31 de julho de 2009

O JOGO DAS REPRESENTAÇÕES


Nei Duclós

Implico com a idéia de que as brincadeiras da infância são treinamento para a vida adulta. Insistem tanto que muita gente não cresce, prefere levar tudo numa boa, e, por qualquer motivo, faz o velho trenzinho nas festas, para desespero de amigos e parentes. Transpuseram essa certeza para os documentários sobre a vida selvagem. Os leõezinhos se pegam para que os músculos fiquem ágeis e fortes em função de futuras caçadas. Imagino a genialidade dos pesquisadores enxergando a mente dos bichos, quando ainda acham que animal não tem inteligência. Esses dias vi um vídeo em que a arara abria a torneira, tomava banho, e fechava. Instinto, claro. Treinamento, óbvio. Raciocínio? Jamais!

Assim como fazem com os animais, fazem com as crianças, que não passam de uns pets com a nossa cara, conforme o figurino das teorias e análises. Pelo menos as mais explícitas e evidentes, já que não sou especialista no assunto e ainda não sei se alguém chegou à mesma conclusão da brava equipe que levou décadas para provar que o leite faz bem. Puxa, que revelação! A ciência não cansa de me deslumbrar. Deviam dar um Nobel para nossos avós.

Acho esse assunto um pouco mais complicado do que a simples lógica de que a infância é a pré-estréia da maturidade. Acho que uma criatura, logo que nasce, se desenvolve e convive com os mais velhos em volta, mora num mundo mental sem conexão com nossas expectativas. Apesar de serem paparicados, banhados, vestidos, levados para cá e lá, estão sós, como qualquer ser humano sobre a terra. A única coisa real que dispõem (já que não possuem a memória de vivência anterior, como os adultos, que se valem da memória para tudo) é o jogo das representações.

Elas se envolvem nisso para chegarem a resultados. Uma criança não é nada, depende de tudo e de todos. Ela precisa criar uma roda vida com personagens identificáveis para chegar a algum lugar verdadeiro, longe do zoológico, da escolinha, da sala de visitas. E esse lugar é a mente habitada por inúmeras representações. A menina faz o papel da mãe, por exemplo. Claro, instinto, dirão, a maternidade já está implícita na garota. Isso é confirmado quando ela coloca o sapato, pinta a boca, usa um colar e uma blusa que lhe cai como um vestido. O que ela está fazendo? Brincando. O que pega na brincadeira?

Ela dá vida a um personagem, que tem a aparência da mãe e ao mesmo tempo não é a própria. Nem mesmo é a futura mamãe que será. Ela encarna a persona que irá movimentar outras peças de seu tabuleiro particular, e que tem regras próprias, fora de nossas determinações. Várias dessas peças são bonecas, ou cabeças de bonecas, que encarnam fadas, coleguinhas, vizinhas. Outro elemento é o transporte, representado por algumas cadeiras em fila, que podem ser um trem ou um ônibus. A pergunta continua: o que ela está fazendo? Treinando para quando for adulta e tiver de se relacionar com inúmeras pessoas, se locomover para trabalhar e assim poder ganhar a vida?

Seria muito desplante acharmos que as crianças vão imaginar a submissão à vida adulta. Elas já tem outro tipo de pressão. Tudo o que você vê em volta e considera normal, para um menino, uma menina, é a terra dos gigantes. Os lugares que você costuma freqüentar ou usar são inacessíveis. A caixas de bancos cospem dinheiro, é só ir lá e pegar. Tudo o que está no supermercado está disponível. Tudo o que ela faz e é considerado perigoso se repete ao infinito. Ou seja, se é outra a lógica infantil, por que estaria se sintonizando com a vida adulta?

Ela precisa resolver vários impasses. Ser uma mãe que possa lidar. Subir num veículo que permaneça parado à sua espera e ao mesmo tempo a transporte para o bosque encantado. Colecionar miniaturas que estão sempre à disposição. Inventar que existem conflitos entre essas peças para estabelecer conexões e poder viver nesse jogo (aí ela exige certas falas dos adultos para o jogo funcionar). Porque é também uma questão de sobrevivência, só que não implica contas. A criança multiplica o mundo infantil pra que haja espaço onde possa se movimentar.

A infância nada tem a ver com o mundo adulto. Utiliza elementos dele, mas se movimenta em outras esferas. Por isso é trágico, na publicidade, ver crianças com frases adultas decoradas para vender porcarias. Nem conseguem articular. É língua estrangeira. O que devemos fazer? Participar do jogo? Nem que você queira. O ideal é deixar quieto, interferir só quando a brincadeira exige cuidados e não tentar entender o que eles estão fazendo. Não seja impaciente nem arrogante. Ninguém abre tuas gavetas para enxergar teus esqueletos no armário. Vai querer saber tudo do mundo infantil?

Quando a pessoinha cresce, fica pior. Na adolescência, o jogo de representações é ainda mais isolado e torna-se pesado. Continua à parte do mundo adulto. O troço pode degringolar. Culpa de quem? Dos adultos que ficaram enchendo o saco da criança, que não consegue se defender. Quando o sujeito aumenta de peso, fica complicado. Se nos dedicássemos a algo mais proveitoso, como respeitar o mundo infantil em sua especificidade, não enxergar o que queremos ver, não achar que eles imitam os adultos como cachorrinhos amestrados, aí teremos uma chance quando forem adultos.

A criança crescida, agora não mais criança, virá para te dizer: “Obrigado. Gostei que não pisoteaste a vida que eu inventei quando não tinha nada, apenas teu apoio e compreensão”.

RETORNO - Imagem desta edição: Uma princesa, trabalho de Juliana Duclós.

BATE O BUMBO: FUTEBOL NA ACADEMIA

Meu texto “A Geometria do jogo”, publicado aqui no Diário da Fonte e no meu site, foi escolhido como material didático para o ensino da matemática e para trabalho interdisciplinar de Português, Educação Física e Arte pela UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CENTRO-OESTE, do Paraná.

É o que está escrito neste endereço:

"A Geometria do Jogo - Produção jornalística de autoria do poeta, jornalista e escritor Nei Duclós. Ele escreve sobre a relação entre o jogo de futebol e a geometria. Relata a influência e aplicabilidade dos conceitos geométricos para
determinar os limites do campo, as regras, as estratégias de jogo, os
passes dos jogadores de futebol. Leitura agradável e que desperta a atenção pelas comparações, definições e aproximações do conteúdo abstrato com fatos concretos do dia-a-dia. Sugestão para trabalho interdisciplinar com as disciplinas de Português, Educação Física e Artes. Publicado no site de Nei Duclós. 28 de Maio de 2005."

SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO/ SUPERINTENDÊNCIA DA EDUCAÇÃO/ PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL – PDE/ UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CENTRO-OESTE/ MATERIAL DIDÁTICO/ PROFESSOR PDE: SILMARA HAMMERSCHMIDT/ 1.2 ÁREA: MATEMÁTICA/1.3 PROFESSOR ORIENTADOR (IES): ARILDA MARIA PASSOS/ 1.4 NÚCLEO REGIONAL: PATO BRANCO/ Identificação do Conteúdo: Matemática Ensino Fundamental/Conteúdo Específico: Ponto, reta e plano.

30 de julho de 2009

O QUE É OPOSIÇÃO?


Nei Duclós

Oposição é a lucidez em luta diária contra o obscurantismo. Lucidez é enxergar e expressar com clareza os eventos e processos que infelicitam a nação. Um país é a instituição reconhecida internacionalmente e criada para que seus habitantes sobrevivam. Oposição, portanto, faz parte da luta pela sobrevivência. Não se trata de encarnar o tucanato quando o petismo está no poder e vice-versa. Nem de bater no Sarney só depois que ele acumula um acervo patrimonial e financeiro para sua descendência até a milésima geração. Mas de denunciar o enriquecimento ilícito e a sucessão de crimes no momento em que eles acontecem ou logo depois que são vistos de maneira nítida.

No Brasil de hoje, e da última década, não há oposição, apenas pose. Faz parte do sistema ficar em frente as câmaras para insurgir-se contra algo. Opor-se virou uma negociata. Vemos isso no Congresso. Para anular a iniciativa de investigar determinada falcatrua, os políticos de uma bancada anunciam que, então, vão entregar os podres dos colegas que poderão prejudicá-los. Isso é conivência, não oposição. Sentir saudades da ditadura também não é oposição, é burrice, já que continuamos nela. E achar que Chávez, Lula ou Morales são de esquerda é pura debilidade mental.

Oposição não é denunciar as porcarias dos programas de televisão quando você ocupa o Palácio do Planalto, como aconteceu recentemente numa das arengas recorrentes do presidente, que usa sempre os mesmos truques histriônicos para defender o butim. Se eu estou na presidência, não vou ficar fazendo denúncias, eu assumo a responsabilidade de promover a mudança. Porque você não pode permitir a criminalização do país de nenhuma forma, principalmente deixando rolar uma sucessão inominável de baixarias. Se alguém, no futuro, desenterrar o que veiculamos hoje, vão achar que no Brasil não existiam escritores, por exemplo, mas moralistas mostrando as coxas ou idiotas disseminando sabedorias-minuto. Ou que as cantoras não cantavam, apenas faziam gestos de dar no palco. E que “olha a faca” era uma expressão falada por toda a população, já que foi reproduzida quinhentos milhões de vezes.

Perguntarão: “Você então faria censura?”! Censura é mais uma palavrinha manipulada pelos arautos da falsa democracia. O sistema de televisão, desde que se declarou que a continuidade da ditadura seria batizada de democracia, faz tudo para desmoralizar a liberdade de expressão. Faz sentido. Como vivemos no arrocho político e financeiro, a verdadeira democracia não pode ter vez num projeto de televisão que é a cara de um país que não distribui renda e dissemina a violência em todos os níveis e lugares. No Planalto, um presidente da República precisa intervir nas concessõe públicas de rádio e TV, desmontar os esquemas de reprodução infinita de baixarias e mediocridade e criar respiros na programação por meio de uma distribuição justa de canais e de incentivo à seriedade e à cultura. E não ficar sacudindo o dedinho para platéias compradas.

Não podemos entregar a sobrevivência nas mãos criminosas dos institutos de pesquisa, que medem a audiência como a cara deles. Oposição é não permitir que todo estrangeiro que aqui aporta seja brindado com algum espetáculo sobre nossa miséria moral e física, como se fôssemos um Pátio dos Milagres sem Paris em torno. Não pode mostrar favelado batendo lata para cabeças coroadas. Não se trata de esconder, mas de selecionar. Você coloca uma orquestra sinfônica, um grande coral, uma equipe estudantil bem nutrida nas fuças do estrangeiro. Você não põe brasileira rebolando na frente de olhos cobiçosos de marmanjos poderosos lúbricos. Você se opõe a isso e chama o Cabo Adão para ter um particular com o sujeito, se for o caso de o descarado lançar um olhar safado para alguma menor brasileira representante da Unicef.

Ou seja, em todas as ocasiões você manifesta soberania. Não se trata de cair na tentação da patriotata (a mentira vestida de verdade histórica), choramingar batendo no peito enrolado na bandeira por qualquer motivo, mas ficar firme na posição de brasileiro fundando na Independência do país. Oposição não é nacionalismo xenófobo do reacionarismo ame-o ou deixe-o, é parâmetro para quem está dentro ou fora do território nacional, quando dizemos: mantenham vivos os contratos, os reconhecimentos, porque aqui estamos atentos.

Devemos nos opor à demagogia de pagar para governo estrangeiro desmoralizado o triplo por uma energia que estava com o preço acordado em contrato. Não precisamos da popularidade sorridente dos porquinhos da vizinhança debochando de um paisão fracote e galinha. Isso não significa que devemos expor o machismo de nossas botas e esporas. Precisamos apenas acreditar que somos um país forte, que aqui temos oposição, temos grandeza e vivemos dentro da lei. O que não pode é ficar passeando bandido perigoso de avião de um estado para outro, ameaçar soltar a parricida, permitir que policiais estejam em milhares de delitos, achar que bala perdida de revólveres registrados seja considerada um acontecimento normal.

Temos que fazer oposição. Dar força aos profissionais do Ministério Público que arriscam a vida com seus processos, celebrar a coragem dos policiais que enfrentam bandidos armados, incentivar a misericórdia quando houver necessidade perdão. Temos que ser essa coluna mestra de um templo ferido, que se mantém de pé graças à nossa determinação. Temos que amar o país como a nós mesmos. Para quando nos virem em grupos em ruas de outras nações, digam: lá estão os brasileiros, um povo de verdade que vive bem e não esses malandrões ruidosos em que nos transformamos aos olhares alheios.

E quando um policial inglês der oito tiros na nuca de um brasileiro inocente e desarmado num metrô de Londres, não vá depois passear de carruagem com a rainha. Pega mal. Nem eles, que são os tais, gostam disso. Todo mundo prefere tratar com pessoas íntegras. É mais seguro e confiável. Quem precisa de espertalhões tomando conta de oito milhões de quilômetros quadrados de terras aráveis, montanhas, rios, lagos, planícies, vales e planaltos, cachoeiras e matas? Só mesmo essa turma que não sai do poder e precisa de oposição a cada segundo de nossas vidas.

RETORNO - Imagem desta edição: o Rio de Janeiro, eterna capital do Brasil Soberano.

29 de julho de 2009

TAS E HUCK: DOIS BOBALHÕES


Nei Duclós

As personalidades histriônicas de Marcelo Tas e Luciano Huck representam uma sociedade que abriu mão da meritocracia. Pelo que são, uns bobalhões que impõem suas gracinhas graças ao apoio de poderes imprevisíveis em seus critérios, jamais teriam chance se não fossem instrumentos das nulidades que comandam o espetáculo na política, na economia, nos costumes. Fosse outra a realidade, qualquer um deles não passaria pelo corredor polonês de cascudos a que eram submetidos garotos de outras eras, quando a máscara, a pose, a falta de carisma eram punidos por uma convivência, hoje enterrada, que não perdoava a falsidade.

A briguinha ridícula que suas assessorias mantêm no Twitter, numa disputa por mais popularidade, faz parte desse show de horrores em que se transformou o país à deriva. O tranco redundante da performance de Tas há 30 anos repete seu personagem favorito, o imbecil que procura atrair simpatia exibindo-se como o bôbo de uma corte que o tolera e finge se ofender. A empostação fajuta da voz em Huck (que imita o Raul Gil) é alimentada pela certeza que tem de seus plenos poderes, que se estendem da televisão a acomodações de luxo no litoral. É de desconfiar que seja garoto propaganda de tantos produtos, a não ser que faça parte de um esquema perverso de concentração de renda e distribuição limitada a alguns privilegiados.

Em vez de usufruir da popularidade cevada no vazio da vida nacional, deveriam, se tivéssemos um sistema político sério, ser submetidos a atividades agropastoris por um longo tempo. A lavoura poderia devolvê-los a uma razão mediana, já que não podemos esperar, depois de uma temporada ao relento, mais do que alguns brandos insights de cérebros tão pouco privilegiados. Como o Brasil abriu mão de qualquer tipo de oposição há muito tempo, os dois deitam e rolam em seus generosos espaços na mídia.

Tas é o mestre-sala de um espetáculo de humilhações. Seus repórteres arriscam o pescoço para desmascarar um ambiente de notórias criminalidades. Mas no geral o CQC, programa de Tas na Band (clonado de um programa argentino) é um circo para a pseudo inteligência, aquela porção narcisista do obscurantismo bem fornido da brasilidade, que no lugar da leitura prefere o espelho. Tas se diverte espichando as sílabas e sacudindo a cabeça, marcas registradas de sua criação humorística.

Huck é o lotérico aproveitador de desgraças alheias, exibindo seus dotes de assistente social ao proporcionar a reforma de casebres, transformadas em casas de classe média diante dos índices manipulados de audiência. Como não há política habitacional no país e a população pobre constrói como pode suas moradias em cidades e campos cada vez mais favelizados, o dom providencial de Huck se transforma numa espécie de madrinha de cinderela, aquela que faz da abóbora carruagem. Tem também o desfile de musas, ou seja, mulheres sem roupa a sacudir celulites enquanto Huck faz pose de cafetão bem sucedido.

O mais irritante é vê-lo pomposo manobrando estudantes em concursos de palavras, esquema imitado dos americanos e que aqui cumpre o triste papel de ser uma alternativa de programa gramatical enquanto a nação amarga todos os níveis do analfabetismo. Deixar que Huck se torne o mestre de cerimônias de algo que deveria mais pertencer à escola do que à busca do Ibope diz tudo sobre o país sob a mais longa ditadura de sua História.

Mas para que se preocupar? Eles fazem sucesso. É inútil dizer que as pessoas, sem opções, são jogadas na vala comum da mediocridade e esse acervo, a carne exposta da massa falida do país em queda livre, serve de álibi perfeito para justificar tamanha sacanagem.

28 de julho de 2009

VIAGEM À LUA


Nei Duclós

Lembro quando, há 40 anos, decidimos viajar para a Lua. Foi difícil. Estávamos grudados num movimento estudantil ferido de morte pelo AI-5, perdidos numa universidade de professores cassados, emergentes numa profissão que mal engatinhava. Sem recursos, como poderíamos vestir nossa roupa de astronauta, pegar carona num foguete, navegar num módulo até a cratera no deserto, dizer a frase inesquecível e ainda voltar?

Isso tomou tempo. A ideia era viajar em pleno ano letivo, para expressar nossa insubordinação contra a violência do Estado e as pressões das panelinhas políticas, que existiam mesmo entre garotos leitores de uma pesada artilharia de textos. Mas julho chegou de repente e tivemos de ir assim mesmo, como se fôssemos estudantes bem comportados, a aproveitar as férias para conhecer outros mundos.

Para chegar à plataforma de lançamento, fomos obrigados, primeiro, a vender os livros mimeografados em gráficas marginais para parentes preocupados. Nosso aspecto, alimentado pela ousadia e o susto, tomava a cor pálida dos selenitas. Depois, pegamos caronas em grandes scanias, que levaram muitos dias para chegar ao destino. Na véspera do evento, tínhamos conseguido embarcar num automóvel dirigido por carioca da gema. Foi quando treinamos o patuá rebelde da malandragem, que poderia servir de passaporte no território selvagem a ser conquistado. Enquanto caía a noite e Neil Armstrong e seus companheiros chegavam lá, estávamos ainda aprofundados na desventura da dúvida em estrada interminável.

Só no dia seguinte, quando a luz da Zona Sul explodiu na saída do túnel, soubemos que tínhamos chegado tarde. Pior: estávamos ainda no Rio de Janeiro e não no Cabo Canaveral. Mas queríamos ir para o alto. Subimos então os degraus rotos do Morro do Pinto. Lá, um morador que nos convidou para uma cerveja na birosca mais próxima elencou seus argumentos contra a evidência do feito americano. Vimos como as versões nascem junto com os fatos.

Vindos do inverno sulino, inauguramos nossa proximidade com as regiões tórridas do país nos livrando das roupas espaciais: coturnos, pulôveres, campeiras e mantas, substituídas por trapinhos de turista gringo. Frios polares seguidos de altas temperaturas foi a única evidência de que tínhamos enfim chegado na Lua.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 28 de julho de 2009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. A imagem é da Nasa.

26 de julho de 2009

EMOÇÕES DO ESPORTE


Nei Duclós

Foi um fim-de-semana de lágrimas, de diversas procedências. As lágrimas boas vieram da seleção brasileira de vôlei, campeã da Liga Mundial pela oitava vez. Quando a nossa bandeira subiu ao som do hino, teve jogador que se desmanchou no pódio. As melhores lágrimas são as de Andrade (foto acima), o lendário jogador da fase áurea do Flamengo, sempre deixado de lado como treinador do seu time do coração e que neste domingo quebrou o chamado tabu ao liderar a equipe que derrotou o Santos pela primeira vez na História, na Vila Belmiro. Andrade dedicou a vitória ao amigo que morreu de câncer recentemente. Sua fala tremida, entrecortada, é oposta às falas decoradas que se ouve depois dos jogos. Andrade merecia ser efetivado no cargo. Mas parece que o rodízio de treinadores obedece a uma lógica mafiosa.

O pior choro, o mais demolidor, foi o da esposa de Felipe Massa no aeroporto antes de partir para Budapeste, pedindo orções para a recuperação do marido que, parece, está agora fora do perigo. Algo diz que talvez não seja tão simples assim. Existem edemas e inchaço no cérebro. Todos rezam para não haver sequelas, mas um piloto de Fórmula 1 não pode ter esse tipo de histórico médico,a não ser, esperamos, que haja um milagre. O importante não é só torcer para Felipe, uma presença admirável nas corridas, escapar ileso, mas continuar em forma para exercer esse perigoso esporte.

Aliás, nunca gostei de Fórmula 1 nem de vôlei, mas escrevo sobre isso porque as tragédias e as vitórias suadas e emocionadas provocaram um rio de choro . Tem o choro de cabeça inchada, dos corintianos que levaram três do Palmeiras, time que está recebendo o técnico vitorioso Muricy Ramalho, demitido porque o São Paulo não estava ganhando tudo, como tinha acontecido nos anos anteriores. Não dá para acreditar. O cara ganha tudo e de repente, por sofrer algumas derrotas, é considerado inapto para o cargo. O São Paulo deveria mirar-se no exemplo do Avaí. O técnico Silas chegou a amargar uma lanterna, mas foi mantido. Quatro vitórias seguidas colocaram seu time no décimo lugar do Brasileirão, podendo sonhar com a classificação para campeonatos internacionais importantes no ano que vem.


Eu não sei porquê me emocionei com o acidente estúpido do Felipe Massa. Sempre sou frio diante dessas corridas insanas de carros envenenados em pistas que terminam onde começam. Acho loucura, uma representação da brutalidade da hegemônica indústria automobilística, mas tratado como se houvesse algum glamour. Sim, existe talento, concentração, fôlego, coragem, agilidade e um monte de qualidades necessárias para os pilotos serem vitoriosos. Mas a essência da coisa não me diz respeito.

Quando o Ayrton Senna morreu, só me despertou o interesse óbvio pela notícia. O drama humano, tremendo, não me comoveu. Já com Felipe é diferente. Aquela perda do campeonato para o inglês no grande prêmio do Brasil, por uma fatalidade, realmente me chocou. Parece que Felipe está sempre às voltas com detalhes fundamentais que acabam mudando sua vida. Todos esperam que ele supere essa má fase, e nunca mais enfrente esse tipo de coisa, uma mola desprendida de um carro vinda em alta velocidade em direção à sua cabeça! é demais. E que volte para vencer, que é a sua vocação. Acho Felipe Massa um sujeito e tanto. Talvez seja por isso que fiquei bem passado com o acidente.

Uma coisa boa da vitória do Flamengo foi o gol de Adriano, quando a bola fez um zigue-zague e passou pelo goleiro, enganado na sua percepção. Só craque faz isso, dá esse feito para driblar o adversário, que vai certo no lance e nem desconfia que a bola obedece a comandos misteriosos, que só os grandes estilistas possuem. Vejo agora Adriano, que está afastado dessa bobagem de Imperador, apesar de insistirem com isso, com simpatia. Deixou sua carreira milionária para se dedicar ao Brasil. Como Ronaldo, expulso por tantos contratempos da Europa e que se encontrou no Corinthians. E que, no domingo, machucou o pulso. Vejam quanta coisa.

Mas ninguém ganha em carisma e simpatia do que o nosso grande craque Andrade. Parece mais velho do que é (nasceu em 1957, guri ainda), saiu aos prantos, de alegria, emoção, alívio e lembrança do amigo morto. Andrade é o cara do fim-de-semana. Representa o esporte brasileiro, que continua e vibra, como uma chama que não se extingue e brilha nos domínios do céu da Pátria. Longa vida aos esportistas do Brasil.

O QUE É UM INTELECTUAL?


Nei Duclós

Intelectual é quem produz pensamento. O intelectual orgânico, para aproveitar uma definição de Gramsci, é quem coloca a produção do pensamento a favor de um projeto de poder. Digo com minhas palavras, pois a verdadeira citação é de memória, para evitar que qualquer texto se transforme num amontoado de tijolinhos conceituais devassados pelo uso e sem nenhum sinal de elaboração, nem mesmo a reprodução de uma idéia com palavras próprias.

No original, o orgânico é quem, "em sintonia com a emergência de uma classe social determinante no modo de produção econômico, procura dar coesão e consciência a essa classe, também nos planos político e social". E o tradicional é "aquele que se conserva relativamente autônomo". Prefiro usar do meu jeito, substituindo a palavra "classe" por projeto ou sistema de poder e eliminando a palavra "tradicional". Adapto os conceitos em função da objetividade da argumentação. Isso também é produção de pensamento.


Intelectual é o Francisco de Oliveira , da USP, quando defende e divulga a tese do ornitorrinco, definição do Brasil como um cruzamento de miséria com agribusiness forte, entre outros paradoxos. Intelectual orgânico é o mesmo Francisco de Oliveira quando rompe com Lula ou quando apóia Lula no segundo turno. Ou seja, um intelectual pode migrar nas suas funções conforme sua atuação, sua prática, ou, para usar uma palavra que esteve na moda, sua práxis.

Intelectual é o Roberto Schwarz, citado um milhão e vezes aqui no Diário da Fonte quando define o vício do deslocamento entre realidade econômica e cultura hegemônica, esta sempre atrasada para viabilizar o papel subalterno que o país desempenha no mundo. Intelectual orgânico é o Roberto Schwarz quando se omite de um debate mais explícito sobre os projetos de poder, deixando à deriva sua teoria, para usufruto geral. Um intelectual precisa não apenas produzir pensamento, mas ordenar sua práxis em favor de um sistema voltado para a sobrevivência, no caso, na falta de um exemplo melhor, uma nação. E ainda mais específico, a nação brasileira.

Temos um intelectual voltado para a militância, como é o caso de Gilberto Vasconcellos, brilhante no seu diagnóstico sobre o enterro do trabalhismo como solução para a entrega da soberania do Brasil. Mas sua praxis erra quando luta por um vetor da gestão Ernesto Geisel dos anos 70, trazendo à tona Bautista Vidal e seus projetos de petroquímica e biocombustível. Tirar energia da biomassa foi no fim encampado pelo Bush e o Lula e significa exaurir o território nacional de seus recursos de terra arável, desviar um espaço estratégico para necessidades externas. O biocombustível entrou em descenso, pelo menos como exposição na mídia, depois da descoberta do pré-sal. Significa que a luta de Vasconcellos se esvaziou duplamente, quando foi encampada e quando foi deixada de lado, apesar de seu diagnóstico se manter atual.

Para um intelectual existir, é preciso sistemas de ensino eficientes, gratuitos e voltados para a pesquisa científica, não a pesquisa orientada para necessidades prementes do mercado, pois isso a iniciativa privada tem obrigação de prover. Você não pode transformar a faculdade de Economia da USP num balcão de negócios. Pega mal, ainda mais quando a crise estoura e o que era mercado é batizado de bolha. Você não pode atrelar quadros formados graças aos investimentos do dinheiro público a papéis secundários de pesquisas estrangeiras. Não podemos ser serviçais científicos.

Ultimamente se fala muito em aumento da massa crítica da produção de pensamento e resultados nos institutos brasileiro de pesquisa. Gostaria de saber o que há de vantagem para o Brasil nisso. Se todo esse material serve apenas para viver em torno de núcleos de produção de pensamento imperiais, das potências do Exterior, então valem pouco. Um intelectual precisa ser orgânico, não tem saída. Ele se põe a serviço de um projeto, que deve ser nacional, mesmo que tenha contribuição estrangeira. Outra coisa que acontece é que os quadros formados aqui acabam sendo exportados. Os pesquisadores estão certos. Quando não são valorizados, devem imigrar. Mudar essa situação deve ser projeto de políticas públicas.

Na imprensa, temos a miséria da filosofia. Os jornalistas, principalmente os mais notórios, não estão à altura dos atuais tempos bicudos, em que as exigências se intensificaram. Não estou falando em MBAs ou cursinhos rápidos no Exterior. Isso é conselho de consultoria, serve para dar status, não produção intelectual pesada, em universidade. Só assim é possível dizer alguma coisa sem cair no lugar comum. Os leitores também produzem pensamento e têm agora condições de veicular sem a ajuda nem de instituições de pesquisa e ensino nem de empresas de comunicação (mais envolvidas com grandes produtores de pensamento, como o colunista fixo da Folha há muitos anos, o atual presidente do Senado!). Faça um blog sobre ciência e pronto, tua palavra está lá, intacta.

Cabe a nós destacar as conquistas principalmente de intelectuais não notórios e que não estejam envolvidos nos esquemas mesquinhos de ascensão social, como aconteceu debaixo das minhas vistas quando motoristas de velhos calhambeques surgiram em palácios republicanos de luxo vestidos como príncipes. Devemos ficar em oposição à idiotice reinante, por mais notória e poderosa que seja. A falta de presença maciça de intelectuais responsáveis na superfície das mídias e da indústria cultural faz com que todos regridam à idade da pedra.

É como dizia o José Lewgoy no Pasquim quando comentava filmes de Mizogushi e Kurosawa: “É preciso ver esses filmes senão todos vão achar que Harold and Maude (um filmeco inglês sobre a relação platônica entre um guri e uma velha, muito famoso na época) é filme de arte”. Entrar nessa roda viva implica também o desmascaramento dos pseudo intelectuais, os que se comparam a Goethe e posam de estátua. Devemos agir para erradicar a distorção que a palavra intelectual atingiu entre nós. Como muitos intelectuais entraram na disputa pelo butim, ou se omitiram, ou apenas ficaram ostentando status e cargos, deixando a nação à mercê da bandidagem, a palavra intelectual virou nome feio, xingamento entre nós. Isso tem de mudar.

RETORNO - Imagem desta edição: foto de Daniel e Carla Duclós no Pergamonmuseum, de Berlim.

24 de julho de 2009

O BRASIL É OUTRA COISA


Nei Duclós

(Atenção: leia na seção Retorno e no espaço dos comentários a resposta do jornalista Augusto Nunes a esta edição do Diário da Fonte).

Augusto Nunes, no seu importante blog na Veja.com colocou a culpa das safadezas dos políticos brasileiros atuais nas origens e formação do Brasil. No mesmo blog, há um espaço dedicado às “lições” de Tancredo Neves que, como se sabe, tinha como seu vice o próprio José Sarney. Se Tancredo legalizou Sarney, até então figura destacada da ditadura, as origens (não a culpa) das mazelas do Senado devem ser atribuídas também a Tancredo Neves.

Mas Tancredo faz parte do panteão da neo-democracia, que nada mais é do que a consolidação do regime de 1964, com Sarney, Delfim Netto, até há pouco tempo o ACM (enterrado com honras de chefe de estado), medidas provisórias, política econômica, sistema político engessado e tudo o mais. Não se deve, atacando a nação, defender este regime espúrio, que faz rodízio de bananas no Palácio do Planalto com a conivência dos jornalistas, por meio do voto de cabresto (o voto útil), o marketing milionário, os arreglos dos donos do poder e a entrega da soberania.

Augusto Nunes é primus inter pares não só como jornalista – apuração, informação, análise - mas principalmente como texto – clareza, qualidade, talento. Mas neste caso ele está totalmente equivocado. Por ser uma sucessão de equívocos muito bem escritos (portanto, formadores de opinião), merece ser contestado.

O título do post é o seguinte: “O país nasceu por engano, balançou no berço da safadeza e agora é controlado pela aliança dos amorais.” O Brasil não nasceu por engano. O que nasceu com a expedição de Pedro Alvares Cabral em 1500 foi a América Portuguesa, não o Brasil. Isso aconteceu mais tarde. Como mostra a mais óbvia das fontes, a Wikipédia, “em 13 de junho de 1621, no contexto da Dinastia Filipina, o território da América Portuguesa foi dividido em duas unidades administrativas autônomas: o Estado do Maranhão, ao norte, com capital em São Luís, abrangendo a capitania do Pará, a capitania do Maranhão e a capitania do Ceará. E o Estado do Brasil, ao sul, cuja capital era Salvador, abrangendo as demais capitanias. Na época, o rei era Filipe III de Espanha, que era ao mesmo tempo Felipe II de Portugal. Em 6 de janeiro de 1815, no contexto das negociações do Congresso de Viena, o Brasil, unificado, foi elevado a Reino Unido a Portugal e Algarves, com o nome de Reino do Brasil, por força de Carta de Lei do então Príncipe-Regente."

O continente americano foi um dos objetivos da viagem cabralina, que continuou sua trajetória depois do pouso por estas bandas. A tese do acaso, sem contestações até há alguns anos, faz hoje parte da mitologia da nação. Não pode servir para o achincalhamento das nossas origens, mas para o entendimento da fundação mítica da terra que mais tarde virou o Brasil. Na História, na literatura, na memória, coexistem as duas versões, a mítica e a factual. Nossa Independência foi fruto de uma longa guerra, de 1821 a 1823, mas prevalece a versão mítica do Grito. O Exército foi fundado em 1824, mas ainda hoje se celebra o nascimento das forças armadas brasileiras na batalha de Guararapes no século 17. Devemos ter claras as diferenças. Não se pode brandir o acaso como fonte de nossas mazelas.

Em “Visões do Paraíso”, nosso Historiador maior, Sérgio Buarque de Holanda, faz minucioso levantamento da projeção, nas terras descobertas, do mito do Paraíso. É assunto sério, que envolveu a Igreja e o trono e foi fundamental para as políticas de colonização. Esse é um assunto carnavalizado várias vezes, mas não pode servir de argumento para um artigo de denúncia, a não ser que seja levado em consideração.

Continua Augusto Nunes: “O Brasil balançou no berço da safadeza. Souberam disso tarde demais aqueles viventes cor de cobre, sem roupas no corpo nem pelos nas partes pudendas, os homens prontos para trocar preciosidades por quinquilharias, as mulheres prontas para abrir o sorriso e as pernas para qualquer forasteiro, pois os nativos praticavam sem remorso o que só era pecado do outro lado do grande mar, e não poderiam ser tementes a um Deus que desconheciam”.

É uma visão distorcida do cunhadismo, tão bem abordado por Darcy Ribeiro. O índio negociava guerras, terras, despojos por meio de alianças. Ele não “oferecia” a mulher, a mulher fazia parte das negociações guerreiras. Se você casa com uma índia, sendo colonizador, imediatamente, acreditavam os índios, que viviam divididos e em luta permanente entre si, você vira aliado. O cunhadismo é estratégia, não safadeza. Ver como safadeza é preconceito contra a nudez dos índios, contra culturas diferentes , além de ver ingenuidade de cultura atrasada onde existia luta pela sobrevivência.

Augusto Nunes: “O Brasil nasceu carnavalesco. Nem um Joãosinho Trinta em transe num terreiro de candomblé pensaria em juntar na avenida, como fez o português Henrique Soares, maior autoridade religiosa presente e celebrante da primeira missa naquelas imensidões misteriosas, um padre de batina erguendo o cálice sagrado, navegantes fantasiados de soldados medievais, marinheiros com roupa de domingo, índios com a genitália desnuda que séculos depois seria banida da Sapucaí por bicheiros respeitadores dos bons costumes e a cruz dos cristãos no convívio amistoso com arcos, flechas e bordunas.” Pergunto: o que tem a diversidade de indumentária, hábitos e costumes a ver com o Carnaval? Achar que as pessoas estão fantasiadas, quando estão apenas usando suas roupas impostas por suas respectivas civilizações é no mínimo anacronismo. Não se deve confundir Sapucaí com Primeira Missa.

Augusto Nunes: “O Brasil balançou no berço da maluquice. Marujos ainda mareados pela travessia do Atlântico, ainda atarantados com a visão do paraíso, decidiram que aquilo era uma ilha e deveria chamar-se Ilha de Vera Cruz, e assim a chamaram até perceberem, incontáveis milhas além, que era muito litoral para uma ilha só, e pareceu-lhes sensato rebatizar o colosso ausente de todos os mapas com o nome de Terra de Santa Cruz, porque disso ninguém duvidava: era firme a terra que pisavam.” Não se trata de maluquice, mas de informação. Os mapas da época colocavam o Brasil como uma ilha. Elas acreditaram nos documentos que existiam. Não foi porque estavam atarantados.

Augusto Nunes: “O Brasil nasceu preguiçoso. Passou a infância e a adolescência na praia, e esperou 200 anos até criar ânimo e coragem para escalar o paredão que separava o mar do Planalto, e esperou mais um século até se aventurar pelos sertões estendidos por trás da floresta virgem, num esforço de tal forma extenuante que ficou estabelecido que, dali por diante, os nativos da terra, os estrangeiros e seus descendentes sempre deixariam para amanhã o que poderiam ter feito ontem.” Não se trata de preguiça , mas, mais de uma vez, estratégia. Os portugueses não permitiam incursões no interior para não despertar a cobiça dos estrangeiros ou abrir a guarda para eles. E só rompeu com essa proibição por pressão empreendedora dos colonizadores, que precisavam expandir suas atividades. Arriscaram a vida subindo a serra. Subir bem acomodado num carro é que é preguiça.

Augusto Nunes: “Tinha de dar no que deu. Coerentemente incoerente, o Brasil parido pelo equívoco hostilizou os civilizadores holandeses para manter-se sob o jugo do império português, o Brasil amalucado teve como primeira e única rainha uma doida de hospício, o Brasil da safadeza acolheu o filho da rainha que roubou a matriz na vinda e a colônia na volta, o Brasil preguiçoso foi o último a abolir a escravidão, o Brasil sem pressa foi o último a virar República, o Brasil carnavalesco transformou a própria História num tremendo samba do crioulo doido.”

Colocar a culpa “no crioulo” depõe contra o autor do artigo. “Tinha que dar no que deu” é uma jóia do vício de tirar conclusões de argumentações erradas, resultado do que já se pensava antes de brandir as “provas”. Chamar Dom João VI simplesmente de ladrão é ignorar, de propósito, a obra de estadista, tão bem apresentada por Oliveira Lima em seu clássico Dom João VI no Brasil. O Brasil preferiu permanecer Império, para manter sua unidade, do que esbagaçar-se em republiquetas. Quando Deodoro assumiu, o Brasil estava consolidado pelo longo reinado de Dom Pedro II . A Espanha ainda é monarquia, assim como a Inglaterra, a Holanda, tudo país atrasado, como se sabe.

Augusto Nunes: “O cortejo dos presidentes, ministros, senadores, deputados federais, governadores, deputados estaduais, prefeitos e vereadores aberto em 1889 informa que a troca de regime não mudou a essência da coisa: o Brasil republicano é o Brasil monárquico de terno e gravata, só que mais cafajeste. Muito mais cafajeste, informa a paisagem deste começo de século. Depois de 500 anos, os herdeiros dos traços mais detestáveis do DNA nacional promoveram o grande acerto dos amorais, instalaram-se no coração do poder e vão tornando decididamente intragável a geleia geral brasileira”.

A essência do Brasil mudou: era soberano, não é mais. No Império, já se usava terno e gravata. A República inaugurada em 1985 é que tem a culpa de todas essas mazelas, não o Império nem a nascente República. É em nossa volta que está o erro, em nós mesmos.

Augusto Nunes: “Nascido e criado sob o signo da insensatez, o país que teve um imperador com 5 anos de idade que parecia adulto é governado por um presidente que parece moleque. Com um menino sem pai nem mãe no trono, o Brasil não sentiu medo. Com um sessentão no comando, o Brasil que pensa se sente sem pai nem mãe.” Com 5 anos de idade, Dom Pedro era uma criança, não parecia adulto, vestia-se apenas como mandava o protocolo da Corte. O poder era exercido pelos regentes civis, que a partir da maioridade do imperador, decretada aos 14 anos, continuaram mandando até o Brasil virar uma monarquia constitucional – com o Poder Moderador mediando conflitos.

Nem o Império, nem a República foram totalmente safadezas. Assim como o Brasil não nasceu por acaso. Nem os índios da época do descobrimento eram carnavalescos ou ofereciam mulheres sem objetivo nenhum, só porque seria, digamos, “tropicais”. O Brasil é outra coisa. Como dizia meu professor de História Colonial na USP, Istvan Jancsó, “é complicado.”

Não poderia deixar passar esse artigo. É obrigação fazer o contraponto. Faz parte da liberdade que construímos à a margem dos poderes, no exercício sagrado de nossa profissão.

RETORNO – Imagem deste post: Primeira Missa do Brasil, quadro de Victor Meireles.

RESPOSTA DE AUGUSTO NUNES

"Meu querido Nei, é uma honra ter um texto comentado por você. E fico muito grato pelas menções elogiosas. Mas não quis fazer nenhum ensaio sociológico sobre o Brasil, nem produzir um diagnóstico tão complicado em alguns parágrafos. São anotações ligeiras e bem humoradas sobre fatos históricos (e aí talvez discordemos quanto a certos itens, o que me parece pouco relevante). Fiz de conta que os personagens saíram de algum livro da turma do realismo fantástico. Sobretudo, não quis de modo nenhum explicar o presente botando a culpa no passado. abração. Augusto Nunes."

MEU AGRADECIMENTO

Prezado Augusto: essa é a vantagem de comentar um artigo produzido por profissional da sua qualidade e prestígio. A reação é de grandeza, o que muito me gratifica. O fato de uma edição do Diário da Fonte, esse jornal solo onde exercito a profissão que aprendi com pessoas brilhantes do teu nível, ser comentada por você é mais do que poderia esperar.

Não pude resistir de fazer esse extenso comentário, pois mesmo sabendo que texto pertence mais à literatura do que à sociologia e à História, ele é uma síntese do que muita gente pensa sobre nosso pais, com graves conseqüências, à revelia de quem a difunde. Como tens uma arma poderosa à disposição - teu texto de primeira inserido num veículo importante - é preciso que as pessoas que discordam e tem algo a dizer se manifestem.

Falam tanto em democracia e vemos como essa palavra serve de repasto para a politicagem. Mas, felizmente, democracia é o que fazemos nos nossos espaços jornalísticos, virtuais ou impressos. Uma liberdade conquistada e que precisa ser alimentada pelo conflito pautado na ética, o debate acima das posições ideológicas e políticas e dentro do espírito público que caracteriza o bom jornalismo.

Obrigado, Augusto Nunes. E continuo lendo e assistindo teu blog, excepcional em todos os sentidos. Abs. Nei Duclós

23 de julho de 2009

NA MADRUGADA


Nei Duclós

No primeiro vento
o ramo caiu
atrás do espelho

O raio comeu
a cama do som
espúrio

O mistério calou
teu corpo ainda
miúdo

O amor gelou
a fresta íntima
do forro

Ouvimos um baque
no escuro. Uma estrela
pediu socorro

RETORNO - Imagem de hoje: Rembrandtpark, Amsterdam - foto de Daniel Duclós.

GOL DE PLACA NO MIOLO DO CAMPEONATO


Nei Duclós

No jogo desta quarta-feira no Beira Rio, em Porto Alegre, o gol mais bonito foi o de Jean, do São Paulo. Um pé atrasou a bola por um espaço mínimo, o suficiente para o outro pé bater com efeito e por elevação. A bola subiu em elipse, cobriu o goleiro, raspou na trave e entrou, provocando desespero no Colorado, que já contava com a partida ganha desde os dois a zero do primeiro tempo e a perda de um pênalti por parte do adversário. O futebol é aparentemente aritmético e analógico, quando no fundo é quântico e virtual. O espaço do gramado não é o mesmo do jogo. A grama está confinada por números exatos, o jogo transcende os limites, dribla a percepção e faz gol de cobertura na mesmice do noticiário.

O gol de Jean foi visto como resultado de "um lance despretensioso" pela reportagem de plantão. O atleta teria tentado cruzar simplesmente. Foi então pura sorte, um desvio de conduta da bola endereçada para outro objetivo, o miolo da área, onde se decidiria o lance. Acho má vontade do jornalismo esportivo. Você não pode desvirtuar uma jogada só para não arriscar o pescoço, pagar o mico de ser enganado. Então, aposta no pior achando que está certo.

Parece que há medo de dizer: foi um golaço de verdade, pois nasceu de uma elipse, de uma curva sofisticada, de uma bola de efeito. Surpreendeu todo mundo e foi fruto da agilidade de pensamento do jogador, da sua presença de espírito e da noção que tem da possibilidade de inventar espaços onde ele não existe. Você não pode decidir apenas baseado no que você vê. Pois você enxerga o que dizem ou o que está treinado para ver. Não é como um tira-teima, que mede os centímetros de um impedimento, como foi feito nos dois gols de Alecsandro, do Inter.

Dizer que Jean quis fazer uma coisa e foi brindado pelo acaso é apenas uma opinião. Agora, dizer que foi um gol proposital, pensado na velocidade da luz e que decidiu a sorte do jogo, é mais do que uma opinião, é o reconhecimento dessa graça misteriosa, o talento, tão negado pela mediocridade reinante. Os medíocres não acreditam num lance genial, acham sempre que aí tem, alguma coisa foi feito errado. São capazes até de convencer o próprio autor da façanha de que ele não quis fazer aquilo mesmo.

Num domingo desses, Tabajara Ruas me provou, baseado na experiência do futebol pentacampeão do mundo, que Ronaldinho Gaúcho mirou no gol e acertou no jogo contra a Inglaterra em 2002. Não foi sorte a bola ter cruzado o espaço sideral e se depositado na gaveta, para espanto dos ingleses, que até aquele momento achavam que dominavam o mundo. Ali eles viram que existe algo fora do alcance e se renderam às evidências da civilização atlântica.

Gostei da rodada do Brasileirão, que teve uma importante vitória do Avaí, aqui da ilha, contra o Grêmio, o que fez o time da casa subir ao 16º lugar e sair da zona do rebaixamento. O campeonato de pontos corridos está pelo meio e os jogos pertencem ao Brasil, não tem estrangeiro enchendo o saco. Gostei que o Nilmar está satisfeito no Colorado e recusou a proposta dos alemães. Nilmar é liso e desde que driblou sete para fazer um gol de placa está sendo perseguido em campo. Nesta noite contra o São Paulo, fez pouco. Mas não se deve subestimar um craque. Nem mesmo um jogador considerado médio.

Jean é um bom sinal. Ele atrasou a bola para si mesmo quando estava com dois zagueirões na suas fuças. Estendeu o braço, encolheu uma perna e chutou na base da bola, de um jeito que ela rodasse no ar. A bola, então, discípula dos vislumbres e da imaginação criadora, rompeu os cubos e quadrados da nossa expectativa. E projetou-se por trás do goleiro depois de atingir a altura da Lua recém eclipsada. Beijou a trave e chiou a rede, que naquele momento era o conjunto dos nervos da massa proprietária do Beira Rio.

Depois desse lance, os colorados não deixaram mais o juiz em paz. Mas a verdade é que o time subestimou o adversário, quis dar olé no meio da partida e abriu a guarda. O juiz é um desastre, mas deve-se admitir que o time vacilou. "Chove, governo ladrão", como dizia o italiano anarquista.

22 de julho de 2009

O EXORCISMO EM CÁSSIA KISS


Nei Duclós

Cássia Kiss, no papel de Mariana na novel Paraíso, da Globo, incorpora a insanidade da mãe que acredita na santidade da filha. Está obsedada pelo Mal apresentado como a intensificação do Bem. Ela se transformou naquela criatura, por isso suas falas parecem ser espontâneas (deve ter improviso, mas isso faz parte). Trata-se de uma personagem-imã, que atrai o vazio da nacionalidade ágrafa e o preenche com palavras marcadas, idéias fixas, arranques, rezas, invocações, maldições, calúnias. É assustadora.

Mariana defende sua loucura em posição de combate, sempre em guarda e assim consegue dobrar quem a circunda. Todos desistem de lutar contra ela, a não ser por vias indiretas. Confrontá-la resulta no embate contra uma parede. Cássia entope a personagem dessa brutalidade para que possamos vê-la e, assim, nos livrar dela. Faz um auto-exorcismo, denunciando a obsessão como sintoma de uma doença maior, que toma conta do país. Não pode haver debate se cada indivíduo está tomado pelo fundamentalismo de suas certezas toscas, e com elas tenta manipular os semelhantes.

Na política, temos os eternos tungadores do dinheiro público. Na religião, os papa-bíblias com suas arengas em praça pública. Nas ciências humanas, os guetos ideológicos deglutindo teorias para o enriquecimento ilícito. Na literatura, os prêmios com cartas marcadas. Na mídia, a frescura instaurada como verdade única. Nos microfones, os falsos moralistas. Nas consultorias e auto-ajuda, os espertalhões superficiais e focados na desgraça alheia. Na educação, a burrice crescente e o analfabetismo endêmico. Nas instituições, o abandono. Nos negócios, a criminalização. Nas ruas, os assassinatos. Nas casas, os conflitos insolúveis. Na juventude, a morte em massa. Na terceira idade, a falta a de sobriedade.

Tudo isso conflui para uma personagem exagerada como Mariana, que não escuta, só cria monólogos, não luta pela felicidade da filha, só quer que ela cumpra o falso destino. Cássia Kiss não é apenas um destaque, é um petardo, uma bomba nuclear em meio à palermice interpretativa geral, capitaneada por Carlos Vereza, que, como o cura da aldeia, repete sua performance preguiçosa do coitadinho de voz trêmula. Cássia Kiss é o oposto. Ela mergulha fundo na sua obsessão, fazendo um contraponto poderoso numa narrativa frouxa, proposital para o horário, onde, acreditam os executivos da televisão, só existe abombado(a) sentado(a) em frente à telinha.

Suas conversas com a santa, suas orações autistas, as certezas criminosas, os monólogos aos arranques, a coerência de uma psicopata dão firmeza ao personagem, único rochedo em meio à maresia, onde o resto dos atores e atrizes, com algumas exceções, se escudam no falso sotaque caipira e choram o tempo todo. Os homens são uns bobalhões de chapéu de cowboy, menos o Reginaldo Faria, que tanto pode ser Brás Cubas quanto aquele coronel de fala mansa e dura da novela. Reginaldo poderia muito bem assumir uma fazenda e dar ordens, que todos obedeceriam; o cara detona.

As mulheres são umas frangas fofoqueiras - com exceção da Fernanda Paes Leme (na foto ao lado), subaproveitada no papel de filha do prefeito e que poderia fazer um estrago se tivesse admirador do gênero na direção. Com Fernanda em cena, há sempre graça e contenção. É uma interpretação suave, bem feita, mas que aparece pouco. Fica o "fio do demo" tomando conta de tudo, aquele bananão.

Cássia Kiss diz que para ela não tem personagem menor. Gosta de pegar um papel de pouca importância e arrasar. No caso de Mariana, é uma peça chave da novela. Ela aproveita ao máximo. Tira leite de pedra. Há espaço para a interpretação de nível mesmo em espaços condenados. Achei que Paraíso copiava a novela Cabocla. É pior: copia a própria novela Paraíso, de anos atrás. Sorte que tem Cássia Kiss para virar a mesa. Pode parecer óbvio fazer a beata louca. Pode parecer um lugar comum. Mas nesse caso, não é. Cássia manda ver na sua arte e quem ganha é o público.

21 de julho de 2009

A PIOR MEDICINA


Nei Duclós (*)

O efeito colateral faz parte da medicina invasiva. Funciona como um dominó. Quando queremos acertar um lado, o outro se manifesta. Deixar como está, na maioria dos casos, leva a mais desastre. Não há saída. Seres datados, nosso destino é nunca ficar pronto, até o desenlace. Ainda mais quando contamos com um sistema de saúde voltado para a eliminação dos necessitados.

O noticiário está cheio de casos parecidos. Ficar no corredor virou privilégio. Bater em portas de hospitais lotados parece ser comum no país que gasta mal e errado, quando poderia investir em serviços essenciais. Mas esses só são lembrados em campanhas eleitorais. As soluções ficam sempre para o próximo mandato.

É a história da cenoura amarrada na frente do burro. A promessa confisca o voto, investido numa ilusão, a de termos acesso ao que nos falta. Quando nos damos conta, voltamos ao ponto de partida. Rodamos para movimentar o moinho dos custos oficiais, cada vez mais vorazes. “Mientras tanto”, como dizem os hispânicos, a infra-estrutura aguarda providências da política envolvida com a lavagem eterna e recorrente de roupa suja. Dinheiro vai para castelo falso, mas com despesas reais, promovidas por castelões impunes.

Como não se criam soluções, os problemas se acumulam e acabam sendo adaptados pelos porta-vozes oficiais. A gripe mortal vira gripe comum, a dengue some do noticiário, o câncer devasta mais do que bomba nuclear, mas tudo isso é considerado normal. Endemias antigas, como hanseníase, mal de chagas, febre amarela unem-se às emergentes e voltam com tudo, já que a cidadania abandonada é o repasto ideal para as criaturas invisíveis do planeta hostil.

É como se estivéssemos sobrando e sofrendo os efeitos de uma conclusão perversa, a de que o excesso de população incomoda quem está no topo da pirâmide. Há escravos demais, mesmo aquela porção de consumidores primitivos, a que deve por duas vidas por comprar móveis podres, que são levados na primeira enchente. Para que salvar gente, se os recursos cumprem objetivos nobres, como financiar a vagabundagem bem posta, que vive de renda suspeita?

Erra quem insiste nessa tecla. As palavras também adoeceram. E são tratadas pela pior medicina: a indiferença.

RETORNO - (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 21 de julho de 2009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.

20 de julho de 2009

O VERBO HABITADO


Nei Duclós

As palavras fazem sentido quando alguém mora nelas. Casa abandonada, imóvel vazio, tapera, fachada, é o que mais tem na praça. Varandas com luzes acesas de dia, significando ausência. Cães com sede, caixa de correspondência abarrotada, janelões de vidro, prédios úmidos tombados à espera de leis: as cidades são um conjunto de fugas, intensificadas por praças às moscas, onde dormem maltrapilhos. Calçadas tomadas pelo comércio sujo, por estacionamentos improvisados, por postes que interrompem o caminho, por lajotas soltas. Grama crescendo no meio do asfalto. Paralelepípedos empilhados montam guarda junto a uma placa, de letras enferrujadas. Assim é o texto, o poema, o discurso, a reportagem: uma engenharia de ruínas.

A não ser que existam pássaros que são recebidos pela neta olhando, com sono, pelo vidro embaçado do inverno. Ela sorri, ao lado do leite morno. Há cheiro de edredons limpos que tomaram sol. Mesa do café com debate sobre um filme, um livro, uma notícia. Pilhas de papéis em desalinho, onde se acham preciosidades. Sopros súbitos de portas que se abrem. Passos de avó silenciosa a esfregar as mãos. Adolescentes vidrados numa tela. Homens e mulheres prontos para o trabalho. Barulho de escolas nos uniformes de alunos apressados. Assim é a palavra habitada, a que fica e deixa descendência.

Mas existem as férias, as viagens e por alguns dias ou semanas o verbo se esvazia de sentido e ficamos sós diante do mar e o destino, a esperar as baleias que ainda não aportaram por essas bandas. Temos as gaivotas, mas elas não são novidade, não obedecem ao ciclo das aves, não arribam, não nos deixam. Somos como as pedras nesta praia eterna, a aguardar navios ancestrais soltos pelo ar. Queremos a transcendência e para isso preparamos a frase, o verso, o quadro. Somos os artistas que cultivam o sereno em baías atormentadas por cardumes extintos.

Queremos compartilhar o júbilo da criação, sentinela de nossos hábitos. Queremos a música dessa transfiguração, a arte em todos os sentidos. Mas vemos pessoas impermeáveis, rostos de ganância, loucuras mansas, tremores brutos a cavocar linhas na paisagem humana sem futuro. Fazemos parte desse desespero. O espelho aponta como somos, idênticos aos que nos cercam. A diferença é que guardamos talentos, moedas de uma história oculta, para gastar em empreendimentos de sonhos. Somos mal vistos porque escapamos do ruído que vampiriza o tempo.

Por isso andamos em busca de ruas onde crianças brincam, adultos conversam, pipas se enforcam nos fios. Queremos bater no portão para dois dedos de prosa. Queremos lembranças, projetos, canteiros. Quem nos receberá com nosso verbo arduamente habitado? Talvez os que se foram e precisam de qualquer oração, desde que tenha calor, fogo branco. Talvez os que ficaram para trás e olham os comboios sumirem no horizonte. Ou talvez os guerreiros do front, com os quais nos enquadramos, a dividir armas de uma guerra insepulta. Combateremos lá, na sombra cometida pelo desatino e o desgoverno.

Estamos chegando. As palavras são apenas a vanguarda do que somos capazes de fazer, neste tsunami. Anunciamos a hera que cobre o muro e o transforma em cerca viva, a bola que é chutada para o centro da rua, o vento que deslumbra, a luz que derruba, os corações que ardem. Somos alguma coisa parecida com um anjo. Há um exercício de asas, um recreio de vozes, uma carga de raios. Notem como se agitam as casas abandonadas. Elas recuperam a esperança de expulsar o pó. Trazemos o pão na cesta de vime. Somos o despertar de uma estação ainda dividida entre o sono e a batalha.

RETORNO - Imagem desta edição: cena do filme Asas do Desejo, de Wim Wenders.

19 de julho de 2009

CANTEIRO DE OBRA


Nei Duclós

Marreta no pátio
Serra no ferro
Martelo no caibro
Arame no teto

Aço temperado
Vidro inquebrável
Barro vermelho
Piso de mármore

Carrinhos, escadas
Fuligem, selagem
Rejunte, reboco
Parede, ferrugem

Tábuas com pedra
Grua, concretagem
Massa e pintura
Pincel e balde

Palavra na planta
Saco de aniagem
Embrulho de pano
Suor, serragem

Poema é fuligem
Ar impregnado
Mistura de lixo
Com reciclagem

RETORNO - Imagem desta edição: Singel Amsterdam, foto de Daniel Duclós.

FICO


Nei Duclós

Nenhuma palavra brota do silêncio
Voltado para o canto escuto o vento

Nenhuma conversa opera no silêncio
Dobrado no quarto enxergo o tempo

Nada foi escrito na folha do silêncio
No mudo soluço enfim esclareço

Nenhum som interno sugere o silêncio
Grita o copo branco no bloco fosco

Nenhuma viagem parte o silêncio
Desço do avião e fico para sempre

RETORNO - 1. Imagem desta edição: Lagoa, foto de Miguel Duclós. 2. Minha crônica Michael Jackson e a infância reinventada foi publicada neste fim-de-semana na revista Donna DC, do Diário Catarinense.

18 de julho de 2009

GRIPE SUÍNA: O PODER LAVA AS MÃOS


Nei Duclós

O Jornal Nacional ensina: a única prevenção contra a pandemia é lavar bem as mãos. É fácil: você deixa a água escorrer, diz a reportagem, molha as mãos e massageia com sabão, depois enxágua (é a pura verdade, eles foram bem didáticos). Viu? Assim você poderá evitar o vírus que, claro, circula livremente pelo país. Quem acreditava que eles poderiam monitorar o que quer que fosse?

Monitorar é o verbo da hora. Tem o mesmo significado de estado de alerta: todo mundo de olho parado, depois vão dormir. Quando uma cidade decreta calamidade pública, significa que não tem mais jeito, fodeu. Assim é a gripe mortal. Veio, se espalha e mata. Mas não invente de sentir medo. Nada de pânico, que o governo não gosta. Não saia gritando que nem louco. Não tem vacina, nem leitos, nem remédios suficientes. Fique frio. Cool, man, cool. Que isso passa. Ou, como disse o médico entrevistado, “se desdobra até o óbito”.

Primeiro, a culpa era do México. Depois, dos Estados Unidos. Não demorou e los hermanitos pegaram a dianteira. Aí veio vindo, veio vindo até o estado gaúcho. Mas já foi formada uma força-tarefa. Uma assessoria especial. Um conselho curador. Funciona assim. Você unge meia dúzia de apaniguados, todos sem conhecimento nem tempo para fazer qualquer coisa e isso transmite tranqüilidade à nação abandonada. Basta um deles dar uma entrevista de vez em quando e pronto. Está resolvido.

Mientras tanto, pessoas desesperadas, com pneumonia, precisam aguardar na fila, no frio, cruzar a madrugada ao relento, para ser internada ou atendida na manhã seguinte. Morre obeso, morre jovem, morre mulher, morre criança. Normal. Nada de se escabelar. O troço não tem cura. Soube que a Holanda comprou duas doses de uma vacina ainda em fase experimental (melhor do que nada) para cada habitante do país. Para isso servem os governos: para proteger, assistir a população. Para isso existem países: para que seus habitantes possam sobreviver.

Mas não aqui, em que sucessivos governos se esmeram no papel de serial killers. Policia mata oito numa blitz, mulher dá facada em marido, carro sobe na calçada e atropela até a morte três. Mas não tem perigo. Cada dia nasce um novo e gigantesco pedágio. O leite sobe cinco centavos ao dia. O pacote de pão é cada vez menor, limitado pelo poder aquisitivo. Mas a reportagem não cansa de provar quitutes. Hummm, está muito bom.

Já viram a carnificina das sete horas da noite na Band? Louco seqüestra funcionário que veio ler o relógio da luz e o tortura por um dia inteiro. Policiais fazem parte de quadrilhas gigantescas. Balas perdidas matam inocentes a torto e direito. Aí você passa para a Globo e a novela é Paraíso. A Globo dissemina o equilíbrio social: todos zen, mortos de fome mas se regalando com a comilança das novelas, imagem nítida e super-colorida, hare baba fio do demo ara.

Dá vontade de pedir minha cidadania de cachorro paraguaio, como dizia o Tarso de Castro.

RETORNO - 1. Imagem desta edição: Ecce Homo ("Eis o homem"), pintura de Antonio Ciseri, representando a apresentação de Jesus Cristo por Pilatos à população de Jerusalém. 2. Morre Walter Conkrite: o jornalismo clássico se despede. Volta, jornalismo, volta vocação das nossas vidas, venha informar, desmascarar de novo a tirania, venha ver o sangue sobre os campos e as cidades.

17 de julho de 2009

A OPINIÃO PÚBLICA


Nei Duclós

Legislar, interpretar e aplicar leis vale mais do que opinar, pressionar, denunciar, votar, se insurgir. A força da lei não é inspirada nas necessidades sociais, expressas por uma opinião pública articulada, mas sim nos interesses hegemônicos, que são os do estamento político civil, responsável pela atual ditadura no país. Os congressistas, os executivos das três esferas de poder, e o sistema judiciário não se dobram, porque a opinião pública está engessada em inúmeros aparelhamentos. Faz parte da periferia do estamento, ou ocupa posição periférica nos indivíduos e grupos que tem de sobreviver na indústria cultural ou da mídia. Ou está amarrada ao sistema partidário, que dita as regras do relacionamento econômico, financeiro, comercial, industrial, institucional, comportamental. Ou gira, com o individualismo dispersivo, em redor das mesmas indignações sem repercussão no mundo real.

O Brasil existe porque eles deixam. Mas isso não vai longe. Chegará o tempo em que o último brasileiro vai conseguir cidadania estrangeira para fazer parte do exército de ocupação. Como não vou mais estar aqui, usufruo dos últimos momentos da nação soberana, a que se recolhe à opinião privada, que é a circulação livre de idéias e projetos que não existem oficialmente no país submerso no arbítrio e na tirania. Temos enorme massa crítica que não fede nem cheira.

Para haver opinião pública, não basta ter opinião formada sobre tudo. É preciso que uma síntese dela encontre representação real, ou por meio de uma agremiação, partido, clube, organização, ou mesmo uma liderança, isolada ou não. Como cada brasileiro hoje é líder de si mesmo e se lixa para a opinião dos outros (pública e privada) nada podemos fazer contra o desmatamento, o castelão impune, o senador roubalhão, o deputado facínora, o governador cretino, o militante profissional da greve, o indiferente poltrão, o patrão com polícia pessoal, o grileiro tradicional, o neo-invasor de terras, o lobista que anda de jatinho à custa da corrupção, a ostentação impune, na crônica social, de perus e peruas de todos os calibres.

O núcleo do poder está impermeável a qualquer interferência. Se você pegar os principais maganos que mandam no país e fuzilá-los, nada irá mudar. Milhões de substitutos virão á tona, pois o que existe é um esquema granítico de tunga coletiva, a favor da entrega do país aos seus senhores. Então, de que adianta? Hoje, se prega abertamente o golpe de estado, uma espécie de retorno às origens do projeto militar de 64, o que serviu de álibi para o coronelato civil eliminar sua principal oposição, o trabalhismo. Os comunistas são fáceis de manipular, basta colocá-los numa Kombi e jogá-los no abismo ou no mar ou então reuni-los num ônibus e distribuir-lhes alguns ministérios. Pronto, viram coisa. Aí é fácil.

Qual a saída? Ter percepção clara de processos complicados e participar de alguma síntese que tenha força de fato. Não falo em força armada, mas em força gerada pela imposição de princípios e metas. Pode-se argumentar: estamos fartos de diagnósticos e de projetos. Faço a ressalva: diagnósticos errados geram projetos falsos, que acabam em nada. O problema é que essa frustração fica sendo a revolta real. Na hora em que você enxerga errado, toma a decisão errada. Você participa então de uma ação totalmente equivocada. Esse equívoco substitui o projeto que não veio à tona porque não acertamos desde o início. Resultado: anulação geral e coletiva. Ou então, carregadores de bandeiras remunerados a cinco reais o dia.

Erramos e nos recolhemos porque não deu certo. O que deve ser feito é ver direito e agir direito. Senão a direita já tem a solução: basta derrubar o poder civil do Planalto e repor o militarismo, ou a direita que assume a indignação popular (a opinião pública). É mole ser de direita. É lucrativo hoje ser de esquerda. O que não dá dinheiro e nos deixa enlouquecidos é sermos lúcidos e não termos o poder de nos aglutinar em torno de algo que não faça parte da merda generalizada.

Ontem, no intervalo do Jornal Nacional, o PSTU fez um programa fundado no Jornal Nacional. Com uma oposição destas, que se submete à linguagem hegemônica, o que poderemos esperar? Ei, PSTU: não existe o “conteúdo” (crítica à política econômica, por exemplo). O que existe são dois apresentadores e links em Brasilia mais entrevistinhas de povo-fala. Se vocês fazem isso, igualzinho ao jornalismo global, não importa o que digam, são apenas clones. Vocês dançam, entendem? É preciso desengessar a linguagem e isso só acontece quando você se liberta dos lugares comuns do pensamento político. Enxerguem diferente e ajam de modo diferente. Conhecem o materialismo dialético? É uma boa ferramenta. Não fiquem vendo JN, leiam Marx.

RETORNO - Imagem de hoje: Guerra do Contestado, a Guerra Desconhecida, magnífica edição do Canga Blog, do jornalista Sérgio Rubim, autor de documentário sobre o tema.

BATE O BUMBO: O MELHOR DE RENZO MORA

Conheça a mais brilhante e engraçada obra da blogosfera, a de Renzo Mora, autor dos livros: Fica Frio, Uma Breve História do Cool - Sinatra, o homem e a música - Cinema falado (só sobre frases antológicas do cinema). Destaques para personalidades como Sinatra e Dean Martin (foto, precisa dizer?), Miles Davis, David Letterman etc. Compre os livros e quando houver lançamento, compareça. No seu imperdível blog, leia sobre o funeral do travesti do Ronaldo na onda do funeral do Michael Jackson; e o convite feito pela Nasa a Blake Edwards para fajutar as imagens do homem na Lua. Conheça Renzo Mora, entrevistado neste site.

Além disso, selecionei alguns trechos da sua verve:

"1.Como vocês estão cansados de saber, o sistema de Stanislavski (e não o “método”, que era ensinado por Lee Strasberg no Actors Studio) se baseia na interpretação de que o ator deve “viver o papel”, mas mantendo um distanciamento da entrega absoluta – ou seja, deve se descolar da personagem, ainda que demonstre suas emoções.

Diferente de Brecht, que exigia o distanciamento da platéia (“distanciamento, e não paixão” era seu lema) para que a peça pudesse acordar a mente do espectador a fim de comunicar sua versão da realidade, então os atores deviam demonstrar que estavam no palco, e não na vida real.

Imagine você explicando uma porra dessas para o Charles Bronson.

2. Ainda em fase de impressão, o novo livro de Renzo Mora “Cinema Falado” (acompanhado do livro bônus “25 Filmes Que Podem Arruinar Sua Vida”) já está mobilizando os críticos. Intelectuais que tiveram acesso às provas da obra compararam o trabalho à produção da grande crítica de cinema Pauline Kael. “Comparado ao trabalho da Pauline Kael, o livro de Renzo Mora é uma merda” sentenciaram os críticos. Conhecido pela falta de classe e refinamento, Mora respondeu “enfia a Pauline Kael no cu”.

3. Os chineses usam o mesmo ideograma para definir crise e oportunidade. O que podemos aprender com isso? Nada. Aparentemente, eles também usam o mesmo ideograma para chamar tanto um porco-espinho quanto uma mesa para quatro pessoas posta para refeições, o que já provocou mais de um incidente em restaurantes chineses."

16 de julho de 2009

JOGO BRUTO NA FINAL DE VIDA OU MORTE


Nei Duclós

Uma partida que decide um campeonato se diferencia de todas as outras porque um dos times morre para sempre no final do jogo. Não é um mata-mata no meio do caminho, como acontece na Copa do Brasil. Nesse momento da eliminação, os jogadores voltam para casa sem ter passado o vexame de chegar no limite e não conseguir. O drama verdadeiro é ter a taça ao alcance da mão e vê-la escapar para os braços do seu pior inimigo. E no futebol, todos sabem, o pior inimigo são os argentinos.

Não porque eles sejam tudo isso que acreditam ser. Mas porque costumam convencer que dispõem desse destino inventado. Eles formatam essa criatura principalmente quanto enfrentam os brasileiros. Geograficamente, a Argentina é um aleijão, fruto das derrotas em campo de batalha. Perderam o Uruguai e todo o território, hoje brasileiro, que vai até Santa Catarina. Como são aleijões geográficos, criaram o mito de melhores do mundo. Isso acontece em sociedades isoladas. Para os peixes do aquário, quem troca a água é Deus, disse um dia Mario Quintana.

Mas não podemos desprezar nossos vizinhos, mesmo reconhecendo que eles são insuportáveis nessa gana de vencer a qualquer custo. Precisamos entendê-los, como se faz com grupos humanos problemáticos. E uma final da Libertadores, como a que tivemos nesta quarta-feira entre Estudiantes de La Plata e Cruzeiro no Mineirão, é a chance de focar os muchachos que se expressam às patadas porque não amadureceram para a possibilidade de, um dia, morrer.

Tivemos um primeiro tempo que pode ser comparado a uma arena onde é permitido o assassinato. Foi um tropel de brutos, um clube da luta. Pisar covardemente o adversário caído, dar tapa no rosto na frente do juiz, tranco por trás com ajuda do braço foram expedientes usados que fazem sombra a sacanagens clássicas como o carrinho – aquele arrastar de chuteiras em direção ao tornozelo de alguém, num impulso de todo o corpo repentinamente transformado em avalanche. Esse primeiro tempo, sem gols, foi a intensificação do jogo anterior, na Argentina, em que duas camisas exasperadas travaram um duelo sinistro, mas que só chegou às chamadas vias de fato no Mineirão.

Mas no segundo tempo, o clima mudou. Conformados em ter de jogar futebol e não participar de um chacina, os jogadores se concentraram num jogo rasteiro e corrido até chegarem, cada um, a um gol. O empate civilizou a contenda e houve uma trégua nas botinadas, apesar de continuarem as provocações, as ameaças, as quedas falsas, as faltas cavadas.

Alguns jogadores sintetizam a identidade do jogo. Ramires, por exemplo, da seleção brasileira, joga futebol, não é de luta. Até, pelo menos, o milésimo tranco de Verón. O excesso do capitão argentino transfigurou o craque, que acabou se rendendo à brutalidade ambiente. Isso anulou-o perante um jogo que precisava dele para virar. Sim, porque ao fazerem o segundo gol, os argentinos celebravam o assassinato do futebol brasileiro e projetavam a determinação de não deixar mais ninguém colocar mão na taça. Essa gana dos hermanos é uma espécie de segunda natureza, despertada quando algo ameaça a hegemonia que imaginam desfrutar perante o resto do mundo (no caso, o Brasil).

Kleber, tão incensado, também entrou na roda argentina, que chamam de catimba, mas é coisa pior. A estrela cruzeirense perdeu seu tempo tentando revidar e acabou nas garras do tango. Tornou-se inútil, então, o único gol de Henrique, ou o bolaço no travessão da cidadela platense, ou, ainda, o esforço de todos os jogos anteriores. Uma final perdida joga por terra tudo o que foi feito antes, inclusive o sacrifício do time perante o Brasileirão, o campeonato que resta ao Cruzeiro agora. Voltar à vida real caindo pelas tabelas é o pior dos pesadelos.

Enquanto os brasileiros sofrem, a massa adversária presente ao estádio canta canções de guerra e pula a alegria dos vitoriosos. São danados esses caras do colosso de prata. Eles conseguem se superar e até se acertar nesse esquema que os define, o de serem uma correria em campo com precisão de relógio cuco. Isso seria não reconhecer o mérito alheio? Claro que não. Trata-se apenas da constatação dos fatos. No dia em que eles te convenceram que são mesmo essas sumidades do esporte bretão, pode recolher as chuteiras. A Argentina consegue vencer aqui e ali, mas sempre será o vizinho que cobiça o gramado alheio. Por isso se acaba na luta de vida e morte das sucessivas finais do futebol.

Para eles, é importante provar que são melhores. Nós, que não precisamos provar a evidente hegemonia, somos apenas o resultado da nossa vocação real de gigantes. E toda grandeza tem memória dos antecedentes, dos maracanazos, dos saltos altos, das omissões. Aprendemos que perder, morrer em campo, acontece. É uma fatalidade passageira.

Por enquanto, a verdade é essa, das vagas estrelas do Cruzeiro, a constelação que se diluiu num carrossel vermelho e branco.

EXTRA: ABRAÇO MORTAL E LIBIDO

1. Você votou em Lula em 1989 para derrotar Collor? Dançou. Você, no fundo, votou em Collor. Os dois se abraçaram ontem e juraram fidelidade. Todo aliado do Lula, todo aquele que justifica os atos do presidente vândalo, hoje é Collor de Mello. Gostaram? É assim que a ditadura do voto de cabresto, o voto útil, faz. Sem mencionar que a alegria do encontro entre os dois palhaços foi pontuada por uma explosão explícita de um roçar de egos. Cada um tem a alegria que merece.

2. Os americanos estão preocupados com a repressão à libido em época de América politicamente correta. A Esquire, num artigo assinado por S.T. VanAirsdale, diz textualmente: “Obama can't check out a behind”. Ou seja, o presidente deles nem pode olhar o traseiro (ou dar uma checada no busanfan de uma brasileira), que todo mundo corre para desmentir. Deve ser direito adquirido esse, o de olhar uma brasileira pelas costas, abaixo da cintura. O jornalista acha que Harry Potter está influenciando os machões do futuro, tornando-os docinhos da mamãe. O cara gosta do Charles Bronson, deve ser isso. Está explicado. Ele assume o bordão das perigaças: “Falta homem no mercado”.

3. Li que Obama não disse sobre Lula: esse é o cara. Ele disse: that´s my man. Tradução livre: esse é o meu motorista, meu ajudante-de-ordens, meu xiru, meu subalterno, meu faz-tudo, meu serviços gerais, meu agregado das pilchas, meu feitor, meu capataz. Talvez seja por isso que ele ficou tão à vontade para dar uma boa olhada no traseiro da delegada da Unicef, menor, negra e brasileira. Obama teria contado com o apoio do “seu homem”? Não pode ser. Deve ser coisa daquele anãozinho francês, o carlabrúnico.

4. Se o jornalismo fosse esse troço pregado pela mediocridade bem posta dos comunicólogos e consultores, a matéria cult de Gay Talese, Frank Sinatra está resfriado seria, no Brasil, reduzida a cinco linhas e publicada na coluna social. Temos, no nosso jornalismo, magníficas reportagens escritas por textos geniais espalhados por inúmeros veículos, todos eles mortos (mesmo os que, aparentemente, sobreviveram). Basta pegar as matérias de Narciso Kalili, Edenilton Lampião, Hamilton Almeida Filho, Joel Silveira, Marcos Faerman, entre muitos outros, e teríamos exemplos de sobra. Mas ficam incensando o Gay Talese, que, demagogicamente, disse que veio ao Brasil "aprender". Só se ele soubesse português e fosse consultar os arquivos mortos do talento assassinado.


5. Carlos Heitor Cony, nas suas costumeiras arengas da Folha, colocou a culpa do abraço entre Collor e Lula no Getúlio Vargas. A manchete do fim do mundo escrita pelo Cony deverá ser: “Apocalipse provocado pelo ditador do Estado Novo”. A justificativa do atual beneficiário da bolsa-ditadura é a de que Luiz Carlos Prestes, ao sair da prisão, abraçou-se ao seu carcereiro na campanha eleitoral de 1945. "É bem capaz!", como dizem os gaúchos. Cony usa do velho artifício do anacronismo para misturar as cartas.

Prestes envolveu-se, em 1935, num golpe de estado contra um governo eleito por Assembléia Constituinte, por sua vez eleita pelo voto direto (com a participação pioneira do voto da mulher). O movimento que liderou matou gente. Foi derrotado. Getúlio poderia ter mandado fuzilar, matá-lo na hora da caça, mas o manteve na prisão até soltá-lo, vivo. Hoje, é moda dizer que a vitória da FEB trouxe a democracia de volta ao país. A FEB foi uma força militar organizada, armada e enviada para a Europa pelo governo do Estado Novo. Quem lutou, de armas na mão, pela liberdade n os campos da II Guerra foram os soldados mandados pelo Getúlio Vargas.

Ma aconteceu exatamente o contrário. Um golpe militar (o de 29 de outubro de 1945) derrubou Getúlio e convocou nova Constituinte. Ciente das más intenções da direita, que queria entregar o país (como de fato o fez a partir de então), Prestes aliou-se a Getúlio para derrotar os entreguistas. Nada a ver com o conluio de interesses escusos entre Collor e Lula, unidos no sucateamento do país (Lula completa o que Collor e FHC fizeram, a destruição do Brasil soberano, ou da Era Vargas). O que unia Prestes a Getúlio era o espírito público. O que une Collor e Lula é o espírito de porco.

Como exemplo de homem íntegro que não se vende, Cony invoca a figura carismática de Monteiro Lobato, que estava louco para entrar na Academia Brasileira de Letras. Aí o espírito de porco do Julio de Mesquita (não sei se Filho, Neto ou Tataraneto) disse: mas Getúlio também está lá de fardão, vais compactuar com teu carcereiro? Lobato teve então de desistir. Vejam a sacanagem. Tiraram de Lobato o prazer de envergar o fardão.

Monteiro Lobato atacou o regime do Estado Novo e foi preso por ordem do Conselho de Segurança Nacional. Da prisão saiu ileso, vivo. Publicou a maioria dos seus maravilhosos livros durante o Estado Novo. Hoje, a turma que o coloca como paradigma anti-Vargas faz gato e sapato de sua grande obra. Destroem tudo, esses gafanhotos do mal. E a culpa é de quem? Daquele gaúcho, claro. Haja.

15 de julho de 2009

RIQUEZA


Nei Duclós (*)

Onde está a riqueza atualmente? Em quem possui, e pode repassar, um trilhão de dólares, como o atual governo americano. Nenhuma empresa, corporação, magnata tem esse dinheiro disponível. O Estado dispõe de todos os recursos, e numa canetada, pode concentrar ou distribuir renda. Suas infinitas ramificações, do presidente ao ministro, do governador ao prefeito, do senador ao vereador, do administrador ao secretário, têm acesso ao cofre, a soma da nação expropriada.

Há um paradoxo nas grandes derrotas políticas. Quando o nazismo perdeu a guerra, seus paradigmas espalharam-se pelo mundo, como o aparelhamento estatal a cargo de uma corrente política, a propaganda enganosa, a imposição de verdades virtuais por meio da mídia e da indústria cultural, a idéia de raça (ou “sanguebom”) se impondo sobre a identidade formatada pela cultura e o comportamento. Aconteceu algo idêntico quando a URSS implodiu. O capitalismo de Estado ganhou o mundo e acaba de derrubar o último bastião, situado em Washington, depois da crise financeira que abalou os mercados regados a especulação.

Para que o poder ilimitado do Estado funcione, é preciso corrupção pura e simples, alimentada pelo ilusionismo disseminado em massa, a cargo dos intelectuais orgânicos, os que usam a cátedra ou a notoriedade para expor projetos adotados pela rede estatal. É preciso também consenso na propaganda das vantagens do regime, no caso, a chamada democracia, um sistema híbrido entre o voto eletrônico e o rodízio café-com-leite de algumas personalidades, guindadas ao patamar de alternativa única.

Esse sistema se perpetua por meio do dinheiro arrecadado do suor da sociedade, que no Brasil atinge índices alarmantes, como a recente conclusão de que cada brasileiro trabalha cinco meses ao ano para sustentar o governo. Quando alguma coisa se opõe ao massacre, há pânico e imediata solidariedade contra a ameaça. Não se pode abrir mão da bufunfa tão arduamente conquistada depois de décadas de “luta”, quando todos os argumentos da exaustão popular foram colocadas na cesta da boa vida dos espertalhões.

Hoje, a riqueza das nações é o Estado de mão única. Indústria, comércio, serviços, cidadania? Isso não é poder. São apenas fontes arrecadadoras.

Variedades errou: A crônica publicada ontem neste espaço (nota: a edição impressa - e on line - do Diário Catarinense), intitulada "Cultura como estratégia", é de autoria de Amilcar Neves.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada excepcionalmente nesta quarta-feira, dia 15 de julho de 2009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: ilustração publicada pela revista Sagarana para o poema "Sou um caso perdido", em que Mario Benedetti ironiza quem o acusava de parcialidade. 3. A partir de hoje, mais um link permanente no espaço aí do lado: Café Colombo. Trata-se de um programa sobre livros e idéias transmitido para Pernambuco pela Rádio Universitária FM (99.9 MHz) e para o mundo através da internet. O programa vai ao ar aos domingos, das 14h às 14h30, com reapresentação às segundas, das 20h às 20h30.

BATE O BUMBO: ESCÂNDALO NA FLIP

O blog Efeito Colateral denuncia o confisco de livros de autores que tiveram a ousadia de vender seus exemplares nas ruas de Paraty na Flip deste ano (na foto, o poeta Pedro Tostes, de mão para trás, aguarda o termo de apreensão de 16 exemplares do seu livro de poemas). É o desmascaramento total de uma situação que o Diário da Fonte denunciou no ano passado. É a ditadura em ação. Confiscar livros é nazismo puro.

As vítimas ficaram surpresas com a argumentação: a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), oficialmente, dizem os organizadores, não é um evento "comercial", portanto é proibido vender livro na rua. Claro que não. Comércio é para pobre. A Flip é marketing, a nobre arte dos deuses do rabo preso. Corja. Sugiro o seguinte: na próxima Flip, os autores que vendem livros na rua (entre os quais me incluo, desde 1969) devem comparecer em massa no evento milionário, sustentado por dinheiro público. Essa falsa democracia, que eterniza privilégios, precisa ser combatida. É preciso derramar de verdade esse leite coalhado.

Não prometo comparecer. Aos 60, não disponho de condições cardiovasculares para peitar fiscal ao vivo (posso querer chutar a cara de uns e outros e isso não acabaria bem). Mas a mocidade (ah, que bela palavra, muito melhor do que juventude), mais determinada e estratégica, deve se organizar e fazer isso mesmo.

Em 1969, quando Marco Celso Viola, eu e outros autores fomos às ruas vender nossos livros mimeografados (bem antes da Geração Mimeógrafo carioca, viu professora Heloisa Buarque de Holanda!?) nunca ninguém nos confiscou livro nenhum. E isso que demos as maiores bandeiras, de calças surradas, cabelo comprido e coturnos, nas Praças da Alfândega, em Portinho, da República em Sampa e General Osório, no Rio. Costuma-se dizer: era o auge da ditadura. Vai ver o auge da ditadura é agora, quando todos acham que o regime é de liberdade. Estamos é tomando um solzinho no pátio do presídio.