30 de maio de 2005

AL PACINO, A ENCARNAÇÃO DO PODER SEM ROSTO

O maior ator do mundo, entre os vivos, encarna sempre algum poder oculto. O relações públicas que inventa eventos e carreiras, o produtor do programa de TV 60 Minutos que peita a poderosa indústria do tabaco, o mafioso que quer lavar sua fortuna, o migrante que pela violência tenta impor-se dentro do império, o advogado de porta de cadeia que enfrenta a corrupção dos juízes, o homossexual pobre que assalta um banco para ter acesso aos recursos da tecnologia na área da saúde para seu amante, e por aí vai. Há uma coerência nessa carreira mais do que brilhante, nessa iluminação que nos seduz pelo carisma, o talento, a técnica, a performance ou simplesmente pela presença na tela. Al Pacino mostra a cara do que ocorre nos bastidores da nossa sociedade tão metida a transparente, mas que cultiva sempre o ocultamento, a garganta profunda, para que o poder se mantenha na mão de poucos, contra as sociedades de massa, que ficam à mercê dos mais hediondos interesses e crimes.

GRITO - Começamos pelo mais importante, o Godfather III. Al Pacino é o Corleone que quer banhar-se no dinheiro legal, lavado, que faça de si e sua família uma comunidade respeitável. O chefe mafioso acredita que haja algo acima dele, o poder legalizado e dentro das normas jurídicas. Sabe que há um furo, é possível comprá-los, mas não tem noção exata da enormidade da máfia que dispõe do poder de fato, total e absoluto. Quando perde a filha nas escadarias da igreja, devido aos problemas gerados pela sua insistência em tornar-se um homem aparentemente de bem, ele dá o mais lancinante e demorado grito mudo da história do cinema. Al Pacino com as mãos na cabeça sem emitir um som e de boca escancarada por longos minutos é o momento mais terrível que um espectador pode suportar. Não gostamos daquele mafioso, não torcemos por ele, já que o filme é pura desdramatização o tempo todo, uma denúncia constante do que ocorre no grande mundo das finanças e da política. Nada queremos com ele, mas quando Al Pacino implode diante de nós temos vontade de voltar correndo para casa e nos esconder embaixo do colchão. Então é esse o mundo em que vivemos, sonhamos, nos movimentamos? Esses são os poderes ocultos que mostram apenas alguns flashes para nós e que só Coppola e seu grande e maravilhoso ator poderiam nos dizer com todas as letras, imagens e gestos? Esse é o poder oculto encarnado por Al Pacino, o maior entre seus pares que ainda estão sobre a terra (embaixo dela, há Marlon Brando, e basta).

ESTRELA - Al Pacino torna-se uma estrela por encarnar papéis que são o avesso do estrelismo. Ele não fica fazendo caras e bocas diante das câmaras, ele quer que a gente enxergue o que está perto de nós, diante de nós, e não conseguimos ver nem ouvir direito. Sua voz é contundente, sua emoção é aos trancos, sua persistência ultrapassou todos os limites. Ele está sempre um passo além do extremo. Quando grita Attica! Attica! Em Um dia de cão, ele está por conta, exausto, destruído. É nesse território sem dono, o não-lugar das criaturas que resolvem ficar de pé mesmo sabendo que já transgrediram as fronteiras de qualquer tipo de vida normal, é ali, no ninho da coruja, onde há cobras à espreita, onde há espectadores vocacionados para bocejar que ele nos coloca frente à frente com algo que não poderemos evitar. O ex-militar cego de Perfume de Mulher (apesar de eu preferir a versão italiana com Vittorio Gassmann) está morto há tempos mas não se conforma. Ele emerge com seu rosto profundo e destrata os vivos porque vivos estão. Qualquer um esqueceria esse horrendo personagem, menos Al Pacino, que vai catar nas sombras o que nos manipula. Serpico, o detetive que entrega a corrupção policial, só confirma essa natureza do trabalho de Al Pacino como ator: ele revela o que está escondido e com isso ganha a maldição. Al Pacino convence a testemunha a depor contra os industriais dos cigarros e com isso briga com o próprio repórter e apresentador do programa, com todo mundo.

SEGREDO - Ele está só. Construiu sua dignidade pelo caminho mais difícil. Por isso há uma esperança no reino do Mal: que Al Pacino desapareça de uma vez, para continuarem sem rosto. Mas teremos a nosso favor os filmes, a herança de Al Pacino, o cara que nos apontou os grandes crimes debaixo do nosso nariz e que por isso tornou-se o mais humano e completo artista que a tela do cinema conseguiu nos mostrar nestes anos de trevas e silêncio, apesar da balbúrdia geral ( o barulho é o esconderijo secreto dos vilões).

RETORNO - 1. O assustador e magnífico conto de Daniel Duclós, Fluxo Negro, está publicado na revista Bestiário, uma das mais importantes revistas culturais do país. Daniel, estudante de Letras da USP, também foi selecionado para figurar em próxima edição impressa de outro revista, que divulgaremos quando sair. daniduc rox! 2. O site, atualizado todos os dias, explode em visitas. 3. Produções literárias e trabalho jornalístico tem me tomado tempo e o Diário da Fonte continua em ritmo um pouco mais lento de atualizações. A revisita que tenho feito aos nossos arquivos me revelam a gigantesca produção dos últimos anos, quando aqui abordamos de tudo, como é de lei num jornal que se preze. A seleção dos textos agora estão editados e organizados no site. Mas ainda falta muito para colocar lá. Vamos em frente.

29 de maio de 2005

BALANÇO DE UM OFÍCIO




Já são mais de cem textos colocados no site, que, se as estatísticas estiverem certas, já alcançou, num só dia, mais de mil visitas. Tenho revisitado o DF para reproduzir ou editar o que escrevi ao longo destes anos neste espaço (é por isso que na última semana as edições aqui escassearam). Vale a pena. Muita coisa que eu tinha esquecido, outras que precisavam de cortes e reparos estão agora concentrados no site, organizados e prontos para a publicação em livro. É um trabalho que há tempos eu queria fazer. É impressionante o que se consegue criar quando existe a atenção dos leitores, a expectativa da repercussão, a vontade de acertar a mão, o diálogo permanente, a alegria da vocação e o suor do trabalho construído todos os dias. Florianópolis ajuda: a paisagem, o mar, os ventos, o frio e muitas vezes, quando os vizinhos permitem, o silêncio. Por isso peço paciência aos amigos. O DF voltará daqui a pouco a seguir viagem. Por enquanto, estou voltado para o que foi escrito, e que não é pouco. Jamais escrevi tanto na minha vida. Realizo assim um sonho antigo, o de me dedicar todos os dias ao que mais gosto de fazer.

27 de maio de 2005

LIGAR O DESCONFIÔMETRO




O prefeito José Serra foi apresentado à Marginal Tietê inundada. Levou fotógrafos. Lembro governadores que visitam favelas no lugar de transformá-las em bairros com toda a infra-estrutura (o que não é difícil, basta deixar de desviar o dinheiro). Lula é acusado na Folha de servir de pistoleiro dos EUA no Haiti e aproveita para trazer o problema nuclear para o Brasil, na sua visita à Coréia (onde fez um gesto de punho fechado sugerindo que é um cara com muita tesão, já que comentava assim um certo afrodisíaco num feira de lá). Ao mesmo tempo, a Folha desanca o governo numa sucessão de manifestações do pensamento único. O governo é tudo o que vemos e dizem, mas a mídia tem responsabilidades políticas. Está chamando o golpe de estado, como já ameaça acontecer na Bolívia.

GOLPE - As vivandeiras de quartel são assim: no lugar de respeitar as Forças Armadas (e convencê-las a não entrar no barco furado do Haiti) na hora em que o governo enfraquece ficam chamando o pior. Golpismo, sim. Lutar contra a ditadura disfarçada de democracia não é simplesmente derrubar presidente. Isso a direita faz. É pressionar o sistema a atender a população, é transformar em lei o que funda a soberania.

NEVE - O Brasil não foi feito para chuva. Imaginem se nevasse. É, vejam só, que coisa, nevou, não há o que fazer, vai tudo ficar soterrado mesmo, infelizmente o governo não pode fazer milagre . Ou: Pois é, seu repórter, perdi tudo com a neve, morreram todos aqui e por sorte o sr. chegou com um chocolate quente. No lugar de colocar toda uma infraestrutura para enfrentar as chuvas periódicas, que isso é função do governo, deixam a população à mercê das intempéries. Somos um acampamento, não uma nação. Um amontoado de gente, jamais um povo (isso é coisa de pobre). A direita anda assanhada. Na Bolívia, jovens oficiais vão à TV para resgatar o velho salvacionismo militar. Andamos sempre para trás. Como não resolvemos o básico, perdemos uma chance como esta em que poderíamos provar que a democracia funciona, bastava não entregar o país e cuidar dos fundamentos de uma vida civilizada (tudo aquilo que falam em campanha, estradas, saúde, educação, transportes, energia, distribuição de renda, oportunidade para todos, habitação popular etc.)

ESTRATÉGIA - Somos piores do que caranguejos. Estes ao menos andam para todos os lados e para trás por uma questão estratégica, para não tirar o olho do inimigo. Nós, não. Adoramos repetir os erros em forma de tragédia. Não adianta rebaixar as margens do rio ou colocar uma chata tirando o lodo do fundo, como aconteceu durante anos. É preciso fazer algo maior e mais profundo.

RETORNO - 1. O escritor Daniel Duclós, o daniduc, chega com a esposa Carla para uma visita. É um privilégio para o Sitio do Capivari, onde impera o ermo. Aqui estamos também com Dona Sueli, minha sogra. Todos vieram conhecer minha neta, Maria Clara. 2. Média de três textos novos por dia, o site está a mil. Visite, inscreva-se, assine o livro.

25 de maio de 2005

VÉSPERA DE VIAGEM




Migrar é sentir saudade do insuportável lugar que abandonamos. Migrei muitas vezes porque não aguentava mais a cidade que me aprisionava com suas rotinas, imposições, hábitos, ruídos, poderes, empregos, perspectivas. Você simplesmente vai embora e de repente se pega dançando a dança do pezinho ou fazendo algo que jamais fez, tomando mate. Aí você volta e os grilhões continuam lá, como se estivessem à sua espera. Mas é claro que isso é uma ilusão, você só não pertence àquele lugar. Nunca pertenceu a lugar nenhum. Seu sentimento de exclusão, na volta, é dobrado, pois tudo o que você tinha plantado antes se esfumou ou alguém se apropriou. Visite os terrenos baldios da sua memória e encontre-o cheio de pragas. É melhor virar-lhe novamente as costas. Mas para onde ir agora, quando você já palmilhou a maior parte do país e o Exterior se fecha com seu arsenal de bombas e de paranóias? Você simplemente refugia-se em si mesmo. Ou melhor, migra para o terreno sagrado da literatura, onde encontra teus pares e os leitores que se emocionam com tuas palavras.

FRANÇA - Já que nada vi na imprensa, transcrevo o seguinte acontecimento neste mês de maio: "Montpellier: uma praça para a literatura brasileira/ O salão Comédia do Livro de 2005 abre com show de Gilberto Gil/ Uma feira de livros ao ar livre é realizada há vinte anos na cidade de Montpellier. Ela ocupa por três dias a praça da Comédia, onde mais de 300 escritores são convidados para divulgar suas obras. Este ano, uma delegação literária brasileira veio participar do espetáculo cultural para mostrar o que o Brasil lê e canta. Chico Buarque, Milton Hatoum, Luiz Fernando Verissimo encabeçam o grupo de convidados que prestigiam, nesta noite de inauguração, o show musical do Ministro da Cultura, Gilberto Gil. Da comitiva fazem parte também a antropóloga paulista, Betty Mindlin, e o romancista gaúcho, Tabajara Ruas. Uma curiosidade do salão Comédia do Livro é o bondinho-biblioteca, onde os passageiros vão encontrar sobre os bancos cerca de trinta livros diferentes. Durante a viagem, eles podem folhear, ler e mesmo levar as obras para casa. O bonde serve para o transporte físico, mas também para o transporte intelectual, disse Henri Talvat, sub-secretário de cultura de Montpellier". A entrevista do Taba, ao vivo na rádio francesa, está na internet. Taba autografou a primeira tradução da sua literatura na França. Trata-se do noir O Fascínio, ambientado em Uruguaiana, e que foi muito mal recebido pela imprensa pátria. Já os resenhistas franceses se deslumbraram. É sempre assim. Vivemos cercados pela mediocridade.

MINUANOS - Delmar Marques me liga de Porto Alegre, onde está de plantão na boca da gráfica aguardando seu mais recente livro, um romance que conta a saga dos desaparecidos indios charruas e minuanos. O lançamento será dia 10 de junho, uma sexta-feira, na Livraria Cultura de São Paulo, onde estarei presente, a convite do autor, já que sou responsável pela apresentação da obra. É sempre fácil me encontrar: estou onde os livros estão, ou melhor, onde os autores estão. Delmar será protagonista de O Último Minuano, documentário que será produzido e divulgado pela TV Educativa do Rio Grande do Sul. Ele conseguiu a publicação graças ao patrocínio permitido pela Lei Rouanet. Delmar, como diria Rubens Montardo Junior, também não se apicha. Lembro o dia em que o convidei a participar de um almoço para a imprensa na Fiesp. Tinha acabado de sair do Diário do Grande ABC, onde levantara a lebre dos remédios falsos, um furo que foi apropriado pelos grandes veículos, que jamais lhe deram o crédito. Ele chegou de terno branco, contrastando com a escuridão têxtil ambiente. Chegou para valer e sentou-se na mesa central, junto com os maiores. Era o mais animado, estava em casa. Aqui é o Delmar Marques, diz para os seus entrevistados, e todos precisam saber de quem se trata. Ele é o cara, alguém tem alguma dúvida? Prêmio Esso de jornalismo pela sua reportagem denúncia sobre o Montepio da Família Militar enfrentou ao vivo, na televisão, uma pessoa que o destratava: deu-lhe um soco. Escapou de um atentado à sua vida quando parou num sinal de trânsito. Dois assassinos o tocairam. Dentro de um fusca, um deles atirou a cabeça para trás para o outro apontar um revólver. Montado em sua moto, nosso herói manobrou agilmente e foi parar num condomínio, onde um militar aposentado defendeu-o dos perseguidores. Easy Rider é fichinha. Delmar rules.

22 de maio de 2005

O RODÍZIO DOS CHACAIS




O governo do PT está sendo justiçado pela oposição de ultra-direita, que tem a cara de pau de posar de virtuosa, depois de ter entregue o país com tudo o que tem dentro (território, economia e população). Os espíritos livres ficam numa sinuca de bico: opor-se à inconseqüência, irresponsabilidade e incompetência do governo é uma ação que tende a se anular quando essas coisas como FHC e Alckmin tornam-se os vestais da moralidade pública (sr. Alckmin: se o Tietê e o Pinheiros continuam fedendo, a culpa é do governo estadual; desça do palanque e vá limpar a casa). Diante dos chacais que fazem rodízio para alternar-se no poder, enquanto ficamos à mercê de um sistema indestrutível, precisamos dobrar nossa virulência. Não devemos temer as acusações de que estamos servindo este ou aquele lado. Precisamos nos manter firmes na posição de denunciar a ditadura de 41 anos, o esquema de pirataria de entrega da soberania e tudo o que está ligado a ela, especialmente a corrupção. Ver pessoas que ocupam cargos públicos acertar propinas e justificar-se dizendo que ninguém vai mudar o mundo nos mostra o caminho: vamos, sim, mudar o mundo. É para isso que estamos aqui. Não viemos para esta vida a passeio.

GOLPISMO - Uma CPI é um recurso de arbitragem, que possui, em tese, agilidade para solucionar rapidamente algo que não poderia ficar circunscrito ao judiciário e à polícia. É a constatação de que é preciso encontrar também uma solução política, no bom sentido. Isso em tese. O que vemos é que uma CPI serve para barganhas e patranhas e para a exposição na mídia dos responsáveis por ela. Nesse sentido, o José Dirceu, a quem sempre ataquei aqui, tem razão ao denunciar o espírito golpista da CPI dos Correios, já que procura adiantar a campanha eleitoral para a presidência da república. Uma CPI dos Correios pode levar ao impeachment e à posse de José de Alencar, acho que é a isso que Dirceu se refere. É um grande imbróglio. Outro articulista que sempre combato, o Arnaldo Jabor (que costuma ser dúbio em sua pena) também tem razão ao denunciar o imobilismo na questão agrária, em que tudo se faz para que o desmatamento continue e os latifundiários se expandam selva adentro. O problema não é apenas o arrazoado correto ou incorreto, mas a ação a se seguir. A população sem poder não tem alternativas, a não ser não desistir da política, pois não existe gesto apolítico. O desencanto, natural, não pode levar à posse da ultra-direita, que está assanhada para repartir de novo o butim. No fundo, aquele movimento das Diretas Já, em que estavam no mesmo palanque o Lula e o FHC, serviu para isso: para manter a ditadura e angariar o butim. Para isso o povo foi às ruas, convocado em primeira instância pelo Leonel Brizola, que foi traído ao longo do processo.

IURD - Tudo o que Brizola denunciou e pregou (foi o primeiro a saltar fora do apoio ao governo Lula) torna-se cada vez mais urgente: a necessidade imperiosa de uma educação publica de qualidade, de um país com soberania, de um trabalhismo autêntico. Estamos vendo como denunciam a banda podre do trabalhismo, o PTB (o PDT é a banda imóvel), que estaria servindo aos esquemas suspeitos nesse caso dos Correios denunciado pela Veja, que tem sua redação situada no bairro de Pinheiros, São Paulo. Em outro bairro, na Lapa de Baixo, Domingo Alzugaray comprou briga feia com a Igreja Universal do Reino de Deus. Na TV, vemos uma biografia nada lisonjeira do Domingão, em retaliação à denúncia que de que a IURD estaria envolvida em emissão ilegal de dinheiro (recolhido com isenção de impostos, em sua maior parte, graças à credulidade popular) . É preciso luta contra o sistemão e não apenas por meio do voto, que está viciado, nicado pelos grossos interesses. É preciso lutar no varejo e não apenas no atacado. Quando te impõe um som alto de música execrável, quando te abordam de manhã para você, pecador, ler a Bíblia, quando tentam explorar tua mais valia a troco de nada, quando te deixam pelado diante da bandidagem, quando usam a mídia para fazer o rodízio dos chacais, é preciso dizer não. Uma postura política responsável deve ser gerada pelo espírito livre, engajado no que estiver ao alcance. Impossível? Quando todos se mexem, algo acontece.

VILÕES - Um sujeito com cara facinorosa tenta me impingir, na porta da minha casa, uma leitura da religião dele. Ué, não gosta da Bíblia? me pergunta, me jogando na cara meu repúdio a esse tipo de disseminação da fé infantil de que nos fala Bento XVI. Não me julgue, retruco, e o sujeito tira e põe seus óculos escuros baratos para me encarar, com seu rosto indecente, seu jeitão de abordador profissional de casas inermes. Não é possível que sejamos assacados em todos em cantos pela publicidade mentirosa de produtos, ideologias e serviços. Millor Fernandes acerta na mosca ao dizer, em antologia de frases publicado no La Insígnia, que o vilão dos filmes de violência que colocam no vídeo todos os dias são os donos de TV. No La Insignia de hoje há também primoroso texto de Urariano Mota sobre Goethe. Vale a pena ler.

RETORNO - O site está tomando jeito. Quase 500 acessos únicos ontem, quando consegui postar muitos textos que estavam espalhados. Visite, registre-se, assine o livro de visitas. O poeta agradece.

21 de maio de 2005

UM LIVRO FEITO DE PEDRA




Obra de transição, Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo, está dividida entre o libelo e a celebração (Este texto, brilhantemente editado pelos talentosos e competentes jornalistas do Diário Catarinense, está na edição de hoje, sábado, no caderno de Cultura do DC. O Cultura é editado por Dorva Rezende. Agradeço também a intevenção certeira de Tatiana Beltrão, que me esclareceu sobre a necessidade de tornar mais ampla a recepção a este trabalho, originalmente apresentado na cadeira da professora Teresa Aline, da História da USP).

Por Nei Duclós

Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo, é um livro com o porte de um monumento. Como a igreja que o inspira, é uma obra de transição, exibindo a majestade de um clássico e a decadência do folhetim. Suas personagens expressam a diversidade e se identificam com cada um dos elementos da sua estrutura múltipla e complexa: o padre santo e sábio transformado em vilão ao longo da narrativa e que abriga e alimenta, sem saber, a figura que sintetiza sua própria decadência; o poeta dividido entre a cultura vazia do poder e a presença viva do povo nas ruas; a dançarina que encarna a beleza e a graça do movimento em confronto com uma espiritualidade rígida fundada no medo. Assim, a trama que enreda o leitor revela a solidez acumulada pela História em queda livre para o abismo.

No capítulo II do Livro VI (Ceci tuera cela - Isto matará aquilo, da edição completa da Gallimard, 1996), Victor Hugo explica como a revolução de Gutemberg esvaziou e aniquilou a importância das obras da arte e da arquitetura antigas. Estas eram os livros da humanidade antes que a palavra impressa tornasse a herança das gerações em algo indestrutível, exatamente por ser um instrumento simples, leve e infinito. Os novos monumentos deixaram de ser os templos, as igrejas e as pirâmides, mas as grandes obras literárias. É nesse enfoque que Notre-Dame foi escrito, o de tornar-se uma edificação não ameaçada pela ruína.

Por ser uma obra de transição, Notre-Dame está dividida entre o libelo - quando o autor lamenta os prejuízos sofridos pela catedral de Paris, promovidos pelo trabalho dos artistas, que substituíram os povos, as instituições e as nações na construção dos monumentos - e a celebração - quando ele abre mão de ficar preso ao passado para enxergar a importância das obras impuras, que misturam estilos e são a síntese de contribuições centenárias. Ironicamente, o cinema e a civilização da imagem do século 20 fizeram, sobre a obra de Victor Hugo, o que ele lamenta no livro em relação aos artistas pós-Gutemberg. As adaptações cinematográficas - e algumas traduções brasileiras, tanto na manipulação do título quanto na eliminação de capítulos inteiros, como o já citado Ceci tuera cela - privilegiam o Corcunda em detrimento da personagem principal, que é Notre-Dame.

A deformidade de Quasímodo - nome derivado de uma data católica, um domingo depois da Páscoa, e que revela um trabalho inacabado - expressa a transmutação da igreja em caricatura, da arte substituída pela geometria, da cúpula identificada com a "bosse": "Voici les églises de Louis XIII, lourdes, trapues, surbaissées, ramassées, chargées d'un dun dôme comme d'une bosse / Eis as igrejas de Louis XIII, pesadas, sobrepostas, empilhadas, carregadas por uma cúpula como se fosse uma corcova" (página 250 do capítulo Ceci tuera cela). A descrição das caretas no Capítulo V do Livro I ajuda a esclarecer esse ponto: "Après toutes les figures pentagones, hexaghones e héteroclites que s'étaient succédée à cette lucarne sans réaliser cet idéal du grotesque que si etait construit dans le imaginations exaltées par l'orgie, il ne fallait rien moins, pour enlever les sufrages, que la grimace sublime quivenait d'éblouir l'assemblée / Depois de todas as figuras pentagonais, hexagonais e irregulares que se sucederam na abertura sem conseguir realizar o ideal grotesco construído pelas imaginações exaltadas do bacanal, não faltava mais nada, para garantir os votos, do que aquela careta sublime que arrebatou a platéia" (pág. 88).

Essa careta sublime tem um nariz tètraèdre, enquanto seu olho direito desaparecia sobre uma enorme verruga - e é preciso destacar "toutes les verruese tous les fungus que défigurent cette vieille architecture caduque / Todas as verrugas e fungos que desfiguram esta velha arquitetura caduca", como diz o autor na pág. 250. Invocando a geometria, Victor Hugo mostra como a arte se desfigurou nos séculos 16, 17 e 18: "A partir de François II, la forme architeturale de l'édifice s'efface de plus en plus et laisse saillir la forme géometrique, comme la charpente osseuse d'un malade amigri. Les belles lignes de l'art font place aux froides et inexorables lignes du géometre / A partir de François II, a forma arquitetônica do edifício torna-se cada vez mais diluída e deixa sobressair a forma geométrica, como a estrutura óssea de um doente terminal. As belas linhas da arte dão lugar às frias e inexoráveis linhas do geômetra".

O Corcunda é, portanto, uma deformidade da geometria, a antiarte, a expressão da Queda. Por isso ele dança sobre o abismo antes de projetar-se definitivamente nele. Mas o Corcunda é inocente, vítima da hipocrisia dos homens e das instituições como a Igreja e a magistratura, que condenam pessoas do povo à morte. Nos julgamentos de Quasímodo e Esmeralda, o folhetim penetra o monumento, o drama encharca a pedra.

O bobo (cloche) dança no alto da torre como um sino (cloche) chamando a atenção dos mendigos (cloches). As palavras, em Hugo, são as pedras do livro, com múltiplas funções e cruzamentos. Cour é corte e pátio, é instituição e espaço marginais. Paris vista do alto da Notre-Dame é uma soma de monumentos, embalada pelo som dos sinos: "...que cette cité qui n'est plus qu'un orchestre; que cette symphonie que fait le bruit d'une tempête / ...esta cidade, que nada mais é do que uma orquestra; esta sinfonia, que faz o barulho de uma tempestade".

No livro, as personagens existem em função da igreja e as pessoas são as forças liberadas pela decadência da arte. O escritor Gringoire vaga perdido pelas ruas de Paris sem descobrir a importância que assumiu sua profissão depois de Gutenberg. Em oposição a esta imagem do escritor no século 19 - que Victor Hugo denuncia ambientado no século 15 -, um livro feito de pedra como Notre-Dame de Paris instaura uma postura intelectual sólida. A obra literária opõe-se à decadência, resgatando a grandeza perdida da arte. Em Gringoire, as palavras são como a caiação deformando antigos monumentos. Em Victor Hugo, elas funcionam como uma orquestra e assumem a força de uma tempestade.

RETORNO - Aos poucos, estou atualizando o site. Já peguei firme no cinema (ainda faltam muitos textos) e daqui a pouco pego as resenhas literárias, entre muitos outros artigos. Agradeço a calorosa acolhida ao novo site, que multiplicou a exposição do meu trabalho e oferece espaço para mais interação com os leitores.

20 de maio de 2005

O NOVO SITE ESTÁ NO AR


O NOVO SITE ESTÁ NO AR
(www.consciencia.org/neiduclos)

Depois de inúmeras horas diante do computador, num trabalho duro que varou manhãs, tardes e madrugadas, Miguel Duclós enfim coloca à disposição dos leitores a nova versão do meu site. Totalmente interativo, nele estão não apenas todos os textos da versão anterior, como as atualizações que começam a ser feitas. Pretendo colocar nesse espaço, entre muitas outras coisas, as jóias do Diário da Fonte, aqueles artigos, crônicas, poemas que nos últimos anos tem nos acompanhado aqui neste jornal que usa o blog como ferramenta. É uma alegria imensa contar com este novo site e agradeço publicamente o trabalho do Miguel, que é mais do que um webmaster, é um talento e uma cabeça a serviço da cultura universal, haja visto os recordes de audiência do seu magnífico consciência, que já está ultrapassando as três mil visitas/dia.

UNIÃO - O site provém da versão anterior, fruto do trabalho de todos: Juliana Duclós e sua programação visual (que foi mantida não apenas no cabeçalho como nos textos que já estavam postados), Ida e sua primorosa seleção do que está no ar, Daniel, o daniduc (escritor estreante entusiasmado com seu novo ofício) e o seu servidor Cybershark, que é a base de toda a estrutura. Enfim, uma união familiar que me proporciona a alegria de ter um espaço nobre na Internet, que fura todos os bloqueios das editoras e se espalha como luzes por toda a parte e pousa no coração do nosso tempo. Acesse o site e coloque lá seus comentários, suas visitas, tudo o que achar. Um escritor precisa de retorno. Sem interação, fica difícil.

DIVISOR DE ÁGUAS - Minha vida como escritor e jornalista se divide antes e depois desse endereço. Foi a partir dele que recoloquei a cabeça para fora e consegui me reposicionar em tudo na vida. Assumir minha verdadeira identidade, sem a intermediação de veículos manobrados por outras pessoas, lembrar quem eu sou e dizer o que sinto e penso e crio são eventos gratificantes que geraram dezenas de novos amigos verdadeiros, com os quais me correspondo diariamente. Assim é feita a cidadania deste Brasil soberano, por meio do exercício da imaginação a serviço da liberdade de expressão.

RETORNO - É só alegria: recebo cartas de Juarez Fonseca, de Fabio Murakawa, de Rodrigo Schwarz (e seu romance de estréia, que vou comentar aqui), Rubens Montardo Junior, feliz ao anunciar a publicação de um poema seu na Zero Hora, Michael Kleger e sua estupenda revista Novacultura, Julio Monteiro Martins, que ganha resenhas esplêndidas na Italia, onde vive, sobre seu novo livro Madrelíngua, entre muitas outras manifestações.

18 de maio de 2005

A DITADURA INVENTOU O PT




Dois repórteres do jornal O Globo (José Casado é um deles) levantaram, no último domingo, a história do início do PT. O Partido dos Trabalhadores surgiu de conversas secretas entre o ministro do Trabalho de Figueiredo, Murilo Macedo, o governador Paulo Egydio Martins, de São Paulo, e Lula, que na primeira grande greve dos metalúrgicos, na Scania, nem tinha tomado conhecimento do movimento, segundo a reportagem. Chegou a rir quando lhe disseram que haveria greve na fábrica. Golbery do Couto e Silva avisou que Lula seria perigoso no sindicalismo, mas fatalmente se perderia na política. Era preciso levá-lo para o estamento e foi o que fizeram. Os dois lados tinham algo comum: o ódio ao trabalhismo. Paulo Egydio diz textualmente que ajudou Lula (compareceu na sua posse) porque acreditava num sindicalismo moderno longe do dito peleguismo getulista. O que eles chamam de modernidade vemos agora. O sindicalismo, com a doença infantil do grevismo, perdeu a força e hoje é mais pelego do que nunca. O arreglo entre elites criou esse monstro que nos governa hoje. Enquanto isso, a sigla histórica do PTB foi jogada no lixo e Brizola sofreu cerco total até morrer. Simples assim. Mas antes de deixar Lula tomar posse, o cozinharam em fogo lento. Colocaram na frente um queridinho da elite política, Collor de Mello, que destruiu o país, e mais tarde o arrivismo vindo da universidade, FHC, que entregou a sucata para os estrangeiros. Lula hoje completa o serviço, enchendo a pança de licor e azeitona no Palácio. Usou todo mundo, inclusive os verdadeiros revolucionários, que se iludiram com um proletário no poder. Lula foi fundo: desmoralizou as legítimas aspirações populares. Viram? É tudo a mesma coisa, não adianta, professam os fascistas.

HEBE - No maior visual fashion, as personalidades nulas do sofá da Hebe discutem drogas, sob o ponto de vista da extrema direita. Cabelos produzidos, maquiagem até o osso, roupas de boutique e lá estão as figuras dando conselhos para a juventude, dizendo que há falta informação sobre drogas, é por isso que as pessoas entram nessa. É o contrário: sobra informação e campanha contra as drogas. Por que não acaba? Primeiro, porque virou um negócio multimilionário, com envolvimento profundo dentro das instituições públicas e privadas. Segundo, porque a droga é um caminho perfeito para desestabilizar qualquer veleidade democrática, porque a bandidagem atiçada pelo contrabando de armas (manipulado de cima da pirâmide social) mantém a população na linha, na base do terror. É permitido matar pobre a esmo e a encarcerar a classe média para tungar-lhe o que resta do patrimônio. Assim todo mundo fica refém desses covardes que na maior cara de pau pedem propina para suas negociatas, como mostrou a TV nos últimos dias. O que irrita é a postura moralista de pessoas que colocam o microfone na boca para simular gargalhadas (o gesto mais imbecil da produção audiovisual) e fazem caras e bocas de que estão no caminho do Bem. A população continua se drogando pesado, porque a culpa não é a falta de informação nem é o falso moralismo dos sepulcros caiados que vai evitar o desastre. A coisa pega em outro departamento.

AGLUTINAÇÃO - As pessoas se drogam porque precisam se desvincular da percepção da realidade imposta pela ditadura, seja ela qual for (a da riqueza a qualquer preço, a do vazio cultural, o da falta de solução política e econômica). É para mexer o ponto de aglutinação, segundo o conceito básico dos ensinamentos de Don Juan para Castaneda, aquele ponto em que se reúnem as forças externas ao ser humano e as internas. Se drogam porque precisam enxergar outros mundos (mexer com a estabilidade dos feixes de energia que interagem no ovo luminoso que somos nós). Querem ver o universo com outros olhos, descobrir o que se esconde por trás das aparências de tanta miséria. Claro que é uma isca: as pessoas não conseguem, a não ser por alguns momentos, entrar em outra e acabam intensificando as suas próprias contradições (o ponto de aglutinação só se mexe para provocar fantasias, auto-suficiência, alucinações e delírios, o que é uma continuidade da prisão mental), o que rebenta em mais violência e desespero. Mas isso nem passa pela cabeça dos imbecis que tomam de assalto os microfones da nação para deitar abobrinhas em horário nobre. Gasta-se milhões em publicidade duvidosa, aumentando o fosso entre os drogados e a vida saudável e normal. Depois vai todo mundo depositar dinheiro em clínicas, gerando mais renda para o status quo. É lapidar a lição de O Poderoso Chefão III, em que o mafioso tenta entrar no mundo formal e descobre que este é uma máfia ainda mais poderosa. É o que ocorre: quem vive às custas do dinheiro público gosta de aparentar decência. Mas as pessoas decentes estão com pés e mãos amarradas e o traseiro grudado na imobilidade da escravidão. Assistem, pasmos, a luxúria desenfreada. Um dia desses ouvi um jovem suspirar de saudade da ditadura, pois reclamava da greve de ônibus aqui em Floripa, que prejudicou a população. É isso que está em jogo: rebentar com a aparência de democracia, que está sendo desmoralizada, e retornar à vaca fria. Fim do recreio, diria Antonio Callado, que sabia das coisas.

RETORNO - Qual a solução? Derrubar a ditadura, expulsar o imperialismo, resgatar a soberania, distribuir a renda. Como? Lutando, não há outro jeito. Lutar como? Confiar nos contemporâneos, confrontar a mediocridade e a violência, posicionar-se publicamente contra a situação. Não aceitar imposturas. Unir-se e ter paciência. Estender a mão e abraçar o que há de melhor entre nós. Dizer com todas as letras. Não perder um só segundo. Utopia? Tudo é imaginação. Imagine-se fundando o Brasil soberano.

15 de maio de 2005

A LITERATURA COMO REVELAÇÃO




Nei Duclós

A literatura é uma luz sobre os próprios limites. Não os limites do escritor, mas a da arte que não faz concessões, que não se dá o luxo das aparências, e é trabalhada longe do que sustenta uma criatura, os sentimentos, especialmente a piedade. É a única forma de não trair sua matéria-prima, o humano em queda, a maldição do existir que leva sempre a um único desenlace. Produzir literatura é assumir a consciência de que a humanidade, a qual se dedica, não é um jogo de armar que pode ser recomposto pela palavra. É o que nos diz Urariano Mota em Os Corações Futuristas, o mais importante livro lançado no Brasil depois de 1985, nesta época em que a ditadura instaurada em 1964, que derrotou pelas armas a oposição entre 1969 e 1973 (período a que se refere o romance) estabeleceu-se como instituição. Vivemos sob o tacão de uma representação, a democracia, que foi exigida nas ruas, mas serviu apenas de pretexto para o continuísmo. Diante de tão completa derrota, a literatura volta-se para a porta da caverna onde reside. Lá, procura vislumbrar o clarão filtrado pelo tempo, que poderá dar alguma pista sobre o que realmente acontece no Brasil agora destruído na armadilha onde foi apanhado. Estamos presos, mas algo raspa a parede da cela pelo lado de fora. Antes de nos dar esperança, esse ruído nos lembra onde estamos e nos pergunta porque continuamos confinados.

NARRADOR - Por que Os corações futuristas é o mais importante livro escrito no Brasil nos últimos vinte anos? Longe das comparações entre talentos ou protagonistas literários, Urariano Mota destaca-se pelo mergulho (por ter escolhido o mais alto penhasco de onde se atira), pelo vôo (porque instaura a morada completa, ética e filosófica, de personalidades condenadas ao esquecimento) e pelo fôlego (porque encontra o ar que nos é negado em vida). Faz isso sem jamais pagar o tributo ao anedótico, ou ao regional ou mesmo à nacionalidade (porque é de outra têmpera o fogo de que se alimenta), tentações a que os escritores brasileiros costumam deixar-se levar para romper o cerco da condenação do ofício. Urariano não deixa-se levar pela História (esse fragmento nobre da Memória), nem pelo espetáculo (as baladas do leitor em busca de enredos fáceis), nem pelo circo de vaidades (o autor sendo festejado pelo que aparenta). Ele procura outro caminho, mais árduo, ao resgatar a missão fundadora da literatura. Não é outro o motivo de se apontar o narrador do livro como o personagem mais poderoso, já que tem a exata noção de que não pode servir-se dos seres criados (Samuel, João, Carlos, Vevê) como se fossem uma pizza. Esse fundamento não se entrega à mediunidade, o deixar-se levar pelas caricaturas e pelas cenas que saltam aos olhos de um escriba quando ele se mete a estocar a bolha assassina que encerra a chave do roteiro a ser seguido. Urariano não finge que não é um criador, que está apenas contando uma história. Ele posta-se no lugar sagrado a que aspirou, o de reger (para demonstrar que não existe partitura ignóbil quando escolhemos o humano, seja ele de onde for), o de construir (porque a arquitetura não é uma força da natureza, mas uma racionalidade) e o de desvelar (com o olhar cru do gado morto que, depois de perder a carcaça, mantém-se aceso como um fogo fátuo). Ele sabia onde estava se metendo, mas não tinha outra escolha. A ética é a pior das condenações. A ela o escritor de verdade submete-se e em seus braços frios entrega a sua vida.

AÇÃO - Vamos pegar a mais doce das armadilhas da literatura, a ação. O que chamam de ação é uma fuga pela porta dos fundos (e talvez seja por isso que há sempre tiroteio nas cozinhas nos filmes descartáveis). No lugar de ação, Urariano prefere relatar a condenação. Os jovens na faixa dos vinte anos na ditadura Médici estão condenados pelo que são (pobres, mulatos, negros) vivem (desemprego, exclusão social e econômica), mas não pela sua essência. O tutano de cada personagem, entretanto, não são suas leituras ou músicas favoritas (que neste livro estão elencadas de maneira paradigmática). Mas sim a interação que fazem entre si quando se encontram. Não importa os produtos culturais que vêm à tona, todos datados, mas o que eles produzem na conversa (que roça a universalidade). Mais ainda: o que eles realmente sugerem ao narrador, que tateia o tempo todo (e que nessa pesquisa deixa um lastro luminoso para o leitor). A reflexão dos personagens em seus debates obedecem à ética do autor: são superficiais num primeiro momento, mas tornam-se instrumentos para o que vai sendo aos poucos dilacerado no decorrer do livro. Quando já não existe mais perspectiva de refresco para a roda viva onde estão todos metidos, o romance chega ao núcleo do drama. No pipocar das primeiras execuções, estampadas nos jornais, a segunda parte do livro insurge-se contra o canto de sereia da primeira parte.

ORIGEM - A execução da menina que se declarava subversiva e do garoto que fazia o v da vitória para sentinelas armados, são a pólvora por onde se incendeia a obra. Não é ação, é impacto de bala. Não existe movimento quando já houve o desfecho. Não existe fuga se você perdeu a guerra dentro do seu coração. Não há saída quando a luz da entrada da caverna é puro veneno. A ação não se impõe pelo evento, mas pela constatação. Somos então responsáveis pela morte desses meninos, nós, os que não lutamos o suficiente e que continuamos de mãos amarradas? Construíram em nome deles toda uma gigantesca mentira feita de indenizações e palavras ocas como liberdade. Não há liberdade se você foi à luta mas voltou para jantar. Nem se você foi para o exílio e foi anistiado para apertar a mão dos tiranos. Ainda pulsa a vida que poderia ter sido e ela está em nós, como um cão feroz de olho na presa. Ao escritor cabe abraçar o que foi jogado fora, recuperar pela linguagem o que os tiros aniquilaram. Urariano foi tão fundo que não por acaso reencontra o fundador da língua na sua busca. Não que preste homenagem a Camões, mas traz dele os poemas que instauram esse clima de perdição e luta diante do mesmo destino que afoga os meninos torturados e mortos. Mais uma vez, Urariano mantém no fio afiado da ética. É com essa língua herdada, que traz na origem o peso da maldição de estar vivo, que ele fala de Brasil e de Pernambuco. Mas nem por isso pode ser considerado um escritor confinado às fronteiras da nação, nem identificado de maneira ortodoxa com sua Recife, que neste romance salta aos olhos como um dragão vomitado pelas águas do rio. O escritor pertence a outro território. Nele, extrai o que nos incomoda, mas ao mesmo tempo pode nos salvar, desde que não viremos as costas para ele, nem o tratemos com o desdém dos fracos, os que não se entregam aos contemporâneos por preguiça ou vaidade. Ler Os Corações Futuristas é entender o que a literatura é capaz de fazer, neste tempo em que ela parecia perdida, como alguém muito querido que sai de nossas mãos e é levado pela correnteza.

A VERDADE PODE BERRAR


Nei Duclós (*)

A delação é a sombra e, muitas vezes, o álibi perfeito do heroismo. Nutre-se do asco que provoca e, cercada pelo mistério, cresce com o tempo. Lança lama sobre biografias enquanto fica polindo a efígie do herói traído e assim legitimado. No cinema, do Zapata de Elia Kazan ao Billy the Kid de Arthur Penn, o delator é a peça chave para a morte gloriosa do herói - e, portanto, para a sua permanência. Dificilmente ele é como o Garganta Profunda do caso Watergate, uma intervenção a favor da Justiça. É mais um instrumento do Mal e com o Mal é punido, como acontece nas vinganças da Máfia.

No romance policial Sottovoce - a morte fala baixo, a delação é a fonte da trama de um autor que jamais abdica dos fantasmas que parecem dele, mas que são de todos nós. A fome de Edgar Vasques é de justiça, jamais saciada num país que finge mudar para tudo permanecer o mesmo. Por isso ele tem o traço rouco e a voz poderosa do inconformismo.

Na Porto Alegre deste livro, o horror se manifesta primeiro no cenário: os edifícios opostos ao casario revelam a ascendência do crime sobre a passividade dos cidadãos; e os espaços públicos envelhecidos acobertam pesadelos da consciência. Manifesta-se também na postura física dos personagens: a testemunha espremida pelos balões do interrogatório, a gigantesca caratonha dos assassinos compondo a fuligem da violência, o rosto do jornalista crispado pela tensão, o olhar pálido da inocência diante do estupro, tudo conspira para criar um clima de delegacia abandonada de subúrbio.

Costurando a investigação, a presença de um personagem do carnaval veneziano. Alguém fantasiado de Sottovoce, duende que aparece na madrugada anunciando a morte por meio de rastros - um enigma, um ditado, uma música - desencadeia uma sucessão de ajustes de contas. Os crimes remetem ao tempo da ditadura civil/militar dos anos 70, quando o excesso de sofrimento amadureceu amargamente uma geração de guerreiros exaustos.

Edgar Vasques faz parte dessa humanidade que, ao denunciar, se exila. Pois parece não ser mais moda lembrar que o Brasil ainda está na mesma situação, numa nova roupagem, com um discurso requentado e o silêncio montando guarda. O criador, com a ira justa, não compactua com o segredo e vai revelando o fio dessa meada disforme que pinga sangue.

Sua pena aponta para a esquizofrenia - mais política do que psicanalítica - que reparte heróis e vilões num mesmo quadro. A palavra deturpada tenta fugir do sussurro da morte, que vem em seu socorro. A reportagem caminha em espiral em direção à memória e o passado, insepulto, assoma nos riscos sujos do dia. A revelação é que o filho do torturado expressa a debilidade mental dos despossuídos à força, enquanto seu antípoda, o filho do delator, assume a carga não resolvida da infância.

Ninguém sai vencedor nesta novela policial gráfica, que é literatura de primeira água. A não ser, é claro, o autor, criador do lúcido faminto Rango. Ele soma à sua galeria de anti-heróis personagens como Parola, o jornalista free-lance que sonha com o duende mascarado jogando a vítima - ele mesmo - no abismo. Representando a palavra como paródia - o jornalismo cercado pelo esquecimento - Parola encarna uma decepção coletiva: quando não há mais perguntas, a certeza ataca no escuro, mascarada para matar. Investigar esse enigma pode levar à descoberta de razões ocultas, transformadas em doença.

O artista/escritor lanceta a ferida aparentemente fechada, pois não acredita em mal incurável. Para ser escutado, ele precisa que a consciência deixe, enfim, de ser surda. A morte - representação da verdade- vai então se revelar pelo berro.

RETORNO - (*) Texto publicado originalmente na revista Bravo!, quando era editada pelo Wagner Carelli, na editora Davila.

13 de maio de 2005

NO RASO DA CATARINA


NO RASO DA CATARINA

Nei Duclós

A caatinga é consoante

O cantador é vogal

O grito eleva radiante

O que nos falta no sol

Pedra no final da tarde

Coração de areia e cal

Água, orgulho, opulência

sonho num pote de fel

O sol está delirando
punhal em vez de chapéu

A profecia da chuva

Assoma junto com a lua

São Jorge e dom Sebastião

Unidos na grande surra

Cobra, calo, matadeira

Não canto para a polícia

Aguardo o livro da luta

No raso da Catarina

12 de maio de 2005

OS AMIGOS VINDOS DO CIBERESPAÇO

Tenho amigos que não conheço pessoalmente, mas é como já tivéssemos longa quilometragem de bar. São eles: Urariano Mota (que me enviou seu magnífico romance Os corações futuristas, que leio aos poucos, para economizar), Jésus Gómez (que é responsável pelo site La Insignia, uma aula diária de política e cultura) e Luciano Dutra, que vive na Islândia depois de ter sido convocado para esse país pelos caminhos da literatura de Borges. De Urariano me dedicarei daqui a pouco, reproduzindo a viagem que faço pela sua literatura. De Jésus e Luciano me encarrego agora, transcrevendo dois textos que eles me enviaram, retirados de mensagens carinhosas e cheias de vida. Com Luciano estou em dívida, pois ele me brindou com extensa carta que ainda não respondi devidamente. Tento sanar esse vácuo colocando no ar alguns trechos em que ele se refere à Islândia e que formam um roteiro de uma experiência gratificante de um brasileiro fora das nossas fronteiras. Jésus, escrevendo de Madri, faz sólido comentário sobre artigo sobre Edward Said que enviei para ele e está no ar. Palavras que nos chegam do Exterior, com todo o sabor da cultura viva que as pessoas constroem no intercâmbio da amizade verdadeira e a partir da identificação gerada na luta diária.

SOBRE EDWARD SAID (Jésus Gómez) - "Hola, Nei: Un artículo francamente interesante, y lo digo con total y absoluta sinceridad. La misma con la que añado que, en mi opinión, «Orientalismo» no es ni mucho menos el mejor trabajo de Said. A decir verdad, no obstante, yo me pregunto qué diablos es eso de oriente y occidente, por lo menos en lo relativo a ese todo cultural que básica y originalmente iría de la antigua Persia a la Península Ibérica y de la frontera norte del limes romano a la frontera sur del Sáhara. Reduciendo la geografía, la única diferencia ostensible entre la orilla norte y la sur del Mediterráneo es que la norte supo separar Iglesia y Estado a partir del Renacimiento; la sur, el mundo musulmán, no. Y por supuesto, la norte lo hizo, entre otras cosas, porque integró lo mejor de la cultura árabe: Detrás de Maquiavelo está Nizam Al Molk; detrás de Juan de la Cruz, Abenazán (Ibn Hazm), el autor de «El collar de la paloma». Es fácil mirar el mundo musulman desde el siglo XX o XXI y pensar que su desgracia llega con el imperialismo inglés e francés del s. XIX, pero lamentablemente es lo contrario: esos dos imperialismos son consecuencia (no, obviamente, causa) de una decadencia que se inicia claramente en el XV-XVI pero que ya está presente en la larga derrota la España musulmana en la Península Ibérica. Pierde porque es incapaz de adoptar estructuras modernas. Y seguirá estancado mientras no retome lo mejor de los intentos políticos laicos de los cincuenta-setenta del s. XX (intento que, ciertamente, EEUU e Israel intentan evitar a toda costa). De todas formas, yo diría que, en el fondo, Said sólo pretendía desembarazar al mundo árabe del cliché orientalista e insuflar cierto orgullo nacional en un ámbito dominado por una sensación, a veces real y a veces imaginaria, de humillación; exactamente lo mismo que intentaron los autores españoles del XIX (ese cliché orientalista también se nos aplicaba a nosotros, por raro que te parezca; del mismo modo en que hay varias Áfricas distintas y bastantes más Asias diferentes, también hay Europas y Europas). En todo caso, y errores aparte, seguro que estamos de acuerdo en que el mundo árabe necesita muchos más Said y menos imanes. Un gran abrazo, jesús".

ISLÂNDIA (Luciano Dutra) - "Islândia. É uma longa história. É uma pergunta que já respondi incontáveis vezes. E já não sei mais qual é a resposta correta. Houve uma vez, entre 1997 e 1998, em que, para exercitar-me, dei por traduzir TODOS os sonetos de Jorge Luis Borges. Não lembro o número exato agora, mas são seguramente mais de 130, jamais enfeixados num único volume, porém. O Borges poeta é quase sempre sufocado pelo contista já clássico e pelo ensaísta genial. Eu naturalmente, puxando a brasa para o meu assado, prefiro o Borges poeta. Especialmente o Borges sonetista. Poucos autores do século XX persistiram tanto nesta forma, principalmente já tão avançado o século. E nos sonetos de Borges lá está: a Islândia. Estas paragens tão longes do nosso horizonte sulamericano. A Islândia de Snorri Sturluson, mais ou menos contemporâneo de Dante, e que deixou uma obra não menos sólida que a do seu
contemporâneo. A Islândia das sagas, prenúncios da técnica do romance europeu moderno, só
que uns... 5 ou 6 séculos antes. A Islândia que guardou a memória da descoberta da América séculos antes de Colombo, de Vasco da Gama. Só que a América deles era só uma parte da Europa, que era onde ela cabia na visão de mundo da época. Resultado: ninguém tomou conhecimento...A Islândia que, deserta até o século IX, ágrafa até o século XI, abraçou a
civilização de uma forma tão intensa, a antiga e a nova, e preservou como em parte alguma os velhos mitos germânicos, mas sem a má-fé proto-nazista de Wagner e de Carlyle. Esta foi a Islândia que clamou no meu sangue. Não a Islândia da Lagoa Azul, das noites como o diabo gosta de Reiquiavique, das loiras estonteantes, mas tontas, em cada esquina. Esta só vim a saber que existia, já estando aqui. Tampouco a Islândia do sexto ou sétimo IDH do mundo, da moeda forte que há meses espanca o dólar impiedosamente, do seguro social generoso, e da educação grátis e universal, inclusive no nível universitário. Esta Islândia também, só descobri, estou descobrindo, colateralmente. E não é que estou gostando? Aqui desembarquei em agosto de 2002, no apagar das luzes da antiga lei de estrangeiros. Cheguei sem visto, sem emprego garantido, só com a carta da Universidade e o passaporte semi-virgem, e fui me instalando. Em uma semana
arrumei trabalho, e depois outro trabalho. E assim me viabilizei aqui. Vejo muitos estrangeiros, principalmente de sangue latino, queixando-se da Islândia e dos islandeses, das islandesas principalmente. Mas não estou nem aí. Estou à vontade aqui, falando o idioma com fluência, apesar da gramática claudicante. Trabalho numa escola, com crianças de 6 a 9 anos, meus melhores professores de pronúncia, e também de cultura islandesa. Hoje, com a nova lei de imigração, acabou-se o que era doce. Só é possível entrar no país para estudar e/ou trabalhar já com o visto emitido no país de origem, através da Embaixada da Dinamarca. A nova lei, promulgada para adequar-se às exigências do Protocolo Schengen, da Comunidade Européia, na
verdade tem recebido a implementação mais restritiva possível. "

GEOGRAFIA ISLANDESA (Luciano Dutra) - "Casualmente, não estou entre um fiorde, mas sim numa baía. A baia da neblina, mais exatamente, que é o que quer dizer o nome Reykjavík, que eu aportugueso Reiquiavique mesmo. Bueno, tecnicamente, sim, a península onde está Reykjavík, fica entre dois fiordes, Skerjafjörður, no sul, e no norte Kollafjörður. Mas são, por assim dizer, fiordezinhos. Os verdadeiros fiordes estão mais para cima, os Fiordes Ocidentais, e também no quadrante norte. Segundo o Glossário Geológico Ilustrado do Instituto de Geociências da UnB fiorde é:Feição estuarina marinha formada em antigos vales glaciais muito comuns nos países nórdicos da Europa, de onde se originou o nome, e que se caracteriza pela extensa entrada do mar ladeado por costões com paredes abruptas do antigo vale em U e que apresentam extensos afloramentos de rochas expostas pela ação erosiva do gelo durante períodos glaciais com nível do mar rebaixado eustaticamente. Pois desses há vários aqui na Islândia, e cada um deles é um mundo à parte, na verdade, e conforma um universo cultural autônomo, apesar da homogeneidade a que tende o país nestes tempos de globalização, inclusive
doméstica. Porque na Islândia se vive em círculo, quero dizer, só o exterior da ilha é habitado, no miolo há os glaciares, inclusive Vatnajökull, o maior da Europa, há os vulcões, vários deles ativos, alguns ativíssimos, e há as Terras Altas, onde no inverno há muito frio, vento, neve, e a vida faz-se inviável. A principal rodovia nacional, não podia ser de outra forma, é a número 1 que exatamente faz a volta da ilha, é uma espécie de 116 ou 101 aí no Brasil, rodovia de integração nacional. Mas objetivando: vim para cá para estudar islandês, e a literatura islandesa medieval, para traduzir tudo isso, futuralmente, ao português. Tarefa que está toda por fazer, não tenho passos de ninguém a seguir. Sequer um dicionário islandês português há. Ao lado do catalão, somos a língua neolatina importante mais atrasada em relação à literatura escandinava medieval. Uma pena para nós. É como se não tivéssemos Shakespeare, ou Balzac, no nosso próprio idioma. Salvo exageros da minha parte. Afinal obviamente sou fonte suspeita para falar do tema, já que transformei isto no meu destino."

ESTUDOS ( Luciano Dutra) - "Estou no terceiro ano do curso, agreguei mais um ano para ter uma ênfase em tradução, muito bem vinda. Não sou um aluno dos sonhos, mas acredito que me
formo, mal ou bem, em 2006. Este ano, no final do verão, devo entregar a monografia de conclusão. Que será sobre a imigração islandesa no sul do Brasil, no final do século XIX. Acredite, eles andam por aí. Mas eis-me aqui, por uma circunstância destas da vida. A culpa, é claro, só
podia ser de um argentino: Borges, que insuflou a curiosidade por este pedaço de gelo no meio do Atlântico. Na época, eu estava com o que aqui chamam de útþrá, que é uma espécie de saudade invertida, literalmente ", uma saudade de ir, não de voltar, que é a saudade que conhecemos, lusófonos que somos. A nossa saudade, aqui, é heimþrá, vontade de casa. Estava com dois corações: vir para cá, para a universidade, buscar finalmente um canudo, depois de ter abandonado a Ufrgs em 1994 no meio do curso de alemão, ou ir ao Timor Oriental, num voluntariado de um ano, ensinando português, noções de inglês e informática a ex-guerrilheiros das Falintil, os barbudos que na selva resistiram aos 25 anos de ocupação indonésia, sobreviveram ao genocídio, mas sabiam pouco mais do que desmontar e montar um fuzil. No fim, por que a ong com quem trabalharia no Timor roeu a corda, na undécima hora, acabei vindo para cá. É bom viver num país voltado para a população, em que o Estado não é um meio em si mesmo ou, pior, a mediação do mando de meia dúzia. O Estado islandês é uma mãe, uma mãe italiana ou judia, não deixo por menos. Pagam-se por isso, 38,7% descontados na fonte. Mas o resultado salta na vista, a gente fica mimado. Este é o lado bom. O lado ruim. Sempre vais ser estrangeiro em terra estranha. Aí vens dos trópicos, e cais de pára-quedas, as pessoas olham os teus traços, e não conseguem ligá-lo a nenhum dos 15 ou 20 padrões de fisionomias que a pouca variação genética criou aqui. Se tens cabelo escuro, batata, já saem falando em inglês, como se fosses incapaz de falar o declinado idioma dos viquingues. É irritante. Se seguires lendo o blogue, junto com os sonetos, vais ver outras razões porque nem sempre é um mar de rosas viver aqui. Mas no geral, é a idéia de paraíso na terra, o antípoda da situação deplorável, e cada vez mais grave, à beira do abismo, que se vive no Brasil. "

11 de maio de 2005

O VALOR DO AMBIENTE DOMÉSTICO




Kirchner retira-se da reunião de cúpula com os árabes em Brasília depois de acertar com Lula uma parceria entre o parque industrial argentino e a indústria multinacional instalada no Brasil. Não quis participar dos salamaleques à nossa pretensa hegemonia. Precisa cuidar da própria casa. Somos uma pedra no sapato da América Latina. O correspondente da Globo em Buenos Aires José Burnier justifica o pretenso papel de liderança que de fato exerceríamos na região lembrando que somos maiores em território e economia, como se o jornalista fosse mais realista do que o rei e pudesse contrariar o princípio básico de isonomia entre as nações. O poder (seja no governo ou na mídia) corrompe o pensamento de pessoas desvinculadas de suas bases, a população (para não usarmos a palavra povo, que no Brasil quer dizer pobre, e não gente, como em inglês people). Ajudei a revelar para o mundo político o atual assessor para assuntos internacionais, o Marco Aurélio Garcia. Era um professor da USP que ganhou na minha seção de Livros da revista Senhor, nos anos 80, vasta exposição, graças à indicação de Luiz Gonzaga Belluzzo e Mino Carta. Vi hoje Garcia na televisão. Sua boca molenga dizia que a imprensa se preocupava com bobagens ao exacerbar a saída de Kirchner antes do final da cúpula. Quem te viu e quem te vê. Na hora de assumir o poder, é bom lembrar de onde viemos e principalmente para onde vamos. Antes de querer abraçar o mundo, precisamos aprender a dar valor ao ambiente doméstico, que nos gera e sustenta.

RESPEITO - Não existe nada mais ofensivo do que ser uma dona de casa. As pessoas debocham sem parar. O motivo é um só: não há respeito nenhum pela diferença, apesar das evidências em contrário. Os seres humanos, sob essa ótica, se reduzem a um gênero só. E não adianta argumentar sobre o grande destaque da mídia à mulher. Isso só reforça o preconceito. A mulher casada e dona de casa comete um crime grave: não está disponível para o usufruto do mercado brutalizado, portanto não serve. É preciso exercer alguma função masculina (como carregador de toras de madeira, por exemplo, ou mecânico de carreta) para acharem uma gracinha. Ser mãe, cuidar dos filhos, gerenciar o orçamento doméstico, assumir os planos coletivos da família, tudo isso contraria a lei do egoísmo a qualquer preço. É coisa de outro mundo. Colocar um avental é um abuso de feminilidade, a não ser que seja alguns desses gourmets de barba, que adoram cozinhar para macho. No fundo, as mulheres mergulharam, na mídia, no papel que lhes cabia antes da revolução: o de serem objeto de consumo da máquina do mundo. As top models e a galeria de fêmeas no cio destacadas pelas novelas são duas provas bem visíveis. A escritora por trás das cenas reitera o papel social do gênero que traiu.

VALOR - Você pode ser tudo, principalmente bandida, mas não invente de cuidar de uma casa. Será difamada, perseguida, forçada a abandonar aquela função ridícula para entregar-se ao mais moderno dos mundos, à solidão nefasta do universo single, império de uma verdade sem resistência. Ou então vai aparecer como uma criatura babaca, destas que merecem atenção pela sua falta de importância, ou lembrada quando é dia das Mães, quando é insumo para o consumo desenfreado. O mandonismo atual refere-se a alguns protótipos bem explícitos: trabalhe em algo com remuneração direta, não invente de participar de um orçamento que não lhe pertence, nem por contrato conjugal. Se você estiver numa festa, jamais admita que é uma dona de casa, a não ser que resolva fazer algumas brincadeiras indiretas contra alguém que se vê nessa situação e não consegue se defender da pressão ao redor. Atire pipocas: elas estão lá, cuidando dos filhos, preocupando-se com o marido, deixando de ser o alto coturno da masculinidade de saias, quando podem foder com meio mundo para provar que somos todos iguais. Claro que somos todos iguais, só que diferentes. Vai parir pra ver o que é bom pra tosse. Já viu um parto? Já, pelo menos um, o que te gerou, seu desnaturado. O bicho vem rasgando tudo e provocando a maior dor que pode suportar um ser humano, segundo testemunhos. Não há admiração real para um evento desses, a não ser o refresco da licença maternidade (que resolve só no início da criação dos filhos).

JANE - A pior injustiça disso tudo é que as donas de casa trabalham, em todos os lugares (especialmente no ambiente doméstico, graças aos recursos da tecnologia digital) . Exigem creches, tentam manter uma carreira, amamentam entre uma reunião e outra, trocam fraldas antes de ir à luta. Sobram exemplos de pessoas que se aprofundaram na amargura de ter que aturar, durante décadas, a mesma abordagem: mas você trabalha? A pergunta no fundo diz: você trabalha em algum ambiente profissional masculino? Você é mecânica de carreta, carrega tora de madeira, demite incompetentes, derruba colega de profissão, participa da corrupção, viaja às custas do dinheiro público, vira capa de revista e acaba como a Jane Fonda, amargurada por ter passado a vida se enganando? Então você vale.

10 de maio de 2005

O PATROCÍNIO DA BAIXARIA




A Caixa Econômica Federal, de gloriosa biografia (quando foi fundado, nosso time de futebol na infância abriu uma caderneta na Caixa; o time existe até hoje) serve para patrocinar a seguinte cena, exibida ontem em horário nobre na Tela Quente, da Globo: por longos minutos (sei porque zapeei e voltei várias vezes, para ver se o filme daria uma trégua) uma jovem americana coloca gigantesco vibrador no meio das pernas (depois de exibi-lo em ação em close) e goza em frente à televisão dando gritinhos. Para isso serve o dinheiro público. Enquanto isso, o clássico O homem que matou o facínora, de John Ford, exibido na madrugada de segunda-feira na Band, não foi difundido por todo o Brasil, pelo menos aqui em Floripa, que decidiu-se por um programa local. Gostaria que as TVs regionais colocassem seus programas nos melhores horários e não na madruga ou muito de manhã. Mas o que quero dizer é que a TV aberta, para a maioria dos brasileiros, é a única opção. Duvido que os responsáveis pela Caixa saibam o que fazem com o patrocínio outorgado. Isso é coisa interna, da própria rede, que achar ser eficiente promover a baixaria para ganhar no Ibope.

MALVADOS - Quais eram os temas ontem na TV aberta, além do vibrador, seguido de cenas explícitas de putaria de adolescentes universitárias? Garotas exibindo-se sensualmente em frente aos espelhos ou na pista de dança (novela América), mulheres jovens falando de sua vida sexual (um dos assuntos da Hebe), além de debates candentes sobre a fé infantil em discos voadores ou na Nossa Senhora (que por longo tempo ficou a cargo da Elba Ramalho e do Gilberto Barros). Nenhum debate sério, nada que provoque reflexão responsável, nenhuma nesga de inteligência. Estamos formando uma nação de idiotas, como já notou a excelente tirinha Os Malvados (dica de daniduc), obra de um criador desconhecido (e escritor de primeiro time)chamado André Dahmer. Ao mesmo tempo, a Record exibia boa reportagem sobre prostituição feminina das brasileiras aqui e no Exterior. O motivo é um só: falta de dinheiro, desespero por não ter como sobreviver. Nos Estados Unidos, brasileiras são consideradas as novas francesas (estas, colocadas sempre como putas por Hollywood, pelo menos até os anos 60), e vendidas como as mais sexies do mundo. Produzimos fêmeas para o usufruto internacional. Enquanto isso, famílias destroçadas por essa situação exibem as fotos das filhas que criaram, aos prantos. É de partir o coração. Famílias não ganham destaque devido no noticiário, a não ser como vítimas ou consumidoras. O destaque é sempre a moça desencaminhada pelo sistema econômico da pirataria internacional (sem esse enfoque, claro). A fuga em massa para os Estados Unidos, como prova recente reportagem da Folha, é incentivada atualmente pela novela América (ontem, a grana do trabalho como dançarina à noite e escrava doméstica de dia da personagem Sol chegava de maneira salvadora para a mãe comprar o remédio do marido). Lembra a fuga em massa da Alemanha Oriental para a Ocidental. O Brasil implodiu e Palocci, na maior cara de pau, diz que o arrocho deve durar mais dez anos. Não vai. Vem aí uma tempestade de merda, como previu um dia Norman Mailer.

INCENTIVO - O estímulo à putaria vem por todo o canto. Colunistas exibem mulheres seminuas e perguntam quem vai querer. Jovens atrizes interpretam mulheres que vendem-se para homens mais velhos. Piadas explícitas enfocam assuntos onde os países baixos merecem toda a atenção. O moralismo foi deixado a cargo da direita, o que é um desastre político. Artigo primoroso de Sarah Blustain (A paródia do segundo sexo), publicado no Mais! de domingo na Folha, denuncia que a brutal adaptação das mulheres ao mundo masculino do trabalho é defendido pelas ditas progressistas, enquanto a humanização do espaço profissional respeitando as diferenças está hoje à mercê das conservadoras. Há um equívoco gigantesco sobre o que é vanguarda hoje. Estar na linha de frente da libertação não é entregar-ser a lugares comuns cristalizados, tenham ou não a aparência de progressistas. É preciso pensar e agir dialeticamente e não deixar que os avanços no comportamento, na política e na cultura fiquem na mão dos piores espécimes, que tudo fazem para desmoralizar a liberdade. No fundo, querem o horror de volta. Mas nele estamos imersos, porque não sabemos lutar direito.

RETORNO - 1. O sr. Secretário de Cultura e Esportes de Uruguaiana e melhor ator do Brasil, Miguel Ramos, deixa a seguinte mensagem no Livro de Visitas do meu site: "Nos idos de 68 lá no apt da 24 chegastes da rua com o seguinte slogan: meu lema para este ano é "lucidez e beleza". Leio todos dias o Diario da Fonte. Única leitura. A tua lucidez interpreta o mundo pra mim. Obrigado. Do seu amigo Miguel Ramos". 2. O Google informa: a Caixa foi fundada em 12 de janeiro de 1861, no Rio de Janeiro, pelo imperador D. Pedro II. Tinha como missão conceder empréstimos e incentivar a poupança popular. Com a extinção do Banco Nacional de Habitação (BNH), em 1986, a empresa transformou-se na maior agência de desenvolvimento social da América Latina, administrando o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e tornando-se o órgão-chave na execução das políticas de desenvolvimento urbano, habitação e saneamento.3. O time de futebol que fundamos e existe há mais de 40 anos é o Guarani, de Uruguaiana.

9 de maio de 2005

INSATISFAÇÃO NA TROPA




Reveladora a entrevista concedida pela sra. Ivone Luzardo, presidente da União Nacional de Esposas de Militares das Forças Armadas (Unemfa) aos jornalistas do programa Canal Livre, da Band, nesta virada de domingo para segunda-feira (o que é importante fica sempre para os últimos horários). Segundo as próprias palavras da entrevistada, ela assumiu a liderança do movimento porque teve coragem, porque deu a cara para bater, por dizer o que realmente pensa, representando assim fielmente o clima atual de insatisfação da tropa. O que deixou os entrevistadores de cabelo em pé foi a participação (muda, segundo a sra. Ivone, mas crescente) dos militares da ativa nas reuniões. Se a situação continuar como está, advertiu, um comandante não segura mil homens. O que querem os militares: o aumento prometido de 23%? Ou principalmente o crédito de serem os guardiões do país e suas instituições, e de terem assumido, sempre que a nação os convocou, a espinhosa função de resguardar a República, que fundaram, a Pátria, que idolatram, as fronteiras, sempre ameaçadas? O que mais contundente foi dito na entrevista é que o atual governo é revanchista e abandonou as reivindicações da farda para se vingar de uma época em que, segundo a sra. Ivone, tudo funcionava (o regime civil-militar de 1964 a 1985). É como já disse aqui: é tanta incompetência e irresponsabilidade política que um cabo e dois soldados poderão a qualquer hora dar conta do recado, em socorro da nação exausta. Golpe, dirão. Salvacionismo militar, lembrarão alguns historiadores. Deus nos guarde.

PODER - Quando se referia aos militares, Getúlio Vargas tinha o cuidado de definir as Forças Armadas como gloriosas. O que não é um ato de demagogia do grande presidente, mas a exata noção que ele tinha do meio militar, que está orientado por um conjunto de idéias e percepções sobre o país e o papel que desempenham na História. Coisas que passam ao largo do atual governo, que se afunda cada vez mais na ineficiência e abre o flanco para que tome forma não um retrocesso, mas um avanço dos equívocos que levaram o país à situação onde atualmente se encontra. No fundo, os militares foram usados várias vezes. Em algumas delas, chegaram a exercer poder real, mas em nenhum momento governaram sozinhos. Sempre houve ao seu lado ou acima deles o poder discricionário ditatorial do estamento político e econômico, que se lixa para patriotismo ou fronteiras resguardadas. O internacionalismo financeiro hoje anda de braços dados ao internacionalismo dito de esquerda, pois a união dos povos sonhada pelo pseudo-marxismo acabou virando a globalização que só serve para fortalecer o Império americano. Não se pode ter Brasil soberano se a maioria os militares não atinge o patamar mínimo para a sobrevivência (e se endividam no sistema da pirataria financeira; 70%, segundo a sra. Ivone, estão nessa sinuca) , se os filhos não conseguem fazer a faculdade, se não há perspectivas de uma carreira promissora. A má remuneração da farda faz parte do sucateamento do serviço público federal, que está sendo desmontado desde Collor e FHC, com a ajuda da televisão, que cuida de desmoralizar a confiança que a população devotava aos serviços públicos desde a era Vargas (como foi o caso da execrável série Os Aspones). O buraco é bem embaixo e é lá que vamos parar.

CUBA - Outra expressão assustadora usada pela sra. Ivone, que reivindica o direito de uma luta democrática pelo soldo dos maridos, é que vivemos numa pseudo-democracia. O que ela entende por isso? Um governo que libera 560 milhões de dólares para a Angola como perdão da dívida tem dinheiro para pagar melhor os seus servidores, lembrou. Se não paga melhor, fechando os ouvidos ao clamor da tropa, é porque não estamos numa democracia, deduz-se. O modelo dos governantes atuais é Cuba, foi insinuado na entrevista, a ditadura castrista. Democracia é uma palavra muito usada pelos militares. Eles são os guardiões do regime, portanto estão atentos ao seu desvirtuamento. Há ressentimento, há pressão e por enquanto existem advertências. Há tanta incompetência que deixa-se algo fundamental como as Forças Armadas para uma próxima reunião. Vimos como o Palácio do Planalto se diverte diariamente. Várias licitações, divulgadas na internet, falam em toneladas de alimentos gordurosos e super calóricos (sem falar nas bebidas) para o consumo interno. Um líder exerce o poder pelo exemplo. Um chefe supremo das Forças Armadas precisa ser respeitado pelo que faz. Mas a presidência acaba sendo julgada pela única coisa que faz de verdade: falar pelos cotovelos, dizer pelo menos uma grande abobrinha por dia. Levante seu traseiro e vá falar com seus comandados, presidente. Dê atenção a eles, homens de palavra, que desde 1985 se submetem à ditadura civil que nos governa.

8 de maio de 2005

SAPATO EM FUGA NO QUINTAL DA INFÂNCIA



Nei Duclós

O grande quintal tinha um cinamomo que vingou . Árvore generosa, carregada sempre, fornecia artilharia contra adversários (todos os seres humanos abaixo de sete anos) e passarinhos (qualquer coisa que ousasse voar). De terra batida, acolheu galinheiros (feitos pacientemente pela maestria carpinteira do meu irmão Luiz Carlos) ou canteiros (entre eles tinha o meu, só de trigo, que na safra gerava um prato fundo de grãos, jamais aproveitados pela cozinheira de casa). Rente ao muro alto, que nos separava dos vizinhos e da rua, alguns mamoeiros deixavam cair as frutas que jamais colhíamos. Neste território levantamos tosca edificação de tábuas, um CTG - Centro de Tradições Gaúchas, onde passávamos tardes de sol ou chuva e noites assombradas embaixo de estrelas que pareciam lágrimas, além de manhãs de domingo regadas a churrascos acompanhados por vinho. No centro, havia espaço para nossa brincadeira favorita, o faroeste, em que caixões empilhados imitavam diligências. O melhor era utilizar o rebenque, feito de galho fino e flexível, que geravas vergões em adversários com menos idade (eu sempre estava entre eles). Fechando tudo, vasto portão vermelho de ferro, que emperrava e só abria à força de bundaços, já que nossos braços finos não davam conta do recado. No vão que existia entre o portão e o chão, um dia vi o inevitável desencontro da vida de um menino: o sapato branco, com furinhos, como era moda entre as mulheres da época, mas que eu identificava como sendo apenas de propriedade de minha mãe, afastava-se casa, o que desencadeou em mim a gritaria radical banhada em abandono. Minha mãe ia embora e eu não tinha outra opção do que implorar a sua volta, já que eu ficaria à mercê da crueldade ao redor e estaria órfão para sempre.

POROROCA - Consegui abrir o portão e fui atrás da pobre senhora que caminhava placidamente ao lado de algumas amigas. Ouvindo o berreiro, voltou-se preocupada. Nunca esqueço aquele rosto desconhecido. Usava óculos e ficou muda diante de mim. Eu já não dominava mais meus nervos. Agarraram-me à força e me levaram para dentro de casa, pois estava dando escândalo. Minha mãe estava no Posto de Saúde, para que tudo aquilo? Mas como que outra mulher usava o mesmo sapato de minha mãe? Esse era um mistério insondável para mim naquela primeira infância. Lembro que um dia fui ao cinema e senti vontade de ir ao banheiro. Como era natural, voltei para casa , pois só na minha casa existia essa coisa chamada banheiro. No retorno, aliviado, cheguei para o porteiro e disse que precisava entrar, eu já tinha pago a entrada. É que eu tinha ido em casa cagar, expliquei. O porteiro repetiu o verbo surpreendente em voz alta e me deixou passar. Talvez nunca tivesse visto caso semelhante. Na saída da sessão, me explicaram que o cinema dispunha do mesmo recurso, o que foi uma revelação para o garoto que vivia no mundo da lua, ou seja, dentro do universo inexpugnável da casa materna. Não sei se essa idiotia infantil era exclusiva minha ou se só eu lembro dessas coisas. O resultado é que custei a sair da infância. Aos 14 anos, ainda me abaixava para jogar bulita, o que deixava os mais velhos penalizados. O guri é meio abombado, diziam. A única pessoa que me via diferente era minha mãe. Fiz uma poesia, dizia para ela, mas não sei se tu vai entender, porque nem sabes o que é uma pororoca. Eu tinha aprendido no colégio o fenômeno das águas amazônicas e queria exibir conhecimento sobre o assunto. Dona Rosinha gargalhava, mas me dava força. Contava para todo mundo e mostrava o poema, feliz da vida. Enquanto ela se orgulhava do filho fora de esquadro, as outras pessoas me olhavam desconfiadas. O que vais ser quando crescer? perguntavam. Estrangeiro, eu respondia, e nunca estive tão certo. Até hoje moro num país estrangeiro, o Brasil Soberano, que muitos garantem jamais ter existido.

DESPEDIDA - Ela ficou me esperando na calçada, bem cedinho, com a vassoura na mão. Não era para varrer, era para disfarçar sua ansiedade. Eu estava voltando de Porto Alegre, nas primeiras férias depois de ter partido. Estava preocupada, pois numa carta eu dissera que deixaria a Faculdade de Engenharia (meca da maioria dos estudantes da época) para abraçar minha vida literária, ou melhor, que faria vestibular para o jornalismo, profissão sob suspeita, típica de beberrões e tocadores de violão. A primeira coisa que me disse foi: Não vais deixar a Engenharia! Claro que não, mãe, claro que não. Pois deixei e ela um dia, numa noite de inverno, mergulhada no seu jogo predileto, o Lidergrama, do Correio do Povo, respondeu tudo e as palavras da charada solucionada formavam um poema meu. Chorou, como sempre. Toda mãe de verdade chora quando um filho assoma numa noite fria e lhe diz: obrigado, mãe. Sou agora poeta, graças a teu olhar bondoso, ao teu olhar generoso, à grandeza que vias em mim, tu, inventora da minha vida e que te foste para o Outro Lado porque neste mundo não existe justiça e viramos pó para que não nos transformemos em monstros arrogantes. A morte é a nossa humanidade. Por isso lutamos tanto para tocar a túnica da eternidade. A vida eterna é a esperança que temos de espichar indefinidamente a lição poderosa de sermos mortais. A eternidade é a mãe que despeja em nós a possibilidade de driblarmos essa professora impiedosa, a morte, que nos ensina a ser a fruta que não cai para apodrecer, a diligência que cruza o deserto, o portão que nos revela a fuga de um amor que fará falta para todo o sempre.

6 de maio de 2005

KIRCHNER ESTÁ CERTO




Não é o Brasil que está invadindo a Argentina com produtos industriais, são as multinacionais, entre elas a poderosa Brasmotor, monopolista da linha branca, que está tomando conta da capacidade de consumo do país vizinho. São empresas subsidiadas pelo dinheiro de sucessivos governos ditadoriais, como a Camargo Correa, que está comprando empresas de lá. É a Petrobras, sem acento no as, multinacional e ex-estatal brasileira (expropriação de um patrimônio criado a partir de intensa campanha popular no governo Vargas eleito pelo povo), que está concentrando poder econômico em território platino. O Brasil é ponta de lança da pirataria internacional e do FMI. Deixou a Argentina na mão, aproveitando a brecha aberta pela falência do país vizinho, que tenta levantar-se, eles sim, com as próprias pernas. O Brasil também foi saqueado, como prova Greg Palast em A Melhor Democracia que o Dinheiro Pode Comprar (lançado pela W111 de Wagner Carelli, que acaba de sair da editora, rebatizada agora com o nome do selo Francis). Aconteceu na época da reeleição de FHC, em que o real foi segurado artificialmente até que o bobalhão continuasse no poder. Em troca, esfumaram-se 50 bilhões de dólares de nossas reservas. O buraco foi preenchido, oh surpresa, por novo e polpudo empréstimo do FMI, que nossos tataranetos irão ainda arcar (se ainda houver Brasil no futuro). Sob o juramento de que continuaria mantendo essa situação de desastre, o PT assumiu o poder engambelando o povo e intensificando o processo de entrega do país. Com isso, o Brasil tornou-se o que é hoje: o agente laranja do Império americano, para onde brasileiros em massa procuram fugir. Infierno por infierno, prefiro el da fronteira, como disse Martin Fierro.

LUTA - Os leitores do DF sabem a implicância que tenho com os argentinos, portanto posso garantir a isenção da minha análise. Kirchner é fruto de algo que não existe no Brasil: opinião pública legitima, por meio de mobilização popular e luta na rua. Se ele não se comportar direito, vai para a rua. No Equador viu-se algo parecido: o Lula de lá, o tal coronel Gutierrez, traiu as promessas de campanha e saiu abaixo de sacos de lixo. Salvou-se porque o Brasil interferiu (usando as Forças Armadas), a mando dos americanos. Lula disse que está pensando muito no povo, no salário mínimo maior, mas que não pode fazer tudo de uma hora para outra. De uma penada, em 1943, como lembraram reportagens recentes, Getulio Vargas criou toda a legislação trabalhista. Em 1945, quando foi deposto por um golpe militar, deixou a dívida externa zerada. O governo petista faz o contrário: destrói os direitos trabalhistas viabilizando o subemprego e o desemprego em massa, sucateia o parque industrial do país (que está em queda livre, segundo o noticiário das bancas) e, de quebra, tenta acabar com o que resta da indústria Argentina. Os argentinos, apesar de serem o que são, uns pentelhos inomináveis, precisam ser respeitados como nação. Não porque são nossos vizinhos ou porque devemos temê-los, mas exatamente porque somos maiores, temos mais mercado e PIB maior (que não serve para nada, pois o dinheiro fica concentrado na mão de meia dúzia, como não cansa de provar o IBGE). Esse é o espírito da verdadeira democracia: a força de quem é menor, e não a prepotência de quem tem mais, como acontece no Brasil. O que existe de suportável aqui são alguns nichos (que já estão sendo detonados, segundo vemos nos assaltos de quadrilhas cada vez maiores e rebeliões diárias no sistema carcerário) em que se refugiam os verdadeiros comodistas da democracia fajuta que nos governa.

GRANA - Investimento estrangeiro é papo furado: o que existe é dinheiro especulativo. Quando há investimento em parque produtivo, é para arrancar muitíssimo mais do que se coloca. E o que é pior: contratam até funileiros importados, como aconteceu com as empresas espanhola e portuguesa de comunicações. Simpatizo com Kirchner, que diz coisas ótimas como o Brasil tentou fazer até o Papa. Sua revolta contra nós não tem nada a ver com a birra tradicional argentina (isso fica para os gramados e preparem-se jogadores brasileiros que vão levar o troco na próxima vez que forem cumprir tabela em Buenos Aires). Tem a ver com política externa voltada para a soberania das nações. Não se deixa um vizinho como a Argentina na mão enquanto fazemos pose de líderes da América Latina. Não somos líderes coisa nenhuma. Somos uns grandalhões ridículos, com um governo de araque, imersos na pobreza, na miséria e na violência.

RETORNO - Não canso de repetir: as marchas sobre a capital são de inspiração fascista, baseadas na célebre marcha sobre Roma liderada por Mussolini em 1924 e que desaguou na ditadura italiana, um dos pilares da Segunda Guerra Mundial. Marchar sobre Brasília sendo subsidiado pelo dinheiro público, como faz o MST, em que pese as aspirações legítimas do povo por terra, faz parte de um movimento qure tornou-se perverso por falta de governo. O MST está virando uma autarquia como o Incra. A solução seria simplesment fazer a reforma agrária, arrancando dos grileiros taradões as terras públicas roubadas por meio da corrupção cartorial, e distribuindo-as aos agricultores. Mas isso seria contrariar os desmandos dos grotões, no qual o voto lascivo se impõe para manter o sistema de ditadorial de pé. No hay gobierno? Soy contra.

5 de maio de 2005

A DECISÃO POR PÊNALTIS




A decisão por pênaltis é o juízo final do futebol. É quando separam-se os vivos dos mortos. Porque o futebol não é espetáculo nem entretenimento, como querem os apresentadores monopolistas da televisão. Os espectadores não estão se divertindo, estão participando de uma guerra entre facções inimigas. E quando há um jogo definitivo, misturam-se a um momento mortal onde não há perdão para qualquer deslize. Toda uma vida pregressa está nas mãos desse tribunal inumano e implacável.

PESADELO - A humanidade é vocacionada para a guerra. Precisa lutar de alguma forma. As pessoas vão ao estádio porque querem vencer. Por isso os coros com palavrões, a condenação prévia do árbitro, o desprezo dedicado aos bandeirinhas, os adversários sendo tratados como alvos. Vale tudo nesse território sangrento: racismo, ódio, exclusão, socos, xingamentos e pontapés. A alegria da superioridade de uma parte da platéia e seus gladiadores tem sempre seu lado oposto, a sombra dos prejudicados. A festa, por isso, nunca é bonita, como diz o Galvão Bueno. A festa pode virar um pesadelo: o campeonato que acaba mais cedo, a vaga que se esfuma, como aconteceu ontem com o Corinthians (patrimônio nacional atualmente em mãos estrangeiras). Com isso, esvai-se não só as vitórias, mas o dinheiro que se deixa de ganhar. Como a política, o futebol é a continuação da guerra ou até mesmo a sua anunciação ou o seu rescaldo.

APOCALIPSE - Batedor e goleiro se enfrentam para definir a sorte. O retângulo do gol não interessa. Visto do batedor, todo o foco está centrado no corpo móvel do goleiro. Visto do arco, a bola está parada como águia que aguarda o próprio bote. O vôo é na velocidade da luz. O planejamento desenha-se numa série de gestos: a corrida curta, o impulso, a posição ocupada pelo pé na hora do chute, a coreografia do arqueiro que precisa atrair a águia para seus braços. As aves de rapina aparentemente são dóceis quando domesticadas. Mas só quando estão cegas, quando algo tapa seu olhar de diamante. Basta tirar-lhe o capuz (o chute) para que avance sobre a presa como celerada. Conforme a ordem emitida, poderá chegar à rede, como aconteceu na falta batida por Tevez; ou na lua, como o chute desastrado de Roger. Tevez debochou do goleiro negro fazendo cara desafiadora depois de conseguir o ponto. Faz parte, está no seu DNA cultural. Em compensação, Cleber correu para a bola no último lance como um algoz cai sobre o pescoço da vítima. Ele foi com tudo. Não dispunha mais de pés nem de corpo, era só vontade, a gana de colocar aquela bola dentro, custasse qualquer coisa. Cleber queria escapar da maldição de ter tido a vaga nas mãos. Poderia ter deixado partir, poderia ter adiado o desenlace. Mas ele não deu chance ao destino.

GRITO - Cleber correu como nunca, como um louco atrás da miragem, como touro que investe contra o pavor do fugitivo. Quando conseguiu classificar o Figueirense para as quartas-de-final, continuou correndo tirando a camisa, pois já não cabia mais no time, fazia já parte de algo maior, que rebatia das arquibancadas como vagalhão de mar, como repuxo violento de maré. Para um corintiano em recesso como eu, que quer ver pelas costas os argentinos e todo o resto da máfia que pegou o Corinthians para si, foi um momento empolgante. Gritei para o video: Tu vai fazer esse gol, cara, tu vai conseguir chutar a cara do Passarola, corre Cleber, corre para quebrar a espinha desses bandidos! Foi assim que um pacato cidadão brasileiro transformou-se na contrafação do guerreiro que evita ser, por educação e civilidade. Compreendam. Quero o Corinthians de volta.

RETORNO - Vejo no Jornal Nacional que a crise estás instalada no Corinthians. O perdedor Passarola, o tosco Tevez e toda a caterva devem voltar de onde vieram.

4 de maio de 2005

OS LIMITES DO HUMANO SÃO A SUA TRANSCENDÊNCIA


Não existe nada mais datado e morto do que enxergar-se como a coisinha de Jesus que todos precisam admirar. Dostoievski e Kafka atingiram a permanência ao compor uma literatura que devassa nosso esqueleto. Pode ser que apenas repassaram para a literatura o que a ciência estava descobrindo, mas com isso deram a chave para virar de pernas para o ar a pressão conservadora de olharmos admirados nossos eleitos (nesta época de comodistas de traseiros presos, nós mesmos). Esses autores destituíram a humanidade do pedestal que costuma refazer-se em cada geração, já que somos tabula rasa e precisamos de um esforço supremo para alcançar o mesmo patamar de gerações anteriores, e só depois disso tentar superá-las. Claro que inverteram tudo: a desconstrução dos mitos cristalizou-se. Agora o espírito conservador cinzelou em mármore o que ele entende por modernidade e lá vamos nós de novo em regressão absoluta. Só se atinge a transcendência com a visão clara dos nossos limites. Não adianta perguntar ao espelho viciado em você quem é o rei da cocada preta, que ele responderá o óbvio. O truque é mirar-se na diferença e pela diferença sintonizar-se com o Outro. Esse encontro só é possível se definirmos os contornos do humano que habita em nós.

MESQUITA - Transcender não significa ser aplaudido, mas habitar uma das moradas eternas (algumas delas são invisíveis). Também não implica auto-esculacho, que no fundo é pura vaidade, isca para o reconhecimento alheio, que se for puxa-saco o suficiente, irá discordar, a não ser que você viva no Brasil. Aqui, toda autocrítica é levada a sério. Nunca diga, nem murmurando: como sou idiota! Todos irão sacudir afirmativamente a cabeça. Você é mesmo esse asno auto-punitivo. Definir os limites não é dito aqui no sentido pedagógico-babaca do termo: precisa dar limite para esta criança! Falo em descobrir os contornos, saber onde nos identificamos, onde está a fronteira que nos revela, e não a escassez que nos flagela. Quem somos nós? Não sabemos. Mas podemos vislumbrar alguma coisa se identificarmos onde estão as linhas que nos fazem reais. Por exemplo: não sei perguntar, ou não sei dar a resposta a adequada, ou jamais saltarei de para-quedas, ou subir montanha é para espécimes caprinas peludas. Não sou pintor, mas desenhista, diz Rodolfo Mesquita na entrevista a Urariano Mota, que inspirou esta edição do DF. Aí você decide: Mesquita é um tremendo de um artista, um desenhista único, um pintor magnífico. Ou não. Mas veio dele algo que o define. Ele sempre parte do desenho. Isso não é uma radiografia, um insumo para a crítica de arte, mas exatamente a ação de definir os contornos do humano para atingir a transcendência. Não que ele queira atingir, mas chega lá porque deixou-se levar pela sua natureza, pela transparência com que se enxerga, pela maneira tranqüila de se auto-definir.

AMEAÇA - Vamos pegar outros exemplos. José Sarney se coloca como o grande pacificador, o reinventor da democracia no Brasil. Será lembrado como o presidente da Arena que consolidou o regime de 64. Lula diz que nunca houve um presidente como ele. Pode ser uma profecia, mas não muito obediente ao profeta. FHC enche de elogios o grande assassino Henry Kissinger (conforme denúncias, o sinistro mandatário do golpe chileno de 1973; foi também Nobel da Paz por pacificar, quá quá quá, o Oriente Médio). FHC será lembrado como o grande pulha que entregou de bandeja o país à sanha estrangeira em troca de alguns títulos de Honoris Causa (certamente não foi só esse o pagamento). Uma biografia não funciona se o objetivo for jogar confete no biografado. É por isso que Fernando Morais, que é do ramo, está esperando o desenlace. Só depois que o ACM partir para o Outro Lado é que ele publicará (ou terminará) seu livro sobre o político baiano. Pois se ele lançar agora, é bom que se comporte. Ou seja, seu livro nascerá morto, não atingirá a transcendência. Já o livro que ele lançou sobre o Washington Olivetto pode ser publicado, o personagem não tem a importância de um ACM . Samuel Wainer entendia do riscado e passou o encargo da sua autobiografia para o competentíssimo Augusto Nunes, que fez um primor de texto, sem trair o jeitão do velho Samuel de contar uma história. Samuel fazia auto-crítica, me olhando debaixo daquelas grossas sobrancelhas brancas. Era um repórter de si mesmo. Um escritor de verdade está sempre armado de um punhal, não apenas para cortar as abobrinhas, mas porque tem um encontro com a morte. Ele está preparado diante da ameaça fatal da obra morta ao nascer. Ele vive da superação, de seu livro sobreviver a ele mesmo. Poucos conseguem. Nascemos para virar pó do esquecimento. Mas, às vezes, um anjo nos visita.

3 de maio de 2005

O PRÉ-CAPITALISMO NO PAÍS DE HAGAR




Hagar, o Horrível, criação de Dick Browne, é um saqueador profissional, mas para viver placidamente na sua casinha com Helga precisa pagar imposto, compromisso que ele cumpre sempre sob a ameaça dos carrascos do rei. Uma parte do butim que ele expropria pela violência fica para o governo. Talvez seja por isso que Helga não tem empregada e vive se queixando da vida. Não sobra nada para a família de Hagar, o Horrível, a não ser o consolo da bebida, da comida e da preguiça. É o tipo de sistema econômico que impera no Brasil. Para sobreviver, os cidadãos se entregam a alguma atividade predatória, seja contra os outros, seja contra si mesmo. No país de Hagar, existe frustração profissional em todos os lugares, do bar ao consultório médico. É assim também no Brasil, terra pré-capitalista que tem um governo dedicado a expropriar a sociedade dos seus ganhos de sobrevivência. Há também o cinismo no país de Hagar. É o caso do nosso governo, em que o presidente vai até a Fiesp para chamar empresário de chorão e para defender a chinesada predatória, os caras que inventaram o guarda-chuva descartável, ou seja, que obriga o consumidor a pagar mensalmente a taxa de guarda-chuva, pois é preciso recomprar o produto toda a vez que cai um pé d'água.

RACHA - Acompanhei o racha dentro da Fiesp de 1993 a 2003. A divisão interna que existe hoje é fruto das pressões do sistema pré-capitalista. O arrocho tributário, a concorrência desleal da abertura Collor (que abriu as pernas do país enquanto as pernas de outras nações fecharam ainda mais) e o sucateamento sucessivo das moedas empurraram a liderança empresarial contra a parede. Ela ainda existe como organização porque na era Vargas foi feito esse acordo de a folha de pagamento subsidiar compulsoriamente sindicatos e federações. Se eu subsidio a indústria, disse Getulio Vargas (o inventor do Brasil moderno, segundo frase lapidar de Samuel Wainer), então eu preciso subsidiar o trabalhador. O que fez a ditadura anti-Vargas? Criou a ilusão do Brasil Grande e inflou artificialmente o parque industrial para em seguido abandoná-lo. Estive uma vez na Vila Leopoldina, na fábrica de vagões do Luis Eulálio Bueno Vidigal. Enormes galpões vazios. Aquela indústria chegou a produzir vagões ultra sofisticados para a Alemanha, que tinham inclusive um sistema de limpeza que se acoplava à porta e funcionava como um gigantesco aspirador de pó. Foi tudo por água abaixo. Geisel falou: aumentem a fábrica que o governo garante. Não garantiu, e o industrial ficou com o pincel na mão. Segundo recente matéria da Folha, o parque industrial brasileiro hoje corre célere para ser apenas uma linha de montagem de produtos estrangeiros, que chegam aqui em peças. Ainda não fizeram a matéria sobre a quantidade gigantesca de empresas mortas. No caminho que percorro até o trabalho, 35 quilômetros diários, vejo inúmeras portas todas pintadas com nomes de pequenas empresas que não funcionam mais. O Brasil é pré-capitalista. Não existe a política de circulação do dinheiro. Nossa moeda foi feita para ficar no banco, rendendo juros (para os banqueiros).

CULPA - A Fiesp e as outras organizações patronais não são inocentes. Usufruíram todas as benesses dos governos fajutos, mas cavaram sua própria armadilha. Os governos estavam mal intencionados, dedicavam-se a entregar o país, pois esse é o projeto: sucatear a soberania arduamente conquistada na era Vargas. O empresariado adquiriu horror ao trabalhismo porque precisou dar férias, décimo-terceiro salário e indenizar os demitidos. Onde já se viu isso num país de escravos? E aumentou sua ojeriza quando Brizola encampou uma multinacional das telecomunicações no RS (a ITT) pagando o valor simbólico de um cruzeiro. Esse asco cresceu quando Brizola peitou a ditadura e não permitiu que dessem o golpe em 1961. O patronato envolveu-se fundamente no golpe de 64 e hoje colhe os frutos do seu erro. No lugar de apostar na harmonia social pagando os direitos trabalhistas, decidiu destruir a CLT com uma campanha insidiosa contra a carteira assinada. Entrevistei mais de 300 empresários em São Paulo. Todos falaram mal da carteira assinada. A maioria já fechou as portas. Divida o bolo para que todos cresçam, senão enfrente a chinesada, que produz com mão-de-obra escrava e enche ao mercado de porcarias baratas contrabandeadas. Perguntam se o sistema chinês é de mercado ou não. É ditadura e escravidão. Simples assim.

DEMOLIÇÃO - O empresariado fica falando da carga tributária (assunto que enfoquei todos os dias nos dez anos que estive lá), mas devia aprender a fazer política. Desvincular-se da direita e aceitar o fato de o trabalhador ter direito ao emprego de verdade e não ao subemprego, ao salário de verdade e não à merreca, à estabilidade na empresa e não ao rodízio assassino aconselhado pelas consultorias caras e ineficientes (o tit-ti-ti da competitividade, como dizia o Fortuna). Os industriais tinham medo de Lula e apoiaram Collor, que expropriou a poupança e a conta corrente por algum tempo (em alguns casos, para sempre). E, de quebra, iniciou a demolição do nosso parque industrial. Agora se abraçaram a Lula (que tem um dos ministros saído dos quadros da Fiesp) e acabaram ficando nos braços do arrocho. A elite empresarial terá sua fonte de renda destruída: é só acabar com o sistema cinco S, do desconto compulsório, dinheiro da Previdência que vai para as federações, que pronto, está feito o serviço. Vai todo mundo sentir saudade de Getúlio Vargas. Tarde piaste, como diria o gaúcho.