Nei Duclós
Cinema de autor na América é uma linhagem abandonada, apesar da sua importância para a história do cinema. Está, inclusive, na origem de tudo, com Grifith e O Nascimento de uma nação. Ganha força com Frank Capra, Billy Wilder (europeu de nascimento, mas cineasta americano), Nick Ray, Arthur Penn, experimenta a ruptura com John Cassavets e chega ao máximo com Orson Welles. Hoje, é representado por Clint Eastwood, um pouco por Sean Penn, entre outros. Para continuar autor, Woody Allen migrou para a Europa. Francis Ford Coppola ficou dez anos sem filmar até voltar ao cinema de autor com Youth without Youth (a tradução literal é Juventude sem Juventude, mas pode ser encarado como no título acima ou no alternativo Mocidade Depois de Velho), lançado em 2007.
Quem fez esta indicação foi o meu amigo Ricky Bols, que gosta dos meus textos sobre cinema que posto aqui. Com Tim Roth, Alexandra Maria Lara e Bruno Graz, o filme é baseado numa novela do romeno Mircea Eliade, mas foi totalmente escrito, produzido e dirigido por Coppola. Trata-se de uma viagem no tempo, em que um lingüista pesquisa a origem da linguagem e para isso ganha o que todos os grandes estudiosos precisam desesperadamente: mais de uma vida, para realizar projetos ambiciosos demais. A nova vida do catedrático já senil, interpretado por Roth, é inaugurada por uma carga poderosa de um raio, que o rejuvenesce.
O fenômeno atrai a atenção dos nazistas, envolvidos historicamente em magias do Mal, como mostraram os autores de Os Despertar dos Mágicos, antigo best-seller hoje esquecido de Louis Pauwels e Jacques Bergier e que pode ser lido online. A delirante ficção de Mircea é, em si, um projeto ambicioso demais. Como um Borges (como já foi notado por estudiosos), ele navega por assuntos como a migração das almas, reencarnação, a existência de um Duplo (tema fundamental na literatura de Carlos Castaneda), espiritualidade oriental etc.. Coppola (ou talvez Mircea, já que não li a novela) coloca a história em função de um conflito, entre o projeto de uma vida e o amor. Numa das encarnações da amada, ela vai embora porque não consegue entrar no mundo dele. Na seguinte, mergulha tão fundo que envelhece e corre o risco de enlouquecer – e por isso a relação também não dá certo, não vai adiante.
O resultado é a solidão e a regressão. Toda a trajetória do desamparado professor romeno de línguas acaba num livro inacabado, em dois amores partidos, na negação do seu Duplo (somos um Outro) e na volta à rotina que o condenava, entre professores intelectuais senis e omissos, enquanto a guerra bate na porta com as botas do nazismo. O filme é também um projeto ambicioso demais para Coppola, que filma o que quer, depois de sofrer tanto com seus megafracassos de bilheterias, seu esbagaçamento de prazos e verbas, entre outras tempestades.
A juventude que chega tardiamente e viabiliza uma segunda chance para a profissão e o amor, seria fruto dos impactos da ciência na humanidade ou apenas perda de tempo? Nossa geração, que se recusou a abraçar o que estava programado e ousou novos caminhos, dando a si uma nova oportunidade, que elegeu a juventude como o insumo permanente do risco e de uma vida plena, sofre hoje com esse conflito: para onde foram tantas conquistas, tanto conhecimento acumulado, tanta experiência? Voltamos à estaca zero ou conseguimos realmente mudar tudo? Somos o professor recém saído da recuperação, cheio de projetos, driblando a tirania, ou aquele que volta ao seu regaço de modorra e esquecimento e acaba se perdendo no meio da noite e da neve? Eis a atualidade candente dessa nova obra de Coppola.
Em Roma, num festival em que lançou seu filme, argumentou que a crítica deveria dar vez a autores que quisessem ousar, experimentar e não apenas ficar cobrando que faça filme de gangsters . Sim, teve uns bois cornetas que disseram que ele precisava fazer o que sabia fazer, ou seja, filme de bandidos. O cara é uma enciclopédia do cinema, cada filme seu é uma escola diferente, é autor de uma obra que ninguém mais tem hoje, se equipara aos grandes mestres e querem que ele faça filme de tiroteio e roubos. É de chorar.
Neste Youth without Youth, o grande cineasta faz um trravelling sobre a história da Sétima Arte. É um filme de amor, de espionagem, de especulação filosófica, de suspense, às vezes de terror, de ficção científica, de viagens. Tem grandes homenagens ao cinema noir, como na perseguição que o professor sofre nos becos sinistros, quando luz e sombra, chapéus de feltro e casacões, pistolas automáticas e rostos em close criam o clima inesquecível dessa arte sem igual, o cinema policial americano clássico.
Há muitos Coppola, todos ótimos. Cada pessoa tem suas preferências. Eu destaco o roteiro (que ganhou o Oscar) para Patton, a narrativa épica sobre um protagonista da II Grande Guerra; e O Poderoso Chefão III, a denúncia de que a maior máfia é invisível, está no comando e domina o mundo por meio da manipulação das economias dos países ricos, o que é uma situação cada vez mais evidente.
Os Coppola obrigatórios, como Apocalipse Now e os dois primeiros Godfather nem precisa citar, são eternos. Mas há os menos considerados, igualmente ótimos, como Peggy Sue e Tucker. O cineasta prefere seu filme mais radical A Conversação, que ganhou a Palma de Ouro de Cannes e é sobre um espião que surta diante da descoberta de que seu trabalho servia para causas escusas. A perda da inocência de um profissional da guerra é um aspecto recorrente do cinema americano, que coloca os heróis deslocados na volta para casa, em desgraça nos quartéis das Forças Armadas ou da CIA, em países distantes onde entram em crise de consciência.
Em Youth Without Youth, Coppola retoma o fio de suas múltiplas narrativas, apostando na inteligência dos espectadores, peitando a crítica submissa e sem nenhuma luz. Talvez seja por isso, o excesso de sombras, que tenha trazido Coppola a Florianópolis nos últimos anos, onde pretende criar projetos imobiliários, no mínimo uma casa debruçada para o mar. Que salte esta primavera, tão chuvosa e sombria e venha no verão, que o verão da ilha o espera, com camarão e tainha na brasa.
Vem, cara, que a gente nem vai te cobrar filmes de gângsters. Prometemos também nem comentar teu excelente Juventude fora de hora. Na tua presença, a gente se cala. É o que devem fazer os espectadores com juízo, quando encontram, por acaso, uma das encarnações do gênio.
RETORNO - Imagem de hoje: Tim Roth, múltiplo em Youth without youth, de Francis Ford Coppola.
Cinema de autor na América é uma linhagem abandonada, apesar da sua importância para a história do cinema. Está, inclusive, na origem de tudo, com Grifith e O Nascimento de uma nação. Ganha força com Frank Capra, Billy Wilder (europeu de nascimento, mas cineasta americano), Nick Ray, Arthur Penn, experimenta a ruptura com John Cassavets e chega ao máximo com Orson Welles. Hoje, é representado por Clint Eastwood, um pouco por Sean Penn, entre outros. Para continuar autor, Woody Allen migrou para a Europa. Francis Ford Coppola ficou dez anos sem filmar até voltar ao cinema de autor com Youth without Youth (a tradução literal é Juventude sem Juventude, mas pode ser encarado como no título acima ou no alternativo Mocidade Depois de Velho), lançado em 2007.
Quem fez esta indicação foi o meu amigo Ricky Bols, que gosta dos meus textos sobre cinema que posto aqui. Com Tim Roth, Alexandra Maria Lara e Bruno Graz, o filme é baseado numa novela do romeno Mircea Eliade, mas foi totalmente escrito, produzido e dirigido por Coppola. Trata-se de uma viagem no tempo, em que um lingüista pesquisa a origem da linguagem e para isso ganha o que todos os grandes estudiosos precisam desesperadamente: mais de uma vida, para realizar projetos ambiciosos demais. A nova vida do catedrático já senil, interpretado por Roth, é inaugurada por uma carga poderosa de um raio, que o rejuvenesce.
O fenômeno atrai a atenção dos nazistas, envolvidos historicamente em magias do Mal, como mostraram os autores de Os Despertar dos Mágicos, antigo best-seller hoje esquecido de Louis Pauwels e Jacques Bergier e que pode ser lido online. A delirante ficção de Mircea é, em si, um projeto ambicioso demais. Como um Borges (como já foi notado por estudiosos), ele navega por assuntos como a migração das almas, reencarnação, a existência de um Duplo (tema fundamental na literatura de Carlos Castaneda), espiritualidade oriental etc.. Coppola (ou talvez Mircea, já que não li a novela) coloca a história em função de um conflito, entre o projeto de uma vida e o amor. Numa das encarnações da amada, ela vai embora porque não consegue entrar no mundo dele. Na seguinte, mergulha tão fundo que envelhece e corre o risco de enlouquecer – e por isso a relação também não dá certo, não vai adiante.
O resultado é a solidão e a regressão. Toda a trajetória do desamparado professor romeno de línguas acaba num livro inacabado, em dois amores partidos, na negação do seu Duplo (somos um Outro) e na volta à rotina que o condenava, entre professores intelectuais senis e omissos, enquanto a guerra bate na porta com as botas do nazismo. O filme é também um projeto ambicioso demais para Coppola, que filma o que quer, depois de sofrer tanto com seus megafracassos de bilheterias, seu esbagaçamento de prazos e verbas, entre outras tempestades.
A juventude que chega tardiamente e viabiliza uma segunda chance para a profissão e o amor, seria fruto dos impactos da ciência na humanidade ou apenas perda de tempo? Nossa geração, que se recusou a abraçar o que estava programado e ousou novos caminhos, dando a si uma nova oportunidade, que elegeu a juventude como o insumo permanente do risco e de uma vida plena, sofre hoje com esse conflito: para onde foram tantas conquistas, tanto conhecimento acumulado, tanta experiência? Voltamos à estaca zero ou conseguimos realmente mudar tudo? Somos o professor recém saído da recuperação, cheio de projetos, driblando a tirania, ou aquele que volta ao seu regaço de modorra e esquecimento e acaba se perdendo no meio da noite e da neve? Eis a atualidade candente dessa nova obra de Coppola.
Em Roma, num festival em que lançou seu filme, argumentou que a crítica deveria dar vez a autores que quisessem ousar, experimentar e não apenas ficar cobrando que faça filme de gangsters . Sim, teve uns bois cornetas que disseram que ele precisava fazer o que sabia fazer, ou seja, filme de bandidos. O cara é uma enciclopédia do cinema, cada filme seu é uma escola diferente, é autor de uma obra que ninguém mais tem hoje, se equipara aos grandes mestres e querem que ele faça filme de tiroteio e roubos. É de chorar.
Neste Youth without Youth, o grande cineasta faz um trravelling sobre a história da Sétima Arte. É um filme de amor, de espionagem, de especulação filosófica, de suspense, às vezes de terror, de ficção científica, de viagens. Tem grandes homenagens ao cinema noir, como na perseguição que o professor sofre nos becos sinistros, quando luz e sombra, chapéus de feltro e casacões, pistolas automáticas e rostos em close criam o clima inesquecível dessa arte sem igual, o cinema policial americano clássico.
Há muitos Coppola, todos ótimos. Cada pessoa tem suas preferências. Eu destaco o roteiro (que ganhou o Oscar) para Patton, a narrativa épica sobre um protagonista da II Grande Guerra; e O Poderoso Chefão III, a denúncia de que a maior máfia é invisível, está no comando e domina o mundo por meio da manipulação das economias dos países ricos, o que é uma situação cada vez mais evidente.
Os Coppola obrigatórios, como Apocalipse Now e os dois primeiros Godfather nem precisa citar, são eternos. Mas há os menos considerados, igualmente ótimos, como Peggy Sue e Tucker. O cineasta prefere seu filme mais radical A Conversação, que ganhou a Palma de Ouro de Cannes e é sobre um espião que surta diante da descoberta de que seu trabalho servia para causas escusas. A perda da inocência de um profissional da guerra é um aspecto recorrente do cinema americano, que coloca os heróis deslocados na volta para casa, em desgraça nos quartéis das Forças Armadas ou da CIA, em países distantes onde entram em crise de consciência.
Em Youth Without Youth, Coppola retoma o fio de suas múltiplas narrativas, apostando na inteligência dos espectadores, peitando a crítica submissa e sem nenhuma luz. Talvez seja por isso, o excesso de sombras, que tenha trazido Coppola a Florianópolis nos últimos anos, onde pretende criar projetos imobiliários, no mínimo uma casa debruçada para o mar. Que salte esta primavera, tão chuvosa e sombria e venha no verão, que o verão da ilha o espera, com camarão e tainha na brasa.
Vem, cara, que a gente nem vai te cobrar filmes de gângsters. Prometemos também nem comentar teu excelente Juventude fora de hora. Na tua presença, a gente se cala. É o que devem fazer os espectadores com juízo, quando encontram, por acaso, uma das encarnações do gênio.
RETORNO - Imagem de hoje: Tim Roth, múltiplo em Youth without youth, de Francis Ford Coppola.
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