30 de setembro de 2003

A ESTRATÉGIA DA OMISSÃO

Omitir é mentir. Enterrar vivos autores e idéias (ou seja, não citar, para poder roubar impunemente), como se faz hoje na imprensa, é o caminho para a cultura de araque, onde o destaque excessivo dos parceiros de negócios convive com a super-exposição do que não tem importância. Fica-se assim por cima da carne seca, enquanto o "resto" medra no ostracismo.

SETE VÉUS - Graças ao site de Rimarah Hare, descubro agora que a Dança dos Sete Véus é uma invenção do Ocidente e que foi imposta como manifestação do Oriente. Fica assim mais apropriado o título A Dança dos Sete Véus - e o enfoque que eu dei ao meu trabalho acadêmico sobre o livro Orientalismo, de Edward Said, que está há anos disponível na Internet, no endereço eletrônico ww.consciencia.org/neiduclos/historia/orientalismo.html e tem um link no site da editora Conrad. É um texto extremamente visitado. Foi reescrito três vezes para agradar minha exigente orientadora de pós-graduação, a professora doutora Nanci Leonzo, da USP (que tem um magnífico trabalho, ainda praticamente inédito, sobre as Forças Armadas na época colonial). Pois bem. Ontem, num grande jornal (fica bem assim? vamos também pecar pela omissão? está na moda?), um autor considerado e que assina uma diatribe extravagante contra Said, desqualificou o que ele chamou de "a dança acadêmica dos sete véus" do grande autor. Meu texto contém uma crítica a Said, mas importa-se mais em analisar o magnífico trabalho desse intelectual, que morreu recentemente de leucemia. O referido (como assim referido? acabo de omitir o nome dele!) autor, que é um dos poetas super-expostos do jornal em questão (estou me especializando na omissão!) usou a metáfora dos sete véus para o trabalho de Said sem citar a fonte. Com isso, ele manteve o recorde: tenho um trabalho acadêmico há anos na Internet, que jamais foi citado na imprensa. Claro que o álibi da coincidência pode ser brandido nesse caso. Mesmo assim, se existe um texto acadêmico com esse título sobre o assunto em questão, e se foi usada a metáfora (só para desancar sem dó um autor maravilhoso), por que não dizer que o texto existe na Internet? Porque não, naturalmente.

DESATINO - Outro exemplo: ontem vi na emissora de TV da Câmara paulista (que, se os responsáveis quiserem, pode tornar-se um grande canal regional) uma entrevista com o consideradíssimo Moacir Japiassu, um dos escritores brasileiros mais importantes da atualidade, que acaba de lançar uma obra-prima, Concerto para Paixão e Desatino, uma lição de narrativa e de criação literária (daqui a pouco escrevo a resenha, Japiassu, estou no meio do tiroteio! mataram João Pessoa, considerado, mataram o presidente da Paraíba!!). Japi falava para seus entrevistadores sobre a "conspiração do silêncio" da grande imprensa em relação ao seu livro. Claro que Japi, um homem acima de toda essa mediocridade, falou isso com a grandeza que o define, sem ressentimentos, até com bom humor. Mas é um escândalo que não tenham reservado, como fizeram com autores menores, grandes espaços para o livro de Japi (só citar não vale, é preciso resenhar, é obrigação do jornalismo cultural, que não pode omitir fatos) . Por que? Para mim, os responsáveis por isso moitam para poderem chupar. Só pode ser isso. Se existe um consenso (pois é uma armação, pois não?) sobre determinados autores, o objetivo é cassar sua palavra para poder pontificar com ela. Gostaria que me contrariassem, que tornassem esta edição do Diário da Fonte obsoleta e publicassem resenhas sobre Japi, por exemplo, amanhã. Ficaria super satisfeito!

AZEITONA - Lembro que, quando trabalhava na Ilustrada, os Novos Baianos estavam proibidos na grande imprensa. Furei o bloqueio. Na IstoÉ, tratei Rita Lee como assunto cultural importante (o que era um fato, na época), para espanto geral. Hoje, volto a perguntar: nada, absolutamente nada sobre o maior compositor vivo do Brasil, Edu Lobo? Quando o cara se for (que Deus nos livre!) vão veicular apenas aquelas imagens em preto e branco dos anos 60 (cobertas de necrológios pífios). Não filmam o cara, não vão atrás dele, não pedem para ele tocar e cantar em frente as câmaras, não o entrevistam! Nada sobre o Edu Lobo e tudo para o, digamos, Chitãozó e Chororinho, Súnior e Jandy. Fica explícita a omissão a serviço de objetivos escusos quando um repórter de TV fala em "uma empresa", sem citar o nome da dita. É uma maneira de forçar as empresas a pagar para aparecer, via anúncios (quando não por outros caminhos escusos). Desconfio que, na área cultural, as redações estão cheias de "concorrentes" medíocres, com a mentalidade de para-quê-colocar-azeitona-na- empadinha- alheia. Vi pseudo-autores, que ocupam lugares chave nas redações culturais, posarem com seus lançamentos, tendo atrás uma grande estante cheia de livros, olhando significativamente para câmara, enquanto seus pares pastam no anonimato. Sorte que eles não omitem o poeta Fabrício Carpinejar, que hoje lança sua antologia Caixa de Sapatos, no Bar Canto Madalena (Medeiros de Albuquerque, 471, 19 horas). Carpinejar é uma flor de pessoa e estarei lá para conhecê-lo pessoalmente e dar-lhe um abraço.

RETORNO - O poeta Mauro Mendes conta como funciona o Brasil: "Ontem, ia comprar a Folha de SP para ler o artigo de Schwarz que me indicaste, mas, infelizmente, aqui em Salvador, o jornal não vem com o Mais!. As distribuidoras fazem muito isto, tiram determinados encartes para diminuir peso no avião, o que é um absurdo!"

29 de setembro de 2003

PROJETO ABRE-GAVETA


Escrever é uma atividade que não deve ficar obrigatoriamente restrita ao universo das redações. Assim como fotografar deve ser o desenvolvimento de uma arte e não apenas o ato de cumprir pautas e fazer coberturas. O talento, recurso natural não renovável, precisa deixar de ser desperdiçado. Na edição de hoje, algumas idéias para ajudar a resolver o impasse.

LIVROS – O Projeto Abre-Gaveta precisa ser uma iniciativa de um grupo de jornalistas interessados em fazer valer o direito fundamental do profissional do ramo, ou seja, trabalhar no sentido de alcançar a permanência do que produz. Se houver apoio do Sindicato e das empresas de comunicação, melhor. Deve ser uma ação sem fins lucrativos e que trabalhe a favor do que temos dentro dos jornais, revistas, rádios e televisões. E mesmo fora desse circuito, entre os jornalistas autônomos (muitos deles, procuram achar uma saída com seus próprios recursos, o que costuma ser um processo demorado e muitas vezes doloroso) . A idéia é simples: ter uma equipe mobilizada para detectar o que se faz entre os jornalistas e que tenha permanência. Podem ficar de fora os autores que já possuem editora, que já dispõem de uma carreira nessa áreas e que portanto não precisam disso, já que sabem se virar sozinhos. O objetivo é alcançar não só os estreantes, mas os veteranos que por muito tempo acalentam a vontade de ter um livro publicado e não conseguem. Primeiro, é importante ir atrás do que já está pronto: quantos romances, livros de reportagens, peças de teatro, poemas, existem na gaveta? A equipe do projeto iria atrás desse acervo para ajudar a viabilizar, digamos, o “produto”.

REPERCUSSÃO – Por que falo nessas coisas? Primeiro, pouca gente lê esta coluna. Segundo, parece que advogo em causa própria, o que não é verdade. Meu trabalho como escritor vive altos e baixos, mas já tenho alguma coisa publicada. Penso nos grandes talentos que, com o tempo, desistem, deixam para lá, esquecem, ou simplesmente escutam o canto de sereia do deboche, do pragmatismo (“isso é coisa de amador! Você não vai conseguir!") ou da complexidade do trabalho. O Projeto Abre-Gaveta, depois de ajudar a editar (em parceria com editoras ou por conta própria) os livros prontos, iria atrás dos projetos e ajudaria o autor a se dedicar a eles, por meio de apoio. Como seria esse apoio? Falo em tempo, espaço e recursos. É preciso que o jornalista reserve uma parte do seu tempo oficial de trabalho para se dedicar aos seus projetos. Como nossas empresas de comunicação não dispõem nem de uma biblioteca, vai ficar difícil que isso aconteça. Mas como esta coluna, repito, é um exercício de imaginação, penso na possibilidade de implantar espaços específicos para os jornalistas desenvolverem seus projetos. Ganhariam xiz expedientes por mês para fazer isso. Essa providência ajudaria a discipliná-los para um trabalho que normalmente fica para outro dia.

RESGATE - O espaço pode ser fora da redação, num lugar à escolha do autor, que fosse ajudado a desenvolver seu trabalho alternativo. Lembro de um economista que retira-se por um mês (acho que é o Eduardo Giannetti da Fonseca) num pequeno hotel em Minas para escrever um livro. E sempre dá certo. Pois esse autor poderia passar um tempo (fora do seu direito de férias) retirado, por exemplo e voltaria com seu projeto pronto. Aí receberia apoio da equipe mobilizada para esse fim para colocá-lo na praça. Todo mundo tem a lucrar. As empresas, que assim fariam algo significativo na área de recursos humanos. Os autores, por motivos óbvios. E o mercado, que teria novos produtos, de autores traquejados na lide diária. Serve também para uma série de livros de fotografia, por exemplo. Serve para alguém dedicar-se a resgatar grandes reportagens do passado e lançar uma coleção. Serve para ajudar novos autores, para dar algum retorno aos antigos, para recuperar e tornar permanente o talento que nem sempre é usado no dia-a- dia. O Projeto Abre-Gaveta seria também um estímulo para que o talento volte ao exercício da profissão. Seus produtos serviriam de parâmetro, diferente daquelas leis inspiradas no pão-pão-queijo-queijo.

RETORNO – Enorme alegria em receber e-mail do meu amigo Antenor Nascimento, escritor e jornalista de primeiro time, homem de Veja e de tantos outros veículos importantes, de texto impecável e índole pacífica, que me aturou por algum tempo na Istoé do final dos anos 80 e que lembra os fechamentos nas nossas “madrugadas intermináveis, das máquinas olivetti Lexicon, e do gim tônica no Gigetto.” Tinha esquecido, Antenor, que a Olivetti era a Lexicon. Como isso foi possível?

28 de setembro de 2003

UMA ALIANÇA COM A TEORIA

Teorizar deve deixar de ser nome feio. A visão clara sobre a complexidade dos fatos é uma aliada decisiva no trabalho jornalístico, que precisa estar atualizado com as idéias e análises dos nossos melhores intelectuais. Por exemplo: qual a relação entre o artigo seminal de Roberto Schwarz, hoje, no Mais!, sobre Francisco de Oliveira, e o trabalho de alguns talentos da fotografia?

EM ESTADO DE DICIONÁRIO - Antes de fazer essa ligação entre Roberto Schwarz e Hélcio Toth, entre Francisco de Oliveira e Marcelo Min, entre Celso Furtado e Regina Agrella, entre Sérgio Buarque e Walter Firmo, entre Raymundo Faoro e U. Dettmar, quero destacar a vocação autóctene desta coluna, que divulgou ao longo dos últimos vinte dias uma série de conceitos sobre o exercício da profissão e que precisam ser recapitulados. Como a Internet é uma mídia simultânea, 24 horas no ar, não vou chover no molhado. Apenas lembrar que são fruto de reflexão própria as definições de “jornalismo-de-breque, esqueleto imantado, jogral das fontes, marketing da pressa, distribuidor de positivos, síndrome da moita, pauta rotativa e ditadura civil”. Além de bordões como “olho branco não reverte, o feminismo é fanho, credibilidade é a separação entre jornalismo e publicidade e não existe Kurosawa menor”. Faça um control F e descubra detalhes de todas essas sacadas, se for um leitor recente. Se estiver entre os dez privilegiados que acompanham a coluna desde o seu início, nem precisa.

VITRINES REAIS – A honestidade e o brilhantismo de Roberto Schwarz, o maior intelectual do país, autor do obrigatório “Um Mestre na periferia do capitalismo”, sobre Machado de Assis, é um privilégio para nosso país tão à mercê da mediocridade. Ele lança luzes seminais sobre o deslocamento existente no Brasil entre as idéias – vindas do exterior e assimiladaas à nossa feição – e a realidade espúria a qual pertencemos. Ele defende a tese de que esse deslocamento foi necessário para que, no século 19, o capitalismo desse certo no mundo, pois nosso atraso alavancou a prosperidade alheia. No artigo hoje do Mais!, o melhor caderno jornalístico do País, bênção dos domingos e festa do conhecimento, ele comenta a intensidade da tese de Chico de Oliveira sobre o fato de o petismo oficial ser a outra face da mesma moeda do pseudo-neoliberalismo tucano. Essa é uma teoria que, sem ser citado, vai nas águas do Raymundo Faoro, autor de “Os Donos do Poder”, sobre a hegemonia do estamento (a elite burocrática oficial) que mantém a mentalidade atrasada no Brasil atrelado ao colonialismo internacional.

MOTORES DA MISÉRIA - O que me chama a atenção para o trabalho de Francisco Oliveira, comentado brilhantemente por Schwarz, é o enfoque criativo sobre o papel da miséria do Brasil. O trabalhador informal, a pessoa que está fora do sistema produtivo legal e que constrói sua casa no mutirão e ganha o pão vendendo bugiganga nas ruas – ou produtos a preços acessíveis para uma população tão carente quanto ele – é que é o motor do desenvolvimento nacional. Já que indústria se contenta em ser reprodutora de know-how alheio, montadora de automóveis e radinhos, é na força produtiva dos marginalizados que o País encontra forças para seguir em frente. Pois isso tudo está no trabalho do Tomás May, do Marcelo Min, do Hélcio, da Regina e de tantos outros! São esses fotógrafos que estão no front e que bebem da mesma fonte que alimenta a teoria. Unam-se , portanto, criem vasos comunicantes entre si. O jornalismo obedece a uma teoria fajuta, dualista, em que uma parte do país ( a oficial) é enfocada com seriedade e a outra (a informal) é vista de cima para baixo, como se a primeira tivesse que repassar esmolas para a segunda. Pois é o Brasil de pé no chão, a que luta para sobreviver sem nenhum apoio e que tem sua cultura própria, sua dinâmica, e sua própria iconografia, que dá lições à economia formal. O buraco é muito mais embaixo e a água vem de baixo para cima. Os jornalistas precisam acessar o que há de mais criativo e fecundo na teoria para que as pautas deixem de ser babacas, tipo “veja que beleza essa ONG que preserva as tartarugas e ensina capoeira”. Ninguém quer esmola nem demonstrações de boa vontade. Queremos política justa, fim da corrupção e jornalismo sério. Pouca coisa.

RETORNO – Roberto Nogueira, jornalista ponta firme, atualmente em Brasília, escreve dizendo : “Estou me deliciando com o seu texto. Parabéns pelo blog. Os temas abordados são muito, muito atuais.” E o excelente poeta Mauro Mendes (jmaurom@terra.com.br), da Bahia, envia poema Náutica que acaba assim: “Velejarei num mar de versos,/ onde me reconheço,/ onde o campo é minado/ e cada palavra sabe a sua cicatriz.”

27 de setembro de 2003

A SÍNDROME DA MOITA

Tornar-se invisível, guardar segredo sobre seus pensamentos, aturar estoicamente chefes e colegas e aguardar melhores dias faz parte da sobrevivência nos empregos. O importante é que a estratégia não vire vício ou defina sua personalidade. E, principalmente, que não seja usada contra os outros ou apenas para garantir seu espaço de maneira mesquinha.

OLHO BRANCO – Quando alguém mais poderoso joga pesado contra você, ignora-o propositadamente, escuta-o só para ordenar tudo ao contrário, não o convida para as reuniões, dá ordens diretas para a equipe que está a seu comando sem consultá-lo, ri toda vez que você fala sério e desvia o assunto quando você tenta contar uma piada, é sinal que você está condenado. Essa tendência não costuma reverter, já que o poder colocou o chamado “olho branco” em você, um olhar frio, distante e que o torna anônimo dentro do seu espaço profissional. “Olho branco não reverte” é a lei nessas situações. É hora de você ir procurar sua turma, encontrar outra ocupação em outro lugar. Costuma-se culpar o excesso de visibilidade, que atrairia o empurrão negativo do poder sobre você. É comum perguntar-se: e se eu permanecesse quieto no meu canto, sem dar muita bandeira, e se eu sacudisse afirmativamente a cabeça (com o cenho carregadíssimo de seriedade) nas reuniões, sorrisse na hora certa e obedecesse em todos os detalhes, mesmo que eles contrariassem o bom senso, seria diferente? É possível , mas essa é uma possibilidade virtual e remota, pois como mudar a própria personalidade? Quando o embate é frontal, fica mais fácil lidar. O grande problema é quando o teu chefe é mestre da moita, e te engana direitinho. Quando você menos espera, vira estatística.

GESTOS – O comportamento numa redação tem muitos gestos. Um eles, clássico (deve estar em desuso), é composto por mangas arregaçadas, gravata um pouco frouxa, casaco na cadeira, punhos fechados, ambos sobre a mesa, braços esticados e olhar penetrante para alguém na frente, um texto em cima da mesa ou para o infinito. Outro é cenho levemente carregado, um leve roçar da mão sobre a face (se tiver barba confiável, ou seja, trabalhada, melhor) e palavras certeiras ditas num tom casual. É cool. Os grandes mestres do gesto certo em redação são os mineiros, que tem muito a ensinar a nós, gaúchos, que caímos em várias armadilhas. Coisa de gaúcho é o andar duro, uma só mão no bolso e um ombro mais baixo do que o outro (como faz o rei da cocada preta, o Tarso Genro). Mas hoje todas as nacionalidades brasileiras se igualam na moita, ninguém dá mais bandeira. Foi-se o tempo em que o Tarso de Castro entrava com uma vassoura e uma enxada na redação e gritava, sacudindo alternadamente cada um dos objetos: “Este é o Médici! E este é o Geisel” ou coisa que o valha (nem lembro se eram mesmo vassoura e enxada, mas essa cena eu vi). Uma coisa que deve-se atentar são os ombros: não mostre seus ombros abaixados, senão você está identificado com a preguiça ou a velhice. Vi muito peru e perua subir na vida sacudindo os ombros enquanto falavam. Transmite sinal de sempre-alerta.

VOZES - O machão é rouco, a feminista é fanha. Falar ao mesmo tempo em que o seu “concorrente” (aquela pessoa derrubável) tenta dizer alguma coisa, é uma maneira de afastá-lo. Transmitir recado como se passasse uma bola quadrada, também. Pedir desculpas depois de sentar em cima de um pedido, esperar estourar o prazo e só terceirizar a encomenda minutos antes da data, é a maneira mais eficiente de acabar com alguém. Tornar obrigatória a saída conjunta para o almoço e forçar visitas de fim de semana fazem parte do cerco a alguém que tem algo para oferecer no emprego. Todos esses expedientes, execráveis, foram apresentados para mim durante décadas. Acumularam-se na minha cabeça de maneira tal que, para me livrar, tive de sair várias vezes para não estourar. O gesto maior numa redação é o sorriso sincero. Tive essa experiência com meu amigo Dorival Pacheco, já citado aqui, e a quem dediquei meu segundo livro de poemas, No Meio da Rua. Num deles, dedicado a esse que se foi antes do tempo, intitulado “Poema gritado da janela do ônibus”, anuncio os “ventos da mudança”. Não mudou nada, ainda, Dorival. Não mudou nada, meu querido amigo. O que permanece é a tua generosidade. Você, que me recebeu sorrindo depois de um longo e tenebroso desemprego, que sentou na minha frente durante meses e que repartiu comigo a vida dura de uma redação apertada, mal paga, mas vibrante, na Folha da Manhã, de Porto Alegre.


Perfil – Reginaldo Fortuna

A CHAMA DO GÊNIO – Por ser ético e jamais usar nenhum expediente para se promover ou derrubar alguém, e principalmente por ser gênio, Fortuna fez História no jornalismo brasileiro. Não era apenas um desenhista primoroso, um chargista, um humorista. Era um diretor de arte, um inovador e Mestre. E escrevia magistralmente.

Quando conheci Fortuna no final dos anos 70, época em que foi chamado por Tarso de Castro para fazer o Folhetim, da Folha de S. Paulo, não cheguei a me tornar amigo dele. Só em 1988, quando fui assessor de imprensa e precisei de um diretor de arte para lançar o Softpress, é que me aproximei bastante desse gênio brasileiro, que amargou longo exílio interno depois de tanto fazer pelo jornalismo. Fortuna era muito mais que um cartunista seminal, mestre do traço e da piada política. Escrevia como poucos e, leitor de Gutemberg, era criador visual de primeira, com extrema lucidez no olhar, capaz de detectar um desvio de meio milímetro num fio mal colocado (antes da computação). Fortuna queixava-se bastante da injustiça que fizeram ao Tarso em relação ao Pasquim. Para Fortuna, o Pasquim foi obra de Tarso e não dos outros colaboradores, que eram apenas coadjuvantes.
É preciso destacar também o trabalho revolucionário de Fortuna na imprensa empresarial, onde criou vários projetos gráficos. Por exemplo: como diretor de arte do jornal Softpress, entre 1988 e 1990, ele contribuiu para mudar a concepção gráfica dos jornais empresariais, sepultando definitivamente a fase do amadorismo visual do setor. Antes de Fortuna, havia consenso de que jornal empresarial deveria ser feito sem a excelência gráfica da grande imprensa (não falo dos projetos especiais, como a maravilhosa revista da Good-year, falo das newsleters e dos house-organs ) . Ele também mudou isso. Num dos Prêmios Aberje, do qual fui um dos jurados, pude verificar dezenas de exemplos de "filhotes" do projeto gráfico de Fortuna.
Como diretor de arte, Fortuna se considerava, com justa razão, um clássico, que se inspirava nos clássicos. "Minha diagramação é suíça", costumava dizer, definindo-se como adepto da linha reta e do visual enxuto e preciso. "O projeto gráfico do Pasquim deu certo porque eu fazia a diagramação suíça e o Jaguar estragava tudo desenhando o Sig." Citava Gutemberg (o original) e lembrava que as margens dos livros foram feitas para colocar o polegar. Escandalizava-se com a falta de cuidado com que são confeccionados os livros hoje ("não dá para abrir", dizia). No lançamento do seu livro "Acho tudo muito estranho", onde fiz o texto de apresentação, quase ninguém compareceu. No Brasil "democrático", Fortuna amargou seu verdadeiro exílio. Mas nunca deixou de criar. Onde estivesse, ele era o Mestre.


RETORNO – Duas belas notícias. O nascimento do primeiro neto do meu irmão Elo (o rebento é neo-zelandês e chama-se Erik) e do primeiro filho do meu amigo Anderson Petroceli (é uruguaianense e chama-se Leonardo). Evanildo Silveira, do Estadão, gaúcho dos quatro costados, quer marcar um chope pampeiro, junto com o Antônio Gaudério. Vai sair chispa de facão. Cuidado. Vai misturar Uruguaiana, Santiago e, acho eu, Porto Alegre. Uma coisa é certa nessa chopada: ninguém vai moitar.

26 de setembro de 2003

O ENTRA-E-SAI DAS REDAÇÕES

O rodízio bem remunerado de algumas cabeças coroadas do jornalismo coincide com a crise cíclica nos veículos de comunicação. Parece que fechar redações é a especialidade de alguns profissionais que cometem sempre os mesmos erros, levam de um lado para outro as mesmas pessoas e acabam sendo os cortadores oficiais de empregos. Qual será o segredo de sempre serem chamados para assumir cargos importantes, já que costumam fracassar?


INVENTAR O EMPREGO – Um cargo de alto nível é acertado em território neutro, um restaurante de luxo, um escritório no milésimo andar. A argumentação convincente numa mesa de negociações normalmente nada tem a ver com a realidade de uma redação. Diz-se o que se quer ouvir, acertam-se valores, firmam-se pactos. A identificação mútua vem do chamado capital simbólico, acervo acumulado numa imagem pública que nem sempre tem a ver com sucesso, mas com credibilidade. É preferível, segundo esse raciocínio, alguém que já esteve em algum cargo importante do que arriscar em outro sem essa experiência. Para que mudar? Existe muito dinheiro em jogo e também leva-se em conta a repercussão de uma indicação. Sofre-se antecipadamente com a possibilidade de o indicado ser alguém sob algum tipo de suspeita, como “revoltado”, ou o mortal “muito competente, mas...” Há também o link com a publicidade: um nome de peso pode transmitir sossego no mercado, ajuda a manter a carteira de clientes. Isso tudo acaba em tragédia. O que está em jogo é a responsabilidade dos jornalistas num projeto comercial. Se existem pessoas do ramo consideradas confiáveis, então elas são ungidas nas suas novas atribuições. Se não existem, então coloca-se alguém da outra área: do marketing ou, o que tem sido comum, do próprio patronato.

O MEDO DA CONCORRÊNCIA - O dinheiro reservado à remuneração dos jornalistas tem trocado de mãos ultimamente, pois as empresas de comunicação meteram-se em negócios gigantescos, fora do seu nicho, atraídos pela ambição de grandes ganhos e iludidos pelo horror natural que no Brasil se tem à concorrência. Todos correram para amealhar mais poder e acabaram transformando seus calcanhares em areia e seus pés em barro. Os veículos que os projetaram entraram numa espiral de decadência e alguns sofrem intervenções do capital financeiro. A solução é trazida também de fora das redações, intensificando os erros. As consultorias, que muitas vezes são remuneradas pelo número de cabeças que cortam, colocam suas grandes patas de urso nas redações demitindo gente qualificada e cortando a relação produtiva que deve existir entre veteranos e estreantes (que é garantia de transmissão de competência de uma geração para outra). Dá-se poder aos menos capacitados porque são mais baratos e mais dóceis. Resultado: ficam na rua quadros magníficos, que fariam inveja em qualquer redação do mundo, enquanto os veículos, que enriquecem profissionais de outras áreas, continuam em crise. Esse tema está sendo destacado hoje no Comunique-se, que veicula matéria sobre o Seminário Internacional de Jornalismo. O destaque é um consultor português que não aconselha o corte nas redações. Parece que estão acordando. Será que vão seguir o conselho?

CORTE DE LUCROS - A crise do jornalismo vem da falta da qualidade. Não dá vontade de comprar jornal ou revista na banca, a não ser por hábito (mas aí a pessoa assina). Os jornalões são iguais e as revistas, em sua maioria, péssimas nas suas superficialidades. Isso abre espaço para experiências alternativas. Proliferam atualmente inúmeros veículos, de toda parte do Brasil, e essa é uma tendência saudável, mas muito fragmentada. É preciso reunir um monte dessas publicações para compor um pacote razoável de leitura. Nesse nicho também não foi encontrada uma solução, pois volta e meia alguma revista fecha ou fica confinada a um alcance regional. O problema é que existe muita experiência e talento dando sopa na praça, dispersos em trabalhos free-lances, desconcentrados e muitas vezes amargurados. Enquanto isso, triunfa a barbárie das demissões em massa, da mesmice das reportagens e colunas, dos erros repetidos até a exaustão. A solução é chamar os competentes de volta, resgatar a escola informal das redações – que sempre foram capacitadas para treinar seus quadros – criar novos projetos fora da idolatria publicitária dos segmentos, das linguagens “jovens”, e das abordagens “você-é-tão-sacana-que-merece-o-veículo-que-está-lendo”. Deve-se atrair leitores com textos e fotos de primeira linha, fazer parcerias com os veículos alternativos e jogar na lavoura o grupinho de jornalistas que fecham ou desestruturam jornais e revistas. Não se pode mais continuar punindo quem consegue gerar empregos nas redações (por serem autores de projetos bem sucedidos) e premiando aqueles que só sabem fazer cortes, inclusive dos lucros. O problema é que acertar o veio não é levado em consideração: o importante é o que se fala no restaurante de luxo ou na reunião do milésimo andar. Aí mora o perigo.

RETORNO – A estudante de jornalismo da UFRJ, Larissa Grutes, escreve me corrigindo: nos correspondemos via e-mail desde quando ela tinha 15 anos e não 17. Diz Larissa: “Acho fundamental ter um espaço que esclareça os que estão pensando em ser jornalistas, os que já estão na faculdade, os que já o são e os simpatizantes da profissão. Achei interessante que no Diário você discute temas variados e complexos, mas de uma maneira muito clara e simples, coisa de quem domina a escrita.”

25 de setembro de 2003

O CONSELHO EDITORIAL


Há dois tipos de conselheiros. Os que usam o cargo para prestígio pessoal e pouco contribuem para a redação, limitando-se a defender seus interesses e a destacar os amigos, e o verdadeiro conselheiro, aquela pessoa que não está confinada no jornalismo e pode salvar as reportagens da mesmice com seu conhecimento de assuntos e fontes.

CLOSE-UP E PLANO GERAL – Um telespectador ou alguém em frente ao computador costuma estar bem mais informado do que um repórter atazanado sobre matérias intermináveis. O zap ou o mouse são instrumentos do tempo disponível de um consumidor, muito maior do que o expediente de quem produz. Não basta cultivar as fontes, ter experiência no assunto tratado, traquejo na redação diária. É preciso que alguém contribua para a matéria sem que se envolva nela. Para isso, esse alguém, o conselheiro, possui a chave de muitos enigmas, as pessoas certas na vanguarda dos fatos, abrindo as portas para o insumo mais importante, que é o ineditismo da abordagem, o aprofundamento de detalhes fundamentais, o esclarecimento de pontos obscuros. Um conselheiro é o que o nome diz e não um editor ranzinza a cobrar posturas e prazos. É a pessoa indicada inclusive para ser acordada alto da noite, quando tudo parece perdido. Pode ajudar na análise do que está sendo tratado, fazer um balanço do que o repórter conseguiu, apontar caminhos para o editor convocar mais gente e ampliar o trabalho. O conselheiro é, a meu ver, a principal fonte, pois sabe aproximar-se de um fato o suficiente para aprofundá-lo, ou então vê-lo em perspectiva, para que repórter e leitor relativizem as conclusões e assim se aproximem mais do que podemos entender como verdade.

PÓLVORA - A informação urgente, apressada, que chega na frente, não é o insumo mais importante do jornalista, já que informação hoje sobra e nem sempre ela flui do trabalho da comunicação, mas das próprias fontes, que colocam no ar o que sabem, sem precisar de intermediários. Acabou a profissão de jornalista como entendíamos em séculos passados – e que alguns apresentadores insistem em manter, anunciando que o repórter vai “trazer a informação para você”, como se estivesse fazendo um grande favor ou revelando a inédita existência da pólvora. O insumo principal é o que jornalista pode entender sobre o que está veiculando, é a percepção dele que vale, o que cria (em termos de linguagem eficiente, e não de ficção) para esclarecer os fatos. A fidelidade canina aos fatos é no fundo a fidelidade canina à ética e à coragem pessoal e profissional. São os valores que contam no mar de acontecimentos que nos rodeiam. O paradoxo é ser isento sem deixar de ser engajado. Essa é uma pedreira que pode parecer utópica para quem lida diariamente com os fatos pressionados pela ambição e a brutalidade. Mas esta coluna, como falei ontem, é um exercício de imaginação.

VALE PARA TODOS – Um conselho editorial não pode ser implantado por motivos políticos – para submeter as matérias ao crivo desse fórum – mas práticos. A cravada é, portanto, saber escolher os conselheiros. O cargo dignifica quem é convidado e o escolhido repassa o carisma do seu nome e a força do seu conhecimento ao veículo de comunicação que o convidou. Pode-se argumentar que o Conselho serve para uma revista importante ou um grande jornal, mas não para os pequenos. Aí reside o erro. A diferença entre um veículo importante e um pequeno é, primeiro, a credibilidade, e segundo, o detalhe que diferencia. Na concorrência de hoje, você ganha a parada por um nariz, um pescoço, um tufo de cabelo. Um Conselho Editorial servirá para amparar o pequeno jornal ou revista a virar-se com muito mais desenvoltura, a acertar mais, a destacar-se e a crescer. Mas não deixe esse poder na mão de pessoas incompetentes. Afaste os nocivos, escolha a nata, os nomes acima de todos, os melhores. Não tenha medo: convide o bam-bam-bam. Ele, surpreendentemente, vai gostar. Não aposte por baixo. Nivele por cima. Seja jornalista, seja herói.

RETORNO – Às vezes o espaço para comentários não carrega e não me perguntem por quê, mistérios dos servidores. Mas tenho recebido e-mails. Um da Larissa Grutes, estudante de jornalismo que conheço desde quando ela tinha 17 anos e que me escreveu antes de entrar na faculdade - está hoje na UFRJ. Larissa, que periodicamente me informa sobre seus estudos e trabalhos, é uma das pessoas responsáveis pelo Diário da Fonte, pois para ela comecei a desenvolver por escrito com mais freqüência o que eu só costumava dizer. Do portoalegrense Jorge Freitas, que agora vive no Rio, muitas revelações: “Fiz mestrado em Comunicação com Nilson Lage, na Eco/UFRJ, escrevendo sobre a entrevista; depois dei aulas na graduação, no início dos anos 90 e fui por muitos anos da Gazeta Mercantil, no Rio, onde trabalhei com grandes homens e jornalistas – como Riomar Trindade, Paulo Totti e José Antônio Severo. Quando cheguei no Rio, nos anos 80, trabalhei na falecida Última Hora, com Jeferson Barros, ilustríssima figura.”

24 de setembro de 2003

O PODER DA IMAGINAÇÃO


Os que sonham acordados mudam pelo menos as próprias vidas. Parece sub-literatura de auto-ajuda, mas não é. Projetar na mente a viabilização do seu trabalho no veículo ideal, com as pessoas que você admira, pode concretizar sua vontade quando você menos espera. São necessárias algumas posturas básicas: confiar no próprio taco, acreditar que a oportunidade vai chegar, preparar-se e exercer o otimismo como fonte de mudanças.

ALEGRIA – Quem me deu a pauta da coluna de hoje foi o responsável pelo excelente http://www.circodoabsurdo.blogger.com.br/ e que se assina Palhaço. Com o seu comentário sobre a fé que tem no jornalismo brasileiro, notei que, ao fazer um diagnóstico sobre o trabalho autoral na imprensa, minhas críticas pesavam mais do que meu otimismo, que nunca foi pequeno. O comentário despertou boas lembranças. Vindo do interior, tendo como formação apenas o ginásio e o colegial (o que não era pouco em relação o que existe hoje na educação), sem nada a não ser duas mãos e o sentimento do mundo, fora da faculdade devido à bruta intervenção do AI-5 no movimento estudantil, aportei em São Paulo e imediatamente quis trabalhar na Ilustrada de Tarso de Castro. Em poucas semanas eu estava assinando matéria de capa do suplemento. Além do empurrão providencial do Jorge Escosteguy, foi a decisão de vir para cá, de conectar-me com o que havia de mais criativo e importante na imprensa e sonhar com os textos que eu publicaria, é que um belo dia me vi cara a cara com este que é um dos jornalistas que mudaram a imprensa e revolucionaram não só os veículos, mas o comportamento geral no Brasil. Trabalhar com Tarso foi uma experiência única, em plena ditadura, quando todos os sonhos estavam proibidos. O mesmo aconteceu quando fiquei impactado pela capa da Istoé onde aparecia a manchete “Lula e os trabalhadores do Brasil”. Sonhar com a redação de Mino Carta foi o caminho mais curto para eu chegar lá, onde aportei pelas mãos do Wagner Carelli.

ESPELHO – Quem realiza um sonho, dá a mão para outros sonhadores. Quem se frustra, faz tudo para que os demais não consigam cumprir seus destinos. Um dos maiores obstáculos para conseguir o que você quer é entregar-se à imobilidade da falsa seriedade. Meu amigo Eduardo San Martin (de tanto citá-lo, quem sabe ele responde meus e-mails) costuma dizer que uma pessoa que, ao acordar de manhã, não ri da própria cara quando se olha no espelho, não é sério. O Hélcio Toth, que era fotógrafo e agora é artista de primeira (falta só uma exposição de arromba e uma crítica do Jacob Klintowitz) colocou num desses dias no seu obrigatório http://www.espinha.blogger.com.br/ um texto sobre os horrores do mau humor. Depois tirou, talvez por achar demasiado sério para seu espaço super-para-cima. Só para lembrar o seguinte: toda vez que vi um trabalho importante na imprensa, o ambiente era o mais alegre possível. Haviam os ruídos, as brigas, claro, mas no geral era uma gargalhada só. E não era suficiente: depois do expediente, tinha sempre a confraternização. “Parar de tremer” ou “afinar as veias” eram palavras de ordem minutos após o fechamento. Significa que um ambiente saudável só pode ser acessado se houver otimismo e bom humor, senão você não conecta. Não vá atrapalhar as pessoas com sua admiração séria, mas também não vá rir por qualquer coisa. Bom humor significa inteligência. Para seres datados como nós, é sempre a melhor solução.

EQUIPE VIRTUAL – Sem eles pedirem, prometi ao Hélcio e ao Marcelo Min (autor do magnífico http://www.fotogarrafa.blogger.com.br/) que montaria uma equipe virtual para o Diário da Fonte, um veículo imaginário que trabalha com a inclusão. Vou montar ao longo das colunas, à revelia ou não dos escolhidos. Sou suspeito, pois tenho um projeto que está pronto, com uma equipe montada, e não consigo deslanchar o patrocínio, mas como sou assim mesmo, aos turnos, confio na fé que nos une. Para começar, um departamento fotográfico que não tenha o Marcelo, o Hélcio e meu amigo uruguaianense Anderson Petroceli não pode ser digno desse nome. Nele, incluo o premiadíssimo Antônio Gaudério, que se bem me lembro, é de Santiago de Boqueirão. Como patrono, o sumido e imprescindível Leonid Strelaiev, o famigerado (de famoso) Uda, fotógrafo maior. E se houver bom comportamento, colocaria também o Tomás May. Outros nomes virão. Aceito sugestões. Na redação, por enquanto monto uma parte do Conselho Editorial: os jornalistas e escritores Wagner Carelli e Moacir Japiassu, e os jornalistas e professores Francisco Karam e Zélia Leal Adghirni. A reportagem é gigantesca e deixo para uma das próximas edições. A mim, me reservo o papel de animador cultural. Estão todos admitidos.

RETORNO – Recebo um aceno do jornalista Jorge Freitas, que lembra de mim nos anos 70 em Porto Alegre. Naquela época, trabalhei na Folha da Manhã, da Caldas Junior, que exibia em seus quadros jornalistas como José Onofre (o texto dos textos), Luis Fernando Veríssimo, Carlos Urbim, Caco Barcelos, José Antonio Simch da Silva, entre tantos outros, ótimos, como Dorival Pacheco, que era meu colega no copy-desk e foi-se prematuramente, com seu grande sorriso e seu abraço largo.

23 de setembro de 2003

TODAS AS CENSURAS

É hipocrisia falar em “volta da censura”. A censura está mais ativa como nunca, embutida no jornalismo, como se fosse uma instituição, ou pelo menos, uma situação de fato. Há vários tipos. Todos depõem contra a prática da profissão que precisa de liberdade para sobreviver.

DITADURA CIVIL – Nos tempos do AI-5, a censura era feita não apenas da forma como ficou conhecida. O censor dentro da redação, a substituição de informação por receita de bolo e outros eventos fartamente noticiados, eram apenas a parte “nobre”, vamos dizer assim, do assunto. O importante é saber que a censura funcionava como sempre funcionou a escravidão: disseminada em todos os estamentos sociais, no caso da redação, em todos os níveis. Havia a consciência de que você não podia criticar o governo, mas isso era só a casquinha do problema. Você não podia, por exemplo, noticiar determinado acidente, que envolveu o filho de figura pública conhecida. E quem avisava a redação, diretamente para o editor (nem passava, às vezes, pelo diretor de redação) era alguma “otoridade” de plantão. Havia portanto a massificação da censura, que somava a auto-censura e a proibição pontual de todo tipo de evento considerado prejudicial, a nível local, regional ou federal. Como nossa abertura democrática foi um arranjo de poderes, essa prática, instalada na comunicação manteve-se, mas sob outras formas.

É BEM ASSIM - Hoje é comum o fato de algumas pessoas colocarem um “não” à frente do que realmente querem dizer, pretensamente para não dar bandeira da abobrinha ou barbaridade proferida. A pré-emenda fica pior do que o sub-soneto. Já vi na TV alguém dizendo: “Não é que a gente fique desconfiado, mas a gente fica com o pé atrás”. A mania também serve para contrariar os outros. Se você diz algo que realmente conhece ou acredita, sempre tem alguém sacudindo o dedinho dizendo que não é bem assim. Pois é bem assim. A censura do chamado Estado de Direito (onde o crime organizado está mais forte e atuante do que nunca) é muito mais sutil e poderosa, pois quem manda na redação apropriou-se do discurso democrático. Como sou mais antigo do que andar a pé, noto que são sempre os mesmos que mandam, só que com rótulos diferentes. Se vem a reengenharia, são os primeiros reengenheiros; se vem a qualidade total, eles são os mais cheios de qualidade do que todos; se vem o atendimento preferencial ao cliente, eles é que atendem o cliente como ninguém. A farda muda, mas a essência é a mesma. Com a democracia, são os mais democratas, os mais cheios de “passados de luta”. Acrescento: os mais eficientes censores. Nos anos 70, eu costumava brincar que você podia falar mal do presidente Figueiredo, mas jamais do Henfil. Já se manifestava, naquela época de anistia, o perfil da censura que estava se instalando. Nota: nada contra o Henfil, só implicava com o fetiche ao redor dele.

TALENTO, FORA! – Vamos elencar algumas práticas de censura: o colunista que mostra a lista dos bacanas envolvidos no grande crime de colarinho branco, mas não diz nenhum nome; o repórter à frente de uma fábrica e que não identifica a empresa, a não ser que seja noticiário policial; ignorar alguma posição correta de um governo mal visto pela direção; impedir que o repórter ou editor dê voz a pessoas importantes, mas desconhecidas da mídia (a falsa lei da agenda rotativa, sempre com os mesmos nomes falando das mesmas coisas); a divulgação de dossiês armados contra inimigos dos autores do dossiê, sem que a reportagem seja transparente o suficiente para mostrar as implicações da sua fonte; a negociação das denúncias; o poder da mediocridade sobre o talento; o mau uso dos manuais. Os manuais podem ser úteis se não se transformarem no Manual do Escoteiro Mirim, aquele dos sobrinhos do Pato Donald que regulava tudo e informava sobre qualquer coisa. Manual pode ser um parâmetro, especialmente nas pedreiras gramaticais ou nos procedimentos éticos do jornalismo, mas não pode regulamentar aberturas de texto, títulos ou tipos de reportagens. Só posso atribuir a mesmice dos textos da imprensa à imposição dos manuais. Ou à soma de todas as censuras. Mas o realmente trágico é que a liberdade de expressão é apropriada pelos mais desqualificados sujeitos, muitos deles fora do jornalismo, que "testam" (ou seja, desmoralizam) a democracia. Esses tipos lutam pela volta da censura explícita e total, esticando a corda até rebentar, impedindo, com sua nociva influência, que a liberdade tenha chances de se manifestar.

RETORNO – Transcrevo a parte de um poema meu sobre o fim do inverno: “Hoje começa a primavera, com o azul que eu perdera e o som de despertar a terra. “

22 de setembro de 2003

A DIGNIDADE DO CRÉDITO

“A César o que é de César” deve ser a lei de uma profissão totalmente exposta ao público. Reconhecer e identificar o trabalho alheio é um exercício de inclusão num país que costuma jogar fora o que produz de melhor. Nas redações, sobram exemplos de apropriação indébita, reproduzindo a estrutura social que determina quem é o maior e quem deve ficar limpando o chão.

GRIFES – Concentração excessiva de crédito em redor de alguns nomes, figuras carimbadas e detentores de vastos espaços na mídia, significa que a personalidade em evidência depende de uma equipe, muitas vezes anônima, para aparecer. Humanamente, ninguém tem condições de levantar uma montanha por dia. Numa importante revista semanal, descobri que existia a figura do “maçaneta”, aquele que trazia informação para alimentar os textos finais dos editores. Eram estagiários ou recém formados. Muitas vezes, o autor do texto final assinava a matéria, punham um asterisco e lá embaixo, uma quantidade enorme de gente citada. Havia, portanto, uma hierarquia do crédito para um trabalho feito em conjunto. Mas esses casos são menos condenáveis do que o plágio puro e simples (facilitado agora pela Internet), ou mesmo a assinatura, na maior cara de pau, de um trabalho feito por outra pessoa. No açodamento informativo de hoje, quando portais e canais de TV com 24 de horas de notícias correm atrás do furo por questão de segundos, o que está em jogo é exatamente isso: o crédito para quem veicula o fato primeiro. Crédito, portanto, vale ouro. A maior armadilha é obrigar alguém a reivindicar crédito. É o caminho mais curto para a vítima da fraude ganhar fama de "reclamão". O que incomoda é que roubo de crédito pode até dar status, dependendo do nível (sempre alto) da disposição de aplaudir os espíritos-de-porco.

O MARKETING DA PRESSA – O grande cronista Lourenço Diaféria, que por muito tempo foi a estrela maior da crônica em São Paulo e que continua exercendo seu talento, um dia nos contou na redação da Ilustrada o caso de alguém que tinha outro emprego, mas a direção do jornal não sabia (já existia, a partir dos anos 70, a preocupação de tornar a profissão mais conseqüente e acabar com a imagem que ela tinha, de “bico”, atividade secundária para reforçar o orçamento doméstico e fazer lobby). Então o personagem dessa história do Diaféria chegava às seis horas da tarde e imediatamente pedia um lanche. Quando o diretor da redação descia do Olimpo para dar uma vistoriada, lá estava o sujeito comendo apressado seu sanduíche empurrado por iogurte. “Como vai, chefe? Hoje nem tive tempo de almoçar!” Descobri também num emprego que as pessoas aceleravam propositadamente o passo (que virava seu andar “natural”) para projetar a imagem de eficiência, trabalho insano e dedicação. São maneiras de receber crédito, nem sempre indevido, pois pode ser que o autor do marketing da pressa seja mesmo dedicado e eficiente, só que não se satisfaz em trabalhar, prefere demonstrar publicamente. Ler os gestos dos colegas é uma maneira de conhecê-los melhor. Peça para seus amigos imitarem seu andar: você vai descobrir o que faz com o corpo para impressionar os outros. Quem por exemplo, depois de alguns anos de profissão, não exibe uma curvatura, leve que seja, nas costas, não merece muito crédito: esse gosta mais de mandar do que pegar no pesado.

ASSINATURA - Assinar as matérias é uma maneira de deixar registrado a sua criação, mas quando alguém é editor ou redator, como provar? Uma das saídas é eventualmente escrever algo assinado, só para manter a escrita, como se diz. Outra é incluir-se numa assinatura coletiva, sem destacar seu nome. Mas normalmente quem trabalha na cozinha fica sendo conhecido apenas no seu meio. Parece que hoje a cozinha está meio em desuso, pois o repórter coleta os dados, escreve o texto final, revisa, às vezes tira até foto, faz o título, a linha fina, as legendas e os olhos. Acabou a figura do copy-desk, o que é uma pena , pois sempre encarei esse ofício como edição de texto. Para mim foi uma escola. Ter ao seu lado numa redação editores de texto (próprio ou alheio) como Ricardo Vespucci (o imbatível Bi), Antenor Nascimento (quando a palavra atinge o topo), Genilson César (perfeição em todos os detalhes), Humberto Werneck (enciclopédia de recursos da linguagem), Wagner Carelli (que faz o País tremer toda vez que escreve), Moacir Japiassu (que me deslumbra com seu romance “Concerto para Paixão e Desatino” e me tira a vontade de terminar o livro para poder continuar vivendo na sua criação), entre muitos outros, que citarei sempre nesta coluna, é mais do que um privilégio, é uma festa do talento, é uma pós-graduação sem burocracia nem pose. São jornalistas que honram a língua portuguesa e, esses sim, merecem ser nomes de escolas de jornalismo.

RETORNO - Leio tardiamente o comentário do Fábio Murakawa, que destaquei na minha edição sobre a grandeza da reportagem. Diz ele que não considera seu trabalho no Agora um primor, com exceção de duas reportagens. Pois para mim bastam. Pode soar exagerado, mas classifiquei como primor porque conheço-o pessoalmente e por escrito e repassei minha admiração para o que ele fez no jornal de onde teve de sair. Fabio fala do editor que disse para ele: "Seu texto é ótimo, muito acima do padrão da redação, mas eu não preciso de um armando antenori aqui. eu preciso de alguém que... que... (disse isso e estralou os dedos)". Já respondi para o Fabio: o editor queria alguém de texto ruim, à altura das pautas pífias que impunha na redação. Continua Fabio: "Os editores pedem a mediocridade porque o jornal não acredita em si próprio, porque a imprensa escrita não acredita no poder do texto. Temo que o problema não seja apenas má-fé, o que é grave, mas corrigível. O problema é ignorância." Fábio é um cara seríissimo e não aceita elogio superficial. Mas o que eu quis dizer é o seguinte: talentos como o dele, raros, precisam de ambiente favorável na mídia para cumprirem seu destino. E que ele faz parte da linhagem dos grandes repórteres, faz. Mesmo que não tenha tido oportunidade de mostrar integralmente a que veio. Minha afirmação baseia-sem em Martin Fierro: "El diablo sabe por diablo, pero más sabe por viejo".

21 de setembro de 2003

O LUGAR DA PUBLICIDADE


Credibilidade de um veículo não-corporativo é a separação entre jornalismo e publicidade. Nos corporativos, as duas atividades podem ocupar o mesmo espaço, desde que se preserve, no jornalismo empresarial, alguns princípios básicos. O anúncio e o marketing precisam ser aliados, mas não cúmplices nem inimigos das redações.

DOMINGO – Deve-se estranhar uma conversa tão trabalhosa num domingo, mas no momento em que você está impregnado de uma tarefa, não existem limites de tempo. Cada assunto abordado aqui é fruto de reflexão muito antiga, que é dinamizada sempre a partir do dia anterior em que vai ao ar. Comunicação é encarada como vício, mas eu prefiro abordá-la como missão. Nem sempre nascemos para o ofício, somos desviados de nossos sonhos para encarar a dura vida da mídia. Um texto primoroso sobre isso está na Carta Capital deste fim de semana, em que o Mestre aborda a tragédia que levou-lhe um parente muito próximo e querido. Em contraste com a dignidade estampada na melhor revista do Brasil (que tem uma matéria de capa assustadora sobre corrupção), temos em mãos a edição de domingo dos jornalões, em que a Prefeita sorri como noiva, acompanhada ao fundo pelo primeiro casal investido de padrinho. Tratado como coisa normal, o fato merece repúdio não pelo evento em si, mas pelo evidente dinheiro gasto nele, e por expressar, pelo menos para mim, a indiferença do Poder em relação ao País que pretendeu salvar-se pelo voto elegendo os principais participantes da cerimônia.

CONTRABANDO – Na semana passada, em substituição ao dono da Folha de S. Paulo, o editor Fernando Barros e Silva colocou o dedo na ferida comentando as edições de dois veículos que estampavam a intimidade da prefeita e a colocavam como imbatível nas próximas eleições. Um pouco antes, a mesma Folha publicou extensa matéria de Fernando Rodrigues sobre as “reportagens” pagas no Paraná. É um item que faz parte do nosso tema hoje. O Observatórtio da Imprensa insiste que não deve haver matéria paga de jeito nenhum e que não basta identificá-la, visualmente, como não pertencente ao corpo jornalístico. Como militei em todas as áreas da comunicação, considero esse um assunto espinhoso que deixo para os especialistas. Prefiro ater-me ao básico e simples. Você, como editor, diretor de redação (um cargo que, parece, fugiu para sempre da mão dos jornalistas depois da gestão Pimenta Neves, do Estadão) ou repórter, precisa agir estrategicamente para anular os malefícios de uma publicidade mal dirigida, ou simplesmente enganosa. Todo veículo de comunicação faz parte de uma empresa, portanto “jornalista de empresa” aplica-se a qualquer um. Com a diferença de que uma empresa de comunicação deve manter a isenção do que veicula, enquanto um departamento de comunicação ou assessoria precisa veicular corretamente as informações de interesse, sem ferir a verdade ou exagerar favoravelmente os fatos. É uma vida dura, mas ninguém está aqui a passeio .

REALISMO - Mesmo na imprensa dita normal (fui testemunha disso, e olha que eu trabalhei em alguns dos mais importantes veículos de comunicação do País) existem as reportagens de interesse. Existem as listas negras, os destaques obrigatórios, as personagens sobre as quais nunca se deve escrever absolutamente nada em contrário. Qualquer redação está amarrada a um sem número de interesses, que vai desde os anunciantes (os mais poderosos) até as idiossincrasias do dono do veículo ou do editor (muitas vezes mais realista que o rei). O que cabe ao jornalista é reforçar as bases do seu ofício: escutar todos os envolvidos, trabalhar a qualidade do texto, aprimorar a abordagem para evitar conflitos inúteis, impor-se pela respeitabilidade e não curvar-se quando o equívoco é excessivamente explícito. Tenho três carteiras de trabalho (uma totalmente preenchida) devido a esse tipo de comportamento, mas posso dizer que fiquei muitos anos em alguns lugares aprendendo a trabalhar da melhor maneira possível. Mesmo numa revista corporativa, às vezes uma imposição que parece pífia pode render uma bela matéria. O importante é duvidar de suas certezas, abrir-se para a diversidade e não iludir-se nem com a virgindade nem com a hipocrisia. Pois por mais que digam o contrário na faculdade, a realidade das redações é dura, e esse tema é o principal espinho.

20 de setembro de 2003

O PIANO DO FECHAMENTO

Fechamento bem feito é o diferencial entre um veículo de qualidade e um veículo amador. Numa pequena revista ou jornal, você pode ter a melhor matéria do mundo, mas se desconhecer as bases desse ofício, tudo vai parecer de segunda mão. E não se engane: você precisa ser um virtuose desde o momento em que carrega o instrumento para o palco.

NÃO REPITA INFORMAÇÃO – O fechamento, conjunto composto de títulos, linhas finas, olhos, legendas, intertítulos e chamadas, formam um “texto” à parte, que se alimenta da matéria, mas não repete suas frases. É comum na imprensa – hoje mesmo vi um exemplo – de colocar na legenda a mesma informação do título ou da linha fina. Na maioria das vezes o fechamento é a única coisa que o leitor vai prestar atenção, portanto não perca essa chance nem desperdice espaço. Crie cada elemento desse trabalho como se estivesse escrevendo uma reportagem ou burilando um texto final. A reportagem, se for boa, possui inúmeros itens que podem ser destacados. Você pode usar o título como “isca” de leitura para o lead, a linha fina para a legenda, a legenda para o corpo da matéria e assim por diante. São vasos comunicantes que merecem ser tratados com carinho, criatividade e eficiência, e isso dá trabalho. Fechar não significa livrar-se da última etapa da edição. Ao contrário, esse é o momento mais importante, em que as coisas ficam por um fio e tudo pode ir por água abaixo. E não se esqueça que o título da matéria principal devem ser dois: um na capa e outro no miolo do jornal ou revista. Não coloque o mesmo título dentro e fora. Crie. Uma vez fiquei uma madrugada inteira para conseguir um só título. E dois expedientes comerciais para achar uma abertura de texto.

LEGENDAS – A legenda tem suas manhas. Se a foto tiver dois personagens, o que está à esquerda é citado primeiro, e não o contrário. Uma foto não pode estar fora da página em que está o personagem citado: a legenda refere-se a algo no corpo da matéria que está ali naquele espaço que o leitor está vendo. Costuma-se colocar o nome do personagem acompanhado de dois pontos, seguindo-se uma frase entre aspas ou algo que se reporte ao que ele é ou disse. Esse é um esquema bem batido, que merece ser mexido um pouco. É tão lugar comum que se coloca dois pontos quando nem é necessário. “Fulano fez vestibular”, por exemplo, às vezes aparece como “Fulano: fez vestibular”, o que é um erro. Legenda serve para identificar a foto – e é por isso que eu digo para os fotógrafos que eles não vendem fotos, vendem imagens identificadas. Nenhuma foto portanto pode vir desacompanhada de legenda, a não ser que seja um ensaio e o personagem seja um só e estiver destacado no título ou nos outros elementos que apresentam a matéria. Minha melhor legenda foi a da vinda de Frank Sinatra pela primeira vez ao Brasil. Foi na IstoÉ. O empresário que conseguiu trazer a Voz fez tanto estardalhaço que não resisti: “O famoso Roberto Medina e seu contratado. Sinatra é o da direita”.

ARTE - Como sou do tempo do past-up, e o fechamento era feito na velha Olivetti, adquiri arduamente, junto a toda a minha geração, o traquejo do fechamento. Quando veio o computador, tornou-se uma brincadeira. Mas nos velhos tempos, quando tudo era feito na base do estilete e da cola, o corte precisava ser de maneira tal que não obrigasse a arte a enviar de novo a matéria para a composição. Conseguia desempenhar-me da tarefa razoavelmente e por isso eu era aclamado quando chegava no departamento de arte da revista Senhor, dos anos 80: Thaís Rebello e João Carlos Alvarenga, os premiados Thaís e Joca, mentiam me chamando de gênio, só porque eu economizava tempo e assim permitia que eles fossem para casa mais cedo. Trabalhei com grandes editores de arte, como Reginaldo Fortuna – que enxergava o desvio de um milímetro num fio – e Luiz Carlos Moraes, que estava na equipe original de IstoÉ Gente (da qual não participei) e hoje está na Fiesp. Moraes sabe como ninguém criar um projeto visual perfeito sem fazer nenhuma pose. Trabalhar com Moraes é um privilégio para poucos fechadores.


Perfil – Múcio Borges da Fonseca

O BRASILEIRO VINDO DE LONGE - O perfil deste sábado é sobre um jornalista maravilhoso que ocupa um lugar de destaque na história da imprensa brasileira, apesar de ser pouco conhecido atualmente. Ele me escancarou as portas da Editora Três e tinha qualidades humanas e profissionais admiráveis. É uma das pessoas que me provocam saudade quando lembro as longas décadas que passei nas redações.

Conheci Múcio já safenado, caminhando muito para evitar novos transtornos do coração. Batia as palmas das mãos soprando entre elas:
- Vamos fechar, vamos fechar.
Tinha trabalhado na Última Hora do Recife e seu ídolo era Josimar Melo, tema de seu livro “Em suas veias corria tinta de jornal”. Múcio era de Bom Jardim, Pernambuco e me deu apoio quando eu mais precisava. Levou-me para o Rodeio para comemorar minha volta a São Paulo em 1981 e combinar minha contratação para a Senhor quinzenal. Lá encontrei Tarso de Castro, que estava inconformado por terem fechado sua revista Careta, outra obra feita a quatro mãos com Fortuna.
Múcio tocou a Senhor quando esta não tinha nenhum prestígio. Era o início de um veículo com o mesmo nome da revista lendária dos anos 50 e que, mais tarde, nas mãos de Mino Carta, transformou-se no mais importante veículo dos anos 80. Trabalhei com ele também como editor de texto da Brasil 21, belo projeto enterrado antes do tempo.
Quando recebeu a carta da diretoria anunciando que a revista tinha sido fechada no terceiro número, proferiu uma das frases mais humanas que conheço:
- Fracassamos miseravelmente, disse ele e o olho bom de Bom Jardim ficou cheio de água.
Como continuei trabalhando na Três, fiquei sabendo que a revista recebia cartas um ano depois de ter sido fechada. Brasil 21 é a revista que deveria voltar.
Múcio era humano demais para um ambiente excessivamente cruel. Tinha dúvidas sobre tudo e nisso nos aproximávamos. Um dia, indiquei meu amigo Eduardo San Martin ( poeta, jornalista e autor de livros memoráveis sobre pirataria, atualmente morando em Nova York), para trabalhar com ele. Durante anos, ele dizia:
- Muito boa sua indicação.
Foi o acaso que me aproximou de Múcio e de Nestor Fedrizzi, duas pessoas chave da Última Hora, jornal que fez história e foi destruído pela ditadura. Fedrizzi (que implantou o Jornal de Santa Catarina, em Blumenau) fez a Ultima Hora de Porto Alegre, onde também trabalhou Tarso de Castro. Múcio militou anos no jornalismo e foi um dos donos da Unipress, que ajudou a implantar qualidade nos veículos empresariais brasileiros.

RETORNO – Voltou o sol e decidi retomar as caminhadas, interrompidas durante a devastadora friaca das últimas semanas. Chegou a hora de os paulistas dizerem duas coisas. Primeiro, convencer-se que “São Paulo nunca faz frio”. E segundo, que eu não deveria reclamar tanto do frio pois, sendo gaúcho, deveria estar “acostumado”. É perda de tempo lembrar aos engraçadinhos que a temperatura do corpo humano é de 36 graus e que até esquimó usa pele de urso para enfrentar a neve, pois nada “acostuma” nossa natureza ao clima polar.

19 de setembro de 2003

EDIÇÃO, CORTE E COSTURA

Editar é tomar decisões, é apostar no talento e na capacidade da equipe, ouvir e ver o que cada um tem de melhor. Editar é virar vidraça, é arrostar os erros, é elogiar em público e criticar reservadamente. É estar presente na pauta e no texto final, na viagem e no plantão, no corte da matéria e na costura dos parágrafos.

GENTILEZA X BARBÁRIE - Meu primeiro chefe de reportagem dizia todos os dias: “Vai lá e vê o que tem e o que não tem”. Passava três pautas e no final de expediente me mandava para o aeroporto, onde eu era caçado por políticos medíocres que queriam plantar notas na imprensa. No fim, ele foi útil, pois com o seu “te vira, que estão pegando” aprendi a tomar decisões no front da profissão. Seu erro foi nunca elogiar (elogio é parâmetro) e no dia em que cometi minha primeira falha, fez um escândalo. No fundo, estava de tocaia. Mas não tinha motivos para tanta cobrança. As pautas eram tão ruins que às vezes eu não entendia nada. Um dia, enrolei tanto para fazer uma pergunta que a fonte me pediu a pauta por escrito que eu guardava no bolso (era uma fonte conhecida, sabia todos os macetes daquele jornal da província). Não tive dúvidas: repassei o bilhetinho de duas linhas. Aí fez-se a luz e ele me deu a entrevista. Em compensação, quando eu fazia algumas pautas (de vez em quando) na Ilustrada, minha gentil e sensível editora, Helô Machado, dizia com graça: “Deixa eu publicar tua pauta, o foca não vai fazer melhor do que isso”. Todo editor precisa ser como a Helô Machado, que dava vez para todo mundo e teve idéias perenes, como a de publicar resumos dos capítulos de telenovelas, coisa que existe até hoje (uma idéia simples, mas absolutamente inovadora, que atraiu grande quantidade de novos leitores). Ou como o Tarso de Castro, que faz falta, mais do que nunca, no atual estado de coisas.

ESTRATÉGIA – “Contar buracos de rua” era a tarefa dos focas naquela época. Hoje parece que está pior. Mais tarde, já adentrado nos anos, minha atenção foi chamada publicamente. Peguei a editora num canto e avisei: o elogio é público, a crítica é privada. Um editor importante uma vez tascou na redação: “Fulano conseguiu cravar a capa, e vocês, o que fazem?” Todo esse tipo de ruído pode ser evitado. O conflito bruto não deve ser obrigatório, como muitas vezes acontece. O poder da pequena tirania precisa ser erradicada da profissão. Jornalismo é como cinema, trabalho de todos e o gênio só se manifesta quando há ambiente favorável. Mas atenção: gentileza e elegância não significam amizade. Um editor sério peita a pressão sobre os repórteres, responde pela equipe e cobra suavemente. Editar é fazer parte da equipe e não ser seu algoz. Corre-se o risco da folga: alguém, sabendo que não vai ter sua atenção chamada em público e jamais será desrespeitado, começa a testar o editor para ver se ele é mesmo tão democrático e legal assim. Cada editor tem uma saída para esse tipo de problema. Costuma-se jogar umas pessoas contra as outras, para governar por meio da divisão. Outro diz gargalhando as coisas mais sérias, passa o recado radical como se fosse uma piada. Muita vezes a conversa séria no canto não resolve. Aí a única solução possível, principalmente para quem é da fronteira, é chamar o Cabo Adão. O Cabo Adão resolve.

AGULHA E LINHA – Minha especialidade é a edição de texto. Houve época em que participei da paranóia da Abril, de reescrever absolutamente tudo, perseguir o chamado texto redondinho. Quem passou por lá sabe. A Abril conseguiu uma excelência de texto por um tempo, mas o paradigma acabou gerando muita redundância. Uma pobre reportagem passar pela máquina de moer carne de quatro editores é pedir para abrir um boteco em Caxambu. Prefiro trabalhar com o estilo de cada repórter, repassando regras básicas: desentrolhar o fluxo do texto, abrir com algo realmente importante para justificar a matéria, finalizar cada parágrafo dando gancho para o parágrafo seguinte, para que se evite assim o fórceps de “na verdade” ou “por outro lado”, escrever o fecho como parte integrante do texto e não seu apêndice. Peço para reescrever quando necessário, parte da matéria ou toda. Normalmente, o problema está na concepção do tema, na seleção do enfoque, na incompreensível obrigação de fazer suíte de tudo. A praga da suíte, aquela continuação da matéria anterior, precisa acabar. Se as pessoas lêem sempre os veículos, não é necessário redundar na informação. Hoje vejo os jornais se repetindo sem parar, como se o mundo começasse do zero a cada dia.

RETORNO - Como quase ninguém me chama de mestre, certamente porque mestre não sou, sempre é bom ser tratado assim por uma jornalista como a Luciana Félix, que trabalhou comigo por dois anos na Fiesp, fazendo reportagens diárias e cravando capa da revista quando ainda nem tinha se formado na faculdade. Como ela é muito jovem, não digo que o mérito é de quem sabe ouvir e tem talento e vontade para redirecionar seus rumos. O veterano é apenas um distribuidor de positivos, que conta com a sorte. É gratificante descobrir que a linhagem do jornalismo pátrio de qualidade independe de geração e que em cada uma existem pessoas escolhidas. Quando falam mal da juventude brasileira para mim, lembro nossa geração: as exceções sofriam num mar de mediocridades. Acho até que hoje existe material humano muito mais farto. O que falta é oportunidade.

18 de setembro de 2003

A GRANDEZA DA REPORTAGEM

Assim como não existe Kurosawa menor – nenhum filme do mestre é de segunda categoria – não pode existir reportagem sem grandeza. O tamanho não define a reportagem, mas sua intensidade e repercussão. Num país que já teve uma revista Realidade, e que viu brilhar experiências como Repórter Três, é preciso manter aceso o paradigma que gerou os mais brilhantes jornalistas.

ARAME FARPADO - Como esta coluna não é manual, mas sim arena minada de criação, pode-se trabalhar as deficiências e tropeços com extrema transparência, contando sempre com os recursos da Internet, que nos ajudam a fazer correções de rumo sempre que necessário, como tem acontecido às vezes aqui. Ontem, no apagar das luzes do dia, fiz acertos que mudaram para melhor os textos divulgados neste espaço (hoje também, mudei o final do parágrafo colocado embaixo da manchete, que estava muito mal escrito). No veículo impresso, ou mesmo no telejornal, essa baba não está disponível: você precisa acertar o alvo, sob pena de cair na tormentosa seção Erramos, ou mesmo expor-se como um Gugu Liberato à autocrítica avassaladora. É por isso que qualquer reportagem é importante: você não pode errar, o que significa equilibrar-se em arame farpado, sem rede de segurança, com uma platéia de leitores e coleguinhas açulando pelos cotovelos. Prepare-se. Reportagem sem grandeza não merece esse nome, é amontoado de palavras.

LINHAGEM – Saudosismo é iludir-se selecionando o que houve de melhor do passado, deixando de lado a dura realidade. Mas no caso das reportagens com grandeza, não há como confundir fato com ficção: Narciso Kalili, Hamilton Almeida Filho, Marcos Faerman, Caco Barcelos, Audálio Dantas, Edenilton Lampião, entre tantos outros, são representantes de um trabalho sem igual na imprensa brasileira e precisariam ser reunidos em uma coleção de livros didáticos. Coloquei Caco e Audálio na lista, que ainda estão na ativa, mas quis ressaltar o fato de que fazem parte de uma linhagem que praticamente está sumida. Hoje, quando vejo as reportagens traduzidas ocupando vastos espaços, me pergunto porque pessoas como o Fabio Murakawa, por exemplo, que fez um trabalho primoroso no Agora, ainda não foi convocado para exercer seu ofício de grande repórter numa imprensa que prima hoje pela falta de força. Temos quadros brilhantes na reportagem, mas poucos são convocados para o que realmente interessa: fazer a matéria dos nossos sonhos, detonar com informações valiosas e textos primorosos. Para isso é preciso recursos, apoio, faro. É preciso convocar o talento para que o paradigma, arduamente conquistado e desenvolvido em décadas de arrocho, não se perca de vez.

GIGANTES E NANICOS – Quando cito alguns jornais da imprensa alternativa da época da ditadura civil/militar (a civil continua), costumo surpreender. Só Opinião, Pasquim e Movimento são conhecidos, quando muito Versus. Mas tivemos também Ex, Mais Um, Presença, Coojornal, Bondinho, Já, Enfim. A lista é imensa. Sem falar de veículos que tiveram épocas magníficas, como Veja, Istoé, Jornal da Tarde, Jornal do Brasil, Correio da Manhã. Da imprensa nanica, a grande imprensa chupou a informalidade (que se transformou em sacanagem), a denúncia (que virou tráfico de influência), a tomada de posição (que se transformou em vitrine de vaidades politicamente corretas). Chupou e jogou fora: grandes repórteres foram para a praia, a montanha, o empreendedorismo (montar restaurantes) e as assessorias (punição para colocar as coisas nos seus devidos lugares). Um grande repórter no exílio é como um centroavante aposentado não pela idade, mas pela tabela. Nos Estados Unidos, grandes repórteres envelhecem na ativa e são cultuados pelas universidades e os novos jornalistas. Aqui, quando se fala em alguém do mesmo valor, pergunta-se: Quem?

TRABALHO – Uma reportagem dá trabalho. Não se trata de acumular informações, mas de selecionar e articular. Significa saber o que ela rende, que espaço deve ocupar, quais as fontes principais. Com a Internet, fica fácil evitar redundâncias, pois tudo está registrado no universo digital. Uma pesquisa prévia ajuda a selecionar o filé do assunto, a detectar pistas, a ir atrás do que realmente interessa. Ritmo e timing são fundamentais: entregar a matéria no prazo, criar um andamento poderoso no texto, compor reflexão com narrativa, ser enxuto sem ser seco, e passar a impressão, por meio da palavra no lugar certo, de que o texto diz menos do que o repórter sabe. Isso deixa o leitor com água na boca. Eu, por exemplo, sempre abro o jornal querendo ler mais uma daquelas reportagens que fizeram a alegria das minhas retinas tão cansadas. Acho até hoje que aqueles repórteres maravilhosos sabiam muito mais do que tinham escrito, e estavam guardando esse tesouro para a próxima edição.

RETORNO – Dizem que escrevo demais nesta coluna e que fica difícil ler tanta coisa. Não concordo. É que estou economizando trabalho futuro, pois quando o Diário da Fonte virar livro, já terei material suficiente para entregar para a editora, sem precisar ficar trabalhando indefinidamente nestes assuntos. Poderei partir para a praia, finalmente. Ou para a faculdade, como todos atualmente me sugerem. Ou para as duas coisas ao mesmo tempo.

17 de setembro de 2003

O GARIMPO DA PAUTA

Para evitar que a pauta torne-se cíclica, repetindo-se todos os dias e, às vezes, na mesma edição, deve-se encará-la como indivíduo e não como espécie ou gênero. Descobrir pautas todos os dias é o nó cego da profissão, que precisa ser desatado com jeito, mais do que com força, na base do close-up, e não do plano geral.

CAVALO É OUTRA COISA – Implico com os americanos, que dividem as pessoas como se fossem cavalos: caucasiana, asiática ou hispânica. Como homem da fronteira, herdeiro portanto de uma luta de quatro séculos contra a “hispanidad”, fico muito fulo com o registro que os brasileiros ganham nos Estados Unidos, onde são confundidos com hispânicos (outra coisa que não existe, pois o que há são mexicanos, colombianos, argentinos etc.). E também com a tendência cultural hoje de nos identificar com a América Espanhola, o que tira nossa identidade fundamental, de América Portuguesa. Quando Carlinhos Brown torna-se Carlito Marrón ou quando Alexandre Pires coloca um chapéu para identificá-lo com o que chamam de hispânicos no fim dos Jogos Pan Americanos, estamos é abrindo mão do que temos de mais profundo, que é nossa língua e nossa História. É preciso ter cuidado com as espécies, como a “hispanidad”, que é poderosa, como notava o chanceler Oswaldo Aranha, também homem de fronteira. E enxergar nossa individualidade. Pertencemos não a uma categoria, ou a uma raça, mas a uma nação de indivíduos diversos.

BORGES – Quem notou a tragédia da pauta rotativa (mas não usou esse termo) foi Jorge Luis Borges (precisa obedecer o manual e dizer “escritor argentino”? acho que não). Ele reclamou da abordagem dos necrológios da imprensa sobre uma grande artista do seu país. Em vez de tratá-la como um indivíduo, escreveu Borges, a imprensa definiu-a como uma espécie, ou seja, como “mulher” que virou grande artista. “A mulher e...” é o exemplo típico de pauta rotativa. É como documentário sobre os anos 60: sempre aposto o momento certo em que o sonho vai acabar, pois há uma lei que obriga o sonho acabar em qualquer reportagem que se faça sobre o período. Esse tipo de enfoque, imagino, só sairá da reta aí pelo ano três mil pois virou cânone, não há como lutar contra. Quando estava na Fiesp, inúmeras vezes me sugeriram a pauta “a mulher e a indústria”. Eu argumentava que as mulheres apareciam sempre como empresárias ou pesquisadoras ou em qualquer outra atividade, e eram tratadas como são, ou seja, indivíduos com suas características próprias. O sexo ao qual pertencem não é suficiente para identificá-las.

PERGUNTAS - Pois então, onde o bicho pega? Como fazer pauta todos os dias, semanas, meses, anos, sem cair no lugar comum (outra pauta recorrente é “não-sei-o-quê-vira-mania”, muito comum em revistas)? Basta abrir as comportas, limpar os canais de acesso ao pauteiro (que não deve ser um, mas todos). Quem faz pauta deve ter uma percepção aberta, universal. Pauta é o que ninguém ainda abordou. Elas sobram no dia a dia, estão na cabeça das pessoas que nos rodeiam, são aqueles assuntos que não chamam atenção de tão óbvios e próximos e que jamais saem publicados. Pauta é também a pergunta que ninguém faz. O que realmente discutiram as duas personalidades antes da tragédia? Quem é de fato o decorador assassinado? Só existe matéria paga disfarçada de notícia no Paraná? Que tipo de produtor é esse que se comporta como espécie e planta em massa soja transgênica sabendo que está proibida?

A PRISÃO DO GANCHO – É um mau costume só fazer matéria sobre determinado assunto quando há algum evento justificando. É a prisão do gancho. Deve-se evitar o marketing da notícia. Precisamos deixar de obedecer à agenda proposta por consultorias, assessorias etc. Devemos ir diretamente na fonte, perguntar o que ela precisa saber, o que ela quer ler, o que ela tem a dizer, a propor. O jornalismo deve ser livre e essa liberdade começa na pauta. Na minha experiência como diretor de telejornal, via minhas pautas serem derrubadas em função do “barraco-que-caiu-na-Zona Leste”. Dizia: mas essa matéria já está na Globo; onde está a pauta sobre contaminação química do solo que a gente encaminhou? O chefe de reportagem derrubava, ou então o repórter, ou então o editor na ilha, ou ainda o apresentador e às vezes até o boy. Em compensação, todos estalavam os dedos dizendo que a TV era muito ágil e eu, um cara “da escrita”, não entendia nada. É por isso que até hoje, toda vez que estalam os dedos na minha frente, tenho urticária.

RETORNO - A jornalista Cibele Buoro, professora de comunicação, me escreve dizendo que está “repassando para os alunos” os textos desta coluna. Antes dela, a professora e jornalista Zélia Leal, da UNB, também tinha escrito dizendo que debateria minha nota sobre leads em aula. É uma honra para o Diário da Fonte ser avaliado pela meninada. Espero que o que escrevo aqui, fruto de longa experiência e reflexão sobre o que fazemos ou deixamos de fazer nas redações, seja útil para todas as gerações.

16 de setembro de 2003

O ESQUELETO IMANTADO

Texto, para ficar em pé, precisa de espinha dorsal com poder de atrair naturalmente todas as informações. O núcleo dessa criatura difícil de domar deve possuir força suficiente para encaixar as peças sem susto e assim justificar a atenção do leitor, levando-o pela mão, sem tropeços, da primeira à última linha.

ESTÁ DIFÍCIL – Hoje você suja as mãos e pouco encontra de realmente bom para ler nos jornalões, e muito menos nas revistas. No fim de semana a tarefa é menos complicada, graças ao Mais!, da Folha, ao caderno de Cultura do Estadão e à Carta Capital, que sempre oferecem leitura de qualidade, que é o que procuramos na imprensa. “Não leio jornais, leio jornalistas” era a citação do Paulo Francis sempre que abordava o assunto. A pouca oferta nos obriga a insistir: um autor como o Drauzio Varella, por exemplo, quando acerta lava a alma, como é o caso do texto em que narra o encontro com velha figura do Carandiru e as peripécias conjugais na periferia. Outro autor irregular, mais para o acerto do que para o erro, é Mangabeira Unger, que publica na página dois às terças-feiras (hoje), na Folha. Gosto quase sempre do Walter Salles Jr., Gilberto Vasconcellos e Jânio de Freitas. E toda vida, claro, do Mino Carta (que escreve magistralmente o que pensamos, ou o que deveríamos pensar). Muitos autores não possuem talento, mas são agraciados com espaços gigantescos e injustificáveis. Não cito nomes pois cada leitor tem seus favoritos e suas implicâncias. O lamentável é que leitura boa fica reservada aos colunistas, já que o reportariado está sob o jugo dos manuais e proibidos de desenvolverem um estilo próprio. Costumo dizer que para isso servem os manuais: padronizar e sufocar o talento do repórter e assim projetar os holofotes nos colunistas e seus “diferenciais”. O que irrita são alguns cronistas, paga-paus de amigos recorrentes, eternamente citados em seus cíclicos textos, como a justificar a superficialidade que a crônica deve assumir na divisão de poderes da leitura.

ABERTURA, MIOLO E PÉ – Chamo de lead, impropriamente, o início dos textos. Lead é invenção americana que precisa responder perguntas básicas. É eficiente para evitar papo furado e treinar jornalistas iniciantes. Mas prefiro falar em abertura de texto, que não está subjugada aos ditames do lead. Seu papel é fisgar o leitor e jogá-lo para esse território improvável e pouco visitado, o segundo parágrafo. Houve tempo em que se fazia piada dizendo que um texto iniciava com o “tudo começou”, continuava com “na verdade”, no terceiro parágrafo usava-se “por outro lado”, depois para sugerir seriedade apelava-se para um “a rigor” e lavava-se as mãos no fecho com o obrigatório “resta saber”. Mas hoje esse tipo de coisa nem serve para piada, já que é trágico e assombrou a imprensa por muitos anos (mas dessas muletas ninguém está livre). É por isso que criei a figura do esqueleto imantado, em que o jornalista descobre o poder central do seu texto e usa-o como estrutura viva. O segredo é manter a objetividade do lead sem curvar-se a ele. Depois que você encontra a abertura, se der branco, faça como Hemmingway no livro “Paris é uma festa”: coloque a frase mais verdadeira que você conhece. Mesmo que ela seja eliminada depois, já que pode não fazer parte da sua matéria, use-a como instrumento de poder. O fim da reportagem não pode ser um apêndice dispensável: ele é tão importante quanto a abertura. Se tiver que cortar, corte no miolo: algo costuma soar mal, ou seja, está errado. Escreva de ouvido. Texto é música e o esqueleto imantado é a sua partitura.

MESTRE JAPIASSU - Hoje é o lançamento do livro do Moacir Japiassu, “Concerto Para Paixão e Desatino - Romance de Uma Revolução Brasileira", pelo selo Francis da W11 (brava editora do meu amigo Wagner Carelli em sociedade com a Sonia Nolasco). Será no Shopping Villa-Lobos, na Livraria Cultura, a partir das 18h30min. Japi há décadas desenvolve missão cívica no meio jornalístico, pois com humor e talento aponta os escorregões da imprensa, sem o tom ranzinza dos professores, mas com o toque elegante dos escritores. Mestre Japi é imprescindível na nossa profissão, e por justiça ocupa agora lugar de destaque na literatura. Seu livro é ambientado na sua Paraíba: “ Trata-se de um romance. É ficção, ficção que tem como cenário, como ´pano de fundo`, os acontecimentos de 1930”, diz Japiassu. A Revolução de 30, como a Guerra da Independência, ainda desafiam os historiadores e possuem acervo riquíssimo para a literatura. Já que falamos hoje em texto, é comparecendo nesse lançamento que poderemos homenagear o texto brasileiro de qualidade.

RETORNO – Altamirando Jonas é biógrafo da desimportância. Presta atenção nos detalhes mais obscuros dos seus biografados, todos eles sem nenhum lugar garantido na História. É aposentado precoce (conseguiu isso sabe-se lá como) e dedica-se a futucar a vida alheia. Encanou na minha. E o pior é que jamais se apresenta, sempre vem via texto. Como é muito chato, confirmo as suas descobertas. É a única forma de me livrar da sua presença por uns tempos.

15 de setembro de 2003

O DESAFIO DA EQUIPE

Depois de algum tempo na profissão, fatalmente o jornalista vai enfrentar seu maior desafio: ser responsável, perante a direção, por um grupo de profissionais. Para quem não é arrogante e só sabe trabalhar dentro da ética, essa é uma tarefa extremamente delicada, pois envolve não apenas pessoas, mas destinos.

AS BASES DO SUCESSO - Há dois tipos de situação. A primeira é encontrar a equipe montada e você cai de pára-quedas. A outra é fazer acontecer, criar uma equipe afinada. Como esta coluna não é de marketing nem de auto-ajuda, vou falar em jornalismo nos termos que eu conheço, a partir do que vi e vivi. Estive quase sempre no grupo liderado e só algumas vezes precisei estar à frente do trabalho. Por isso posso dizer: não é fácil e normalmente ocorrem trombadas. Há o editor (ou simplesmente chefe, como se diz no Brasil) que, de maneira cavernosa e melíflua, vai eliminando os problemas, ou seja, os concorrentes primeiro, e depois os menos “perigosos” mas não menos confiáveis. Há o outro que resolve apostar no que tem e não possui cacife suficiente para segurar o rojão. E há o que simplesmente substitui o que existe pelo que traz no bolso do colete. Meu exemplo favorito é criar um veículo de comunicação (ou uma editoria) do nada e a partir do nada inventar uma equipe. É a melhor maneira de não tomar o lugar de ninguém, abrir mercado e virar herói. O único grande problema é acertar: na hora em que você consolida o projeto, sempre tem alguém a fim do teu lugar. Você pode considerar-se bem sucedido se estão querendo te derrubar. Mas vale a pena o risco pela emoção da criatividade nesta área tão complicada que é a liderança numa redação.

FORMAÇÃO COMPLETA - Costumo dizer aos estagiários que passam por mim que meu objetivo não é encaminhá-los para a reportagem, mas para a formação completa. Você precisa pautar, reportar, escrever, fazer fechamento, criar veículos, tudo. Para um jornalista recém formado que veio queixar-se do aperto do mercado pedi que visse a grande pilha de revistas que estava em cima da minha mesa. Falei: selecione algumas dessas revistas, tome nota dos editores e chefes de reportagens, estude o veículo, sugira pautas. Apresente soluções, coloque-se à disposição. Faça parte da equipe. Pois você jamais poderá liderar se não souber participar de algo maior do que você, ou pelo menos diferente. Toda vez que eu trazia um free-lancer importante, que tinha ocupado cargos de chefia em outras redações, sopravam no meu ouvido: “Você é louco, esse cara vai tomar o teu lugar!” Como sonho em sair desta vida há mais de dez anos, eu blefava: isso seria um favor para mim, mas o que importa é trazer para a equipe gente melhor do que você. É o único jeito de crescer, trabalhar sem rede de segurança, convocar o mundo e deixar que o processo depure, que a equipe se forme de baixo para cima.


SAIR DE CIMA - Esse é o truque: sair de cima. Aprendi isso com os grandes mestres. Quando vi o Tarso de Castro, o Samuel Wainer, o Mino Carta e o Wagner Carelli à frente de suas equipes, descobri o óbvio: eles são grandes porque apostam na grandeza alheia, porque acreditam que haja talento nos outros, porque confiam. Carelli costumava dizer na Bravo!, num falso tom de lamentação: “Vocês só fazem coisas brilhantes! Assim não dá! E eu como é que fico?” Esse era um dos jeitos de elogiar a equipe que montou na revista que era na época “a inveja da América Latina”, segundo o poeta Antonio Skármeta, autor de O carteiro e o Poeta. Mino Carta, numa reunião de pauta, escutava e só no final dava seu toque: uma fonte importante para a matéria, um enfoque diferente, uma capa. Além de conhecer o Brasil como ninguém, Mino também trabalha com Conselho Editorial, com pessoas especializadas que trazem contribuições fundamentais para as reportagens. O líder se segura, sabe o que faz, confia nos seus jornalistas e trabalha em dois tempos: um é a espinha dorsal da equipe, as pessoas-chave, os âncoras; o outro são as aquisições, as pessoas que chegam e saem, os que passam e fazem a experiência. Mino Carta, o pai da matéria, mestre de Carelli e de todos nós, não é o número 1 por acaso. Seu método de trabalho foi surpreendente, para mim, que não tinha idéia como seus maravilhosos jornais e revistas eram feitos. Ele simplesmente saía de cima, mas mantinha o rigor da liderança. Sair de cima não é omitir-se, é deixar fluir a criação e o trabalho e não deixar que a mediocridade tome conta.

Se vocês insistirem, voltarei ao tema.

RETORNO – Nenhum retorno. Repercussão zero (com as belas exceções de sempre). Obrigado, amigos. Estão todos demitidos.

14 de setembro de 2003

O JOGRAL DAS FONTES

Os entrevistados parecem obedecer a uma lógica que só existe dentro da cabeça dos jornalistas. Eles “concordam” uns com os outros nos textos forçados, como se fizessem parte de um conjunto vocal que recita declarações idênticas ou complementares. E por coincidência espantosa, eles sempre “concluem” no final das matérias.

MEMÓRIA E ENCANTAMENTO – Hoje é domingo, precisamos conectar com algo muito acima de nós. Vou transcrever um trecho (curtinho) de Proust, do capítulo Combray, do livro No Caminho de Swan, de sua obra monumental Em Busca do Tempo Perdido, tradução de Mario Quintana: “Mas quando mais nada subsistisse de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas, - sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, - o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação.” A França tem uma identidade definitiva, entre tantas outras: o poder encantatório de sua cultura. Servem como exemplos, além de Proust, Saint-Exupery em Terra dos Holmens e no seu poema O Pequeno Príncipe, tão amado quanto injustamente mal-afamado. No mesmo caminho, o filme “O fabuloso Destino de Amélie Poulain”, que aborda a solidariedade anônima, a timidez que procura superar-se pela tocaia amorosa e Paris pintada sobre a fotografia. O diretor do filme, muito politicamente correto, fala mal da sua obra dizendo que é preciso ter cuidado, pois Paris não é a mesma do filme. Esquece-se do encanto da cultura a qual pertence (talvez sinta vergonha do que faz parte dele poderosamente). Basta a cena do metrô vazio, com Amélie encontrando o cego com um toca-disco no colo. O filme fez o maior sucesso, o que, para muitos, depõe contra ele. Pois nem quero saber: gosto de Saint-Exupery e de Amélie Poulain, assim como gosto de Godard. Gosto da França. Quem não gosta?

TÍTULOS – “Nem tambores nem clarins “ era o título que meu amigo Wagner Carelli gostaria de usar em alguma matéria sua, o que nunca aconteceu, claro, já que Carelli, além de um magnífico debochado, é mestre da linguagem e quando decide escrever, o País treme. Mas Wagner será assunto de um perfil futuro, portanto, vamos nos concentrar nos títulos. Não sou fã ardoroso dos títulos apelativos, tipo Notícias Populares, como o clássico “Cachorro faz mal à moça”, que se referia à internação hospitalar de alguém que arriscou em comida de rua. Nem dos que clonam exaustivamente títulos literários, como o já citado aqui “Crônica de uma morte anunciada”, que dá deu para bola de tanta repetição. Título hoje, por pressão dos manuais, obedece a hábitos horrorosos. Está cheio de “quer” e “diz” e verbos intragáveis como “sinalizam “ ou “alavancam”. O melhor título que eu conheço foi feito pelo Sérgio de Souza no jornal semanal do Samuel Wainer, Aqui, São Paulo, sobre uma exposição de pintura do ex-presidente Jânio Quadros, que voltava de longo exílio voluntário: “Jânio? Quadros?” era o título magistral. O Aqui, São Paulo existiu entre 1977 e 1979, época da anistia. Foi quando conheci o Samuel Wainer, que será também pauta de um perfil de sábado (hoje estou cheio de promessas). “A volta do Setembro Negro” é um dos meus títulos favoritos da Veja, com a capa mostrando a foto granulada de um terrorista com capuz. Não parece ser um grande título, mas mexe comigo, assíduo espectador dos seriados nas matinês dos anos 50. Para variar, um título dos meus, que fiz quando estava na revista Senhor, do Mino Carta (outro que terá um perfil aqui na coluna) dos anos 80. Foi na seção de Ciência e Tecnologia e a matéria era sobre o satélite brasileiro que estava sendo lançado: “O Brasil vai para o espaço”. Este título foi bastante copiado, inclusive na própria Senhor (quando aproveitaram, sorrateiramente, umas férias minhas). Mas é de minha lavra e tenho dito. Outro que eu gosto fiz para a revista da Fiesp na inauguração do centro cultural : “Às artes, cidadãos”. Já que ninguém comenta esta coluna, por que vocês não enviam seus títulos favoritos? Vamos, participem, trabalhem um pouco. Forças!

TODOS CONCLUEM - A falta de filosofia no segundo grau tem sido o motivo das dificuldades de costura nos textos jornalísticos. Como não há formação filosófica, empilham-se declarações e o máximo que se consegue é fazer uma fonte concordar com a outra, ou, para fechar a matéria, concluir no ponto final. É muito simples: vocês conhecem alguma empresa de comunicação com biblioteca? E com bibliotecário(a) contratado(a)? Uma vez um repórter formado em comunicação me disse que jamais tinha lido um livro. Emprestei Sagarana, de Guimarães Rosa. Um ano depois, pedi de volta. Ele não tinha lido. E isso que é um livro de contos, poderia pelo menos terminar de ler uma das histórias. Num desses contos maravilhosos, O Duelo, Rosa escreveu o mais belo desfecho existente na literatura: “Depois, morreu”. Isso sim é que é final de texto. Poderia servir de lição para os repórteres.

RETORNO – Este pé de coluna não vai mais se chamar Atenção, já que não temos alto-falante. O Retorno de hoje é a bronca que eu levei do meu irmão Luís Carlos, que tem doutorado em Qualidade de Software pela USC, dos Estados Unidos. Ele reclamou que o título da minha nota sobre ele foi “Redator PC” e que isso estaria gerando deboches entre colegas. Avisei que eu é que estava envolvido com o extinto software, mas pensando melhor, até que fui muito generoso, pois poderia lembrar sua época de cartões perfurados. Mas fica o registro: Luís Carlos é doutor em Tecnologia de Informação e dá de dez em todo mundo. O problema é que, com a bronca, ele perdeu o direito a um pastel de queijo grátis, pois o brinde é apenas para quem faz comentário favorável.

13 de setembro de 2003

JORNALISMO-DE-BREQUE

Professores e estudantes universitários visitam a coluna e emprestam seu prestígio com suas leituras e comentários. Neste primeiro sábado do Diário da Fonte, uma edição especial com a estréia de uma seção, a de perfis de jornalistas com os quais trabalhei.

EDUCAÇÃO ON-LINE - Zelia Leal Adghirni, da Universidade de Brasília, minha amiga de longa data, escreve dizendo que lê a coluna atentamente como professora de jornalismo. Seu doutorado é sobre o jornalismo on-line. Sua carta funcionou como uma sugestão: como devo entender desse assunto não tanto pela longevidade, mas pela insistência, decidi focar mais a coluna nessa área, poupando meus poucos, mas fiéis leitores, das “dizidas” sobre política. Publiquei a primeira matéria em 1969 (as datas não foram feitas para assustar ninguém) numa revista de Porto Alegre (que teve alguns números e um nome do qual não me lembro) e era sobre a influência da TV na educação. Começava com um fato real: uma aluna do primeiro grau levantou os olhos numa prova e implorou: “Topo Gigio, ajudai-me”, o que revela o caráter de divindidade que adquiriu um personagem, um rato, imposto goela abaixo na meninada. Contra Topo Gigio insurgiu-se o Sig, o rato do Pasquim. Sou do tempo do Pasquim, do Tarso de Castro, um inventor de jornais e sobre o qual demoram as reproduções de seus antológicos textos. Recebo inúmeras mensagens de jornalistas, estudantes e professores de comunicação e sinto que há grande falta de abordagens vivas sobre nossa imprensa. Sorte que contamos com Zélia na UNB e Francisco Karam, na Universidade Federal de Santa Catarina, dois luminosos professores do jornalismo pátrio, a quem as novas gerações devem agradecer todos os dias.


REDATOR PC – O professor Luiz Carlos Duclós, da PUC do Paraná, que orienta a pós graduação em Tecnologia de Informação, também me retribui o convite para visitar a coluna. Graças ao Luiz Carlos, meu irmão tão próximo que nos chamavam de gêmeos quando crianças (o que é uma injustiça a ele) é que entrei no mundo da informática. Posso dizer que até há pouco tempo guardei uma relíquia, meu diploma de Redator PC, assinado por ele, pois Luiz Carlos é pioneiro na implantação da cultura digital no País. Foi professor tanto em Blumenau quanto em Florianópolis, hoje dois pólos importantes em tecnologia de informação. Luiz Carlos, como empresário de serviços sob medida em software, também foi o publisher de um jornal que criei junto com o Fortuna, o gênio do traço e da arte e que infelizmente não está mais entre nós. Fizemos, Fortuna, eu e o fotógrafo/artista Ayrton de Magalhães, o Softpress, que no terceiro número ganhou (1988) um Prêmio Aberje (Destaque de Texto). Eram apenas quatro páginas, mas lembro que, ao lançarmos, a assessoria de imprensa da Microsoft nos enviou um telegrama elogiando o jornal e falando que Softpress era a melhor newsletter surgida no Brasil naquela época. Fortuna, gênio absoluto da raça, também merece ser resgatado. Foi ele, com suas duas páginas de humor no Correio da Manhã (acho que era o Correio) que revelou talentos como o Ziraldo, recém chegado de Minas Gerais, entre muitos outros. Honra e glórias eternas.


VAIDADES – Vocês notaram que, para muitos repórteres de televisão, o que importa é o crédito? Digam o que disserem, a ênfase vem sempre no final: “Fulano de Tal (pausa!), de Caixa-Prego”. A pausa também é usada no meio da reportagem. Podem notar: é um falso suspense, criado para dizer...obviedades. É o que eu chamo de jornalismo-de-breque, que faz súbito e provisório silêncio para tentar surpreender o telespectador. Ao contrário do samba, onde o breque cai muito bem, no jornalismo o recurso torna-se gasto pelo excesso de uso.


Perfil – Jorge Escosteguy

UM SOPRO NO CORAÇÃO – Escrevi este texto sobre o Jorge Escosteguy, jornalista de primeira água nascido em Livramento (terra de jornalistas) e que me abriu as portas de São Paulo me encaminhando primeiro para a Veja (onde publiquei resenhas de livros), depois para a Folha de São Paulo (onde fui redator, repórter e crítico musical da Ilustrada entre 1977 e 1979). É absolutamente inédito e inaugura minha seção de perfis .

Os cardíacos criados no pampa crescem com uma desvantagem: precisam provar que são feitos da mesma têmpera da cultura local, mais afeita à luta do que ao descanso, mais ligada ao aço do que à pena. Esse esforço gera uma energia extra no gaúcho escolhido pela natureza para defender-se mas que, por uma questão de princípios, é educado para o ataque.
Jorge Escosteguy tinha essa marca desde a infância. Sua sorte foi ter nascido em Livramento, terra de tradição jornalística, onde o principal veículo, A Platéia, acolheu-o cedo, abrindo a porta para que ele, um passional, pudesse desenvolver nas redações uma dureza rústica típica de sua terra. Por força do seu destino, aos poucos ele entregou-se à oscilação entre a rispidez e a amizade que regem as relações humanas nesta profissão demasiada humana.
Na medida em que foi mudando de emprego, em direção a Porto Alegre, Florianópolis, São Paulo, Rio de Janeiro ou o Nordeste, ele continuou lutando com essa divisão entre o coração e a couraça, na longa carreira e curta vida, bruscamente interrompidas por um enfarte, às vésperas de completar 50 anos. Seu ritmo era definido pela vontade de romper barreiras, como se obedecesse às batidas extras de uma válvula mitral prejudicada. Sua pressa era de quem procurava escapar do aviso permanente que vinha do peito. O corpo pedia prudência, mas a vocação apontava para o excesso.
Talvez viesse daí duas paixões, os cavalos e Charlie Parker. No Jocquey, ele encontrava a mesma velocidade que imprimia nas suas rotinas e, ao mesmo tempo, aprendia a conviver com o pique que o atormentava. E no jazz ele podia mergulhar num universo feito apenas de nervos estirados, fervilhando sob a beleza sonora que tinha o dom de criar equilíbrio e calma.
A paixão decisiva, o jornal diário, era o território dessa convivência entre opostos onde, por exemplo, o talento para o disfarce consegue duelar com a sinceridade crua. Assim, Scotch acabou assumindo as múltiplas faces que o jornalismo é capaz de formatar. Mas em todos os segmentos onde trabalhou - revista, assessoria de imprensa, televisão, campanha política - foi fiel ao tranco da notícia diária, imprevista, estressante. Nessa corrida, procurava escapar dos médicos, que o lembravam da mais áspera herança do pampa úmido e polar: as seqüelas da febre reumática.
A morte levou-o cedo, no auge da carreira. O coração, tantas vezes exigido, negou-lhe fogo uma única e definitiva vez. O corpo endurecido pela vida só podia cair assim de surpresa, num golpe súbito. Um cardíaco criado no pampa não pode dar-se ao luxo de entregar-se. Ele costuma estar na mira dos outros guerreiros, que ficam sempre de guarda.


Atenção: Recebi também mensagens de Ana Huffel, que é poeta, irmã do Marco Celso Viola, que continua oculto, e de Mônica Serrano, atualmente mergulhada numa monografia sobre jornalismo econômico. Como já anunciei aqui, todos os que enviaram mensagens (favoráveis) têm direito a um pastel de queijo da Pastelândia. É só apresentar o vale-Diário da Fonte que, pronto, sai na hora. Ou me convidar para uma rodada, que eu pago.