços do perigo.
O que mais espanta é ver até crianças berrarem para você apontando o estrago. Motoqueiros se jogam contra sua lateral para denunciar a ameaça. Está se sentindo isolado, ninguém dá bola para você? Bata com displicência a porta do automóvel e saia devagarinho. Verá então o pânico histérico diante do evento que significa a última coisa suportável sobre a face da terra. Há indiferença diante do seqüestro interminável que deságua no assassinato. Pode-se bocejar com a crise das bolsas, o sucateamento do crédito, o horror dos programas de auditório, as notícias mentirosas, as alegrias forçadas, as falcatruas. Tudo passa. Mas uma portinha quase entreaberta, assim, minimamente fora do prumo, faz com que o dilúvio, o apocalipse e o universo em desencanto se desencadeie como avalanche sobre você.
Basta você corrigir o defeito para que tudo volte ao normal. As pessoas fingem que não prestam atenção. Talvez até seja bom esse negócio da porta. Pois ela mostra o quanto estão atentos à sua vida. Deixe alguma coisa por fazer para ver como funciona. Esquecer o lenço no chão era o expediente das moças que queriam atrair os futuros maridos. Manter a manchinha na roupa impecável não falha. O detalhe expõe o olho fixo em você.
Escancarar as janelas da casa, quem sabe, poderá provar que não somos tão interessantes assim. Antigamente, ninguém fechava nada. Passarinhos perdidos entravam sôfregos, e se debatiam entre panelas. Vizinhos eram como pessoas da família. Visitantes esporádicos metiam a mão no trinco. Comadres andavam na ponta dos pés porque sabiam que alguém na casa sesteava naquela hora.
É que, talvez, tudo já se soubesse e ninguém sentia necessidade de se esconder. Nem existiam carros suficientes para mexer com a multidão. Era o tempo das carroças. O ploc ploc dos cavalos que carregavam leite ou verduras rebatiam no forro. Vivíamos numa eterna manhã de primavera. Acordávamos para a vida. Alguém jogava pedras na nossa janela. Era a garotada da vizinhança, mostrando uma bola de futebol. Sumíamos então nos terrenos baldios. Ninguém lembrava mais daqueles moleques enfezados, que atrapalhavam a vida da casa.
Morávamos no Mundo Perdido. Era quando fazíamos parte da Criação, próximos demais da divindade, que de vez em quando não resistia e vinha participar da pelada. Mas Ele não tinha domínio suficiente, não driblava direito, o que demandava certa malandragem de estilo. Preferíamos então colocá-Lo no arco, onde fazia defesas sensacionais, voando até as nuvens para segurar o chute que jogávamos nos eucaliptos. Era impossível furar aquele goleiro. Jamais deixava a guarda aberta.
Há medo no ar. A intimidade está sendo devassada. Ninguém se sente seguro. Querem saber tudo de você. Na caixa do supermercado, como alertou uma leitora desta revista, aquele que ocupa um lugar atrás na fila se debruça para saber RG, CIC, telefone e endereço de quem está sendo atendido. Mesmo sem ficar interessado nos dados do outro, essa pressão significa que há vontade de ocupar o espaço alheio.
Nas casas a situação é idêntica. Você levanta o muro e sempre tem alguém que sobe ainda mais alto para poder espionar. É um desaforo que você se feche em copas. É preciso se entregar à bisbilhotice. Foi decretada a transparência total. Podem clonar um perfil. Podem telefonar com ameaças. Podem multiplicar os exemplares dos cartões. Você está distraído, mas todos sabem quais são seus hábitos, suas demandas.
E não invente de deixar a porta do carro com um milímetro de afastamento do lugar certo, pois a humanidade cairá em cima de você gritando, desesperada: “A porta está aberta!”. Essa síndrome realmente me deixa intrigado. Por que mexe tanto com as pessoas? Elas não admitem que você trafegue sem que esteja totalmente trancado no automóvel. Talvez porque esse seja o último refúgio da privacidade. Como não há mais como escapar, só é possível cultivar o anonimato e a intimidade sentados ao volante, bem protegidos por uma película escura grudada no vidro. A porta aberta seria o caos, o sinal de que o reduto mais extremo estaria enfim nos braços do perigo.
O que mais espanta é ver até crianças berrarem para você apontando o estrago. Motoqueiros se jogam contra sua lateral para denunciar a ameaça. Está se sentindo isolado, ninguém dá bola para você? Bata com displicência a porta do automóvel e saia devagarinho. Verá então o pânico histérico diante do evento que significa a última coisa suportável sobre a face da terra. Há indiferença diante do seqüestro interminável que deságua no assassinato. Pode-se bocejar com a crise das bolsas, o sucateamento do crédito, o horror dos programas de auditório, as notícias mentirosas, as alegrias forçadas, as falcatruas. Tudo passa. Mas uma portinha quase entreaberta, assim, minimamente fora do prumo, faz com que o dilúvio, o apocalipse e o universo em desencanto se desencadeie como avalanche sobre você.
Basta você corrigir o defeito para que tudo volte ao normal. As pessoas fingem que não prestam atenção. Talvez até seja bom esse negócio da porta. Pois ela mostra o quanto estão atentos à sua vida. Deixe alguma coisa por fazer para ver como funciona. Esquecer o lenço no chão era o expediente das moças que queriam atrair os futuros maridos. Manter a manchinha na roupa impecável não falha. O detalhe expõe o olho fixo em você.
Escancarar as janelas da casa, quem sabe, poderá provar que não somos tão interessantes assim. Antigamente, ninguém fechava nada. Passarinhos perdidos entravam sôfregos, e se debatiam entre panelas. Vizinhos eram como pessoas da família. Visitantes esporádicos metiam a mão no trinco. Comadres andavam na ponta dos pés porque sabiam que alguém na casa sesteava naquela hora.
É que, talvez, tudo já se soubesse e ninguém sentia necessidade de se esconder. Nem existiam carros suficientes para mexer com a multidão. Era o tempo das carroças. O ploc ploc dos cavalos que carregavam leite ou verduras rebatiam no forro. Vivíamos numa eterna manhã de primavera. Acordávamos para a vida. Alguém jogava pedras na nossa janela. Era a garotada da vizinhança, mostrando uma bola de futebol. Sumíamos então nos terrenos baldios. Ninguém lembrava mais daqueles moleques enfezados, que atrapalhavam a vida da casa.
Morávamos no Mundo Perdido. Era quando fazíamos parte da Criação, próximos demais da divindade, que de vez em quando não resistia e vinha participar da pelada. Mas Ele não tinha domínio suficiente, não driblava direito, o que demandava certa malandragem de estilo. Preferíamos então colocá-Lo no arco, onde fazia defesas sensacionais, voando até as nuvens para segurar o chute que jogávamos nos eucaliptos. Era impossível furar aquele goleiro. Jamais deixava a guarda aberta.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada no domingo, dia 9 de novembro de 2008, na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: "O jogo", de Cândido Portinari.
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