26 de agosto de 2013

DIAS DE PROFETA

Nei Duclós

Tenho dias de profeta, quando incluo algumas letras na melodia poética.

Nunca levaram a sério. Por isso sinto vergonha quando entro em campo. Exerço minha arte como quem vai embora.

Deus está no Outro Lado, incomensurável e incognoscível. Mas se adapta a cada coração, como filhote no ninho de pássaro que peita predadores

Do nada, o Nada se deu conta que existia. Então caiu em si e repartiu-se, evoluindo sem ter conhecido Deus, criado numa distorção da Memória.

Escolher um momento de ficar para sempre, acumulando tempos. Relógios obsoletos, futuros de presente. Um passado que não passe, roda gigante

O próximo é nossa única obrigação. Para todo o resto, estamos livres.

A necessidade alheia é uma fala abafada pelo barulho do egoísmo. A chance de ser solidário provoca pânico.


INVENCÍVEIS

Amor perde a batalha para a invencível canalha.

Todo mundo é e todo mundo pode na internet. Mas isso perdeu a importância.

A falta de dinheiro te libera de um monte de coisas. É o melhor antídoto para o imperativo.

Faça, acesse, leia, confira. O Imperativo é a falta de modos da gramática

Alguns escritores reclusos são uma alívio para a crítica e os leitores. Eles desaparecem junto com seus livros ocultos.


DESCONVERSAS


Depois do verso, desconversas.

Não adianta me virar a cara. Te enxergo mesmo pelo avesso.

Ruptura não dó tanto. O que dói mais depois é aturar os desaforos.

O pior inverno é o que deixamos acontecer entre nós.

Ninguém responde no domingo. A palavra se perde na tarde sem fim.

 

RETORNO - Imagem desta edição: foto de Robert Moran.

ESQUECI TEU ROSTO



Nei Duclós



Esqueci teu rosto, misturado
a poças de chuva no subúrbio
que o automóvel dispersa
e joga em cima de mosaicos

Gotas grossas mancham muros
arco-íris circular sobre lajotas
Quem passa com o trem nota
imagens geradas no escuro

São as linhas do teu choro
desenho do adeus, homônimo
ao abraço doce que demora

Só isso: o que fica na moldura
é obra de arte sem assinatura
pintada por acaso em tua rua

25 de agosto de 2013

TRAJETO



Nei Duclós

Colhemos a vida na velhice
fruta madura usufruída cedo
destino que ao fim se liberta
luz jogada fora no desfecho

Voltamos ao estado de semente
grão duro do obscuro enigma
pronto para o salto no abismo
fome que devora a superfície

Memória é derrota, duplo sentido
rumo e perda, nos eventos íntimos
resgate sem a carne dos conflitos

Percorremos a última curvatura
do espaço que um anjo para viagem
se aventura, guiando entre as estrelas


RETORNO - Imagem desta edição: O Suicídio de Cleópatra, obra de Cagnacci.

24 de agosto de 2013

TALVEZ SEJA O FRIO



Nei Duclós

Dizes trêmula o que queres firme.

Custo a acordar o que faz sentido. Talvez seja o frio, talvez não exista.

Fugiste, mas os versos te alcançaram.

Sumiste, como um tuit antigo.

Definiste o fim pela milésima vez. Como se fosse possível transformar a curva da terra em linha reta.

Sentes alívio em partir para outros rumos. Mas o pombo correio sabe o caminho e a mensagem sempre chega ao destino.

Em todo lugar será sempre teu coração voltado para o mar

Chegamos ao limite. Não há como voltar às distâncias. Cruze o perigoso horizonte

Moro no fundo do mar, disse a sereia. Mas só contigo me falta ar.

Serás sempre menor do que me reduzes.

Não faça poesia hoje, disse a tempestade. Tenha medo do amor que parte.

No fim, era você quem revistava as gavetas, enquanto eu olhava para onde apontavas o dedo.

Reportei o hábito de invadirem canteiros. É o mesmo perfil que se encanta com flores alheias, sem saber que elas murcham longe da terra.

Leia ocultando a caneta. Depois me diga, com tua própria pena.

Esse rumo me pertence. Levei a vida a escrevê-lo.

Não precisa ser amor. Basta misturar as águas.

Não domino a mensagem. Sou dial de rádios em quartos anônimos, conversas entre anjos com ruído de ondas curtas.

O que entendemos impressiona. Raridade na era do ruído anônimo.

Jogo limpo para não fingires inocência, insumo para cobranças. Enxergas até o fundo porque sou vitrine. Não diga depois que não foi assim.

Tiro da imaginação o que parece ser lição de vida É apenas ficção, flor da campina

Solidão é uma vingança involuntária. Pune o adeus pondo os joelhos no milho.

Perdes tempo com o amor, essa palavra. Cuide de si, princesa bárbara.

Estavas ocupada em tuas trilhas. Nem percebeste o assobio do pássaro, domínio de um canto raro.


RETORNO - Imagem desta edição: obra de Robert Finale.
 


APARÊNCIA



Nei Duclós

O uso que você faz da palavra é a sua aparência.

Desvencilhe-se de todo o dinheiro que dispõe e repita o que disse. Veja se faz sentido.

Ninguém te obrigou a ser parte de mim. A não ser essa força misteriosa que te move por mais que te agarres aos espinhos.

Parece que concordo, mas só desisto.

Não quis dizer nada com isso. Fique tranquilo. Estou só levando as palavras para dar uma volta no tiroteio.

Não importa se somos outros. Basta manter a imaginação a qual nos acostumamos. Ali há encontro, que só é possível no sonho.

O que entendemos impressiona. Raridade na era do ruído anônimo.

Não quis dizer nada com isso. Fique tranquilo. Estou só levando as palavras para dar uma volta no tiroteio.

Nada fica do poema. A não ser o gosto amargo de algo fora do esquema.

Tudo é segredo. Esqueço, para que haja planície

Tudo é cultura, menos a cultura.

Ceda, enfim, depois de tanto tempo. Feche os olhos, imagine. Volte no futuro, siga no rumo.

Você não é o que dizem ser. Aproveite que você nem se vê. Qualquer coisa, diga que vai mudar. Serás o que for escrever.


RETORNO - Imagem desta edição: obra de Artemisia Gentileschi.

ESCALADA



Nei Duclós

Como se fosse na montanha
Pouco ar no meio da escalada
Coração apressado por chegar
O topo acontece em sintonia

Subimos como quem se atira
na queda ganhamos altura
Palavra que é muito confuso
pelo menos enquanto caímos

Depois fica bom, o dia tranquilo
o vento carregado de erosão
devora nossos beijos gelados
O que fazemos nesta solidão?


RETORNO - Imagem desta edição: obra de Victor Vasnetsov.