30 de dezembro de 2004

OS PIORES DE 2004

Para fechar o ano, vamos destacar o que mais nos irritou. Foi muita coisa e foram muitos, mas tentarei fazer uma síntese para não cansar os amigos leitores.

O pior escritor: Carlos Heitor Cony, que arrancou um milhão e quatrocentos mil reais de indenização por ter sido perseguido (?) pela ditadura. Cony trabalhou décadas na Manchete, porta-voz do regime de exceção. E escreveu barbaridades sobre Getúlio Vargas e o Rio Grande do Sul em seus livros. Ganhou fácil o troféu.

O pior apresentador de TV: Gilberto Barros, da Band, que ficou cem milhões de horas no ar, o que nos provoca a pergunta: enlouquecerem os donos da Band ou nós é que estamos malucos?

A pior atriz: Marilia Gabriela, personagem de si mesma, que aparece em dose dupla em Senhora do Destino. Boquinha espichada de muxoxo pseudo aristocrático, voz anasalada de feminismo que sai pelo nariz, canastrona maior, merece o abacaxi de ouro.

O pior programa de TV: quase todos da TV aberta (que é a verdadeira TV fechada). Merecem ir para a lata do lixo. Destaque para Casseta & Planeta, Faustão, Hebe, Zorra Total, A praça é nossa, Xuxa e por aí vai.

O Pior livro: Uma Breve História do Mundo, do americano Geoffrey Blainey (Editora Fundamento), que diz que os hominídios nasceram na África e eram QUASE humanos. A raça só ficou humana, claro, quando emigrou para os países gelados de bosta deles.

Pior político: José Dirceu e José Genoíno. Pela arrogância, pela incompetência, pelo obscurantismo, pela traição, pela burrice.

Pior candidato: César Maia, que disse assustar seus netos com as aparições na TV da sua adversária Jandira Feghali.

Pior noticiário de TV: Bom Dia, Imbecil, da Globo, pela postura, pelos sofás, pelas distorções, pelas entrevistas com o poder.

Pior música: Tô nem aí, de Luka. Por se transformar, via publicidade maciça, no hino da indiferença nacional.

Pior revelação musical: Dudu Nobre, por ser tratado com estardalhaço quando não passa de um talento medíocre.

Pior rede de TV: a Bandeirantes, que abriu mão do seu horário nobre para a pregação evangélica e pela presença maciça de Gilberto Barros; o SBT, pelos seus programas horrendos; a Rede TV!, pelas baixarias; a Rede Record, pelos programas de exorcismo; a Rede Globo, por reiterar os papéis sociais de submissão na sociedade de classes e achar que está fazendo denúncia.

Pior revista impressa: Em Revista, da Aner, Associação Nacional dos Editores de Revista. Por ter colocado a foto de Caco Alzugaray dezoito vezes na sua última edição (sendo que a capa é o próprio Caco, de óculos escuros posando de alpinista e olhando para o infinito)

Pior frase : "Por que as minhas três irmãs não viraram prostitutas?" Presidente Lula, o lapidar.

Pior imagem : a dos mortos miseráveis na Ásia arrasada pelo maremoto.

Pior comercial : o da Antártica, com o Bussunda usando a camiseta encolhida e mostrando a pança.

Pior aparição na TV: Vera Fischer em Senhora do Destino, por achar que poderia interpretar o papel de uma mulher gostosa.

Pior passista: as atrizes da Globo cruzando os joelhos e rifando a bunda ao ritmo da bateria em Senhora do Destino.

Pior ator: Marcos Paulo, por achar que arregalando os olhos e olhando de soslaio está interpretando alguma coisa.

Pior novela: Começar de novo, por colocar Marcos Paulo 80% do tempo na tela, por transformar Natalia do Vale numa criatura sem graça e por desperdiçar Werner Schunemann

Pior colunista : inúmeros. Escolha o seu. Tenho uns 15.

Pior dono de jornal: Luis Fernando Levy, por enterrar a Gazeta Mercantil.

Pior entrevistador: Enjôo Soares, por entrevistar sempre a si mesmo.

RETORNO - O Diário da Fonte aceita sugestões para os piores do ano. A escolha é difícil, pela abundância.

28 de dezembro de 2004

SÓ O MAR TEM ALGO A DIZER

Maremoto é conseqüência, não causa. Foi a terra que existe embaixo da divindade salgada que resolveu tremer e jogar aquelas ondas gigantescas sobre oito países pobres, lugares onde o mar é famoso pela tranqüilidade e beleza e onde os exilados da natureza dos países ricos encontram algum refúgio e contato com todos os deuses. A praia belíssima não pode ser culpada pela tragédia. As imagens nos revelam: o paraíso virou um inferno e pôs a descoberto cidades sem esgoto apinhadas de miseráveis, enquanto os hotéis luxuosos se transformaram na mesma merda que ocultam. Só o mar, nesta virada de ano, tem algo a dizer. Aqui no Brasil, o que deveria ser uma estação de alegria e paz pelo litoral privilegiado, também virou um pesadelo: o alto volume do som execrável colocado explicitamente pelos carros aparelhados pelos tridentes do horror inaudível destroem qualquer possibilidade de reflexão, aquela sensação de sentir-se habitado diante da grandeza. Ouvir o som do mar é a solução para tanto sofrimento.

VENENO - Esses idiotas que colocam seus carros na beira da praia com seu baticum insuportável de um som envenenado acabam com qualquer paciência. Os poderes públicos e empresariais são não só coniventes com essa porcaria que entorpece os espírito e provoca desespero, como são agentes, com seus programas pretensamente culturais em que colocam música de merda emporcalhando as areias. É preciso acabar com isso, peitar essa indiferença. Chega de usufruir a miséria espiritual formatada em vidas sem sentido. O único som obrigatório é o do mar. Só ele pode falar, neste verão que começa tão bonito, depois de um inverno terrível. É preciso que se carregue para o fundo do esquecimento esse hábito que se instalou entre nós graças à demagogia de que o povo deve ter o que gosta. O que devemos ter é o respeito aos outros. Devemos ter limites, sob pena de afundarmos numa guerra sem fim. Descobri ontem que a polícia não tem dado conta das inúmeras reclamações. Não existe repressão suficiente para algo que está difundido em rede. Qualquer fedelho acha que pode colocar seu baticum no mais alto volume. Qualquer energúmeno acha que pode destruir tua paz. Pois basta. E não me venham justificar que cada um deve ter seu gosto. Coloquem então fones de ouvido e rebentem seus tímpanos. Mas nos deixem em paz, que nossa praia é outra: esta mesmo, escutando o amigo Oceano Atlântico.

PODEROSOS - Diante da televisão, vejo praias parecidas com esta onde moro sendo tragadas pelo Índico em fúria. Vejo massas de pobres batendo no peito, abraçando crianças mortas, enquanto os turistas que sobreviveram, de cabeça baixa voltam ao inferno que inventaram, os países sem natureza, sem árvores nem mar amigável. Vejo também os vaidosos voluntários dizendo que vão se superar, vão ajudar a todos com suas granas e instrumentos poderosos. Soube que o Sri Lanka, o mais pobre dos países atingidos, não foi avisado a tempo porque não faz parte do convênio sobre ondas gigantescas. Gastam-se bilhões em turismo de luxo enquanto a miséria grassa solta em toda a Ásia. Não resolvem esse martírio porque não querem. Porque gostam de ostentar luxo e riqueza e acham bonito que os outros não tenham o que comer. Não dão a mínima importância para a cultura local, as pessoas religiosas e tementes a Deus. Aqui em Floripa, no ano passado, em Jurerê internacional, uma chusma de argentinos saiu pelada nas ruas aos berros. Estavam curtindo o Brasil, o rabo do mundo. As pessoas que moram aqui sofrem no inverno para sobreviver e quando chega o verão, sem dinheiro no bolso, têm de suportar os abusos da grana solta (dinheiroduto que nunca chega à população, e quando chega é em forma de subemprego). Quem vem para cá precisa ter outra natureza: o amor ao mar e a esta ilha abençoada. Benção que é ameaçada constantemente pelas biroscas com som alto, pelas festinhas sacanas, pela gritaria geral. Um banho de mar é algo precioso. Não pode ser emporcalhado pelos bandidos de sempre.

RETORNO - A boa notícia deste fim de ano é a repercussão da lista que fiz sobre os melhores de 2004. Todo mundo curtiu, sabendo que os critérios usados aqui foram sinceros e absolutamente pessoais. Isso deu credibilidade aos destaques. Alguns deles se manifestaram nos comentários e outros por e-mail. Reproduzo alguns trechos da correspondência via e-mail a seguir:

Obrigado por entrar nos destaques. Olha só, a quem interessar possa: toda a coleção da ameop está no site da livraria pau brasil: www.paubrasil.com.br/ameopoema .Muito legal o teu texto sobre o mal - me fez muito bem. Abraço. (Ricardo Silvestrin)

Prezado Nei Duclós: Grato pela medalha que colocaste em meu peito. Não sei se sou digno, em todo o caso, recebo como um incentivo muito grande, principalmente partindo de ti. Sempre me considerei um curioso, nunca um historiador e muito menos um pesquisador;a memória foi algo que meus amigos com quem convivo, sempre elogiaram mas nunca consegui me definir como memorialista, agora achei o enquadramento para tudo aquilo o que faço com muito carinho. Quanto ao conjunto da obra, minha bagagem é mínima, cabe numa valise mas tem repercutido acima do que um dia esperei que repercutisse. As dificuldades para publicar algo são inúmeras. Bem Nei, não sei ficar amorfo às emoções e não fico em cima do muro ,por esse motivo reforço os agradecimentos pela lembrança de meu nome. No próximo 2005 terás novidades. Sigo teu leitor assíduo. (Fernando Pereira da Silva)

Meu caro Nei! Que bom fechar o ano com chave de ouro, sendo citado no teu blog como o romancista do ano! Não sei se concordo contigo, mas não podia ser melhor. Obrigado, cara. (Tailor Diniz)

Nei! Tudo de bom pra ti e pros teus neste natal e nos próximos duzentos natais que se seguirem e nos próximos e nos próximos e nos próximos. Estou aqui tramando e realizando, não parei um minuto depois do nosso último encontro. Bom, agora é hora de se embriagar e receber os presentes de natal não é hora de falar em mais nada.Depois a gente conversa. Toda a felicidade pra ti e pro teu povo! (Marco Celso Viola)

Oi, Nei. Você vai sair no Sidarta-20, com seu texto sobre cidades adotadas. Bons votos para você também E um abraço afetuoso de Sonia Coutinho

27 de dezembro de 2004

O BATICUM BERRADO DOS PREDADORES

Sinistrus Joe, o ermitão que vive na ponta de uma praia isolada, ao lado de um grande menir, me concedeu nova entrevista exclusiva e falou sobre o hábito que existe hoje de as pessoas imporem seus auto-falantes para o ouvido alheio. O que é isso? perguntei, assustado com a disseminação de uma doença social, pois o que se coloca no mais alto volume, além de ser uma estupidez, um atentando contra os outros, é o ruído insuportável de quem nada sabe sobre harmonia, melodia, arranjos, essas coisas mortas. O berreiro infernal e a bateção de lata toma conta de todo o país e Sinistrus Joe pensa um pouco antes de falar. Coça o cabelo grisalho comprido, enruga ainda mais o rosto já enrugado e solta um guincho que me assusta. O susto que deu com sua imitação de gaivota era sua resposta: É o bote animal dos predadores, diz esse exemplar perdido dos sonhos dos anos 70. Eles berram no teu ouvido, te ensurdecem para poder te matar sem resistência. O que devemos fazer? torno a perguntar.

GOLPE - Tem gente que chama a polícia, mas a praga está muito hegemônica, continuei falando. Todo supermercadinho resolve colocar um som altíssimo para te anunciar, domingo às sete da manhã por exemplo, as suas grandes atrações e descontos. Vejo pessoas puxando uma caixa de som como se fosse mala de aeroporto, com rodinhas, e de lá sai o barulhão que provoca surdez. Está tudo dominado, e gostaria de saber como sair dessa. Sinistrus foi rápido na resposta: Proclame-se presidente da república e reprima violentamente toda e qualquer manifestação que ultrapasse um nível bem baixo de decibéis, me diz. Reagi imediatamente: Golpe de estado? Não é o meu forte. Não tem saída, diz Sinistrus. Se o banana do presidente da República recebe em palácio essas duas bestas ambulantes que são o Zezé di Camargo e o Luciano, ou faz salamaleques para o Chitazó e Chororinho, se tem gente ganhando dinheiro pesado com o som horrível de shows indecentes e ilegais, então só um bom golpe de estado, diz Sinistrus, na maior calma. Fico olhando para o cara. Me parecia um sujeito decente, apesar da aparência. Achei que era democrata, mas tinha me enganado: Sinistrus, dar um golpe de estado só para evitar a violência do volume alto, só porque não tem ninguém que possa ficar numa praia ou num camping em paz sem ser atormentado por um desses carros envenenados com mil auto-falantes em série reproduzindo baticuns sem parar e berreiro pseudo sertanejo? Eles querem te mataaar, responde Sinistrus, espichando as sílabas e fazendo voz gutural. Te matar, entende? Estão te tonteando, te tirando a paz porque querem te fazer, te cortar o bucho, te estaquear no sol, e se pedires água eles te darão salmoura, entende? Só bala com essa canalha!

CANHÃO - Pensei que eras um democrata, disse eu, meio ressabiado. Ele olhou para o horizonte do mar. O problema, seu poeta, me disse com uma ponta de cinismo, é que eles usaram a palavra democracia para impor a ditadura. Existe liberdade? Então tome vagabunda rebolando a perereca em direção à garrafinha em horário infantil. Tem democracia? Então tome som bem alto de madrugada para acabar contigo. Porque rebolar o bucetão fazendo violentos movimentos pélvicos em direção a um grande pau imaginário e sacudir os glúteos e o rabo sem parar em programa para criança é um crime hediondo que merece fuzilamento. Hoje, não provoca nenhuma reação. Ninguém tem coragem de reclamar. Se alguém se dispuser a ir até o vizinho falar que o som está insuportável e não deixa ninguém conversar, dormir, existir, o animal vai rir da tua cara. Então a saída é uma só: começar a dar tiro nesses filhos da puta. É a guerra, meu amigo. Eles não vão parar senão a tiro. Eu estaria disposto a ganhar um rifle de Natal e sair atirando nesses pulhas. Aviso já que aquele baleião da TV Band, que não dá folga um segundo e toma conta de todos os espaços com sua graxa sinistra, vai ser o primeiro. Aquele paquerador de putinhas do subúrbio, aquele descontrole desumano, aquela bisca, aquele idiota que faz cara séria ao perguntar ao animalão Alexandre Frota se realmente comeu determinada atriz. Esses filhos da puta precisam levar um canhão no meio dos cornos, é o que estou te falando.

BIROSCA - Muita violência, disse eu, reagindo à explosão de fúria de Sinistrus Joe. Nem sabia que ele via televisão. Via. Fugia às vezes para uma birosca à beira mar, onde aturava o som alto para olhar um pouco de TV, só para matar o tempo. Mas voltava correndo para sua cabana. Lá ficava remoendo idéias da revolução. Foi sempre assim o velho Sinistrus. Ele nunca desistiu de uma boa guerrinha.

23 de dezembro de 2004

OS MELHORES DE 2004



Todos fazem listas de fim de ano, normalmente tendenciosas e repetitivas. Fiz também a minha e espero que encarem os destaques como eles são: o que há de melhor, de fato, no Brasil que se insurge contra a ditadura cultural, financeira, dos costumes e da mídia. Todos os citados abaixo ganham, desde já, o prêmio de reconhecimento pela valiosa contribuição ao resgate da liberdade. Cada categoria comporta quantos nomes eu quiser e bem entender (acreditem, é assim que se faz em qualquer concurso).

LITERATURA

Melhor romance: Pampa em 23, de Ubirajara Raffo Constant
Melhor romancista: Tailor Diniz, pelos livros Um terrorista no pampa e o inédito A vampira do lago
Melhor livro de poesias: Poemas para ler em voz alta, de Marco Celso Viola e A construção das ruínas, de Carlos Eduardo Caramez
Melhor poeta: Colmar Duarte
Revelação do ano: Daniel Duclós, pelas Short Stories
Melhor autor (o que transcende categorias e inventa novos autores): Cláudio Levitan, pelo conjunto da obra
Melhor cronista: Urariano Mota, por seus textos no La Insignia
Melhores crônicas: Jussara Aymone, por suas descrições da cidade de Libres
Melhor memorialista: Virson Holderbaum, por Histórias do tempo da pedra (em processo e inédito) e Fernando Pereira da Silva, pelo conjunto da obra (publicada).
Melhor Promessa: Rubens Montardo Junior (poemas) e Ricardo Peró Job (contos)
Hors Concours: Tabajara Ruas e Raduan Nassar (ficção) e Luiz de Miranda (poesia), pelo conjunto das obras; J.A. Pio de Almeida, pelo conjunto da obra (prosa e poesia).
Melhor livro de ficção inédito: Memórias Póstumas de Gim Tones, de Fabio Murakawa; Quando alegre partiste, de Moacir Japiassu, as duas mais importantes obras ainda ocultas da literatura nacional
Melhor projeto editorial: Ricardo Duarte, por Perico El Bailarín, monumental obra ainda inédita sobre a formação da civilização do pampa.
Melhor contribuição ao romance: Elo Ortiz, pela participação de trechos das suas memórias no romance Universo Baldio.
Melhor ensaio: Os loucos anos da ditadura, de Urariano Motta

ARTE

Artista do ano: Ricky Bols, pela obra exposta na Internet
Edição de arte: Luiz de Moraes, pelo projeto gráfico da nova Revista da Indústria; Gustavo Cabral, pela edição de arte da revista Empreendedor
Revelação: Juliana Duclós, pelo conjunto de edições de arte na imprensa de Búzios
Produção gráfica: Daniel Del Fiore, pelo conjunto da obra na Fiesp

INTERNET

Melhor site: Consciencia.org, de Miguel Duclós, pela importância e impacto na disseminação da filosofia em língua portuguesa; Jornal da Poesia, de Soares Feitosa, pela democratização do acesso aos trabalhos de milhares de autores; La Insignia, pela diversidade de autores e contundência do conteúdo
Melhor blog: Tony Monti, pela experimentação constante e pela difusão das memórias; The Dude´s talk, de daniduc, pela interatividade criativa e pela intensidade do conteúdo; Vera Ione Silva, pela exposição da obra da escritora e pelo apurado projeto visual.
Melhor revista virtual: Sagarana, de Julio César Martins, revista cultural brasileira escrita em italiano e editada em Lucca, pela grandeza do conteúdo, pela seleção de autores e pela revelação de inúmeros escritores inéditos
Melhores estréias na rede: Beth Toth e Ana Viola, com seus blogs
Melhor coluna virtual: Jornal da ImprenÇa, de Moacir Japiassu

IMPRENSA

Melhor caderno cultural: Mais!, da Folha
Revelação de reportagem: Fabio Mayer, Aleksandro Vanin, Cleia Schmidtz e Wendel Martins, da Editora Empreendedor, de Florianópolis
Revelação de editor: Odair Rodrigues, da Fiesp/Ciesp
Melhor editor: Dorva Rezende, do Diário Catarinense e Jésus Gómez do La Insignia
Melhor jornalista cultural: Juarez Fonseca, pelo conjunto da obra
Melhor revista impressa: Aplauso, de Porto Alegre
Melhor jornal impresso: Folha do Norte da Ilha, de Florianópolis
Melhor jornal virtual: Diário da Fonte, que chega às 400 edições
Melhor repórter: Delmar Marques, pelo conjunto da obra
Melhor repórter da mídia virtual: Paulo Paiva, de Brasília, pela difusão de informações via e-mail
Melhor jornalista multimídia: Luciana Felix, pelo seu trabalho na W11 editores
Melhor editorialista: Laerte e Angeli
Revelação de mídia impressa: revista Fronteira, da Secult (Secretaria de Cultura) da Prefeitura de Uruguaiana

EVENTOS

Evento mais importante: Feira do Livro de Porto Alegre e Feira do Livro de Uruguaiana
Acontecimento do ano: a saída de Daniel Del Fiore da Fiesp e de Miguel Ramos da Câmara de Vereadores de Uruguaiana (que soltam para o mundo dois talentos imprescindíveis do Brasil soberano); a aposentadoria merecida de Elisa Santos, depois de uma vida profissional dedicada à Fiesp.
Melhor lançamento de livro: Universo Baldio, da W11, na Fnac, SP no dia Primeiro de abril de 2004; Editora Ameop, de Ricardo Silvestrin e mais 14 poetas, na Feira do Livro de Porto Alegre. Melhor celebração: dois anos do Fotogarrafa, blog de Marcelo Min
Melhor assessoria: Luciana Felix, da W11 Editores e Marilda Job, da Secult da Prefeitura de Uruguaiana

MÚSICA:

Melhor músico: Bebeto Alves, pelo conjunto da obra
CD: Boa Maré, de Raul Elwanger
Melhor evento: Califórnia da canção nativa, de Uruguaiana
Hors Concours: Muts Weyrauch, Zé Gomes e Claudio Levitan

FOTOGRAFIA

Melhor fotógrafo: Marcelo Min (pela revolução no fotojornalismo e a coragem ao enfrentar os mastodontes da ditadura), Helcio Toth (pela inventividade artística) e Regina Agrella (pela surpreendente sucessão de olhares urbanos e rurais); Anderson Petroceli, pelo conjunto da obra.

RELAÇÕES HUMANAS

O mais solidário: Virson Holderbaum
O mais anfitrião: Anderson Petroceli
O amigo que retorna: Tabajara Ruas
O amigo vocacionado: Marco Celso Viola
O amigo concentrado: Daniel del Fiore e Luiz de Moraes
O melhor reencontro: Cláudio Levitan
Revelação de amizade: Julio Conte e Dorva Rezende
O mais providencial: Dorival Jesus Augusto (Hífen), Clovis Eberle (Zero Hora), Elisa Santos (Fiesp) e Acari Amorim (Editora Empreendedor)
O melhor comentário: Jorge Freitas, Jupisa e José Renato Faria

TEATRO

Melhor dramaturgo: Julio Conte, pelo conjunto da obra
Melhor ator: Miguel Ramos, pelo conjunto da obra

TELEVISÃO

Melhor humorista: Tom Cavalcanti, da Record, pelo quadro O Infeliz
Melhor ator: José Wilker, como Giovanni, em Senhora do Destino
Melhor atriz: Luana Piovani por sua participação no Casseta & Planeta
Melhor programa: Galpão crioulo, da RBS; Globo rural e A grande família, da Globo
Melhor narrador esportivo: Luciano do Vale, da Record, pela narração da Copa européia
Melhor jogo transmitido: Santos x Flamengo, pela Globo
Melhor repórter: Caco Barcelos, pelo conjunto da obra

POLÍTICA

Melhor candidato: Jandira Feghali, do Rio de Janeiro
Melhor prefeito com foco na cultura: Caio Repiso Riela, de Uruguaiana
Melhor prefeito focado na limpeza pública: Ângela Amin, de Florianópolis

RETORNO - Esta lista foi lançada dia 23 pela manhã, mas ficou mais completa ao longo do dia. A versão de horas atrás pode não ser a mesma de agora. Cada atualização apenas acrescenta nomes e categorias, conforme a memória vai sendo ativada.

22 de dezembro de 2004

O MAL QUE AS PESSOAS NOS FAZEM

O mal nem sempre é consciente, pode ser oculto, como um espinho encravado. Ele gruda em ti como um instrumento de feiticeiro enviado à distância para te matar. O objetivo desse mal é dispor de ti como um pedaço de pão. Querem tudo e tudo tomam, e ainda se ofendem quando reagimos, quando nos damos conta que estamos sucumbindo à miséria alheia. O mal que as pessoas nos fazem, especialmente as mais próximas, têm endereço certo: te eliminar para sempre, mas antes usufruir cada gota de sangue que dispomos. Os cretinos dirão: quem manda ser trouxa. Tua consciência diz: não havia outro jeito, pois o mal se serve da chantagem para manter-se e disfarça-se de humano para te encher de culpa. Esse é o mal que pega e está por toda a parte.

VIDRO - Lembro que nosso galpão dos fundos ficava às vezes completamente vazio. Era usado para estocar bolsas de arroz ou trigo e nessas bolsas brincávamos de mocinho e de esconder. O divertimento era uma dupla levantar um saco (que tinha normalmente 60 quilos) e um atirador ficava de plantão, com um pedaço de madeira grossa na mão e o braço no alto, em posição de ataque. Debaixo dos sacos saíam aos borbotões os ratos que eram nosso alvo. Alguns de nós se especializavam no ofício e acertavam de primeira, mesmo que a vítima tivesse extrema agilidade e subisse pelas montanhas empilhadas, que enchiam o galpão até o teto. Nas alturas, gostávamos de olhar pelas pequenas janelas que davam um pouco de ar para o ambiente normalmente muito fedorento. Era nosso play-ground. Pois quando estava vazio, no chão de concreto jogávamos futebol, em partidas disputadíssimas. O local tinha grande vantagem: a bola jamais se perdia, batia na parede e voltava para o ringue. Às vezes inventávamos brincadeiras de saltar, para ver quem era o melhor. Lembro que um dia não queriam que eu participasse dessa olimpíada, que juntava grossa meninada da região (ou da zona, como dizíamos, o que nada tinha a ver com a putaria). Como jamais me conformei com a exclusão, insisti. De má vontade, eles aceitaram, mas com uma condição. Eu deveria saltar e colocar o pé, na queda, bem em cima de um vidro pontudo, colocado por eles no meio do galpão. Lembro que fiz exatamente o me mandaram. Fui correndo, dei o salto e coloquei o pé no vidro, o quer provocou grande quantidade de sangue. Por que fiz isso? Porque aceitei o mal, queria ser incluído, então fiz o que me mandaram. Quem manda ser idiota, mas era assim que minha cabeça funcionava. Eu não encarava o gesto alheio como o mal, simplesmente aceitava as regras.

RASGO - Como escapar desse mal? Assumi-lo, ser um deles, fazer o mesmo, retaliar? Nunca pensei assim. Prefiro o canto confortável da cabeça bem resolvida, pois preciso dela para o trabalho e a literatura. Faço histórias desde sempre. Muitas vezes as narrativas se insurgiam e o revólver do mocinho, para meu desespero, tornava-se maleável e não obedecia aos meus comandos. Precisava desistir da bobagem em que estava pensando, sair do quarto, ganhar o quintal e lá...enfrentar novamente o mal que estava pronto e disposto para o proveito completo. Para fugir da armadilha, confundia as coisas: tudo o que eu fazia bem e era, enfim, aceito, me colocava a pulga atrás da orelha. Se estão gostando é porque estou fazendo errado, raciocinava. Então, de goleiro exímio que fui (fruto da minha exclusão, pois não me deixavam jogar no ataque), exigia ir para a linha, fazer gols. Claro que não conseguia, e voltava para minha posição. Foi assim quando encontrei minha linguagem poética, a partir do poema Outubro. Desconfiei que estava sendo aceito demais e parti para a transgressão. O resultado foi um monte de asneiras em forma de poesia, que quando chegou às mãos do meu pai, foi rasgado por justa causa. Voltei então ao que sabia fazer bem. Mas também passei por um longo tempo sem produzir nenhum poema, desviado de mim pelas contingências que me perseguem desde a infância. Para agradar os outros, me podei até o osso e implantei no rosto e no corpo uma não-identidade. Disso me escapei há vários anos, mas até hoje as marcas desse exílio me assombram.

BANDEIRA - Fazes tu o mal contra ti mesmo, dirá a literatura de auto-ajuda, essa que medra na economia globalizada, que terceirizou todas as responsabilidades, tirou a culpa do sistema e colocou no indivíduo, dizendo: se virem, morram enquanto é tempo. Acho que não, o mal é os outros que nos impingem. Somos do bem, nascemos nele e nos transformamos em monstros devido a esse cerco da inveja. As pessoas gostam de repartir o próprio inferno e nele embarcamos com tudo. Vejam o que acontece com o Brasil, hoje o rabo do mundo. Um fundo de grana de origem polêmica (como atestam inúmeras reportagens) adonou-se do patrimônio nacional que é o Corinthians (sintoma do sucateamento do futebol brasileiro, que começou vendendo os craques e hoje está na feira exposto como um frango assado). A primeira coisa que a nova parceria fez foi gastar 50 milhões de dólares num jogador argentino, que com o maior desplante disse na primeira entrevista que acha Maradona maior do que Pelé (cate-se, imbecil). Vejam a foto publicada na capa da Folha num encontro desses entre estadistas de estádio, mostrando o Kirchner colocando o dedo na cara do baixinho Lula. O presidente argentino faz gato e sapato do Mercosul, impõe o que quer e tudo aceitamos com o bico calado. Por que? Porque queremos agradar os milongueiros, os pernas-de-pau que celebram seus gols como se tivessem cometido um assassinato (fechando e sacudindo freneticamente os punhos, fazendo caras de extremo gozo sofrido e enfunando as bolas). Eles não perdoam o país pentacampeão do mundo. A culpa é nossa, claro, dirá a literatura de auto-ajuda. A culpa é da entrega do Brasil à sanha estrangeira. No Casseta& Planeta desta terça-feira, uma prostituta negra vestindo a bandeira do Brasil negociou o michê com o Papai Noel, que ofereceu como pagamento brinquedos como bicicletinhas. Trata-se de uma canalha imperdoável. São o mal explícito, que entregam a soberania na parte mais sensível, o imaginário do país. Como é que coisas como o tal de Xandy, que tem no seu currículo o rebolar constante da genitália e um casamento com uma starlet do Tchan, tomou todos os espaços da televisão, enquanto amargamos a ausência dos nossos grandes músicos? Assim como Xandy jamais deveria ocupar o espaço que ocupa, os tais Cassetas deveriam sair da tela, pois expressam o desprezo ao país e ao povo. Censura? Não, defesa própria. O Brasil é o rabo do mundo, mas isso não pode ficar assim.

RETORNO - 1. O programa Casseta colocou também o Papai Noel na praia e isso jogou um balde de água fria no meu conto de Natal. Mas continuo outra hora. 2. Fernando Pereira da Silva me envia mensagem ponta firme dizendo-se leitor assíduo do blog e viajando nas memórias que são nossas. Fez valiosa correção ao me lembrar que o apelido do Walfrido não era Papagaio, mas Rato. 3. Virson Holderbaum me liga e agradece publicação do trecho das suas memórias aqui no DF, o que já causou entusiasmada recepção entre pessoas chegadas que se identificaram com a viagem do nosso Conde Holderbaum. 4. Apesar de render-se ao Xandy, Tom Cavalcanti é hoje o mais importante artista da televisão brasileira. Sua denúncia sobre a sociedade de classes no quadro O Infeliz e na sua hilária imitação do Clodovil já fazem parte da antologia da telinha. Tom mostra que a aldeia global, tão celebrada antigamente, faz jus ao nome: é uma aldeia medieval, cheia de escravos, com alguns senhores (de todas as nacionalidades) chicoteando.

21 de dezembro de 2004

PAPAI NOEL VAI À PRAIA (I)


O lugar onde mora Papai Noel foi totalmente transformado pelas consultorias. Hoje é um espaço subterrâneo informatizado e asséptico, que alcançou a excelência de resultados graças à interferência do terrível Glork, o duende de orelhas em garfo, que trancafiou no porão todos os fazedores de brinquedos antigos e transformou o Pólo Norte numa central de merchandising e de uso do nome ilustre do velhinho. Glork e seus poderosos asseclas, os guarda-raios Stomps, dominam com mãos de aço temperado o que um dia foi uma bucólica fábrica de sonhos. Papai Noel vive nesse ambiente hostil, mas resguardado por sua antiga casinha, que não sofreu nenhuma mudança. É uma construção tosca de madeira, que vive fechada, cercada por um hangar de amianto luminoso. Lá, Papai Noel vive com a esposa, sempre acamada. Tem acesso a televisão a cabo, com canais que passam seus filmes favoritos, todos sobre o Natal. Dedica-se às esculturas com madeira dura, criando coisas com seu muque e pensando em como escapar dessa arapuca.

FUGA - Ele escuta os gritos vindo dos antigos companheiros, que manifestam mais desespero nesta época do ano. Lembra que foi inventado como o benfeitor das crianças pobres, as que não tinham pais para comprar brinquedos. Entrou nessa demanda explícita com seus bons sentimentos, mas o que aconteceu foi o contrário. Como não pode mais atender o pobrerio, ele assiste, calado, as consultorias fazendo charme em cima da miséria, contratando celebridades que levam ninharias para criaturas famintas em casas de taipa e barro. Tudo vira lixo já no Ano Novo e Papai Noel suspira de ansiedade. Sua única distração é criar a rena do tamanho de uma boneca, feita de angelim, a madeira mais difícil de todas. A rena tomou forma alguns dias antes do Natal e estava linda demais para ficar prisioneira no Pólo Norte. Era macia ao toque, apesar da madeira granítica. Tinha pequenos galhos sobre a cabeça bem feitinha. As patas eram uma graça e o dorso e o pescoço formavam um desenho da mais pura inspiração. A beleza do trabalho convenceu-o a dar um basta naquilo. Decidiu que sua mulher não estava tão doente assim, deixou sopa e chá prontos e mais alguns quitutes para ela ir levando a vida na sua ausência e abriu a porta. O que viu deixou-o arrasado. Havia apenas um vasto espaço vazio e lá no fundo, a nave eletromagnética que Glork usava para fazer seus contatos milionários em todas as partes do mundo. Ultimamente tinha trocado o licenciamento do nome de Papai Noel no Industão por um harém de asiáticas, pois o terrível duende estava experimentado todo o tipo de prostituição étnica. Ele usava as garotas e depois as distribuía para os Stomps, que faziam orgias diante dos envergonhados artesãos trancafiados. Sorte que Papai Noel viu que a nave estava com a escada descida, fruto do desleixo a que se entregara sua empresa depois que conseguira o título de ISO 2 milhões e cinco. Ele aproveita a deixa e some num grande cobertor de níquel pressurissado, usado para carregas prostitutas e que estava sobrando num dos compartimentos. Não demorou muito para que os bandidos assumissem o comando da nave e teclassem os movimentos que os libertariam do Pólo Norte em direção a alguma cidade devassa, onde fosse possível negociar dinheiro e mulheres. Papai Noel aproveitou para dormir e de vez em quando descobria a cabeça para vislumbrar a lua crescente.

ILHA - Desceram, claro, no Rio de Janeiro, lugar de muitas possibilidades de negócios. Aportaram numa praia inacessível para os banhistas, e que era reservada a iates fogosos e negociantes fajutos. Lá Glork e seus guarda-raios iriam encontrar distração. Mas Papai Noel não queria ficar li. Escapuliu como pôde e caminhou até a estrada. Levava no ombro um pequeno saco com sua rena favorita. Queria dar aquele presente para alguém realmente necessitado, longe dos programas de falsa caridade. Pegou carona num pau-de-arara que tinha vagas porque alguns ocupantes morreram no trajeto entre o Nordeste e o Sul. Cruzou o Rio de olhos fechados e só abriu um pouco para matar as saudades do Cristo Redentor iluminado. O caminhão caindo aos pedaços pegou a estrada novamente e dirigiu-se aos campos férteis de soja que tornaram aquela parte do País um deserto verde. Todos iam para a colheita para conseguir sobreviver mais alguns dias. Na altura de Florianópolis, ele desceu, despediu-se dos companheiros de viagem, todos esquálidos modelos de Portinari, e caminhou em direção ao norte da ilha. Lá, sua intuição lhe dizia, iria encontrar alguma criança pronta para ganhar seu presente valioso.

ANSELMO - Dirigiu-se a uma das pontas da praia de Ingleses, que abriga pequena comunidade de pescadores, que fica em frente a um bairro construído sobre as dunas e que é conhecida como favela do Siri. Papai Noel estava cansado da viagem. Arregaçou as calças e colocou os pés nas ondinhas da praia. Da areia brotou um garoto, que se dizia chamar Anselmo, e que estava entretido em levantar uma pipa que ele mesmo construíra. Enquanto fazia o brinquedo voar, olhava de lado para o velhinho muito branco, muito gordo, de escasso pescoço, com rugas profundas, cabelos ralos que lhe desciam até os ombros. Parecia um pingüim saído de uma geladeira. Não foi difícil para nenhum dos dois entrarem em contato. Começaram a falar dos ventos, que vivem fazendo travessuras naquela ilha. Comentaram então, sem entrar em detalhes técnicos nem na nomenclatura específica, em aerodinâmica, em aprender a voar, em permitir que coisas mais pesadas do que o ar flutuassem. Foi então que Papai Noel mostrou pela primeira vez a Anselmo a rena que trazia escondida no saco. Foi um deslumbramento. O pequeno objeto em forma de animal expelia algumas estrelas cadentes, que brilhavam naquele fim de tarde. Anselmo tocou no presente como se estivesse habitado por mil gaivotas mágicas. A pipa, sem atenção do menino, começou a rodopiar e a cair. Papai Noel deixou o garoto entregue ao seu embevecimento e tomou a rédea da pipa. Conseguiu mantê-la à tona e amarrou-a a uma pequena pedra que tinha na praia. As coisas começavam a acontecer de verdade.

RETORNO - Como é o segundo ano que faço isso (em 2003 foi o trepidante Trolé e o Gafanhoto Mutante), posso dizer que Papai Noel Vai à Praia faz parte de uma tradição do Diário da Fonte: o conto inédito de Natal. Amanhã, a continuação. Leiam para as crianças. Vamos ver se passo no teste.

20 de dezembro de 2004

A VOLTA NA QUADRA

Quarteirões em quadrados perfeitos, ruas e calçadas largas: a engenharia militar da República do Piratini engendrou a lógica na geografia urbana da minha cidade. Foi essa lógica que me salvou numa tarde sinistra do alto verão, quando eu e meu irmão Luiz Carlos enfrentamos a fúria de um morador da nossa rua, aposentado compulsoriamente devido aos nervos, e que repousava em casa saído de uma corporação das Forças Armados, acredito que tenha sido a Marinha. Nós dois não devíamos ultrapassar os cinco anos de idade. Até hoje esse acontecimento mostra-se nítido em minha memória, já que foi minha primeira experiência com o horror.

MURO - Morávamos na esquina generosa numa grande casa, dois quintais e um galpão de alvenaria nos fundos (tudo continua lá até hoje). Fomos até o meio da quadra para visitar dois moleques impossíveis, famosos por suas artimanhas e possuídos pelas mais loucas idéias predatórias. Talvez nossa visita tivesse sido incentivada por alguém que ficara encarregado de cuidar de nós (o que era sempre um transtorno) e que não nos suportava, especialmente naquele dia de verão intenso. Fomos sós até os garotos e lá ficamos a tarde toda. A ocupação não era bem uma brincadeira: era armar uma situação insuportável, pois fomos convencidos pelos anfitriões, tão minúsculos quanto nós, que aquelas grandes pedras do quintal, as quais não conseguíamos levantar sozinhos, só em duplas, deveriam ir direto para ao pátio do vizinho, o perturbado militar aposentado. O muro que separava as casas era alto e exigia um esforço tremendo dos pirralhos, completamente motivados com aquilo que parecia uma travessura, mas era uma ação perfeita que obedecia à nossa lógica irrefutável, de que o patrimônio ao lado deveria sentir a força das nossas baterias assestadas de pedras enormes. Do lado de lá, havia alarido de grande passarinhada, pois esse era o hobby do senhor imerso no seu recolhimento doentio, já que jamais ficava sossegado, estava sempre fazendo algo, vestindo calções com camiseta branca regata, dessas que se usam em quartéis. Talvez a idéia fosse destruir todos os passarinhos, pois naquela época os gorriões (ou pardais, como diziam os bundinhas da capital) faziam a festa nos cinamomos plantados em todas as ruas e nos esmerávamos em bodoques mortais, só para treinar pontaria. Não éramos flor que se cheire. E se os moleques vizinhos nos desafiavam a jogar os pedregulhos era porque isso deveria ser feito obrigatoriamente. Não poderíamos recuar. E por que os passarinhos, apesar de engaiolados, faziam tanta algazarra? Naturalmente porque estavam pedindo não nossas bodocadas comuns, mas algo mais portentoso, mais animal.

AMEAÇA - Ficamos nesse faina por horas a fio. Liberamos uma série de pedraças e jogávamos fazendo um-dois-três na hora do esforço supremo de atingir a passarinhada barulhenta. Quando já estava escurando (verbo que meu medo ágrafo inventou naquela época de férias de verão do pré-primário) ouvimos a voz do dono dos passarinhos, visivelmente contrariado com nosso abnegado trabalho. O cara era forte, moreno, usava bigode (todos usavam bigode naquela época) e postou-se na calçada com um grande facão a tiracolo, ameaçando arrancar com o fio da sua espada de São Jorge nossos trêmulos passarinhos de carne que guardávamos por baixo dos calções, no mais absoluto terror pela perspectiva de perdê-los para sempre. Mataram meus passarinhos, agora vou cortar o passarinho de vocês, dizia, decidido, a vítima inconsolável. Ele falava à meia voz, para ouvirmos, e para que ninguém mais ouvisse, pois poderia chamar a atenção pela barbaridade que cometia logo contra nós, pirralhos absolutos de côcos raspados e olhar arregalado de um medo que jamais senti mais intenso. Em meio ao susto e ao espanto, ficamos a confabular. Foi quando Luiz Carlos, futuro engenheiro e empresário precoce (organizava todas as quermesses inventadas para arranjarmos dinheiro)teve a mais brilhante das idéias : Vamos dar a volta na quadra!, disse ele, e isso me encheu de pavor.

CORRIDA - Dar a volta na quadra, coisa que nunca fizéramos antes, era a aventura mais louca que se poderia imaginar. Para mim, mas não para a lógica certeira do meu irmão, que sabia que a quadra era quadrada e que, se fôssemos em direção oposta à nossa casa, dobrando todas as esquinas, daríamos nela inapelavelmente. Para Luiz Carlos, isso era de uma transparência absoluta, tudo fazia sentido. Fugiríamos do algoz que obstava nosso passo em direção ao refúgio familiar, pois ele ficava exatamente no caminho, de plantão na calçada, andando de um lado para o outro, certo de que em algum momento (antes do por-do-sol!) teríamos que passar por ele e aí seríamos vítimas do nosso próprio crime. Luiz Carlos preparou meu espírito, pois eu nunca acreditei em lógicas matemáticas nem em geometrias. Ele tinha tudo isso no DNA e na vocação e por isso tomou a dianteira. Segui meu irmão de língua de fora, segurando o choro pois não poderia explodir antes que o plano desse certo. O algoz não foi atrás de nós e se foi, desistiu, pois, pirralhos inclementes, éramos azougues na corrida e chegamos fácil até o primeiro round, a casa da Generina! (Vi na minha visita recente a Uruguaiana que essa vasta mansão de esquina, propriedade da senhora famosa por ser muito pão dura, foi demolida). Fizemos a primeira dobra na Generina e fomos em frente. A próxima esquina estava, para nosso tamanho de pulgas, quilômetros à frente. Mas chegamos lá e dobramos novamente. Nessa altura o bairro perdia seu status de classe média-média e descia um degrau da escala social. Tudo era desconhecido. Estranhos passavam indiferentes por nós. Mas avançamos decididos até a terceira dobra, quando desembocaríamos na rua de pedra, o último round.

PICOLÉ - Sorte que aquela quadra era mais conhecida. No fim dela, onde nos encontrávamos, morava o Morocho, exímio violinista e seus dois filhos, amigos nossos. Depois, o temível Walfrido, o perigoso Rato (obrigado, Fernando, que me corrigiu) que, pelo menos, era nosso aliado. Em frente ao Rato havia a pacata Dona Noêmia, com chão batido na frente, onde morava a família dos Da Nova, exímios sambistas da escola supercampeã Os Rouxinóis. Quando passamos zunindo pelos Da Nova, palmilhamos o milagre: já era a nossa calçada! Fui porta adentro aos prantos, sentindo dor terrível no lado direito da barriga, achando que não fora a corrida que tinha me esbugalhado o corpo, mas a sobremesa ( uma marmelada!) que comera antes de fazer a visita fatídica. O escândalo estava armado, mas não lembro se contamos toda a verdade. O episódio na minha memória termina aí. Luiz Carlos provou que seu plano era infalível e com isso me salvou. O ângulo reto foi a solução encontrada pelo irmão iluminista, enquanto o emocionado barroco destruidor de aves engaioladas amargou o maior susto da sua vida. Quem mandou perseguir passarinhos, insistir em más companhias, afastar-se da casa paterna, aprontar uma cabeluda quando o mais prático seria esperarmos a carrocinha do picolé chegar, para que a festa da tarde fosse perfeita?

18 de dezembro de 2004

A PRIVATIZAÇÃO DA SOBERANIA



Existem dois planos de distribuição de renda em massa no Brasil: o funcionalismo público e a aposentadoria. O primeiro ainda está em fase de sucateamento e o segundo foi arrochado até o osso. A idéia é simples e eficiente: transferir em rede, para a maior parte da sociedade, o grosso do dinheiro gerado pela população ativa. Tudo o que foi dito e feito contra esses dois planos atendem aos interesses do tubaronato nacional e à estratégia estrangeira de dominação do país. O instrumento mais fundo contra essa evidência é a desmoralização e o deboche. Tudo o que é dito e feito a favor dessa mega distribuição é tratado como algo obsoleto e prejudicial ao país. Não basta privatizar, ou seja, entregar de mão beijada, a troco de uma percentagem para meia dúzia de espertalhões, tudo o que o país construiu em gerações de suor e sangue. É preciso atacar no osso, ou seja, produzir excrescências como o programa Os Aspones, da Rede Globo (logo ela!, que vive do dinheiro público e por isso tenta eliminar a concorrência).

EXCELÊNCIA - O descalabro privatizante, além de revelar alguns banqueiros emergentes envoltos em nuvens de ladroagem explícita, como atestam inúmeras reportagens da Carta Capital, cobra os tubos pelos serviços essenciais, como é o caso da telefonia (alvo de auditoria recente), ou do lixo e o transporte (fontes de corrupção permanente, em que se sobressaem os pedágios escorchantes que contrariam o livre direito de ir e vir). Em comparação a esse horror, o funcionalismo público tornou-se um ninho de excelência (as exceções, ou seja, os altos salários injustos, precisam ser combatidos, assim como a ineficiência que existe em várias repartições não deve servir de álibi para a crítica sem critério). A saúde pública, apesar de tudo, dos gargalos e da falta de verba, é uma solução muito melhor do que muitas clínicas particulares, limitadas pela sede do lucro (não falo de grandes hospitais privados, reconhecidamente eficientes). Basta ver onde os grandões se tratam: no Incor, de Sampa, claro, hospital público que salva vidas diariamente. Os funcionários públicos estão a serviço da população e fazem parte do patrimônio da nação soberana. Por isso é um crime hediondo ligar a ineficiência e o desperdício a uma repartição, como faz o programa Os Aspones, em que a maldade dos autores e atores são confundidos, na maior cara de pau, com os serviços públicos. A reclamação oficial contra o programa já foi feita pelos próprios prejudicados, mas cabe aqui ressaltar um aspecto importante: Os Aspones faz parte de uma campanha maciça contra o Brasil, capitaneado pela televisão, essa vitrine explícita da bandidagem da nossa época. Logo depois da porcaria em forma de programa, eis que o Jornal da Globo exibe uma matéria sobre os arquivos da ditadura e aproveita para desancar, claro, o governo getulista. É tudo muito simples: Getúlio Vargas transformou o Brasil de devedor internacional em credor. Participou, vitorioso, da Segunda Grande Guerra e isso foi usado contra seu grande governo. A entrega da soberania começou logo em seguida, tornou-se tendência dominante no governo JK e se consolidou em 1964, que destruiu o país.

SUCATA - O truque é conhecido: a ditadura civil/militar de 1964 a 85 sucateou grande parte dos direitos trabalhistas (estabilidade no emprego, por exemplo) e o funcionalismo público (onde estão hoje os ferroviários, vasto contingente do povo que tinha salário e dignidade, ou mesmo os trabalhadores do serviço público da limpeza?). Endividaram o o Brasil até o osso, plano bem sucedido de pessoas nocivas como Roberto Campos e Delfim Neto. Sucateou mas não conseguiu destruir de vez. Isso coube à chamada Nova República, que nada mais é do que a ditadura consolidada sob o falso aparato de uma pretensa democracia (com endividamento crescente, pobreza e violência dominantes numa economia totalmente voltada para os interesses estrangeiros). Como algo restou, é preciso completar o serviço. Primeiro, dizer que o funcionalismo público sempre foi uma vergonha para o país e a origem disso é o governo getulista. Não se leva em consideração que a ditadura feriu de morte o país e junto com ele o próprio funcionalismo público. A ditadura de 1964 é o oposto dos governos getulistas de 1930 a 1954. Quem faz parte de 64 são os que hoje denunciam Getúlio Vargas e colocam a culpa do nosso atraso naquele tempo em que havia paz no Brasil soberano.

REPARTIÇÃO - Meus pais se conheceram no Centro de Saúde de Uruguaiana. Meu pai desistiu da carreira, mas antes disso foi um fiscal de saúde eficiente, comprando briga com inúmeros transgressores. Voltou-se para a iniciativa privada e montou vários negócios. Acabou pobre, sustentado pela aposentadoria. Minha mãe trabalhou até se aposentar. Fazia parte da equipe que cuidava da saúde da população e lutou a vida inteira contra doenças endêmicas como a tuberculose (que está de volta!). No início da carreira, era visitadora pública, ia até a periferia ensinar noções de higiene, aplicar injeções e vacinas. Fazia parte do front da luta pela Higiene e Saúde, obra do governo Getúlio. Quando os negócios do meu pai iam mal, o seu pequeno salário de funcionária pública sustentava a casa. Tinha uma simpatia: guardava todo o dinheiro do mês por 24 horas. Isso lhe dava tempo para pensar em como gastar com parcimônia, apenas no que era considerado fundamental. Um dia antes de morrer, sabendo que eu estava duro e teria que pedir dinheiro emprestado para poder voltar, me abraçou e me olhou fundamente e deixou-me uma surpresa. Depois do enterro, minha irmã veio com o dinheiro da passagem e me disse: a mãe mandou te entregar. Essa era a funcionária pública que gerou sete filhos e morreu na glória de Deus, em paz com a consciência, depois de uma vida curta (62 anos) dedicada ao povo ao qual pertencia. Por isso quando fazem campanha contra o funcionalismo público estão faltando com o respeito às minhas origens e à minha formação. Aprendi a ler e escrever num colégio público, fui salvo mais de uma vez por médicos da saúde pública e tenho pelo funcionalismo nacional a mais alta consideração. Honra e glória aos heróis da pátria.

17 de dezembro de 2004

O NOME DA INFÂNCIA É VERÃO

Naquele tempo, havia paz no Brasil soberano. O calorão tomava conta das tardes à espera da carrocinha do picolé e os parentes vinham de longe para encher a casa. Os pais nos olhavam de maneira diferente, pois pegavam carona nos comentários dos que chegavam e que estavam longe das rotinas do ano enfim entregue aos braços do destino. As noites tinham todas as estrelas e reproduzíamos no chão, com buscapés, os cometas que às vezes cruzavam o céu. Eram estrelas cadentes, mas nós gostávamos de acreditar que eram cometas. A grande eletrola tocava Liberace interpretando clássicos, música mexicana da boa, bem gritada por Miguel Aceves Mejia e música orquestrada com todas as canções maravilhosas que se perderam no espaço. O verão era a vez da infância, que dominava as árvores, as praças e os quintais. Pés no chão, bola de meia ou de couro e roupa de linho branco para celebrar os domingos.

GUARANÁ - A casa virava um acampamento. Dormíamos em colchões dispostos como num quartel, sob chuva de travesseiros. Os quartos perdiam a identidade e a copa se enchia de muitas sessões de almoço e jantar. Falava-se alto e quando chegava a noite de Natal comíamos salada de fruta com guaraná champagne, gelatina recheada com doce de pêssego e merengue em cima (a sobremesa predileta de minha mãe), taças de vinho e quando ficávamos mais taludos, uns tragos no uísque Cavalinho Branco (vulgo White Horse) importado da Argentina, servidos em copos de cristal com finas marcas vermelhas das doses sucessivas. A Lua gigantesca levantava-se no final da rua Bento Martins e subia lenta e pesada, até ficar do tamanho de uma moeda de dez centavos ou um cruzeiro, não lembro bem. As manchas da Lua formavam o mapa do Brasil virado de ponta cabeça. Quando me falaram mais tarde que elas lembravam o dragão atacando São Jorge, achei um absurdo. A lua cheia do verão, quando estava no zênite, era a imagem da moeda que regia o país que nos criou. Nossa casa era a última da rua asfaltada. Depois de nós, o povaréu, nosso amigo. Lutávamos, jogávamos, corríamos. Os calções largos, as cabeças peladas (pois criança não podia deixar cabelo crescer, era a marca da submissão da infância). Mas éramos livres com nossos cocos raspados e voltávamos tarde da noite, levando bronca porque a janta esfriava e meu pai não permitia que as refeições fossem feitas sem que todos estivessem juntos. Herança da formação militar, a hora do rancho era sagrada. Tomar banho, colocar a camisa, se pentear, para só então sentar na grande mesa onde se compartilhava a comida generosa.

ALGAZARRA - Não lembro dos meus pesadelos nas noites de verão. Talvez nunca os tenha tido. Acordava com os pássaros fazendo algazarra no cinamomo do pátio e havia sempre um convite para um programa imperdível. Descer até o rio e catar pedras redondas, pescar as piavas que assobiavam na linha ao serem fisgadas, ou mesmo acumular lambaris que mais tarde eram escamados, limpos e fritos em frigideira quente. Passeios até a Gruta, puxando carrinho com os víveres para passar o dia. Caminho puxado que pegava cinco quilômetros de estrada e guardava lá o banho proibido, porque era perigoso, segundo minha mãe, que tinha medo de água a céu aberto, fonte de tantas aflições naquela rede hidrográfica que engoliu pescadores, maridos, filhos e todos que se aventurasse não só em corredeiras, como em sangas e águas paradas de lagoas lodosas. Na Gruta comíamos bolacha Maria com goiabada e refrigerante. Pescávamos alguma coisa e voltávamos já no escurecer. Está escurando, dizia eu, medroso diante do mistério da noite e seu breu eterno. O verão só fazia sentido com um monte de gente. Se alguém viajasse, era tido como traidor e muito mal recebido na volta. Eu mesmo quando fiquei fora um janeirão inteiro para conhecer o mar, ao retornar fui espancado para aprender o que era bom para a tosse. As brigas se sucediam sem parar. Socos, pedradas, rasteiras, choros, gritos e macheza sem fim. Terra de meninos ingratos, duros, violentos, que se reuniam em bandos e se enfrentavam para disputar os territórios violados. Mas não havia transgressão. Os bandidos ficavam em outro lugar, longe, e eram recolhidos pelo jipe da polícia que, diziam, enterrava gente viva. Nasceu aí meu medo de policial. Ficava imaginando a terra descendo sobre meus gritos, o socorro que não vinha e aquelas fardas que faziam o pior dos serviços. Esse terror tornou-se real mais tarde, quando 1964 acabou com o país.

FAÍSCAS - Desse pesadelo ainda não acordamos. Aguardo a volta do Brasil, que será recebido no portal por minha mãe, sempre tão carinhosa na sua inteligência falante e prudente. O país será eu, filho pródigo de volta à bonança da memória, a espargir pequenas faíscas de estrelas na calçada tomada pela infância. A Lua também me receberá como a um filho. E estaremos ainda todos vivos, libertos da fúria que nos cercou e que fez uma guerra inútil por todo esse tempo. Porque o Brasil é o que foi criado pelas gerações que doaram seus corpos insubmissos à terra que tornou-se uma nação eterna. Volta, Brasil, junto com as crianças que nascem agora. Devolve essa alegria ao homem feito, que se aproxima do norte da própria vida escutando ainda as canções que jamais morrerão.

16 de dezembro de 2004

O PAÍS DOS CORPOS SUBMISSOS

Vejo de relance o noticiário na tevê, que pega mal dentro do ônibus vindo do norte da ilha para o centro. Alguém está fazendo uma careta de dor e, deitado de bruços, torce o pescoço e olha para cima. O automático que temos na mente informa: é um assaltante sendo dominado por algum policial. Mas eu estava enganado. Era um atleta fazendo alongamento. Veio então uma seqüência de caratonhas, pernas dobradas, cenhos carregados de submissão absoluta. Era preciso distender os tendões, soltar os músculos, deformar tudo para que o corpo fique à vontade para agüentar o tirão dos jogos deste final de temporada. Logo depois, mais uma matéria sobre a obesidade, apresentada por um casal de jornalistas magrinhos. Falavam em algo inverossímel, as calorias. O corpo, no Brasil, está deslocado. Quem fica parado, é culpado. Quem corre, pode morrer. É que não deveríamos ter corpo, assim como o Brasil não deveria existir.

MEMORIZAR - Nasci envergonhado. Tenho apenas 13 meses de diferença do meu irmão imediatamente mais velho. Minha mãe tentou esconder a barriga do seu quinto filho, pois tinha acabado de dar à luz. Cidade do interior de ruas largas, é impossível esconder alguma coisa. Entrei na carona daquela família, marquei cerrado para vir e dei trabalho como ninguém (qualquer mudança de ar me deixava em pandarecos). No pré-primário, sentava num canto, numa isolada mesa oval e lá permaneci o ano todo. Às vezes levantava a cabeça e duzentas cabeças me olhavam. Estavam todos fazendo algo na grande mesa central, mas para lá eu não me dirigia (não me sentia convocado). Lembro do primeiro dia de aula: cheguei atrasado e todos pararam imediatamente da fazer a barulheira infantil normal. Todos encaravam o intruso. Quando fiz o segundo ano do pré, a professora não me agüentou e me obrigou a ocupar outra mesa, junto com os colegas. Aí começou meu aprendizado, pois só entendi alguma coisa do mundo quando fui cercado pelos meus contemporâneos. Soube então que a letra i maiúscula poderia ser representada por uma torre de igreja. Que a letra e era o desenho perfeito do perfil de um elefante e seu marfim. Aprendi a ler de maneira eficiente: primeiro as letras, depois as sílabas, depois as palavras e finalmente as frases. Nunca entendi os métodos ditos revolucionários que fazem a pobre criatura visualizar palavras complexas como se isso fosse possível fazer algum sentido. O analfabetismo funcional vem principalmente dos erros didáticos como esse. É preciso dar um passo de cada vez. Memorizar quando for preciso. É preciso exercitar a memória, decorar princípios fundamentais. Chamam isso de decoreba. Sempre achei que a educação foi destruída pelos que tiravam notas baixas. Eles se vingaram.

CANTORIA - Minha mãe aprendeu a tabuada cantando. Participava do coro dos alunos orientados pela professora. Jamais esqueceu e sabia fazer contas na ponta da língua. Hoje vejo pessoas com máquina de somar diante de si fazendo contas com os dedos. Juro. O ensino de matemática é um desastre, pois é uma sucessão de fórmulas. A matemática precisa da linguagem, de frases que conceituam as operações, para poder ser entendida. É preciso muito português em matemática. Todo o sucateamento da educação obedece à lei de sucateamento do país. Para que os corpos fiquem submissos é preciso que as mentes sejam criadas no bloqueio absoluto. A ignorância é espontânea, como notou Bill Waterson na sua tira genial sobre Harold e Calvin. Permanecer ignorante é ótimo para consumir a tralha cultural, candidatar-se a subemprego, servir de mão de obra barata, tornar-se escravo para toda a vida, negar a soberania do país. E os que sobram, quem consegue se alfabetizar, é colocado na vala comum da cultura de massa, essa que foi saudada como a grande libertação e hoje vemos que é apenas um truque para meia dúzia de espertalhões obscurantistas encherem os bolsos. Trabalhar com a diversidade daria, em tese, prejuízo. O importante é concentrar tudo em alguns idiotas para que a população não tenha saída e consuma a porcaria cevada na estufa da ditadura em que vivemos.

LAVAGEM - Há uma campanha contra a obesidade na mídia, sem que se diga o essencial: que perder a forma é fruto da submissão do corpo. A escravidão gera pessoas travadas, tanto as que praticam esporte compulsivamente quanto as que se deixam levar pela péssima alimentação que dispomos. O Brasil produz alimentos para exportar. O que sobra para a população é mistura, lixo para porco. Pagamos caro pelas porcarias que nos vendem, enquanto lá fora comem nosso melhor camarão, a lagosta, a laranja sem agrotóxicos, o pêssego perfeito, o café de primeira. Aqui consumimos a lavagem que sobra. Precisou vir empresa mexicana para dar um pouco de moral na fabricação de sucos, que antes era um horror. Precisou que os coreanos viessem gargalhar de tanto ganhar dinheiro com suas vans para o Brasil parar de produzir a mesma Kombi de décadas. Precisou vir americano ensinar a ganhar dinheiro com lixo embalado como refeição rápida para entendermos que podemos ser muito melhores, pois inventamos o Bauru e outros grandes sanduíches e onde eles estão? Confinados em algumas lanchonetes, enquanto a marca do hambúrguer triunfa como um Godzilla no país dos corpos submetidos à barbárie. Nasci envergonhado, mas a brutalidade geral me obriga a dar o troco.

15 de dezembro de 2004

A PALAVRA FAZ O BALANÇO

Curvo meu rosto em direção à água transparente e nela vejo o vidro de uma vida que não dá folga. Mexo na imagem liquida usando um pequeno graveto, a palavra que me socorre, e o que vejo é redemoinho, o tempo se articulando em círculos e se desdobrando ao infinito. Coloco de um lado o ano de 2004 e do outro ofício que abracei desde criança. O Ano do Livro dobra diante do peso do que foi escrito aqui neste espaço, semente de algumas publicações que virão à tona. O verão me expulsa da tv, do rádio, do jornal, do micro. Há coisas por fazer, há projetos para valer. Nos últimos dias, deixei a crônica aqui paralisada e me dediquei a uma avalanche diferente, que em 2005 dará as caras com toda a força. Preparem-se. Já existe um princípio de vento que se arma no pampa. Os potros estão mais ariscos do que nunca.

CENA - Tento chegar no mar e deposito o carro embaixo de generosa sombra. Vejo então de repente, surgindo do nada, e aproximando-se de ré em desabalada carreira, um desses carros portentosos, meio jipe, meio caminhonete, meio carro de luxo, que se planta bem na minha frente. Parecia um recado: como ousas turvar a sombra que deveria ser minha? Desce então o sujeito e abre a traseira com estardalhaço. Enquanto timidamente passo um protetor solar antes de me arriscar no solaço de dezembro, o cara se arma de cadeiras, guarda-sóis, espeluncas variadas, fazendo grandes gestos de domínio de território. Desço então do carro e me dirijo á divindade salgada, que está feliz com a chegada do verão. Chego na areia e dou uns mergulhos, quase na beira, pois qualquer onda para mim é um aviso. Não é que o sujeito está perto, passando agora fragorosamente seu protetor solar e depois palmilhando a areia como se fosse sua fazenda? Penso: besteira minha, devem ser meus miolos torrando neste sol das dez da manhã. Entro de novo na água espalhando os conflitos da mente e jogando tudo para dentro da espuma e volto para ir embora (fico pouco, para não abusar da pele, já tão castigada em décadas de exposição). Pego a pequena trilha de volta e quem vem ao meu encalço? O sujeito, desta vez pronto para finalmente tomar posse da sombra refrescante, que deveria cobrir o carro dele e não o meu, intruso desta vida tão demarcada em funções e personagens.

PESADELO - Me convenço então que não é besteira minha, o cara realmente encanou. Tinha deixado mulher e filho na praia e vinha atrás de mim, a passo lento, para ver meus movimentos. Decido então dar uma gambeta. Me dirijo para o lado oposto onde estava estacionado. Como fui convicto em direção à montanha mais próxima, o mosca se tocou e voltou para seu acampamento. Não sei se pegou a sombra depois que saí de lá. Mas é assim o território que palmilhamos: os outros sempre têm a preferência e você, cidadão do mundo, é apenas um obstáculo que deve ser ignorado, eliminado, atropelado. Alvo da hostilidade, me pergunto: tudo isso irá explodir, como prevejo, ou já está explodindo e eu ainda não acordei para a grandiosidade do pesadelo? Parece ceninha de privilegiados disputando bobagens. Mas é apenas um sintoma: a de que não existe mais margem de convivência. Nada mais se compartilha. A paciência e a gentileza acabaram. Quem é você? Quem mandou vir para cá? Só depois que liguei o carro descobri que a placa era do Paraguay. Mas poderia ser de qualquer lugar. A culpa, claro, foi minha. Primeiro, por ter estacionado à sombra. E, segundo, porque não cedi o lugar quando ia embora. Sou o pesadelo do sujeito que me abordou.

CARTEIRA - Lembro de outra cena, desta vez dentro do cinema, há uns 30 anos. Chego atrasado à sessão e vou sentar no escuro. Sinto que embaixo de mim está portentosa carteira. Pego na mão, olho em volta, mas o pessoal da sessão anterior já tinha ido embora. Espero mais alguns minutos, sempre pronto a fazer a devolução. Como não vem ninguém, a curiosidade me leva até o banheiro. Queria saber do que se tratava. Lá encontro tudo: documentos e uma nota preta, grana para dedéu. Muito duro, como sempre, pensei: a pessoa perdeu, alguém irá achar aqui. Deixei então no banheiro, mais precisamente a carteira com quase tudo, no vasto cesto de papéis usados para limpar a mão. Colocando a dinheirama no bolso, voltei para o meu lugar. E repente, me caiu a ficha: eu tinha roubado a grana! Católico fervoroso, ético de auto-falante, voltei ao local do crime e por sorte lá estava, pobrezinha, a carteira misturada a vasta papelama. Coloquei o dinheiro no lugar e voltei, mais aliviado, mas agora preocupado, pois poderiam pensar que eu tinha surripiado tudo aquilo. Com medo de ser preso por estar com o objeto do outro no bolso, ouço então vozes ansiosas. Três pessoas voltaram e uma delas perguntava desesperada pela carteira. Levantei-me, e magnânimo, devolvi. A dona do objeto perdido vai direto ao conteúdo e verifica que está tudo lá. Se emociona com minha decência e honestidade. Depois, me segreda que era todo o salário dela e que jamais poderia me agradecer o suficiente pelo bem que fiz. Ladrão que fui, saí culpado, mas aliviado com o desfecho da cena. Quem me acompanhava teve o desplante de me tirar um sarro, dizendo que eu era muito trouxa. É complicado: fui metido a esperto por alguns minutos, medroso o tempo todo e honesto ao mesmo tempo. No conflito humano, saiu vencendo a solidariedade. É o destino. Mesmo caindo na tentação, ainda é possível se redimir. Ou o que fiz (e remendei) foi imperdoável? Graças a Deus não nasci na terra de Clint Eastwood.

8 de dezembro de 2004

O ANO DA VERDADE

A cidade entra no purgatório de dezembro e nem mesmo a sombra de um banco na bela praia de Itaguaçu é capaz de reter o visitante por alguns minutos. O suor expulsa com sua vassoura engordurada e é hora de despedir-se daquelas pedras misteriosas, da água quieta e brilhante e pegar o ônibus de volta. Praia do continente tem essa leveza, flutua como lembrança boa. Praia da ilha é mais densa, é carregada de expectativas. Entre esses dois rostos do mar navega minha vida, que se entrega ao cansaço depois que o Ano do Livro expôs todas as forças, nos exaurindo e agora recolhendo os cacos para o novo tempo que chega. A Virada em 2003, o Livro em 2004, o Ano da Verdade em 2005.

FLAGRA - O que é a verdade? Cristo silencia. A verdade, no caso, é a pergunta. Perguntamos o que queremos responder, mas nem sempre queremos eliminar a nossa dúvida. Jamais perguntamos o que desconhecemos, isso é dar muita bandeira. Perguntamos aquilo que nos dá certeza da precariedade do Outro, que irá dizer o oposto da verdade de que estamos impregnados. A pergunta no Brasil não é especulação filosófica, é manifestação do espírito de porco. O ponto de interrogação é uma advertência, uma rasteira, um flagra. Nossa ciência, por isso, é marginal. A pergunta científica, aquela que busca a solução, fica à parte, longe do centro dos acontecimentos. Para qual país o senhor torceria, se houvesse uma luta entre o Brasil e a Rússia? perguntaram um dia para Luiz Carlos prestes, que caiu na armadilha. É claro que ficaria do lado da Rússia revolucionária, respondeu o líder. Dançou aí, devido a uma pergunta bem brasileira. Qual o preço do pãozinho? perguntou Boris Casoy para Eduardo Suplicy, e o senador não sabia, claro, jamais vai à padaria comprar pãozinho. O senhor acredita em Deus? perguntou Casoy para o marxista de pose FHC e o candidato a prefeito FHC dançou. Quem matou Odete Roitmann? não era uma pergunta, era uma peça de marketing. Como é que você se sente e como é que é essa coisa, perguntam os repórteres de TV , porque a pergunta para eles é apenas uma redundância,. Algo pró-forma, uma escada do noticiário e não uma pergunta real. Como vai você? é outra abordagem mecânica, e só os chatos respondem com mais de duas sílabas. Você está bem? te perguntam aqueles que nada querem saber de você.

2005 - O que significa o Ano da Verdade? Será o tempo em que todas as máscaras cairão e estaremos frente a frente com nossa precariedade. O desafio será encontrar a divindade nas ruínas da nossa vida. Celebrarmos o encontro com as palavras nuas, as frases cortantes, os versos mais fortes. Será um pesadelo, me dizem. Não importa. Ficamos tempo demais em silencio. Adiamos demais o destino. Teremos que falar aquilo que realmente conta e não o horror que é a percepção que temos dos outros. Não vale dizer falsas verdades, como por exemplo como você está horrível, isso não é uma verdade. Ou como você emagreceu ou engordou. Será proibido comentar aparências. A verdade é o brasileiro sério apostando na soberania da própria vida. Não significa ser chato, nem politicamente correto, nem sincero em demasia. Falo na palavra com poder de cura, a palavra consciente da morte da criatura, a palavra que você não quis escutar e que gritava dentro de ti. O Ano da Verdade será um poema e depois virá mais tempo de mentiras. Mas pelo menos por esse período vamos ver como é que fica: saber o que temos a doar para esse tempo que se destrói com falas impregnadas de veneno. Será o ano das decisões fundamentais, quando abandonaremos a ilha deserta e tomaremos um navio em direção ao Oriente. A estrada continua lá. Ainda nem foi palmilhada, depois de tanto andar.

6 de dezembro de 2004

O GOLPE DO SACOLÃO

Há um mistério nas ruas de Florianópolis: como os golpistas sabem os detalhes dos teus hábitos e como conseguem te arrancar um dinheiro em poucos minutos? Teve gente que marchou com dois reais, mas houve casos de vinte, trinta e até 150 reais. Estudei a estrutura do golpe e descobri que se trata de um ardil com um toque de gênio. É a atualização do velho conto do vigário ( que faz a vítima desembolsar algum ) só que desta vez o autor da façanha não conta com a cobiça da pessoa que aborda, mas com algo mais profundo: a solidariedade. Parece mentira, mas funciona.

SIMPATIA - A solidariedade está em alta, apesar de tanto descalabro, golpe sujo, roubo, corrupção e violência. Talvez por isso mesmo: o caos incentiva os bons sentimentos, pois no fundo ninguém agüenta mais. Esse último reduto do humano é que gera a situação ideal para a vítima do Golpe do Sacolão. Funciona assim: o golpista te vê e é de uma simpatia magnífica. Ele imediatamente cria um vínculo com você, pois anuncia que te conhece, você é aquela pessoa que compra sempre no sacolão. Normalmente a vítima se entrega e pergunta se é no sacolão de Canasvieiras (e é!), portanto está frito. Mas eis o mistério: o cara sabe onde você faz compras, a qual sacolão você pertence. Descreve o local e diz que é ajudante de lá e sempre te vê com sua senhora (se você tem cara ou aliança de casado), como é mesmo o nome dela, a dona Fulana. Pronto, você está fisgado, jamais irá dizer que não, que não conhece, pois você faz compras lá, às vezes faz crédito e fica chato assumir que nunca prestou atenção ao ajudante, o cara simpático que te conhece, sabe teu nome e da tua esposa, e que está ali na tua frente, te oferecendo um cumprimento neste mundo ermo de cumprimentos. Sei de casos em que a vítima até perguntou se ele trabalhava com Cicrano, o do açougue do sacolão, o que foi imediatamente confirmado. Mais mistério: depois a vitima telefona e fica sabendo que o açougueiro tinha mesmo uns ajudantes e o golpista pode ser um deles.

GASOLINA - Como te identificam na multidão? Ou te seguem, ou você mesmo entrega, ou ele trabalhou mesmo no lugar onde disse trabalhar e por isso todo o relato, que dura um minuto e meio, tem absoluta credibilidade. Primeira fase definida? Vamos ao golpe. Ele imediatamente faz cara de vítima e te transforma em protagonista, pois você vai tirá-lo da enrascada. Pois roubaram tudo da caminhonete dele, o cara coitado está até com a polícia ali (e aponta a direção), levaram cinco mil reais, documentos e até secaram o tanque de gasolina. A caminhonete do sacolão onde você faz compras com sua senhora, certo? Então você pensa, tudo bem, vou dar uns três paus ele compra um litro e vai embora. Mas a gasolina está cara e ele precisa ir até o sacolão, que fica longe e você hoje mesmo à noite pode reaver o dinheiro. Então dez reais não cobre, quem sabe mais, vinte, ainda está faltando e assim vai. Teve gente que deu queixa, dizem. O Golpe do Sacolão joga com a credulidade, a causalidade, a solidariedade e a rapidez: tudo não leva três minutos. Quando o cara sai rapidinho é que você saca que foi enganado. Você não conta para ninguém, para não passar por trouxa. Você caiu na tentação de mostrar-se solidário para uma pessoa pobre que te serviu e você jamais prestou atenção, e ele retribuiu tão bem chegando a conhecer você profundamente, já que você torna-se o autor de uma generosidade e se sente gratificado com isso. Por isso leva chumbo. Se você contar, todos dirão que jamais cairiam no golpe. É que eles não foram envolvidos pela rede genial do novo conto do vigário. Você retribui o reconhecimento, é solidário com quem sabe quem você é, você é alguém no meio do nada.

TRUQUE - Depois fica fácil não cair (mas às vezes a pessoa já ouviu falar do golpe com detalhes e assim mesmo embarca). O que também conta é o ineditismo, a criatividade. Tem dado certo e os caras (são mais de um) estão abusando. Daqui a pouco serão flagrados ou simplesmente mudam o truque. Viu como você não sabe ganhar dinheiro? Começa assim: Ei, você por aqui? Ou então: Como vai o sr. doutor, lembra de mim? O senhor não está me reconhecendo, eu trabalho lá no sacolão, aquele em frente ao posto Esso. É o intervalo do humano entre os compromissos do dia. Você fica hipnotizado por alguns minutos. Se estiver com dinheiro (e normalmente está, pois saiu de um banco, uma casa lotérica ou de uma rodoviária), prepare-se. Você ficará aliviado de alguns reais.

5 de dezembro de 2004

O HORIZONTE ACERTA O PASSO


Vista de longe, uma cidade é o mistério que não faz segredo para os nativos. Vista de perto, uma cidade é uma sucessão de desencantos: tudo o que é vivo impacta, tudo o que envolve perde a grandeza (Artigo publicado neste domingo no caderno Donna, do Diário Catarinense).

Nei Duclós

Cidade é presença e memória, é geografia humana e paisagem. Uma cidade existe a partir do esquecimento: quem vive nela precisa dos visitantes para lembrar-se da imponência do concreto, da identificação das ruas, do rendilhado da serra, ou do mar aberto para a invasão do desconhecido. Águas e terra escondem-se diante da realidade que faz morada nos habitantes. Nenhuma cidade faz sentido se dentro nela não existe alguém que coloque o forasteiro em seu abraço, por menor e mais frio que seja. Vista de longe, uma cidade é o mistério que não faz segredo para os nativos. Vista de perto, uma cidade é uma sucessão de desencantos: tudo o que é vivo impacta, tudo o que envolve perde a grandeza.

Quando há apenas passagem, o visitante confirma o que imaginou e vai embora carregado com as percepções formatadas pelo sonho. Se ficar um pouco, coleciona surpresas e decepções e já pode exibir lá fora um olhar abaixo da superfície sobre o que foi arduamente imaginado. Mas se pretende mesmo permanecer, deve se preparar. Como o planeta que dobra o espaço na sua trajetória, a força da gravidade empurra o recém-chegado para o fundo do poço. O estranho traz dentro de si a cidade anterior, que o despejou. Ele reproduz, num primeiro instante, os passos que riscaram seu corpo, os hábitos que acertaram seu passo. É impossível para quem nunca esteve aqui, ou aqui esteve por instantes, entender por completo o que a cidade convoca como cotidiano. Os primeiros tempos são de estranhamento. A primeira crise é de desistência.

Mas passados esses momentos difíceis, eis que chega a fase em que o visitante é fisgado pelo espaço onde escolheu viver. Não que se transforme em alguém do lugar, pois sempre será o que veio de longe. Mas ele adota o que o hostilizava, assume o que não lhe era próprio, aninha tudo o que combatia e abre espaço para o amor que preferiu esconder e que agora se escancara como uma advertência. O aviso é limpo como um Verão à sombra: agora que você passou por tudo que o afastava daqui, deve tornar-se parte do patrimônio local. Não se trata de números ou placas, de residência fixa ou emprego, de amizades novas ou sotaques emprestados. É outra coisa, menos perceptível: o esquecimento das ruas onde trafega, o olhar indiferente à lua que sobe para a constelação mais próxima, o passo composto de regularidade. A cidade impregnou o antigo visitante com sua capacidade de esconder-se, de sumir por dentro da avenida. Ele não se assombra mais com verdades explícitas, agora recolhidas ao porão onde convivem os restos da emoção inaugural.

É quando o forasteiro deverá ser lembrado, quando turistas enfileirados estarão de olhos postos na beleza dos edifícios, ou na comunhão dos habitantes. Resgatará então tudo o que pensou antes de vir para cá e poderá ter uma recaída no seu olhar agora acostumado. Para reagir a essa tentação, terá que procurar novamente os habitantes que o influenciaram para vir, revisitar pessoas que ainda estão no seu lugar de sempre, como se a memória da cidade (o espelho onde ela lembra do que a compõe) estivesse recolhida em alguns eleitos. Poderá ser o vigia o mar, aquele que sabe onde existe o cardume, mas não conta para ninguém como vê tainha em noite sem lua. Poderá ser o fabricante de pranchas de surfe, que um dia o encontrou ao lado de uma viagem de ônibus e lhe contou como escolheu a praia deserta para deitar raízes, e como dribla a falta de cidadania pegando carona no motor invisível da onda. Ou poderá ser a ascensorista que lê escondido (porque isso prejudicaria o serviço), e que empilha livros dentro dos casacos no Inverno, ou os acumula na Primavera, no compartimento do telefone de emergência.

O vigia, o surfista e a ascensorista são aquelas pessoas que possuem uma janela para o infinito. Eles possuem a chave dos que vivem para sempre no mesmo lugar, pois para eles não importa a falta de lembrança provocada pelo costume. O que eles enxergam serve de paisagem e de memória para o ex-visitante. Eles apontam para um horizonte que existe no térreo do coração aos pedaços. Sobre essa base eles assentam a vida e indicam o que pode existir numa geografia que parece a mesma, mas que no fundo é a viagem que fazemos em direção à eternidade.

Os habitantes que abrem janelas para essa dor de permanecer intacto, na vida que vai desmoronando com o tempo, são personagens de uma estranha compulsão: a de procurarmos pouso neste tempo de guerra, o de encontrarmos paz sem abrir mão do conflito, o de permanecermos em movimento quando tudo conspira para o retrocesso.

RETORNO - O melhor produtor gráfico do Brasil deixa a Fiesp depois de nove anos de luta. Daniel Del Fiore é o exemplo do profissional ético e competente e marcou para sempre sua presença ao cuidar da qualidade e da eficiência dos produtos de comunicação gerados pelas entidades da Indústria paulista (com destaque para o carinho que ele dedicou à produção da revista Notícias Fiesp/Ciesp, uma obra que fez História e provou que jornalismo empresarial focado nas reportagens é não só viável, como pode ser um exemplo de seriedade e de vanguarda nos limites da comunicação nas corporações). Sensível, reservado, solidário, Daniel Del Fiore sabe fazer amizades profundas e sua lucidez está a serviço da grandeza do seu ofício. Piloto de primeira água e companheiro silencioso e gentil, sua saída provocou uma reação óbvia: foi o maior berreiro. Todos choraram na despedida daquele que jamais faz pose, que nunca perde a elegância e que sabe como ninguém os segredos de uma profissão que aprendeu ainda criança, nas oficinas da Gazeta de Pinheiros, capitaneada pelo seu pai.

4 de dezembro de 2004

DEVE SER O VERÃO


Vamos para a praia, nos dizia o pai na hora mais forte do calor, aí pelas três da tarde. Descíamos em disparada os dois quarteirões que nos afastavam o rio e caíamos na água. Era difícil entrar, porque as pedras do fundo, barrento, nos impunham cautela em cada passo. Água pelo peito os mais velhos, pela cintura a meninada. As mulheres mais velhas, água pela canela. As mais moças, dificilmente iam. Era programa de criança. Quando crescemos e adquirimos confiança suficiente para ir sem acompanhamento dos adultos, preferíamos a prainha embaixo da ponte, que tinha uma vantagem, dava também para pescar piavas, os peixes corredores, e uma desvantagem, havia muito óleo boiando, resultado do comércio e do transporte gerados pela destilaria.

NADO LIVRE- Meu pai tentava me ensinar, em vão, a nadar. Não tinha paciência para professor e cada orientação era uma ordem que meu corpo não obedecia. Afundava toda vida. Rio correntoso, era difícil ficar à vontade naquelas águas. Admirava a capacidade que meu pai tinha de boiar, o que fazia com o maior desplante do mundo, colocando as mãos por trás da cabeça e fazendo aparecer a ponta dos pés para dizer que não estava pisando no fundo, ou seja, que não havia truque e essa era sua especialidade. Só quando aos nove anos conheci o mar entendi o segredo o equilíbrio, porque a água leve e salgada me fazia flutuar e a onda servia de incentivo para eu dar as primeiras braçadas. Quando voltei para o rio naquele verão quis saber se o truque funcionava. Deu certo. Mas no rio aprendi apenas o nado livre, o popular nado que te deixa com a cabeça de fora, olhando tudo, pois em rio de muito imprevisto é preciso ficar atento. Só na piscina pude desenvolver o nado cego, aquele em que você solta o ar pelo nariz dentro da água e adquire um ritmo de competição. A distância da piscina era 25 metros e eu não parava enquanto não chegava aos mil metros, coisa que me deixava completamente mareado, mas naquela época eu acreditava em exercício. Hoje sou como os índios, que gostavam mesmo era de ficar na rede. Nada mais natural.

VENTOS - Depois de um ano frio, nublado, chuvoso e ventoso, o verão começa a dar as caras e com ele a volta do povo inseto. É a aglomeração compulsiva de todos os espaços. O trânsito é feito de carros, caminhões, ônibus, pedestres, bicicletas, motos, tudo junto, ao mesmo tempo. Dá-se ré na estrada que virou avenida. Uma pequena curva para fazer a manobra é completamente tomada por adolescentes em convescote. Você desvia do carro apressado e tem que cuidar o ciclista. A preferencial é onde cada um anda. Não se trata de regras, mas de vontade. Cruzam-se os espaços na maior sem cerimônia e fique atento se a placa do seu carro não é local. Mas o verão de dia claro e quente, com uma leve brisa, é sempre um acontecimento. De manhã, as ondas fazem repuxo e redemoinho e um mergulho sempre implica um esforço de se manter perto da praia. Mais tarde, o mar fica mais amigável e te banha sem pedir pedágio. Mas pode haver um caranguejo de tocaia, uma concha afiada, um bicho qualquer que gruda no calcanhar. Bem na beirinha, é o momento de se deixar levar pela onda que finda e volta para brincar mais até o quebra-mar. É quando você fica à mercê desse deus travesso, a divindade sem fim azul e gigantesca, que se mostra cor de chumbo todo o inverno e que agora torna-se transparente como alma de anjo. Lembro o tempo que fiquei longe daqui. Parece um outro mundo, em que as ruas nunca acabam na praia.

VIAGEM - Conheci poucos lugares que possuem o mar como companhia. Viajei quase nada e nunca fui à Bahia ou ao Nordeste. Jamais peguei um avião para Mar Del Plata e desconheço outra identidade que não o Atlântico. Preso no país continental, numa parte mínima dele, o vasto espaço que disponho do Brasil soberano me basta, porque viagem para mim é mudança radical e o pouco que me desloquei serviu para transformar minha cabeça. Quando viajo, vou duas horas antes para a rodoviária ou aeroporto e ninguém agüenta esperar comigo. Sou um habitante da espera, coisa ensinada por minha mãe, que não queria nunca perder o horário da partida. Talvez seja uma resistência à viagem, vontade de ficar, de voltar logo. Talvez. Mas toda partida tem uma recompensa: a paisagem muda e o coração se transporta para longe das amarras. Assim como você entra no mar: tudo se descarrega e você volta habitado pelos esplendores do verão.

3 de dezembro de 2004

HISTÓRIAS REAIS DE MARINHEIRO


Vinte beliches estão ocupados no grande navio com capacidade de retirar até oito toneladas de peixe. Joga-se a enorme rede no meio do nada e ela faz uma circunferência que é puxada por todos. Dá tremenda dor nas costas e às vezes o marinheiro precisa desempenhar essa função completamente curvado para não abusar do desconforto. Come-se bem no navio, mas o horário é marcado. Perdeu a oportunidade, só daqui a algumas horas. Quando o cozinheiro é ruim, até um macarrão todo grudado é uma delícia. Maresia dá fome de tubarão. Cada um está preso a um gancho no convés. Não invente de cair na água num barco em movimento que ninguém poderá te buscar.

MERGULHO - No porão, o marinheiro solitário está encarregado de colocar o gelo no meio do peixe que está sendo acumulado a cada arrastão. Ele faz o serviço sozinho porque dá conta do recado e porque não está a fim de repartir a féria paga por esse serviço. Ele ganha no porão e ganha no convés. Em cima, o navio pode enfrentar ondas altas que levam embora todo o peixe que já estava para ser colocado no porão. O navio anda nove horas mar adentro e há gigantescos tonéis de óleo diesel para agüentar a viagem. Mas nem sempre tem pesca grossa como essa. A solução é pegar uma baleeira, movida a remo, e ficar de olho na terra enquanto se pega isca viva para os outros pescadores. Há uma rede bojuda que fecha embaixo prendendo o peixe. Cada rede dessas é amarrada no barco e continua o baile. No final, é preciso mergulhar para tirar a carga do fundo, já que a rede está prenhe de coisas vivas. Mergulho de marinheiro que precisa ganhar a vida catando ostra nas pedras no fundo pode ter fôlego de três minutos. Um marinheiro leva seu filho de cinco anos e diz: essa é a última oportunidade de você aprender a nadar. Se não for agora, nunca mais. O adulto fica com água pelo pescoço e solta a criança dizendo te vira. O menino bate perna e braço e tenta boiar, até mesmo de maneira errada, com a cabeça enterrada na água. Mas ele consegue descobrir o segredo do equilíbrio e assim, nesse rito de passagem, está pronto para a vida.

SALVAMENTO - O mar é perigoso e o pai bem que avisou para sair da pedra. Mas eram nove pessoas, todas crianças e um adolescente de 15 anos. A onda veio por trás, carregando cacto e grama e levou todo mundo de roldão. O rapaz avisou antes: se segurem na pedra! E assim foi. Mas o pior estava por vir. Mariana tinha sumido. Marcos, o cara que tinha 15 anos, procura desesperadamente pela menina, sempre agarrando-se nas pedras. Não consegue ver nada, mas a onda acaba tirando a garota do lugar onde se segurava e por sorte jogou-a na perna de Marcos, que a segurou imediatamente, avisando: te agarra nas minhas costas, pega do meu pescoço! Ficaram assim por algum tempo, Marcos não conseguia gritar pois estava sufocada pela vítima que se agarrava a ele para não morrer. O pai de Marcos, desesperado, procura pelo filho e não encontra. De repente, pisa numa de suas mãos, que estão por um fio na borda do abismo, com a correnteza pronta para levá-lo, junto com Mariana, para o fundo de uma vala. Marcos, ao sentir o pisão do pai, consegue gritar. O pai é agarrado por trás, numa fila indiana de sete pessoas. Pega firme a mão de Marcos, Mariana pula por cima do seu salvador e vai para a segurança. O pai puxa Marcos xingando todo mundo, pois tinha visto a onda ainda pequenina e avisou aos berros do perigo. Mas ninguém tinha ouvido. Não invente de cair no mar. Dois meninos pularam de uma pedra achando que poderiam chegar fácil na praia. Um foi resgatado por um barquinho a vela , mas o outro estava indo embora. Marcos estava atendendo os turistas numa escuna e falou para parar tudo e pegarem o bote salva vidas. Foi a nado. Pulou no momento em que o afogado afundou. Ele conseguiu resgatar e por sorte chegava o bote, para onde a vítima foi jogada.

BUZIOS - O avô de Marcos tinha 85 anos quando levou-o, ainda menino, com nove anos, para pescar com vara de bambu. Faz assim: corta o bambu, coloca uma linha nele de alto a baixo para que ganhe consistência e deixe-o o no sol para secar. Marcos estava quase desistindo, pois não pegava nada. De repente um enorme peixe galo, bojudo, pesadíssimo, mordeu a isca. Marcos gritou para o avô que não poderia levantar o bruto. O avô insistiu para que jogasse o peixe com toda a força para a praia, puxando o bicho pela linha atada ao bambu. Marcos conseguiu, mas não queria agarrar sua presa. O avô de novo disse que ia ensinar. Coloque o peixe debaixo do braço e tire o anzol. Quando o garoto chegou em casa, houve festa, feijoada e peixe com farofa. É assim o mar dos marinheiros de Búzios. Todas essas histórias são reais. Contou-me Marcos Carvalho, que chegou ontem com minha filha Juliana a esta praia do sul. Combinamos que agora sim vou voltar a pescar. Preciso me preparar. Vou ser avô de um filho de marinheiro e tenho que recordar todas as lições do seu Ortiz, pescador de água doce.

2 de dezembro de 2004

ESCREVER COM LIBERDADE

A Internet rompeu o cerco e hoje se escreve livremente pela rede afora. Numa entrevista lapidar sobre o cruzamento entre literatura e internet, o escritor Urariano Mota explica, com a lucidez de um escritor livre e a coragem de um pensador brasileiro, a extraordinária diversidade que hoje campeia pelos computadores. São palavras que quero destacar hoje no Diário da Fonte, que tem sido abraçado pelos seus leitores, sintonia que me enche de força para novas edições. E a seguir, outro exemplo de texto escrito com liberdade, um trecho das memórias de Virson Holderbaum, onde emerge seu inusitado encontro, aos 16 anos, com Leonel Brizola:

BAILES, FESTAS, ROLETAS, PALANQUES

Autor: Virson Holderbaum

"Dançar fazia parte do chamado traquejo social, principalmente nas pequenas e médias cidades do interior, desde que eu me vi rapaz. O conceito adolescente e jovem, carimbado pela publicidade, veio mais tarde. E como as cidadezinhas imitavam os modos da capital, baile era o que não faltava nos fins-de-semana, sem falar nos momentos culminantes do soçaite festeiro: carnaval, páscoa e virada do ano.
Em Garibaldi, onde morei durante o período ginasial, os bailes se restringiam aquelas três datas nos dois clubes sociais da cidade. Conservadora, recatada, rural e religiosa, a pequena classe média das cidades serranas não era muito chegada ao mundano.

Em Carlos Barbosa, onde minha família morou de 51 a 53, festas só de igreja ou casamento. Assisti apenas a uma grande festa comunitária profana, que foram os 30 anos de fundação do Serrano Futebol Clube, em 1952.
Toda a população compareceu a um imenso churrasco assado em longas valas cavadas ao lado do campo de futebol, onde vi jogar pela primeira vez o time juvenil do Internacional de Porto Alegre, recheado por alguns cobrões que nos anos seguintes seriam titulares de um time histórico: Florindo, Oreco, Paulinho, Salvador, Odorico, Luizinho, Bodinho e Jerônimo. O jogo comemorativo terminou 7x4 para o Colorado e até então eu nunca tinha visto um jogo de futebol ser disputado com tantas alternâncias no marcador. Esse foi o grande jogo da minha infância.

Em Garibaldi conheci a vertigem dos bailes de carnaval dos adultos, a embriaguez do lança-perfume. Éramos, eu e minha turma do ginásio - Jorge Costa, Roberto Marcon, Fernando Jung, Ivo Mânica, Luiz Galina, Norberto Trúccolo - menores de 18 e portanto, tínhamos o acesso negado aos bailes noturnos de carnaval. Mas sempre dávamos um jeito de furar a vigilância dos porteiros e acabávamos entrando na folia.
Do meu primeiro baile infantil ( morávamos em Carazinho ) tenho a lembrança amarga de ter levado uma surra ao chegar em casa, tarde da noite, isto é, depois das oito, contrariando determinação paterna de que eu deveria voltar para casa antes da noite, mesmo que o baile continuasse. Não resisti. Fui sozinho, vestido de palhaço, fantasia costurada na máquina Singer de dona Josefina, minha mãe - ao baile infantil do domingo à tarde. O baile acabou às seis da tarde e eu não quis nem saber. Me enturmei com alguns meninos e saí pela noite. Quando me dei conta, a noite já ia alta. Ao chegar em casa, a cinta do seu Arno me aguardava. Mas valeu a pena. O gosto do carnaval fortaleceu meu espírito lúdico e superou a mágoa da surra. Evoé, Momo.

Foi em Carazinho, na campanha das eleições de 1950, que escutei os primeiros discursos de palanque eleitoral. E também a primeira vez que vi Getulio Vargas em pessoa - primeira e única vez.
Era num campo aberto, havia centenas, talvez milhares de pessoas, cheiro de churrasco no ar, Getulio estava sentado num banco de madeira comprido, na beira de uma mesa de campanha, com muita gente ao lado. Eu estava com meu pai, getulista e trabalhista entusiasta e me lembro que não conseguimos chegar perto do homem.
Então meu pai me levantou e me colocou sentado em seus ombros, de cadeirinha. Getulio vestia um terno branco com gravata, usava óculos escuros. Gritavam o nome dele e eu gritei também. De vez em quando ele olhava na direção onde estávamos e acenava com a mão.
Em 58 conheci Brizola pessoalmente em Garibaldi, num comício no centro da cidade. Meu pai era do diretório municipal do PTB e insistia que eu devia conhecer e me apresentar ao homem.
- Vai lá e diz: estou contigo, Leonel!
Andava pelos 16 anos, estava de visita à família nas férias de julho, mas meus interesses ainda não incluiam a política. Além disso, o tom impositivo das decisões do meu pai já começava a me causar uma inquietação constante e um nervosismo que eu mal conseguia disfarçar.
Era inicio da noite, um grande foguetório recepcionou a caravana, Brizola desembarca do carro na frente do diretório, todos querem apertar sua mão. Meu pai me arrasta pela multidão, passa na frente de alguns correligionários mais deslumbrados e me coloca de frente para o homem e num tom da maior intimidade - não faço a menor idéia se meu pai tinha alguma chegança no líder, pelo menos até então - enlaça a cintura de Leonel Brizola, exclamando: Leonel, quero te apresentar meu filho mais velho.
Enquanto me apertava a mão com força, Brizola falou alguma coisa que não consegui ouvir devido ao vozerio e ao alvoroço da sala apertada e cheia de gente. No momento seguinte uma pequena multidão já arrastava o homem para fora da sala de onde foi direto para uma sacada do segundo piso do prédio.
Durante todo o comício meu pai não arredou pé da sacada, gritando de vez em quando apoiado e muito bem, Brizola. Naquela eleição Brizola ganhou com uma vantagem de mais de duzentos mil votos sobre o coronel Walter Peracchi de Barcellos. E meu pai ganhou uma pequena fortuna apostando com alguns amigos adversários políticos."

30 de novembro de 2004

NA TERRA DOS APELIDOS


Chulé falou sobre o Bolha (professor de Química), o Buda e o Roxo (ex-diretores), Mutuca e Bituca (alunos lendários). Colocamos na roda o Queixinho, o Pipoquinha, o Strops. Mais tarde, na mesa do café, Torico e Cabrito nos derrubaram de rir com histórias do Gaguinho. Chulé, também conhecido como Irmão Arno, faz questão do apelido, tanto que reclamou com Tabajara Ruas, presente ao encontro, por tratá-lo com o nome oficial no seu romance Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierres, que será filmado brevemente. O veterano professor nos recebeu com o entusiasmo dos seus 79 anos, o mesmo que nos encantava quando foi nosso professor de História na faixa dos 30. No pátio do Colégio Santana, que deslumbra pela beleza e a excelência das instalações, e que ainda permite belíssima vista para o rio Uruguai e sua ponte sólida, ele demonstrou ser o mesmo de sempre, e ainda de quebra nos presenteou com uma pequena e significativa placa de agradecimento à nossa contribuição a cultura, pois somos dois dos 19 escritores do Santana, colégio que neste ano celebra seu centenário.

A MEIA MARATONA - Essa só poderia acontecer em Uruguaiana. Organizaram uma meia maratona, com concorrentes intrépidos, todos loucos para ganhar a corrida. Soltaram a turma pelas ruas da cidade e, como tata-se de uma distância razoável, o percurso incluía o subúrbio, mais exatamente no cruzamento de uma linha de trem, que costuma trafegar com seus inúmeros vagões durante o dia. Pois lá estavam os primeiros da fila, certos que o troféu já estava no papo, quando foram surpreendidos por interminável comboio, que deixou todo mundo na mesma, suando de impaciência diante do imprevisto, jamais imaginado pelos organizadores. O município é uma terra de atletas. Há os míticos, como o goleiro Eurico Lara, que tem seu nome imortalizado no hino do Grêmio (com o indevassável Lara no gol, o Grêmio jamais seria rebaixado); ou o Gessy, outro craque local que brilhou nos campos de Porto Alegre. Mas há uma gigantesca massa de atletas que ficaram por lá, lutando pelas cores do Sá Vianna (verde e branco), Uruguaiana (preto e amarelo) ou o Ferrocarril (vermelho e branco). Gaguinho, muito magro, meio torto, acompanhava o Sá Vianna pelas andanças, que volta e meia enfrentavam os argentinos. Ouvir Torico narrar com detalhes um jogo memorável contra um time de Libres bom de bola é um privilégio nesta terra de narradores. Eles eram muito bons, diz Torico. Tinham os Hormiga, conhece os Hormiga? craques. E o técnico era o pai dos Hormiga, enorme, forte, muito brabo. Pois não é que o Gaguinho resolveu apostar cem pilas com os caras? O problema é que o juiz escalado não compareceu e sobrou para Gaguinho, que apitou o jogo. Foi um inferno. Os correntinos não davam refresco. O exímio jogador brasileiro da fronteira que é Pedro Barzoni fazia misérias, todas sem resultado. Gaguinho não teve dúvidas: como estava arriscando o patrimônio, apitou um penalty inexistente que, claro foi aproveitado integralmente por Barzoni. Os adversário vieram para cima do juiz, especialmente el gran Hormigón, que tinha caído na arapuca mas não podia fazer mais nada. Voltaram aliviados de cem paus para o outro lado do rio.

PAPAGAIO - O escritor Ricardo Duarte, de Uruguaiana, vai lançar um livro de História e literatura em três volumes que tem apelido no título. Trata-se do monumental Perico - A Sociedade Rural do Prata e o Mundo Desenvolvido, que reúne, no vasto período de 500 anos, a civilização do pampa. Quem somos? pergunta Ricardo. Ele procura responder nesse trabalho, que consome muito suor e pesquisa. Por que Perico? Ricardo esclarece: "Perico, em castelhano, significa papagaio, apelido aplicado a alguém muito falante. Pode ser um contador de histórias - o que pretendo aqui - e assim eram tratados os estafetas levando mensagens dos comandos das tropas, também chamados, na linguagem do pampa, de lenguarás. Mais precisamente, perico era quem comandava as quadrilhas francesas, ou as country dances inglesas nos bailes de salão do século XIX. Nesses salientou-se Pedro José Vieira, português nascido em Viamão, que em 1811 proclamou a independência da Banda Oriental. Hábil bailarino, recebeu codinome de Perico El Bailarin e se lhe atribui a autoria da dança folclórica gaúcha El Pericón. De todas as figuras analisadas neste trabalho, nenhuma mais apropriada que Perico para sintetizar a idéia da sociedade do pampa. Nele se misturam novamente na América as raízes separadas na Península Ibérica e, sem ser rico, ou poderoso, sem mesmo um grande nome - até o momento - andejou no solo americano em companhia de mais de um herói, caudilho, ou vulto histórico".

LIBRES - Anderson Petroceli ( o melhor guia e o melhor mate da cidade) faz a gentileza de estacionar em frente a grande igreja de San José, em Paso de Los Libres. Entro e dou de cara com vasta catedral, que no momento realizava um batizado. Nunca tinha entrado lá. Conheci também La Costanera, a avenida de beira-rio trabalhada para o passeio e o lazer, coisa que não há no nosso lado, pois Uruguaiana praticamente fica de costas para o Uruguai velho de guerra. Mas o melhor de Libres (de onde não se permite atualmente comprar nem carne nem queijo, que são vetados na aduana, o que é um paradoxo nesta época em que tanto se fala em Mercosul) é, sem dúvida, a vista que temos de Uruguaiana. Parece uma metrópole européia, vista assim de longe, mas é puro Brasil. A vista maravilhosa esconde o que a cidade tem de mais preocupante: muita miséria neste país sem lei, muitos mendigos, violência presente. Ando brevemente pelas ruas da minha terra. A canícula não nos permite aprofundar a caminhada. Qualquer trajeto significa baldes de suor. A cidade mantém sua grandeza, apesar dos problemas. É um Brasil que resiste. Projetada e construída pela engenharia militar e o iluminismo farroupilha, é também uma cidade de escritores. Faço parte dessa comunidade, com muita honra, que tem no topo Alceu Wamosy, Gonçalves Vianna e J.A. Pio de Almeida.

RETORNO - Começo a ler Pampa em 23 e já recomendo para os leitores do Jornal do Comércio, de Porto Alegre, graças ao colunista Jaime Cimenti. Estou ainda no ano anterior à guerra, em 1922, num bolicho perdido, ameaçado por felinos "cevados", que gostam de carne humana, como nos explica o romancista e poeta Bira Tuxo, o Ubirajara Raffo Constant.