31 de julho de 2004

O GOL EXTREMO DE ALEX


Nei Duclós


Futebol é ficção. Isso não quer dizer que seja irreal. Pelé, por exemplo, é um personagem, e nada mais real do que o Rei. Sempre relembro, a meu modo, e com minhas imagens e conclusões, o que os outros descreveram com suas certezas. Ou imagino, como qualquer torcedor comum, campeonatos que nunca existiram, jogadas inverossímeis, campanhas memoráveis que não saíram do quarto do sonho.

Um lance tem me perseguido nos últimos dias, parecido com tantos outros, mas único nos seus desdobramentos. Trata-se do momento decisivo de um campeonato. Os times não interessam. O certo é que Alex está parado, exausto, no último segundo do jogo empatado, pronto para bater uma falta com barreira. Ele deixará o desfecho a cargo do destino, a bola.


PROFECIA - Noto que Alex toma impulso arqueando os cotovelos. Sempre faz isso e agora fará como nunca. Mas antes deixem-me falar de seus músculos transfigurados pelo cansaço e o suor. As pernas já não lhe obedecem e ele fica numa posição parecida com aqueles que teimam em ir para certo lugar mas o corpo insiste em tomar outra direção. Apenas vislumbro esse gesto potencial, pois ele está imóvel, de cabeça baixa, mas com os olhos superpostos, saindo das órbitas, que é o jeito de os visionários enxergarem o invisível.

Ele sabe que não pode mais confiar na sua inteligência, derrubada pela tensão de inúmeros toques que não tiveram repercussão merecida, passes que conseguiram colocar atacantes cara a cara com o gol mas não cumpriram a profecia das arquibancadas, que sempre se antecipam a favor da sorte.

Alex sabe, nesse instante supremo, que também não poderá contar com sua precisão de gênio, pois o pé certamente não vai chegar no impulso certo para conseguir o que ele gostaria que acontecesse. Sua única saída é acreditar que a bola, ao ser tocada pela graça do seu chute, poderá tomar vida própria, como aconteceu tantas vezes. A bola, logo que é colocada em jogo, aprende rápido que deve se dirigir às goleiras, mas há vários caminhos possíveis.

Sua ferramenta mais conhecida para chegar a essa conclusão é o cruzamento em diagonal, já que as paralelas são um passe monótono e burocrático da zaga para atrair atacantes e assim abrir um claro no meio do campo. A diagonal é a transmutação da linha reta que sonha com o círculo e por isso corta caminhos e vira jogos com extrema competência. Mas Alex não pensa nisso nem em nada parecido. Ele desistiu de pensar e quer que a bola tome o seu lugar.

SURPRESA - O goleiro, do lado de lá da barreira, não vê Alex, que não tem altura para se sobressair naquela distância. Pressente apenas que o chute virá como uma visita surpresa e poderá chegar em qualquer canto, de qualquer direção e em qualquer velocidade. Prepara-se e confia também na sorte, porque nenhum treinamento poderá prepará-lo para o que virá a seguir.

O goleiro sabe que a bola alcança a velocidade da luz e no momento em que o pé do atacante tocar na criança, ela já estará ao alcance dele, goleiro, ou então se perderá pela linha de fundo ou beijará a rede. Alex conhece aquele goleiro e prefere apostar que não poderá surpreendê-lo, pois esse adversário deve estar preparado.

Por isso puxa os cotovelos, coloca um pé atrás e com o outro firma a coluna que vai segurar o templo do chute. O pé recuado então viaja pela perna em movimento e quando chega perto da bola entrega-se para não mais ter outra chance. O pé desiste de chutar quando decisivamente chuta. Por isso o lance parece, no início, que não irá acontecer de verdade. Mas o pé de Alex, o jogador que desistiu de pensar nesse instante extremo, serve de faísca para a bola que enfim arranca em direção ao nada.

A bola adquire vida própria e projeta-se por cima da barreira como se quisesse atingir as cabines de rádio, como se quisesse pipocar no meio do caos popular, como se quisesse também desistir do que lhe deram de bandeja e que ela jamais poderá recusar. Depois do chute, Alex vira-se para o lado, como se estivesse saindo em direção ao vestiário. Estava entregue e o jogo terminara. Nem tinha forças para decidir o campeonato nos penaltys. Não arriscaria seus companheiros e toda aquela torcida.

PÂNICO - Mas a bola sabe que não tem impulso para cruzar a linha de fundo. Tomou altura demais e vê-se no pânico da descida. O goleiro troca de pernas para adivinhar o canto que ela vai decidir a partida e esse segundo é a sua perdição. Pois a bola, acompanhando a loucura da jogada, desfaz-se em vácuo tomando um túnel que algo construiu em torno, talvez a expectativa do público, talvez a ansiedade dos jogadores, talvez o terror dos telespectadores, que estão longe demais para acompanhar todos os cacos daquela ruína de tempo.

A bola desiste de ir longe, mas também não permite que acabe encaixada num goleiro qualquer de um time qualquer. Ela precisa mostrar que recebeu o toque como um presente e que poderá desembrulhá-lo antes que digam acabou. Ela, que gosta de quicar na frente dos goleiros para impressionar a crônica esportiva com ilusões, como a do morrinho artilheiro, prepara agora o gesto final. E descamba, como um armário, como o segundo Gilmar diante de uma falta batida pelo Neto no Maracanã, como um saco de batatas que se espatifa.

Só que o impulso inicial tinha levado a bola longe demais. Por isso ela lambe o travessão e faz aquele chiado horrível para os goleiros, o do roçar imperdoável na rede. A bola então jaz no fundo do gol como um animal sem vida. E Alex, que chegou a virar o pescoço para ver onde a bola tinha se enfiado, levanta apenas um braço antes que a torcida, que estava muda, comece a levantar-se como o Mar Vermelho diante de Moisés.

Foi assim que vi essa jogada nesses dias. Algo que nunca existiu ou existirá, talvez. Mas serve para me dizer o quanto o futebol é apenas linguagem e que a inteligência suprema dos jogadores exige que os jornalistas estejam à altura do jogo que os sustenta, do futebol que os transcende, do grito que expressa a glória que ninguém nos tira.

30 de julho de 2004

A GEOMETRIA DO JOGO


Nei Duclós


O conflito principal no futebol é a oposição entre a esfera e o retângulo, entre a curva e a linha reta e não a que existe entre times adversários. Tanto é que os atletas costumam trocar de camisa, conforme as conveniências da profissão ou da cartolagem, e muitos acabam juntos na seleção (há também o caso de torcedores que escolhem mais de um time de coração). Este jogo é uma arte de encaixes, sejam quais forem as cores defendidas ou as pessoas envolvidas nele.

ÁREA - O jogo consiste, primeiro, em manter a bola nos limites das quatro linhas retas do campo - quando ela sai desse espaço, é falta. Segundo, colocar a esfera no interior dos dois retângulos que formam as goleiras nas duas extremidades do campo (antigamente eram chamadas de arcos, como uma espécie de homenagem da linha reta ao que é curvo, ou porque a bola, ao entrar no ângulo superior, acaba curvando esse espaço decisivo do jogo, que é uma síntese do retângulo maior, o campo onde acontece a disputa).

A partida é decidida por uma série de combinações entre a trajetória da bola em linha reta (o chute direto), em curva (a folha seca ou o chapéu) e a partir dos ângulos (escanteio, gol na gaveta ou rasteiro no canto). Essa geometria define a matemática superior do futebol, um jogo quântico à mercê das probabilidades.

A área é o retângulo que funciona como sombra do arco, ou seja, se a bola fosse o sol colocado atrás da goleira, refletiria no chão as linhas que delimitam a área. É por isso que esse território é do goleiro, por ser uma projeção da sua cidadela. Cabe ao atacante devassá-la desbravando-a pessoalmente ou por eliminação, por meio da bola alta. O ângulo também é fundamental no futebol. Não apenas a gaveta, por onde entram os mais belos gols, mas o canto onde se bate escanteio, e a quina da área, lugar de dúvidas quando pode haver pênalty.

São pontos sensíveis do jogo e quanto mais usados, mais beleza transfere ao conflito. A perfeição absoluta é o gol de escanteio, ou olímpico, em que a bola faz a curva, dispensa os atacantes plantados na área, confunde o goleiro e entra para fazer história. Não pode haver gol olímpico em linha reta.


ROMÁRIO - Existe a curva perfeita que é pura estratégia bem sucedida, com os passes longos de Gerson, Zenon e agora Alex. Existe a falsa curva, que é aquele gol do Branco contra a Holanda na copa de 1994, que foi direto no canto (o ângulo de baixo) e deu a impressão de ser em curva porque Romário, quando sentiu o vento do chute passar por trás arqueou a cintura como se estivesse deixando a bola passar. Por muito tempo achei que Romário viabilizou aquele gol decisivo porque tinha feito esse jogo de corpo. Mas as comemorações do tetra provaram, pela exaustiva repetição, que o chute foi de outra natureza: reto, direto, caindo da pouca altura para o chão.

Romário é um ilusionista perfeito. Uma vez ele jogava contra o Madureira e o goleirão não deixava passar nada. O Baixinho foi lá e cumprimentou o arqueiro. No minuto seguinte fez o gol. Claro, tinha conseguido desconcentrar o adversário, que ficou emocionado com a homenagem no calor da luta. Outra do Romário foi aquele gol contra Camarões, em que levou três de roldão. Suas pernas confundiam os camaronenses fazendo dribles virtuais enquanto corria. Mas a curva não seria eficiente naquele caso. Então ele optou pela radicalização da linha reta, o chute de bico, desencadeado um segundo antes que o pé da zaga cortasse sua investida.


BICICLETA - Outra preciosidade é o que Peticov faz, colocando a bola em linha reta até 80% da trajetória. Aí ela opta pela curva exatamente para ficar fora do alcance do pulo do goleiro. Este, se atira pensando que a bola virá reto, mas sua mão apenas colhe o ar. A divindade desse tipo de gol é a folha seca do mestre Didi, em que a bola tem tudo para se perder na linha de fundo e como um rio faz a curva para cair no ângulo de baixo, oposto, deixando os goleiros paralizados.

O gol de bicicleta é outra surpresa da curva. O jogador está de costas para o gol e só poderia chutar, pela lógica, contra o próprio ataque. Mas como o pé é curvo e o corpo flexível, ele cai de costas com a perna levantada e puxa a bola para dentro do gol. Um brasileiro, o Diamante Negro, inventou isso. Ninguém mais poderia pensar numa possibilidade dessas antes de um brasileiro. Um elemento importante na geometria é a triangulação. A tabelinha é feita de triângulos e nisso se especializaram Pelé e Coutinho e Romário e Bebeto, entre tantos outros. Hoje a tabelinha encontra forte barreira dos oponentes e exige muito mais do que habilidade e fôlego, mas precisão milimétrica.

O chute que enche o pé e cai em curva, por extensão, difere do chute de três dedos, que é criado para inventar a manhosa rotação lateral da esfera. Foi Di Stéfano que fez um monumento à bola e colocou o seguinte: Gracias, vieja. No fundo, o futebol é encaixar a esfera num espaço limitado por linhas retas, uma impossibilidade teórica que só pode ocupar os espíritos livres.

RETORNO - O texto acima está publicado peloe editor Jésus Gómez no La Insignia. Foi Urariano Mota, que nos brinda no mesmo site com um aprofundado ensaio sobre Budapeste, de Chico Buarque, quem me sugeriu que enviasse o texto para Jésus. Ler Urariano é um privilégio para a cultura e a inteligência do país.

28 de julho de 2004

O JORNALISMO DUBLADO


A fala que deveria imperar na mídia é a do jornalista. Ele é quem precisa tecer o texto, soma e síntese de linguagens alheias, que passam pela seleção dos critérios e fundamentos do ofício. Quando isso não ocorre, outros poderes se intrometem e decidem a hierarquia das falas. O caminho mais curto para esse equívoco é engessar a redação numa camisa de força, quando impede-se a publicação de estilos, mata-se a vocação autoral em nome de regras que estão a serviço do enterro do jornalismo. Não pode haver dissidência entre o articulista e o repórter. Ambos assinam e portanto precisam estar liberados para o estilo. Vale para os dois o enxugamento da frase, a objetividade, a clareza e a transparência. Sem isso o jornalismo é como filme dublado, em que tudo se parece com a obra original, mas há um tropeço fundo quando os personagens abrem a boca com a língua errada, a entonação artificial, o timbre deslocado.

ATROZES - Numa reportagem sobre a dublagem brasileira, destacou-se que esta seria a melhor do mundo. Como poderão saber disso os outros povos, que não falam português? Na mesma matéria, fizeram o que sempre imaginei que fazem quando há gritaria nos filmes: juntam o porteiro, o iluminador, o entregador de pizza e os atores para berrar uma algaravia sem nexo, muito comum nas dublagens. A repórter então proferia a revelação: eles estão atuando! Não, não estão, estão fazendo uma contrafação do som original (que é a metade da obra). Tenho a mesma sensação quando leio os jornais ou vejo o noticiário na TV. Vozes atrozes se interpõem no trabalho da informação e tudo fica por isso mesmo. O mais grave é o Jornal Nacional, essa newsletter do poder. Vejam como o país se recupera na véspera das eleições, como o emprego aumenta, como a renda per capita sobe, como essa-gente consegue ocupação de garçon, diarista, passeador de cachorro. Como é fofo ver também essa revelação da babaquice, o Carlos Nascimento, achar que a mãe do Palocci deveria ser arrogante, pois, afinaaaal, ela é mãe do todo poderoso fala-mansa e sorriso anódino. Mas não, a senhora se revela um exemplo de humildade. Mas que coisa, não Nascimento, quem diria? Tu que elogiaste o Kajuru para logo depois o próprio ser defenestrado da Band e ficaste de bico calado, como me saíste bobão no teu papel de âncora que assina, griffe do jornalismo dublado. Os âncoras assinam, ou fazem de conta com a caneta no final do telejornal, como é o caso da Padrão, para dizerem que escrevem, que possuem uma caligrafia pessoal, um estilo de caras e bocas, e que portanto se diferenciam dos outros, o povo, tão essa-gente que nem sabe escrever. Sem falar no biquinho feito diariamente pelo Isso-é-uma-vergonha, tão contundente em sua obviedade, que sempre começa suas arengas com ora! E estão há décadas no vídeo, tomando conta do horário nobre nesta nação de escravos.

HORRORES - Nem a Abril, que na época contava com grandes jornalistas, nem Mino Carta, que foi expulso da TV pelo Antonio Carlos Magalhães, nem o Jornal do Brasil, que era o veículo impresso mais importante e influente do país, conseguiram entrar para a televisão. A TV foi cair nas garras de Gargalhada, o Palhaço Sinistro. Ou do Genro daquele poderoso e seus descendentes. Ou dos edulcorados sanguessugas da nação. Ou do Pastor, o voz fina melífluo que arrecada zilhões dos seus cultos. A poderosa rede evangélica que toma conta de todos os horários, são os dubladores dessa televisão à deriva. Todos os dias e a toda hora a mesma coisa. A nação de escravos a tudo engole, sem tugir nem mugir. Ermos de cultura, arte, conhecimento, que foram erradicados da TV, ficamos plantados diante do aparelhos como Garfields sem verve. Saímos da TV e vamos ler um livro, ler os artigos do Rascunho, reler algo do Mais!, fazer poesia. Mas chega uma hora que precisamos voltar à imagem, descobrir algo. As emissoras estrangeiras da TV a cabo se locupletam na publicidade sem fim e no repeteco dos programas. Enquanto isso, geme de dor o talento não descoberto, o gênio desconhecido, o escritor sem editora, o cantor perdido na noite. Somos assim. Poderíamos ser melhores.

FUNDAÇÃO - O jornalismo dublado é aquele que copia gravações, se ajoelha diante dos manuais, fica quieto depois das demissões, difunde as porcarias da TV sem jamais denunciá-la. É o que aposta apenas em figurinhas carimbadas, que ocupam vastos espaços sem oposição nenhuma. Que todo ano faz a mesma matéria. Que acha graça sempre das mesmas coisas. Que põe plantão quando neva em São Joaquim, quando faz frio em Campos de Jordão (puxa, como está frio aqui!), que denuncia e depois esquece (e para dizer que não esquece diz que está de olho), que não ajuda a mudar nada, que entrevista os bandidos pixadores que sempre falam do que não entendem, ou seja, da tal adrenalina, e por aí vai. O jornalismo dublado é aquele que coloca todos os microfones deitadinhos diante de Lula, que pergunta como é que você se sente, como é que é essa coisa, e se com certeza você tem algo triste para confessar diante das câmaras, como perdi tudo, fiquei sem nada e todo mundo se põe a chorar. O jornalismo dublado é o monopólio da comunicação brasileira, que impera no caos como um abutre. Olha, mãe, é um avião, um pássaro, o Super-Homem. Não, é mais matéria sobre a alta e a baixa do dólar, o índice Bovespa, o Dow Jones, o seguro saúde que nunca prestou e que só agora prestaram atenção nisso. Poderíamos ser melhores. Poderíamos seguir o conselho do meu pai. Vai ser jornalista? Então funda o teu jornal. Fundei, pai. Chama-se Diário da Fonte. Ele não existe. À parte isso, tem todos os sonhos do mundo.

27 de julho de 2004

POR QUE OS ESTÁDIOS ESTÃO VAZIOS?

Os estádios de futebol estão vazios porque os jogos começam às 21h40min. É tocante a cena em que milhares de torcedores ficam esperando a novela acabar para que o monopólio de comunicação imponha sua vontade. Sair por volta da meia-noite, pegar o ônibus e voltar para casa significa chegar de madrugada, tendo que acordar cedo no dia seguinte. Esse horário, fruto da falta de concorrência, contraria a natureza do jogo, que é puro conflito. Não existe escolha entre uma ou outra cobertura (ou um ou outro time de jornalistas). Tudo está sob as ordens da ditadura de comunicação e a percepção cansada acaba extinguindo a paixão pelo futebol. Tudo é feito de propósito: o dinheiro que entra pelo direito de arena (que só a Globo pode cacifar) dispensa a presença das pessoas nos estádios, que estão abandonados. Para que reformar os sanitários se o básico já está garantido?

REBARBA - O programa Terceiro Tempo, de Milton Neves, na Record, fez no último domingo uma boa matéria sobre o assunto, mas não tocou no ponto principal, que é o monopólio. O próprio programa é vítima dessa imposição, pois é obrigado a comentar jogos que só são transmitidos pela rede concorrente. O problema é que não há concorrência. Todas as televisões são ou parte ou coadjuvante da Globo. A própria Record, que pegou uma rebarba do campeonato brasileiro, só levantou a cabeça quando teve o privilégio de transmitir a Eurocopa, e deu um banho com a narração de Luciano do Valle, o número 1 (injustamente jogado no ostracismo, ele que inventou o bordão bem amigos da rede Globo, inspirado no meus amigos das crônicas de Nelson Rodrigues e surrupiado por Galvão Bueno). A mesmice mata o futebol. O objetivo é exatamente esse: destruir a estrutura profissional do nosso futebol para que o Brasil seja apenas um celeiro de craques para os clubes ricos do Exterior. Até a Turquia e o Azerbeijão (ou coisa parecida) levam nosso craques, que fogem da miséria. Houve um tempo em que Pelé nem precisou sair do Santos, todos nossos campeões abrilhantavam os estádios, que viviam cheios. O caso Amarildo, que defendeu a seleção de 62 com a baba bovina dos possessos, como disse o mestre Nelson Rodrigues, foi uma exceção. Ele foi comprado pelo Milan e com isso comprou seu passaporte para o repúdio do torcedor brasileiro, já que ele veio aqui defender o time italiano na derrota do campeonato inter-clubes, vencido pelo Santos. O que temos hoje são aqueles jogadores que, na visão primeiromundista, saíram da favela direto para a Europa, como se fossemos um não-país, onde tem só mato e pobreza. O sr. Cicarelli revelou-se no São Cristóvão e brilhou no Cruzeiro ainda muito menino antes de ir para fora. Mas a idéia errada é essa: nem estádio temos, o que temos são crianças famintas loucas para fugir daqui. Para onde Vossa Majestade vai? perguntavam para a rainha D. Maria I, de Portugal, quando fugia das tropas de Napoleão no início do século 19. Vou para o inferno, respondia ela, que acabou enlouquecendo nos trópicos. Essa imagem é a que colhemos, quando entregamos nossos talentos, que de tanta porcaria que engolem e tanto exercício físico sacana acabam engrossando o corpo, como aconteceu com o Roberto Carlos, irreconhecível com seu corpanzil e sotaque espanhol e o sr. Cicarelli, que parecia não conseguir movimentar-se antes de provar novamente que está acima de todos os outros jogadores fazendo gols inesquecíveis para a seleção. Kaká também: o garoto habilidoso saiu daqui para ser agora o mascote italiano, deformado pelos franskesteins de lá.

CORRUPÇÃO - É bom lembrar que o campeonato italiano está hoje suspeito de grossa corrupção. Então a roubalheira não é o motivo da nossa decadência. O motivo é o projeto político que nos transformou em curral da pirataria internacional. O Brasil soberano sempre surpreende, pois ainda possui times, e estádios, e torcedores e craques, que aos poucos também se transferem para times do lado de lá do oceano. Perder Alex, Adriano, Gustavo Nery, faz parte dessa tragédia em que se transformou o futebol pentacampeão do mundo. Que vence porque tem ainda um povo e produz não apenas jogadores de primeira, como treinadores de fina e competente estratégia, como Felipão, Luxemburgo e o grande professor Parreira. Mas o que nos cabe nas mãos é esse esforço sempre derrotado de times que tentam levantar a cabeça. Vejam o que aconteceu com o pequenino 15 de novembro, do Rio Grande do Sul, que precisou desfazer o time depois de quase empalmar a Copa do Brasil. As vitórias dos pequenos, como o São Caetano e o Santo André, não significa uma nova ordem do futebol, como quer Galvão Bueno (tão monopolista que colocou no seu site a narração de jogos memoráveis que ele não narrou), sugerindo com isso que o futebol brasileiro estaria mais democrático. É que os times tradicionais foram sucateados e transformados em tabula rasa por essa política criminosa. Os pequenos se destacam porque sempre houve futebol de qualidade em todos os cantos do Brasil e o sucateamento dos grandes deu espaço para eles se destacarem. O que existe é ditadura e destruição do patrimônio nacional. Por isso os estádios estão vazios.

FRONTEIRA - Somos uma nação de escravos. Ninguém reclama contra o monopólio da Globo, com raras exceções. Fico impressionado como o horário bandido é imposto até nos outros países da América do Sul. Lá estavam os peruanos esperando a Senhora do Destino ou o Fantástico acabar. O que é isso? Ninguém dá um chega para lá nesses ditadores, mesmo fora das nossas fronteiras? Tenho certeza que a Globo não quis a Eurocopa porque a Europa jamais se curva perante o Brasil e tem seus horários determinados por eles e não pela Globo. Futebol no meio da semana deveria ser às oito da noite, bem na hora do Jornal Nacional e da novela. Quando há jogo da seleção na quarta-feira, empurram dezenas de jogos (que nunca vemos) para a terça-feira, causando o maior transtorno aos torcedores, que nunca sabem o que está acontecendo. O resultado dessa falta completa de espírito público é a violência dentro e fora dos estádios, alimentando os programas especializados em sangue, que vivem conclamando a sociedade para a pena de morte e fazendo campanha contra a democracia. Colocam a culpa na democracia, como se democracia tivéssemos. Por isso foi tão bom participar da segunda edição da revista Fronteira, de Uruguaiana, que enfocou o tradicional e secular futebol da cidade. Uma edição enxuta, moderna e cheia de informações notáveis, levantando as raízes da introdução do jogo naquela região e belos textos dos repórteres Chico Alves, Marcos Lamberti e Ricardo Peró Job e artigos de Juarez Fonseca, Caco Belmonte, Ricardo Duarte e César Fanti, além de um poema de Luiz de Miranda. A equipe formada pelo secretário do município, Bebeto Alves, deu banho de bola e resgatou o gosto por esse jogo que nos encanta quando há de verdade conflito, paixão, arte, tradição e poesia.

25 de julho de 2004

A ESTRELA DO BRASIL SOBERANO


A vitória na Copa América confirma a superioridade do nosso futebol, que ganhou ouro com a prata da casa. Rompeu-se a exaustão da mesmice das convocações e mais uma vez brilha a estrela do Brasil soberano: somos assim, por isso somos os melhores. As férias da chamada seleção principal deu chance para os craques emergentes, que assumiram a responsabilidade e derrotaram essa que é a pior seleção do mundo. Pois a seleção deles reflete o que os argentinos possuem de pior e não faz justiça à grandeza do próprio país. A decisão também serviu para dar uma cala-te boca nos urubus da conveniência, a equipe da Globo, que enterrou a equipe canarinho quando estávamos perdendo por dois a um, antes que Luis Fabiano disputasse a bola no taco e Adriano jogasse nossa vontade para o fundo da rede no último segundo.

JOGO DE CENA - Quando alguém se atira sem que o adversário lhe toque, como tantos fazem tantas vezes, para cavar a falta, é de linguagem que estamos tratando. O impostor tenta impor uma leitura a seu favor da jogada, para obter vantagem. Esse lance pode ser comparado a uma informação falsa numa reportagem, um erro de análise. A falsidade pode ser explícita e dá até cartão amarelo para quem tenta ludibriar a arbitragem fazendo-se de vítima. Mas muitas vezes o gesto é bem sucedido e dele pode sair até pênalty. Sinal de que existem várias interpretações para a mesma jogada e o futebol é um sistema de probabilidades. Qual a sua expectativa aos 47 minutos do Brasil x Argentina? A Argentina já era campeã, tanto é que tentou dar olé, o que mexeu com os brios da moçada de camisa amarela. O gol de empate foi sorte, fruto da garra, uma intervenção divina? Para mim foi justiça, pois apesar de termos o jogo inteiro passado a bola para os inimigos, nossos atletas se superaram. Um deles foi Gustavo Nery, muito ruim no primeiro tempo e impressionante no segundo. Adriano parecia adiar a própria facilidade de ganhar de todo mundo e se dirigir ao gol. Diego não explodiu, mas ajudou a colocar fogo na seleção, como sempre faz. E a chance que Felipe teve não foi aproveitada. Quando nos falta Alex e seus passes perfeitos, ficamos em apuros. Claro que esses diagnósticos sobre os destaques do jogo são pura especulação, pois não vi o jogo, apenas o assisti pela televisão.

BONS GAROTOS - Foi hilária a enrascada com que o monopolista Bueno e sua troupe se meteram quando Adriano decidiu. Esqucendo que o segundo tempo é sempre a revanche do professor Parreira, eles comentavam o quanto a Argentina era superior, como ganhou facilmente todos os jogos, ao contrário de nós, que penamos muito e ainda perdemos para o Paraguai. Já estavam dando tapinha nas costas desses bons garotos que, claro, jamais serão maiores do que os craques principais. Pois para mim esta é a seleção principal. Estou farto de Cafu, Roberto Carlos, Roque Junior, Belleti, Juninho Pernambucano e também de Kaká, Cocó e Kuku (como diz o amigo corintiano Luiz de Moraes). O sr. Cicarelli também enche por ser um consenso. A mim me parece que esses grandes e famosos jogadores encaram, na prática, a seleção como uma equipe de segunda categoria, já que vibram mesmo é com suas equipes européias. Já esta seleção campeã da Copa América tirou do fundo do baú, do garrão, como se diz em Uruguaiana, essa memorável campanha. Gostei demais de todos eles, apesar de implicar com alguns. Espero que o dialético Professor Parreira leve adiante essa formação e faça desta a base da seleção brasileira principal. Coloque as estrelonas no banco, professor. Elas precisam disso. E deixe solto essas novas feras, que sofreram com a mediocriadade do anti-jogo argentino.

MAYORALES - O que mais impressiona é como os argentinos têm certeza que são os maiorais, quando não passam de uns pernas-de-pau. Costumo dizer que o futebol argentino é uma correria que pensa ter a precisão de relógio cuco. Seus jogadores são grotescos, toscos e grosseiros. Representam o pior da Argentina, aqueles vizinhos invejosos que não suportam a presença de um campeão no outro lado da fronteira. Lembro da seleção deles em 2004, que não passou da primeira fase, depois de cantar de galo nas eliminatórias. A Argentina que sofre e luta, que impõe soberania nas ruas, essa não é representada na seleção. O país vizinho precisa montar um time que tenha a ousadia de ser diferente, de sintonizar-se com o que possuem de melhor. Enquanto enviarem pernas-de-pau machones em campo para tentar dar olé na seleção pentacampeã do mundo, estarão em maus lençóis. Respeito é bom e nós gostamos.

RETORNO - Zagallo, que berrou o tempo todo na beira do campo porque não aceitaria nunca a derrota, saiu-se bem com sua fé no destino manifesto da nação. Disse que tanto Brasil campeão quanto Argentina vice tinha treze (seu número da sorte) letras. A numerologia, em Zagallo, é uma forma de comprovar, qualquer que seja a combinação do jogo, a vitória do país (nome próprio da biografia dele) nos planos da divindade. Um dia o coração de Zagallo ficará depositado em algum campo de futebol e nem todos os minutos de silêncio serão suficientes para homenageá-lo. Apesar de ter sido o mais irritante dos treinadores, o patriota exagerado acabou, por teimosia e merecimento, tornando-se um dos heróis da Pátria. Saberemos então a verdadeira dimensão do orgulho de termos compartilhado tantos títulos.

SOMOS MÍDIA



Os americanos sistematizam o que o Diário da Fonte já disse ao ser criado em 2003. A Internet é a mídia das fontes, daí o nome para este veículo, concreto, apesar de virtual, pois tem os fundamentos da comunicação: um editor/autor, leitores (poucos, mas fiéis) e interação com a produção jornalística e intelectual do nosso tempo. Dá até furo!, mas isso não tem importância, já que o furo perdeu o sentido quando a informação é simultânea e viaja na velocidade da luz. Sabemos agora que o colunista Dan Gillmor coloca o trabalho de jornalistas independentes na Internet como uma ameaça real à tendência monopolista das grandes empresas de comunicação.

BABACAS - Os jornais brasileiros imitaram tanto os americanos que foram à falência. Estão sendo comprados por aqueles para os quais baixaram as calças. Agora vamos ver de verdade o que é jornalismo de resultados. Na Folha, que fez esse tipo de transação (e a Abril também), foram para rua 50 pessoas da redação. Não precisam mais de jornalistas brasileiros, vai vir tudo prontinho do exterior, as análises, as resenhas, as reportagens, as colunas, as matérias principais, os editorais. Jornalismo brasileiro vai ficar confinado à Internet, pois aqui por enquanto temos liberdade de chutar o balde (daqui a pouco baixa a repressão, ou seja, a exclusão). O jornalismo americano, com sua babaquice estrutural, deveria ser motivo de sarro na imprensa brasileira se ainda tivéssemos a noção de grandeza que um dia tivemos (já zeramos uma vez a dívida externa, foi em 1945, quando derrubaram o governo que conseguiu essa façanha). Hoje temos esse simulacro de new journalism, sempre com aberturas metidas a interessantinhas, bem ao estilo do speech, discurso, americano, que começa sempre da mesma forma (vejam que coisa engraçada me aconteceu quando estava vindo para cá fazer esta conferência). Os americanos, por serem monopolistas, mergulham fundo no universo babaca. Leio no magnífico Rascunho (o maior jornal cultural do País), que o festejado Paul Auster (ainda não tive a dose necessária de paciência e oportunidade para ler) refez a história de H.G.Wells e colocou um personagem do passado encontrando alguém do futuro para fazer o quê? Claro que para impedir o assassinato do John Kennedy. Os americanos acham que podem driblar a morte e sacanear com o destino. Acham que podem refazer o mundo à sua imagem. Querem ser os reis da cocada preta e pontificar sobre a própria mortalidade. Isso cola para quem acredita neles. Quando a Folha mudou para imitar o USA Today, o jornalismo brasileiro acabou. As reportagens sumiram e a frescurada tomou conta da mídia. Foi a explosão dos Smiths e da obrigatória colocação da idade em cada pessoa citada. Tua-mãe-sem-calça, 52.

TAINÁ - A Amazônia brasileira não é patrimônio da ?humanidade? (nome de batismo dos americanos, que se sentem os únicos humanos), é patrimônio do Brasil. Não faz parte do ?planeta? (terra de ninguém sob a guarda dos Estados Unidos), mas do território nacional. A Amazônia, como toda floresta, corre risco, mas existe até hoje porque foi preservada. D. Pedro II não deixou ninguém entrar, nem o van Humboldt, nem permitiu navegação no rio Amazonas. Fechou as portas para a pirataria internacional. Enquanto eles destruíram todo o mato que tinham, aqui ficamos com a floresta inteira. Agora eles vem dar lição de moral. O Brasil embarca nessa canoa furada ao revelar sua fraqueza em filmes como Tainá. O filme formata a percepção futura sobre a Amazônia, o que o torna não-inocente, apesar de ser uma obra concebida para o público infantil. De que trata o filme? Menina órfã é criada pelo avô. Ou seja, está desprotegida, sem pai nem mãe. Não pertence mais a nenhum povo, está à mercê dos bandidos traficantes de animais. Precisa ser protegida. Por quem? Pela bióloga mãe de um menino ruivo. Este, veste-se com roupas de baseball e quando se entusiasma diz yesssss. O menino ruivo e a menina índia órfã é o casal do futuro: o Brasil, ou melhor, a Amazônia, entra com Tainá, símbolo da floresta que corre perigo; o pensamento politicamente correto (invenção americana para encher o Terceiro Mundo de culpa) entra com o ruivinho gritador de yes. Fez o maior sucesso. Entrou no currículo escolar. Tem uma estrutura de filme da Disney, como já foi notado. Humor, personagens, situações, tudo chupado da Disney. Alguma dúvida para quem serve? Vem aí Tainá 2. A aventura continua: a do olhar sobre o trabalho que aborda nosso território. Amazônia não é terra sem História. Tem um povo dentro, o brasileiro. Pertence à nação chamada Brasil. Portanto, os filmes sobre a Amazônia precisam tomar o partido do país, e não da apropriação global. Assim como o poeta amazônico Thiago de Mello tomou partido pelos excluídos.

24 de julho de 2004

REDAÇÕES, RUÍDOS E POETAS



Redação é um porre, mas não há trabalho melhor. Ficar o tempo todo confinado entre imensos janelões (como a do Estadão, na marginal Tietê), tetos escabrosos (como as da Lapa de Baixo, na Editora Três), colunas cheias de pastilhas (como na velha Folha, na Barão de Limeira), ou agora diante de telas luminosas (cavernas de Platão, como diz Marco Roza) é um ofício que te afasta do mundo, apesar de o mundo ser sua matéria-prima. A pior redação foi a da Record. O prédio tinha mil descaminhos para se chegar até ela, não haviam janelas nem nada que revelasse a vida lá fora. O telespectador sabe mais do que nós, dizia eu, provisoriamente colocado na direção do telejornal. Eles tem o zap e nós umas três ou quatro equipes para cobrir o mundo.

RASCUNHO - Recebo o magnífico Rascunho, o maior jornal cultural do país (cada vez mais só, agora que o grande Mais!, da Folha corre risco de vida), que tem belo texto do poeta Thiago de Melo sobre Pablo Neruda. É uma aula de História, que carrega palavras e climas perdidos, no tempo em que existiam poetas/bandeira, os que sintetizavam nações ou continentes, que fundavam países e marcavam épocas. Ficamos sabendo detalhes como a paixão de Neruda por Lord Jim, de Conrad. Emociona também saber que Neruda, desafinado e com voz nasal, cantava nos ágapes e era respeitado. Vá hoje abrir sua boca para tentar cantar qualquer coisa. Imediatamente surgem assobios demonstrando que você está com a melodia incorreta, ou cantam em cima do que você está tentando entoar, ou simplesmente começam a falar sobre outro assunto. Não há mais interesse nenhum pelo Outro, nem simpatia ou admiração. As pessoas com grandeza continuam raras, mas não há mais reconhecimento. Faz tempo que não vou a shows ou teatros. Desisti porque na platéia havia sempre inúmeros pretendentes ao estrelato que faziam de tudo para acabar com o brilho de quem estava no palco. Vi isso com a Gal, com o Muddy Waters e tantos outros. Por isso João Gilberto, o gênio maior, baixa a repressão. Não tem outro jeito. João Gilberto é a expressão máxima do silêncio necessário para existir música. Numa sociedade que privilegia o ruído, a falsa música é a que manda. Isso acaba se espalhando para todos os gêneros. Até mesmo Bob Marley e sua troupe jamaicana, que cheguei um tempo a aturar com simpatia, hoje me soa execrável, porque tem sempre alguém tentando impor para a vizinhança o som de lata do reggae, musiquinha gritada e chata. Nem falo na hecatombe cultural mundial, o rap, e na catatonia tecno.

POP - Os jogos da seleção tem impedido que eu veja direito o Meu Cunhado, no SBT (que é todo em cima da Família Trappo, com Bronco e tudo). Num desses programas (onde Golias mata a pau imitando Totó), havia uma seqüência regada pela versão brasileira de Suave é a Noite. Canção que embalou meus verdes anos nas noites de inverno, cantada por Moacir Franco. Pois o grande e genial cantor (e esforçado, e não péssimo, como já disse aqui, humorista) fazia dueto acho que com a Elza Soares, que distorcia a voz e espichava as silabas finais. Esse maneirismo já encheu. Para que se fazer de interessante na hora de cantar? Isso veio da música pop americana, que de tão pobre precisou que o ruído fosse espichado ao máximo para caber nos minutos regulamentares das canções populares. A gritaria pop, quando uma frase musical é repetida até a demência, me parece pior do que qualquer estação do inferno. Para que isso? Deixem Moacir Franco cantar como sempre. Não se trata de saudosismo, é sofisticação pura, é o Brasil de sempre entoando uma das mais belas melodias. É brega? Brega para mim é o esganiçar do vibrato final das frases musicais, acompanhado sempre de torcidinhas cool do nariz. A Leila Pinheiro, que destruiu toda a bossa nova com esse tipo de expediente, é um exemplo de como não saber cantar. A Marina, que encheu o saco nos anos 80 e 90 e graças a Deus está fora do circuito, é outra mala. Esses cantrizes e cantrozes são o exemplo do cárcere punitivo a que nos submetem pelo ouvido. Quando o alto falante da rua grita pamonhas, pamonhas, pamonhas, é sobre você que estão falando. Você é o play-ground dessa canalha. E agora ainda tem propaganda política.

FABULARIO - Mas me desviei do assunto. Por muito tempo impliquei com o Thiago de Melo porque ele abria os braços, solene, e usava aquelas batas brancas de profeta. Depois descobri que não era ele o problema, já que é um poeta que tem sua marca, com belíssimos trabalhos, como Faz escuro mas eu canto. Um homem perseguido politicamente e que nos traz a Amazônia, do Brasil soberano, merece respeito. Eu implicava com seus clones, com seus imitadores, que vinham com aquelas obras toscas intituladas fabulário, ou coisa que valha (acentuando sempre o áááriooo final), que até hoje me dão urticária. E o Thiago de Mello entra de contrabando nessa história, pois essas palavras estão mais linkadas a uma leitura tosca das boas traduções que ele fez do Pablo Neruda. Thiago traduziu Neruda e ficou abrindo os braços vestindo bata branca. Estava na dele, mas atraiu uma multidão de chatos, todos fazendo obras fabulárias. Haja saco. Saculário. Balançário. Purpuraaal. Coisas de pouetas, aqueles que estão sempre em busca do teu verdadeiro tu.

23 de julho de 2004

RECREIO DE IDÉIAS

Iniciei vários posts e não concluí nenhum Sinal que as idéias estavam com pouco fôlego? Ou existem coisas que podem ser ditas com muito menos espaço? Cortar, cortar, editar, reescrever. O Diário da Fonte tem disso também, apesar da tentação da facilidade que oferece na hora de publicar. Sem a intermediação da gráfica, os textos se soltam como loucos que descobrem a chave do hospício.

IMPRESSÕES - Comunicação, hoje, pela sua diversidade e rapidez, é Internet, mas o poder da influência e da repercussão oficial continua com a mídia impressa. Jornais e revistas que passam pelas gráficas ainda contam a seu favor com o poder transferido pela tradição e pela existência física, já que são objetos de manuseio amigável. Na Internet, os blogs, fotoblogs, sites, portais e orkut não contam com essa realidade concreta e ainda estão pendurados no pincel da realidade virtual. Também não existem ainda formatações definidas no espaço virtual (apesar de inúmeros exemplos bem sucedidos) que possam garantir uma identidade, digamos, física, a esses produtos recém criados. O poder existente dentro da mídia impressa, além do que já dispõe, conta agora com o apoio da Internet, que costuma ser tratada como mídia de apoio. E se essa situação se revertesse? Imagino que haveria mais pressão para que, pelo menos os jornais diários, voltassem a ter a antiga ousadia.

TEATRO INFORMAL - Obedecemos a alguns scripts básicos, roteirizados por concentradores de poder. Um deles é cair na armadilha depois de morder a isca. Aconteceu com os celulares. Tungaram o dinheiro de milhões que se encantaram com o uso facilitado dos novos aparelhos. Não adianta colocar a Diarista com o telemóvel pendurado no pescoço se você paga uma nota preta para receber chamadas, imaginem teclar para alguém. Outro script é o desenraizamento. Os ônibus urbanos, com as linhas redesenhadas pela burocracia, vão de nenhum lugar (os terminais) para lugar nenhum (os outros terminais). A população em trânsito vive nas estações. Acabou-se o vínculo com o bairro, que tornou-se periférico à linha de ônibus, que era um dos elementos de costura comunitária. Por isso o teatro de cada um é equivalente a um monólogo, feito de gestos de uma peça individual que tem a própria mente como espectadora. Mas o pior é quando, nas viagens urbanas, juntam-se duas solidões. Numa dessas viagens, ouço o garoto ao lado falar. Ele tem o visual cool, a fala arrastada cool. Seu esforço de ser cool é desenvolvido diante da menina que a toda hora abre-se num sorriso moncórdio e vazio, para fazer presença diante do nada e assim refletir o nada que está ouvindo. O garoto faz uma voz fanha forçada, toda redonda e melosa. De vez em quando ele precisa reforçar o coolismo de tanta arenga e começa a falar aos arranques, dando rápidas sacudidas na cabeça e torcendo a boca para o lado num maneirismo muito comum hoje. A voz então perde a fanhura e vai se esgarçando,estridente, alteando o tom para depois voltar ao estado anterior, de conversa banhada em catatonia. Meu e cara são as muletas principais. O que será isso?

EXCLUSÃO - A juventude foi inventada nos anos 60. As pessoas jovens sentiam-se excluídas, então criaram um mundo à parte, que excluía os adultos. Esse mundo à parte foi descoberto pelo comércio e a política, que incentivaram a brincadeira para multiplicar os lucros. Acabou se consolidando e desaguando na atual situação, época do esporte radical, que eu defino como o desprezo pela paisagem. Rebentar caminhos precários com máquinas possantes ou se atirar no abismo amarrado pelas pernas é de uma estupidez sem fim. No lado oposto, ficam amontoadas as pobres criaturas da Terceira Idade, uma invenção que retira a sobriedade dos velhos, que se submetem, com medo da exclusão total. Eu tinha uma tia-avó, a Tita, que era velhíssima, mas nunca foi da Terceira Idade. Nem meus pais, que morreram com mais de 60 anos, jamais fizeram parte desse grupo. Agora diz-se que a Terceira Idade é a melhor. Não é não. A melhor idade é quando se tem 20 anos e o mundo explode na tua mão. Essa é a idade que pega. O resto é programa de índio, quando a vida realmente nos desafia.

22 de julho de 2004

TODAS AS LETRAS DO JOGO



Há mais sinceridade na transmissão esportiva do rádio. Todo mundo sabe que a narração sem a muleta da imagem é pura representação, uma visão unilateral do jornalista que transmite. O que não se relativiza é o resultado, o resto depende da percepção do locutor. Na TV parece que estamos vendo tudo, mas vemos apenas lances isolados de uma realidade que, em seu conjunto, fica escondida o tempo todo, pois não temos a visão que teríamos se estivéssemos no estádio. Precisamos então confiar no narrador. Quando só existe um narrador, graças ao monopólio da Globo, ficamos na mão apenas desse. E de seus colaboradores, que descrevem a estratégia, fazem a síntese do que ocorre no quadro completo da competição. Os telespectadores ficam na mão, iludidos que acompanharam tudo. Mas o que viram foi apenas riscos luminosos coloridos num espaço de linguagem cifrada, cheia de jargões e enigmas.

PARREIRA - O Brasil x Uruguai desta Copa América, decidido nos pênaltys a nosso favor, foi um conflito em treze letras, segundo avisou Zagallo no final (e por isso vencemos, porque a sorte, retrato sorridente do destino, estaria do nosso lado). Mas é sempre bom lembrar que o Uruguai nos ensina e graças ao Uruguai somos hoje pentacampeões do mundo. No fatídico 16 de julho de 1950, quando ocorreu o Maracanazo, nasceu o anjo vingador Pelé, segundo o próprio depoimento do gênio, que viu o pai chorar pela primeira vez e esse choro doeu tão profundamente que o craque menino prometeu revanche. Quando conseguiu essa revanche pela primeira vez em 1958, derramou-se. Era o choro feito de memória, uma solidariedade à geração anterior que não conseguiu ser vencedora e que dependia dos pés dos garotos para atingir a glória que escapou das mãos. O choro, em Pelé, é o resultado da opção que fez pela vitória, a mais árdua que um jogador pode conseguir, vencer uma Copa. Se Pelé não chorasse por qualquer coisa, é porque não seria esse vencedor que cumpriu sua própria profecia e que ajudou o Brasil a celebrar sua grandeza. Essa lição teve desdobramentos. Em 1970, por encararmos o jogo decisivo contra o Uruguai como uma revanche de 1950, ganhamos. E quando estávamos por um fio nas eliminatórias de 1994 e dependíamos apenas de uma vitória contra o Uruguai, veio do Exterior o baixinho Romário para anunciar nova profecia, a de que seríamos novamente campeões. Aquele último jogo contra o Uruguai antes da Copa fez Romário chamar a si a responsabilidade. O evento Romário em 1994 transformou o professor Parreira no que ele é hoje: um dos exemplares desse pequeno grupo de brasileiros dialéticos, que na representação do conflito que é o futebol aprendem com a realidade que mostra as garras (os outros são Felipe Scolari e Luxemburgo). Podemos dizer que o segundo tempo de uma decisão é sempre uma revanche para o professor Parreira. O que mais gosto nele é que nunca se abala, é um estrategista frio que enxerga as principais demandas da luta e reage criativamente em cima dela. Ele não era assim antes de 1994. Ele foi obrigado a encerrar-se num grupo fechado para ficar avesso às críticas. Mas Romário, que tinha assumido a necessidade do tetra, mostrou a Parreira que ele precisava mudar para vencer. A prudência do professor (que ensinou o Brasil a jogar sem bola) serviu para sobreviver naquela Copa. Mas foi Romário que o trouxe para o lugar onde está, quando consegue que seus craques virem o jogo na hora certa.

SEGURANÇA - Eu vejo o futebol assim talvez porque tenha sido formado no velho dois, três, cinco, quando havia mais clareza sobre defensores, meio-de-campo e atacantes. Essa rigidez formou grandes jogadores como Djalma Santos (na zaga), Didi (no meio), Pelé (no ataque, no centro) e Garrincha (no ataque, na ponta), exemplares das posições existentes. Depois da laranja mecânica holandesa em 1974, que oficializou a correria e abriu o olho dos zagueiros, que quiseram ser também goleadores, o negócio ficou mais complicado. Não entendo direito essas categorias obscuras como os volantes, por exemplo, que seriam laterais que servem tanto para defesa quanto para o ataque. Ou não? Fala-se demais em posicionamento, que significa fixidez num evento que hoje oferece um rodízio completo de posições. Quando Robinho cai provisoriamente para a defesa, minha cuca funde. O que o cara está fazendo lá? O resultado é o gol de escapada, que é como chamávamos o contra-ataque nos anos 50. Coisa de pelada: como todo mundo vai para a frente, o time adversário pega a bola e sai correndo para fazer o gol, desguarnecido da velha zaga, aquela onde dominava Ademir, meu colega de aula no Colégio Santana, que era tão seguro (porque não ia para a frente, só defendia) que só tirava bola de puxeta, para humilhar. Ademir fazia parte dessa linhagem que nos deu rochas em frente ao gol. O resultado de tanta confusão é o Roque Junior ou o Junior Baiano: como eliminou-se a cultura da zaga verdadeira, parece que improvisam gente que não é do ramo e usa a defesa para quebrar todo mundo.

MIOPIA - O que me encuca é a complexidade do jogo, que não é percebido por mim a menos que alguém o descreva. As discordâncias entre Galvão Bueno e o Arnaldo César Coelho, apesar do uso da imagem, apenas reforça que tudo não passa de percepções sobre coisas que não se revelam inteiramente. Sei apenas que o Diego põe fogo na seleção, que Adriano é uma completa surpresa, que Ricardo Oliveira não tem a mínima importância (posso estar sendo injusto), que Gustavo Nery não disse a que veio, que Julio César defendeu um pênalty, mas tomou um frango, e que Alex é um gênio. Sou um cara da arquibancada que torce sem entender. Nelson Rodrigues entendia não só porque torcia, mas porque se recusava a ver direito o jogo (usava a miopia para ver melhor, ou seja, para livrar-se dos ruídos da representação), pois ele trafegava em outra esfera, a da linguagem apenas, e não a do futebol. Essa é a lição do mestre, muito pouco aplicada hoje, quando tantos entendem tanto de futebol. Ninguém confessa que dança na análise de um jogo. Compartilha-se certezas, há concordâncias mútuas pelo menos sobre os princípios e fundamentos da crítica esportiva. Não há espaço para os incautos, os ignorantes que podem ter um lampejo. Nem mais bom humor temos mais. Foi-se o tempo em que Juarez Soares anunciava: "Está chovendo e como sempre acontece nesta região de Ribeirão Preto, a chuva pode parar". No segundo tempo realmente parava. Aí o China: "Como previ, parou de chover". Isso não acontece mais na transmissão esportiva. Tempo em que não havia tira-teima e o pobre do repórter de campo Datena tinha que medir coisas no campo porque o patrocinador era um fabricante de trenas. Por isso o chamavam de Datrena.

RETORNO - 1. Virson Holderbaum e Mario Medaglia, generosamente, acham que levo jeito para escrever sobre esporte. Mas eles sabem que eu escrevo mesmo é sobre linguagem. Sou um narrador do próprio texto. Mario Medaglia dedicou sua vida profissional ao jornalismo esportivo. Trabalhei com ele no Jornal de Santa Catarina (quando inaugurou nesta região a cobertura completa de eventos esportivos na mídia impressa) e no Estado, o primeiro de Blumenau e o segundo aqui de Floripa. Ontem ,ele me enviou um alô por e-mail e prometemos uma conversa ao vivo. Nada como reencontrar antigos companheiros. 2. Brasil x Argentina, a final da Copa América no domingo, tem 15 letras. E agora, Zagallo?

21 de julho de 2004

A MALA QUE GUARDAVA SEGREDOS



Recebo um exemplar raro de Outubro, meu livro de estréia, que reúne poemas escritos no final dos anos 60 e início dos 70. O presente é de Cláudio Levitan, que não só ilustrou maravilhosamente o livro, imprimindo a marca de seu talento luminoso, como participou da edição desde o seu início, pois foi ele quem me visitou em Blumenau um belo dia para conhecer os poemas. E dessa visita, relatada na orelha, nasceu a luz da nossa geração. Um livro cult, jamais reeditado, que nunca ganhou qualquer prêmio, mas que não é encontrado em lugar nenhum, a não ser bem guardado nas estantes de seus poucos e fiéis leitores. Quem tem não empresta, porque não volta. Qual o mistério de Outubro?

SOL E ESTRELAS - Desde 2001, quando coloquei na mão da editora Globo o último exemplar que dispunha, pois precisavam fazer meu perfil poético para divulgar o livro que eles estavam editando (No mar, veremos), que eu estava ermo de Outubro. Com a mudança da responsável pela edição, e também do andar onde estava instalada a diretoria de livros no edifício da Globo no Jaguaré, o exemplar sumiu. Comecei então, penosamente, a tentar encontrar um. Passaram-se três anos. Reencontro agora e custo a acreditar: um exemplar absolutamente intacto, novinho, como se estivesse saído da gráfica. Revisito a magia do livro. Os poemas que saltam na cara, a capa maravilhosa de Cláudio Levitan, letras pretas sobre fundo amarelo para o título e laranja para a paisagem que está estampada nela. Qual essa paisagem? O pampa, por certo, estilizado, com uma cerca que vai para o infinito, embaixo de gigantesco sol que mais parece um ovo frito. Em diagonal a esse sol (a capa e as ilustrações podem ser vistas no site), um pássaro em vôo decidido. Um primor de capa clean, vibrante, fundada nos princípios eternos da grafia e ao mesmo tempo totalmente de vanguarda, pois ?declara?que aquele não é um sol, aquele chão não é um pampa e aquela cerca são traços que nos carregam para o futuro. A cerca e o pássaro voam em direção ao sol, que tem as bordas roçando o chão. Só esse capa merecia ganhar um prêmio internacional. A contracpa é outra obra-prima. Aquele sol, desapropriado de sua luz e calor, cai sobre o chão numa cena noturna. Da casca desse objeto que cai, dessa lua que se parte ao meio, sai uma infinidade de estrelas em direção ao céu. Cena que, ao contrário da capa, não toma conta de todo o espaço disponível. Está enquadrado, num fundo branco. Essa é a viagem visual idealizada pelo nosso genial artista: o sol que se anuncia em outubro parte-se (ceguei-me em sangue de estrelas, diz um dos poemas) num parto de revelações e deslumbramentos.

EDIÇÃO - A edição do livro contou também com a participação fundamental de Juarez Fonseca (que fez primorosa diagramação), Ida Duclós (minha mais atenta leitora) e Caio Fernando Abreu, que às vezes ficava constrangido de sugerir algumas poucas mudanças nos poemas e que levou o trabalho para o patrocínio do Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul, presidido na época por Ligia Averbruck. Todos nós fizemos então a seleção dos poemas que eu guardava numa velha mala surrada dos tempos de estudante peregrino (e que virou uma lenda graças ao texto de apresentação de Levitan, onde está a frase que dá título a este post). Sete capítulos, como se fosse um romance: o primeiro sobre a anunciação do poeta (Se eu estiver chegando), o segundo sobre a poesia (Falo de coisas que sei), o terceiro sobre a solidariedade (Confio na solidão que nos une), o quarto sobre a barra pesada da época (Dói entrar na vida), o quinto sobre o amor (Maria, acende meu domingo), o sexto sobre a infância (O canto é uma fome, como a infância), e o sétimo sobre a leveza das coisas e da vida (Ah, essa mania de escrever para a eternidade). Tínhamos assim na mão um acervo poderoso de sugestões literárias. Um poeta desconhecido que diz a que veio, uma geração que sofre e tem esperança, um trabalho focado na sua época e que tem a ousadia de ser uma mensagem também para o futuro (Ao Brasil tenho um recado).

LÍGIA - Lembro que fiquei impressionado com a repercussão do livro. De repente, aquela geração que nada tinha, apenas sonhos estocados, resolve mostrar a cara e dizer que existe, no Brasil da ditadura. Por isso foi fundamental a presença no IEL de Ligia Averbruck, que adorou o livro, tinha plena confiança em Caio e aplicou o dinheiro público para cacifar uma obra original. Lembro que fiquei apavorado com a possibilidade de o livro ficar guardado no IEL, apesar dos esforços da Ligia. Houve um boato, não lembro, uma notícia, de que havia certa resistência em colocar o livro na praça e Ligia estava batalhando para que o trabalho saísse um pouco mais tarde. Era uma época de muita paranóia. Foi esse medo que me levou a marcar apressadamente o lançamento, que foi feito na Faculdade de Arquitetura da Ufrgs, local da vanguarda total, onde estudavam Gilberto Gick, Muts Weyrauch, Cláudio Ferlauto e Tabajara Ruas (apenas esse time, e que time!). Convites feitos apressadamente cometeram a maior gafe da história da minha vida. Um desses convites não chegou até Ligia, que não compareceu ao lançamento. Até hoje fico mortificado com isso. Ligia já foi para o Outro Lado e jamais pude explicar o que aconteceu, desculpar-me pelo indesculpável. Na rápida passagem que tive na W11, quando participei da produção de dezenas de livros para a Bienal de São Paulo, um jornalista do Rio, nascido gaúcho, me ligou. Disse: "Eu precisava te dizer isso, Nei. Outubro fez minha cabeça, mudou minha vida e eu nunca tinha tido a oportunidade de te agradecer e cumprimentar." É por isso que Outubro sempre nos emociona. Porque faz parte de uma onda tremenda de criação cultural brasileira e pertence a este país soberano e é nele que deita raízes profundas, de uma poesia que se insurgiu contra as modinhas da época, que não aceitou o silêncio imposto e que veio à luz em plena ditadura para ajudar a vida a fazer sentido. Só isso já justifica minha vinda a este mundo. Viva Outubro!


RETORNO - Recebo de Claudio Levitan a seguinte mensagem: " Recebeste, então! Valeu ter guardado todo este tempo pra desfrutar da tua emoção! Aqui em casa, reclamam muito de mim: sou um guardador de memórias e vivo sempre esquecido. ouvir isto de alguém, especialmente de ti, me conforta e valoriza todo este intervalo de tempo (que é uma vida!). valeu a pena".

20 de julho de 2004

SIM, TEMOS HERÓIS

Falta um ghost-writer competente para Lula. O dele copia os ghost-writers de John Kennedy. Não pergunte o que a o seu país pode fazer por você, mas o que você pode fazer pelo seu país, disse um dia o presidente americano. Lula papagaiou tudo, piorando: "Nós não podemos ficar dependendo do que alguém pode fazer por nós. Temos que descobrir o que podemos fazer por nós mesmos". Além das frases toscas, é mais uma exaltação do individualismo absoluto, do qual ele tem se colocado como exemplo. Citou a mãe que criou um monte de filhos e nenhum virou bandido. Faltou dizer: isso foi possível porque ela vivia na era Vargas.

SAPATOLÂNDIA - "Se eu só tenho um par de sapatos, tenho que valorizar esse par de sapatos", disse Lula. O cara pode estar desempregado, nu, com frio e fome, mas tem um par de sapatos. Então ele olha para os pés e diz: te amo, sapato, és o maior sapato do Brasil. E virando-se para todos os lados, poderá exclamar: mas que sapato! Pronto, valorizou o sapato. Outra asneira monumental é de que o Brasil não cultua seus heróis. Cultua, sim. O povo saiu às ruas para cultuar Leonel Brizola no funeral do qual Lula foi expulso aos berros de traidor, traidor. O problema verdadeiro é que os heróis foram erradicados da grade escolar pelos professores que se acham revolucionários e são apenas uns bananas. O que medra nas aulas de história é a desmoralização do Brasil. Costuma-se dizer no ensino básico e secundário que o Brasil não fez a Independência, que a República não teve nenhum tiro, que a revolução de 30 foi apenas um acerto das elites sem participação popular e assim por diante. O Brasil fez a guerra da independência de 1821 a dois de julho de 1823 e saiu vitorioso. Morreram milhares de heróis. Só numa das batalhas, tombaram 400 bravos. A implantação da República gerou uma guerra que durou quase quarenta anos, de 1893 a 1930. A revolução de 30 engajou cem mil voluntários civis, só no Rio Grande do Sul, fora os outros estados rebelados, como Minas e Paraíba. Getulio foi recebido em delírio pela população do Rio de Janeiro, em carro aberto. Meu amigo Gastão de Magalhães, que Deus o tenho em sua Glória, estava lá e me contou. Seu Gastão jamais foi partidário de Getúlio. Seu testemunho é isento. Ele estava na Cinelândia e Getúlio passou de uniforme militar, ovacionado pela multidão. Esse herói está enterrado em São Borja. Vai lá, Lula, e deposita uma coroa de flores no próximo dia 24 de agosto, data que lembra a tragédia do suicídio de um presidente (depois dizem que no Brasil não existem pessoas sérias). Vai lá e cultue esse herói brasileiro, Lula.

PATRIOTISMO - Para resgatar o patriotismo enterrado, é preciso fazer como acontecia na era Vargas, quando participávamos do hasteamento da bandeira nacional e cantávamos o hino à bandeira. É preciso parar de falar mal de grandes heróis nacionais. É preciso contar a história de Siqueira Campos, por exemplo, que dá nome ao parque do Trianon, na avenida Paulista. De como ele repartiu a bandeira em vários pedaços e distribuiu para cada um dos seus guerreiros, antes de enfrentarem, armados apenas de algumas pistolas e espingardas, as forças de terra, mar e ar da República Velha. É preciso difundir os novos estudos sobre Duque de Caxias, patrono do Exército brasileiro. É preciso deixar de roubar a merenda escolar e erradicar a atual gangsterização da política. É simples. É preciso abrir as comportas do conhecimento e da cultura para todas as gerações, ermas de tanta escuridão e falta de informação. Tenho acompanhado o orkut e alguns fóruns culturais existentes nele. É de chorar o amor que a meninada tem por Glauber Rocha, a admiração pelo que ele fez no cinema, na política e na TV. É incrível a sede de formação da juventude brasileira, totalmente tolhida, que não tem acesso a uma televisão de qualidade, um jornalismo mais isento e atuante, uma cultura mais acessível, manifestações livres de imposições e panelinhas. O patriotismo começa com a liberdade. E já que Lula improvisa no besteirol, é melhor contratar escritores patriotas, que possam criar frases para ele poder transmitir um pouco de grandeza à nação. É cansativa essa sucessão de abobrinhas. Puxa, mas que sapato!

RETORNO - Recebo via correio, enviado por essa pessoa sem igual, Claudio Levitan, um exemplar do nosso livro Outubro, o que fizemois juntos em tardes intermináveis e noites de conversas sem fim. Meus poemas abraçados com aquelas imagens poderosas, eternas, desenhadas no maior capricho e talento sem fim de Claudio, essa multi-pessoa, que soube guardar o exemplar intacto, novinho em folha, como se tivesse acabado de sair da gráfica. Recuperei assim esse livro, luz da minha vida e da nossa geração. E pelo correio, Rubens Montardo Junior me envia o número 2 da revista Fronteira. Comento os dois presentes amanhã.

18 de julho de 2004

A IMAGEM COSTURA O CAOS



A produção audiovisual americana é um assunto de Estado e está sob severa vigilância do Império. Serve para projetar a hegemonia na nação sobre todos os outros não-países, do deserto do Sinai à Amazônia, terras sem História, pelo menos a História que interessa, na conceituação definitiva de Ranke, papa da historiografia moderna do século 19. Para que haja eficácia, é preciso grudar o espectador na cadeira, basear o roteiro na ação. Isso só se consegue se as cenas forem curtas, portanto dependem da violência, de pessoas agressivas e impacientes. Não há gente cordata nesse universo porque a cordialidade engessaria a seqüência ágil dos eventos. Isso cria um paradoxo, pois a ação vertiginosa significa caos e como costurar o caos? Alguns truques resolvem a questão.

LISTAS - A bandeira listada dos Estados Unidos é o exemplo da imagem bem resolvida. É feita de listas, porque a lista é a representação de uma ruptura. Por isso os prisioneiros usam uniforme listado, porque significa que eles romperam a ordem e são identificados por essa quebra, esse rompimento. As listas da faixa de segurança no trânsito diz o mesmo: ali o trânsito precisa parar de fluir. Historicamente, as listas significam revolução. Não apenas a bandeira americana, fruto da insurreição contra a Inglaterra, está dividida em listas. A bandeira da Revolução Constitucionalista de 1932 também. São Paulo queria a ruptura de um regime de exceção, queria a volta ao republicanismo clássico, por isso usou a bandeira listada. O ícone nacional americano é bem resolvido porque acima das listas estão as estrelas, que mostram a nação unida depois da ruptura, ou a partir dela. Esse equilíbrio que se sobrepõe ao caos é fundamental na iconografia do Império. Por isso é obrigatório que em cada filme ela apareça, limpa ou suja, inteira ou aos frangalhos. Ela está sempre presente, seja qual for a situação. A bandeira mostra a importância da costura do caos por meio de uma imagem. Isso se desdobra numa infinidade de filmes, séries etc. A ação permanente levaria ao caos não fosse o esforço do Estado em manter a escrita. Vejam o caso da série de filmes de Máquina Mortífera. Mel Gibson está rompido com o mundo real, é um suicida que enlouqueceu de tanta ação. Quem o salva é seu companheiro, interpretado por Danny Glover, homem com família e prestes a se aposentar. A imagem de um parceiro certinho ao lado de um psicopata mostra como a ação leva o equilíbrio para a ruptura e como depois volta ao estado de normalidade, já que Gibson acaba casando com René Russo, nos filmes seguintes. Tudo resolvido. O caos, ou a destruição dos cenários e todos os objetos que estão nele, também serve para incentivar os consumidores a trocarem de produtos. O mundo descartável interessa à produção feérica de novas necessidades, desde que não ameace a integridade imperial. Para isso serve o happy-end, quando o que foi perdido no rastro da destruição se recompõe para novas aventuras, ou seja, novos produtos. A série Duro de Matar que o diga. Segundo um clássico ensaio sobre o magnífico cinema de Jerry Lewis, seus personagens não conseguiam manipular a diversidade de objetos fabricados para o consumo, o que era fonte das suas trapalhadas. Sua solução era simples: colocava tudo na bolsa de um aspirador de pó e depois introduzia uma agulha nesse saco enorme para explodir o conteúdo na cara das pessoas artificiais. Grande Jerry.

ROCK - Os 50 anos do rock mostram a vitória da reação. O rei do Rock, o ex-caminhoneiro Elvis Presley, resolveu homenagear a mãe e gravou a música que fundou um movimento de rebeldia. O que fez o Império? Cortou o cabelo do rei, colocou-o numa farda, transferiu-o para a Alemanha ocupada do pós-guerra e depois jogou-o primeiro nos filmes havaianos dulcíssimos e mais tarde na decadência exagerada e suicida de Las Vegas. A lição é clara: rebole para você ver! Tente romper a situação conservadora do poder por meio de uma rebeldia no comportamento e na cultura. Faça a síntese da música negra e a coloque na juventude branca para ver o que lhe acontece. Mas o rock gerou subprodutos, a revolução via Beatles e seus seguidores, e até mesmo o regate do punk e outros esforços rebeldes. Pois o cinema fez o seguinte: colocou os cabeludos, todos, como bandidos. Os Hell Angeles serviram como uma luva para a mão de ferro do Estado. Bandidos cabeludos, ou com rabinho de cavalo, de motos, barbudos, fizeram a festa da produção audiovisual conservadora. Easy Rider é um filme profético, pois descobriu cedo que os novos heróis estavam fritos. O resultado desse massacre cultural e físico (os grandes rebeldes, como Jimi e Janis, morreram cedo) é a música tecno, quando tudo foi resolvido por meio de uma batida monótona que deixa a meninada em eterno ecstasy. E o que foi feito com o cinema americano de vanguarda, encarnado em Arthur Penn, principalmente, autor de Juventude Transviada e Caçada Humana? O que foi feito da revolução da Godard, que implantou o cinema cultural, e a nouvelle vague, que acabou com a seqüência natural das imagens? Foi tudo assimilado. As cenas não terminam mais apagando as luzes, o flash-back é lugar comum (sem a diferenciação da imagem tremida, como acontecia antigamente). Tudo caiu na vala.

PALAVRA - É impressionante como a imagem, como foi previsto nos anos 60, domina o mundo hoje. Só não contavam que a palavra (que participa da imagem, via Internet), voltasse a ser hegemônica. Temos hoje muitos milhões de escritores, nenhum anônimo, todos bem identificados, que em sites, blogs e orkuts escrevem freneticamente. Vejo que o orkut é uma maneira de organizar o caos, e de projetar a imagem pública da individualidade, levá-la a resgatar a história de cada um ou a reforçar ou criar laços comunitários difíceis de serem conseguidos ao vivo. A imagem sempre dá a melhor pista do que está realmente ocorrendo. Descobri, por exemplo, porque os americanos não conseguem entender o futebol. Não só porque chamam de futebol um jogo onde a bola, a maior parte do tempo, depende das mãos. Mas porque eles querem forçar o futebol inglês (e agora nosso) a ser como o deles. Por isso seus filmes sobre o assunto caem sempre no mesmo equívoco: os jogadores avançam para a linha adversária de roldão, como eles fazem com o jogo deles. Fica uma excrescência, pois no nosso futebol não tem ninguém com armadura tentando travar o adversário. O jogo é feito com inteligência, não na base da força bruta (quando há, é falta) . Pelé já explicou em vão para os americanos que um jogador do futebol de verdade pensa o tempo todo, até mesmo quando não está com a bola. Não vale pegar o biroço, bater em todo mundo e levar a Leonor para casa. Mas não cai a ficha. Talvez esteja aí o motivo de eles acharem o nosso jogo coisa de mulher. Sorte para as mulheres americanas, que batem um bolão. O duro é saber que eles chamam o nosso jogo de soccer. Para mim, soccer é pênalty.

RETORNO - Na Folha, o filósofo Paulo Arantes fala claro sobre dívida e ONGs: "A economia nacional resume-se hoje ao serviço da dívida para assegurar a renda mínima do capital, como diz o João Sayad, o qual obviamente --o capital, não o João-- não tem o menor interesse que ela algum dia seja paga. Seria o caso até de processar o Estado por lucros cessantes. Deu-se com isso a progressiva terceirização de funções do Estado por uma fauna de ONGs, ressalvadas as boas almas de praxe. Verdadeiras máquinas de sucção e repasse de verba, e tome informalização do trabalho. Tudo isto é sabido, não é de hoje que o sopão do terceiro setor é engrossado por patronesses ao lado de cooperativas de fachada, banqueiros-cidadãos, corretores de inclusão social e por aí afora, nessa nova fronteira de negócios".

17 de julho de 2004

ISTO NÃO É UM BLOG



O Diário da Fonte é um jornal, que utiliza uma ferramenta da Internet, o blog, que por sua vez pode ser batizado, no caso, Outubro, em homenagem à mitologia que foi adaptada para a vida pessoal quando decidi mudar de faculdade na primavera de 1967, o que gerou mais tarde meu livro de estréia com esse nome. Nos arquivos, são 271 posts, o que é uma enormidade sem fim. Sem contar meses e meses de edições iniciais que já não estão mais no ar. Formam, no seu conjunto, um ou mais livros, que um dia serão impressos. Talvez apenas uma antologia, dividida em assuntos-chave, como jornalismo, memórias, política ou simplesmente literatura.

IMAGINAÇÃO - Conceitos aqui lançados já correm soltos na internet. Outros podem ser enfeixados num curso de jornalismo, baseado numa conceituação a partir da experiência na grande e pequena imprensa. Publiquei aqui textos que lavaram minha alma apesar das tragédias que eles descrevem, como a série de réquiens para Leonel Brizola ou a homenagem a Marlon Brando. O Diário da Fonte é definido como um exercício de imaginação, como se pudéssemos reproduzir na rede o jornal que gostaríamos um dia de voltar a ler. A conquista de leitores tem sido gradual e muitas vezes árdua, ou seja, difícil, mesmo sendo sempre prazerosa. Difícil porque custei a pegar a embocadura da pauta e muita gente me ajudou a direcionar os assuntos, ou melhor, a focar a abordagem para que o DF não se perdesse por aí, como normalmente acontece com espaços virtuais. Um jornal diário, como é este aqui, não pode se dar o luxo de ser um querido diário, pois isso diria respeito a um número muito reduzido de pessoas. Vejo a média de leitores daqui, uns 60/dia (eram dez no início, lembram?), uma vitória, pois não fazemos nenhuma divulgação, o DF jamais foi citado em parte alguma, a não ser em blogs de pessoas que gostam ou simpatizam com o trabalho. Aliás, isso tem sido uma constante. Tenho uma produção autoral que parece fantasmagórica. A imprensa divulga tudo, menos meus livros, tudo, menos meu site ou blog, tudo, menos veículos que crio e que são o maior sucesso, como a revista da Fiesp, que ganhou citação zero na imprensa. Alguns jornais me divulgam, mas nunca os grandes jornais. Há um pacto de silêncio. Redações onde deixei os melhores anos da minha vida, os da juventude, me ignoram. Em compensação, como gostam de celebrar nulidades! Vejo cada coisa. E essas nulidades, de tanto serem citadas impunemente, viram por sua vez, coisa. Parem com isso. Mandem notícia do lado de lá.

LIÇÃO - O título desta edição é uma homenagem a Magritte. Todo mundo sabe disso, mas é bom deixar claro para que ninguém esqueça a lição desse mestre, que ao desenhar um cachimbo ensinou que aquilo era um desenho, não um objeto. Talvez essa seja a mais popular e contundente lição de percepção de linguagem existente até hoje. Existem infinitos desdobramentos, como no caso do pintor que expôs um quadro representando uma mulher, toda pintada de verde, e recebeu um insulto como comentário: mas isto não é uma mulher! disse o espectador indignado. Claro que não, respondeu o pintor, é um quadro. Como isso serve para o jornalismo! Confunde-se jornalismo com o objeto de abordagem. Jornalismo é mídia, é linguagem, jamais economia, arte, cultura ou política. Ser comentarista esportivo ou de economia é onde o bicho pega com mais freqüência. Pode haver maior craque do que Raí, um atleta bem sucedido e tal? Pois quando ele fala na TV é um desastre. E o Silvio Luis, pode haver maior perna de pau? Mas ele é o criador de bordões esportivos inesquecíveis. Pois é Silvio Luiz que está certo, não o Casagrande. O Casão e o Raí até pode tornar-se bons comentaristas esportivos, mas não por ter sido atletas. Você, que esteve lá, Falcão, diga como é essa coisa, diz o impoluto Galvão Bueno. Pode ser um bom depoimento, mas não é jornalismo. Jornalismo é a pergunta, sempre a mesma, do Galvão, por isso ele é tão redundante, porque sempre diz a mesma coisa. E o que dizer do Rivelino? Meu Deus! Mil vezes o China, o Juarez Soares, que nem deve saber chutar uma bola. Na economia, os comentaristas, dito especialistas, fingem que são economistas. Não são. São atores. E bem canastrões, pois acreditam no próprio script.

INVERNO - O mar gelado de chumbo, a chuva fina quase neve, o anoitecer abrupto às cinco da tarde, o encolhimento geral de gaivotas, corujas e urubus, os aluninhos todos encapotados em direção à escola na rua de barro, o impenetrável céu cinza, a falta total de côco verde nos sacolões, o pés que nunca esquentam, a cabeça que vira picolé, tudo isso é a ilha em pleno julho. Depois dizem que aqui vive-se na flauta. Vive-se num freezer. De vez em quando, o sol abre e é aquela festa. Aposentados caminham na praia. Montes verdes exibem-se à luz do dia. Pescadores vigiam o mar. Bicicletas por todos os lados. Tudo faz sentido até a próxima friaca.

15 de julho de 2004

MONSTROS E CAVALEIROS



Há dois tipos de atores. Os monstros, como Othon Bastos, Marlon Brando e Miguel Ramos, que se transformam em criaturas assustadoras, como, respectivamente, Corisco, o Coronel Kurz ou o vilão correntino do novo filme de Beto Souza, Cerro do Jarau (tenho medo só em pensar nessa aparição que vai assombrar as telas daqui a pouco). E os cavaleiros, os que jamais deixam de ser o que são, mas nos convencem ao montar em personagens inesquecíveis, como o Tiradentes sem barba do José Wilker (que nos encanta com seu bicheiro em Senhora do Destino) ou todos aqueles seres que James Dean imortalizou no cinema. Entre os dois, há uma infinidade de gradações, com Tom Hanks, Nick Nolte e Steve McQueen, mais próximos do segundo grupo, ou Robert Duval e Monty Clift, grudados na elite do primeiro.

ARFANTES - Na periferia desse trabalho, lá onde nossa paciência tem limites, há os profissionais que acham a respiração um passaporte para a grande atuação. Existem os arfantes, que sugerem grandes emoções ao se deparar com alguma revelação que deveria ser impressionante, como a Suzana Vieira do capítulo de ontem da novela das nove, que respirou tanto que acabou desmaiando artificialmente em cena, pois todo o exagero inicial precisa de um grand finale. Lembro Henry Miller em Trópico de Câncer, que se retirou de um concerto de Ravel porque começava com tambores. Se alguém começa com tambores vai ter que terminar com canhões, argumentou o célebre vagabundo em Paris.

Há também os canastrões que dão respiradinhas rápidas para definir determinação em seus personagens, como Tony Ramos, que vi em início de carreira numa peça de teatro e jamais me convenceu em cena. Seu coronel Boanerges na novela das seis abusa tanto da respiradinha que acaba sendo uma marca do personagem o estado catatônico de quem não sabe para onde respirar. Fica parecendo charme, mas é pura lógica: quem dá a respiradinha fica assim mesmo quando se depara com alguma emoção que não pode transmitir. O truque é não transmitir nada. Lembro Tônia Carrero dizendo que atuar é fingir, o que é de um equívoco atroz. Os verdadeiros atores não fingem em cena, ou eles se transformam no que pedem para ser ou eles cavalgam a criatura sem piedade.

EXCESSOS - Mulher é outro departamento. Os homens utilizam o excesso para impor seu trabalho. Nada mais excessivo, e convincente, do que o bandido paraguaio de Miguel Ramos no já clássico Netto perde sua alma,de Tabajara Ruas e Beto Souza. E o que dizer de Marlon Brando gritando com as mãos na cabeça Steeeeela em Um bonde chamado desejo? Um parêntese: descobri porque o Arnaldo Jabor chamou o Brando de Marlôn nas suas invectivas quando o ator maior morreu: como um dia foi diretor de cinema, Jabor acha que pode tratar Marlon Brando pelo primeiro nome, como se fosse íntimo e tivesse cacife para manipulá-lo, como fez com inúmeros atores.

Jabor teve a sorte de contar com Paulo César Pereio em seus filmes e deu a impressão de bom cineasta. Mas Pereio é o excesso de um monstro que cavalga a si mesmo. Ele é sempre o mesmo, gostem ou não. É uma mistura dos dois grupos principais, já que esta é uma classificação unilateral, que tirei da cartola. Normalmente achamos o máximo o que Pereio faz no teatro e no cinema e nas vozes que empresta aos comerciais (aquele som gutural criado em Alegrete, cidade que um dia foi capital, por isso gera esses brasileiros definitivos como Pereio ou seu irmão, o tremendo ator Pingo, já ouviram falar? Pingo detonou na montagem brasileira da peça de Peter Brooks, Marat-Sade. Quando entrei na platéia do teatro em Porto Alegre nos anos 60, Pingo já se apresentava todo de branco, com aquele olhar que assusta até dragão).

MULHERES - Mulher é contenção máxima em cena. Quando explodem, normalmente não funcionam. A maior atriz do mundo é Vivian Leigh em E o vento levou. Ninguém ficará livre daquela criação, Scarlet O'Hara, enquanto estiver vivo. Bastou ela ficar em frente a um incêndio, sem dizer nada, para que o diretor Victor Fleming tivesse certeza que era ela quem procurava há mais de um ano, num concurso que movimentou os Estados Unidos (já que o livro era best-seller absoluto), mas não deu em nada. Vivien não disse nada para ganhar o papel e desliza no filme para comer com farinha todos os atores desse grande filme, desde Leslie Howard até Clark Gable (um ator-cavaleiro magnífico).

Eva Wilma chega perto, na obra-prima de Luis Sergio Person, São Paulo S/A (um dos três maiores filmes brasileiros de todos os tempos, junto com Deus e o Diabo, de Glauber e O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte). Sua cena com Walmor Chagas (que tinha tudo para ser um monstro), em que detona numa separação irreversível do casal em crise, é inesquecível. Mas quem imita Vivian Leigh o tempo todo é Elizabeth Taylor, que só se contradisse em Quem tem medo de Virginia Wolf, quando precisou virar monstro para enfrentar o cavaleiro Richard Burton. Quem pode com a força da contenção absoluta de Merryl Streep contracenando com o cavaleiro Clint Eastwood? Ou com a contenção que desaba em Geraldine Page, a atriz maior que nos arrebata quando aparece em cena? Ao saber se conter, a atriz se excede em atuação.

GESTO - James Dean fez o caminho do avesso: sua intensa contenção o leva para o excesso masculino, que é o seu nicho verdadeiro. Lá ele arrasa. Quem viu James Dean fazendo aquele gesto com a mão espalmada e os dedos juntos, para Rock Hudson em Giant, sabe do que se trata. Seu bigodinho fino, seu chapéu de texano, seu cabelo grisalho constroem com esse gesto(que parece o desenho de um vôo definitivo)um momento sem igual nessa arte incomparável que é a atuação. Que de tão grandiosa e diversificada, nos escapa em qualquer tipo de classificação.

Mas qualquer método serve para fincar algumas balizas no caos. Por isso arriscamos dizer o que nos ocorre, para homenagearmos esses seres que acabam nos transformando em pessoas muito melhores do que um dia sonhamos ser.


RETORNO - Imagem desta edição: James Dean em Vidas Amargas, de Elia Kazan.

14 de julho de 2004

A PALAVRA BATE UM BOLÃO


Nei Duclós

O futebol tem tudo para dar errado. Colocam 22 marmanjos num espaço limitado para trabalhar uma esfera que escapa dos pés. O objetivo é acertar o núcleo do reduto adversário, mais limitado ainda. Só se deve usar as mãos em casos excepcionais. É lógico que esse jogo tende a ser irregular pela própria concepção e natureza. Só existe algum equilíbrio se houver sintonia total entre os jogadores de cada time, alguns craques que sabem o que fazem em campo, o espírito de luta que não deve diminuir em nenhum segundo, a competência dos técnicos. Ainda deve-se levar em consideração o que rola fora desse esquema, como o gramado, o estádio, as torcidas, os dirigentes, os árbitros. O que resta para o jornalismo, diante desse monstro rebelde? Apenas a palavra usada com maestria e precisão. A paixão, no caso, deve ser pela linguagem, e não pelas camisetas.

SANTOSX FLAMENGO - Houve um milagre ontem neste clássico. Se durasse até cinco minutos antes de terminar, seria um brilhante zero a zero. Estava em disputa dois adversários que lutavam por motivos opostos. Um, o Santos, queria a liderança, conseguida depois da vitória por dois a zero. O outro, o Flamengo, não queria a lanterna, onde acabou ficando, depois da derrota. O jogo remou contra todas as expectativas. Tinha tudo para ser mais uma sonolenta e burocrática obediência à tabela, mas o que vimos foi o verdadeiro futebol do Brasil, ofensivo a maior parte do tempo, tão disputado que resultou inclusive na fratura da perna de um dos jogadores o Flamengo. Um empate sem gols seria o retrato de um jogo perfeito, onde a ausência no marcador refletiria a garra dos dois times. Havia grandes craques em campo, como Robinho e Basílio (que decidiu a partida, dando passe para o primeiro gol e fazendo o segundo). Mas o importante foi a superação demonstrada pelos dois times. Desconfio que a ausência da transmissão da Globo, que a tudo reduz a um dèja vu, já que ele dejaviram tudo e tudo sabem e prevêem, foi fundamental para o sucesso da partida. Vi o jogo pela Record e sintonizei um pouco sem a mínima esperança. Descobri então o futebol como texto. Sem querer cair na tentação de dividir em dois grandes parágrafos um jogo tão complexo, que equivaleriam aos dois tempos do jogo, propus que o drible seja a solução de linguagem mais ousada, a que consegue vencer o adversário (o branco da tela ou do papel) e deixa o gosto bom de coisa bem feita; o tranco no adversário seria o momento em que se deve reescrever aquela parte do texto; a falta é um falso ponto final, não planejado; o chapéu é a metáfora mais bem sucedida, o carrinho é o lugar comum. Um técnico como Luxemburgo, que acertou o Santos depois de um período ruim do treinador que o antecedeu, pode ser encarado como o editor de texto que precisamos ter dentro de nós. Ele azeita os jogadores-palavras, os seduz, convoca e grita na hora certa. Abel, que passa por péssima fase, também teve seus méritos, pois conseguiu peitar o time branco resgatando a tradição rubro-negra, a que não entrega-se diante de qualquer dificuldade. Saiu na lanterna, seu texto talvez tenha ido para o lixo, mas o resgato agora como exemplo de um trabalho invocado, duro como deve ser e brilhante, pois transformou o jogo numa verdadeira aula. Se não de futebol, pelo menos de jornalismo.

CRAQUES - A definição de craque feita por Pelé é perfeita. É aquele que bate um bolão em qualquer posição, inclusive na de goleiro, como aconteceu com ele, que não deixou o Grêmio ganhar num torneio, depois de ocupar o gol, tornado vago pela contusão do titular. Quando você, por contingência, é obrigado a encarar desafios que não estavam na sua agenda, aproveite a chance para demonstrar força onde você nem era considerado. Seja um craque na edição, no texto, na reportagem, na pauta. E saindo da imprensa, arrebente criando uma revista empresarial, inventando um evento, redirecionando um site. Não imite aqueles jornalistas que só possuem dos grandes profissionais a casca e jamais a competência. Fuja de quem olha para o infinito com a mão no queixo e deixa-se enlevar por um ar de sabedoria que no fundo não tem. Desconfie de quem anda apressadamente na redação, que isso é o marketing da pressa, são preguiçosos que gostam de aparecer mas nada sabem fazer. Também olhe de viés para os que afrouxam o nó da gravata, fecham os punhos e os colocam em cima da mesa, com as mangas arregaçadas, olhando para o pobre repórter como se ele fosse um criminoso. Tudo isso é cabeça-de-bagre. O verdadeiro craque é aquele que não faz marketing pessoal, que diz que nada sabe, que insiste em querer se aposentar, que te deixa trabalhar, que te elogia quando necessário e te dá uma dura quando houver motivo. Esse é o cara. Esse é o Pelé, e esse mestre é o que você vai levar no coração como o maior tesouro da sua vida profissional. Fique à altura do que você sugeriu com sua garra nos treinos. Entre em campo no dia da grande final. E voe como um deus grego em direção à bola para fazer aquele gol que estava dentro de você e ninguém sabia que existia. Seja craque, seja herói.

RETORNO - 1. Faltou dizer: hoje tem Seleção. Espero que a Globo malhe bastante o time para o professor Parreira dar aquele cala-te boca no segundo tempo. O lançamento de Alex para Adriano, que navega por cem quilômetros até atingir uma agulha, pode ser visto como a frase perfeita. 2. O sonho de um antigo revolucionário enfim se concretiza: graças a Urariano Mota, que por sua vez evoca a sua Recife no site espanhol/internacional La Insignia, estou no Pravda!Viva John Reed!

13 de julho de 2004

GLOSSÁRIO DO MONOPÓLIO



Todo monopólio leva à babaquice. Vejam os comerciais de cerveja (financiados por empresas em fusão gigantesca) e seus nã, nã, nã. Ou as Casas Bahia (que é hegemônica na publicidade televisiva) e seu abombadinho, ou seu trio de compra-compra-compra. Ou o tom didático dos apresentadores da Globo (que detém a fatia de leão do Ibope, sinônimo de mercado). Ou os politicamente corretos ongueiros (monopolistas dos bons sentimentos que viram grana). A babaquice é um sacudir frenético de ombros, uma cabeça voltada para frente que emite um olhar patronal, um eterno grasnar de puxa-puxa-puxa-como-isso-é-importante-para-você. A palavras usadas de maneira recorrente são os instrumentos desse tipo de concentração excessiva de poder na mão de meia dúzia. Sem ninguém que lhes faça sombra ou oposição, eles perdem o referencial e se transformam em galvões buenos do texto sem escrúpulos. Para apontar essa tragicomédia, compus um glossário que sintetiza as principais tendências da linguagem babaca que nos assoca e que acaba se refletindo na literatura de mercadinho que impera na mídia (onde o minimalismo profissional é a preguiça elevada à categoria de gênio, a abobrinha sem agrotóxico envolta em celofane).

AFINAL - Ou seja, só pode ser assim, seu idiota, não vê? Tudo o que está sendo escrito leva a um afinal, pois as coisas são como são, ou seja, como dizem que são, e ai de ti se discordares. Afinal, és ou não ou um bola murcha, que a tudo aceita sem pestanejar?

COM CERTEZA - O com certeza é uma viga de aço que sustenta o universo. Essa viga se alimenta da repetição. A cada milionésimo de segundo, alguém tem que dizer com certeza na mídia, sob pena de o universo sucumbir em desencanto, irracionalmente. Veio daquela coisa da casa portuguesa e alastrou-se como vírus mortal. Qualquer portuguesa é sempre irremediavelmente com certeza, assim como 51 é eternamente uma boa idéia. Jamais pronuncie o número 51 sem o complemento uma boa idéia. Os publicitários acham essa babaquice o máximo.

JORNALISMO DE BREQUE - É aquele noticiário que faz uma pausa para criar suspense antes da conclusão da fala, para deixar o telespectador com água na boca. Certo? (breque) Errado. Antes de tratar dos (breque) sem-terra, é preciso tratar dos (breque) com-terra, diz o festejado analista político. O breque dá status ao repórter/comentarista. Se ele faz breque, ele é bamba. Certo?

CONFIRA - O leitor agora virou fiscal. Tem sempre que conferir alguma coisa. Nos sites corporativos, o confira impera sem restrições. Como parece obrigatório usá-lo, costuma-se chegar ao cúmulo de mudar o sentido original da palavra. Por exemplo: o jogador ao bater o pênalti foi lá e conferiu. Conferiu o quê, madame?

ESSA-GENTE - São o povinho pobre e brasileirinho, que merece todo o carinho milionário da televisão bem remunerada. É de chorar quando a repórter bem intencionada vai lá entrevistar essa-gente. Perdi tudo, diz algum exemplar do essa-gente, quando vem enchente, incêndio ou coisa que valha. Essa-gente não tem mais onde morar, denuncia o/a repórter. Todos sentem peninha de essa-gente. Quando essa-gente melhora de vida, vira capoeirista ou é aplaudido pela Angélica. Essa-gente é expressão politicamente correta, que se opõe às clássicas gentinha ou gentalha. Nos textos doa analistas bem fornidos, vira choldra ou patuléia.

ESTÁ FRIO? - É o bordão do povo-fala das TVs. Faz frio e lá vem um povo-fala. Com certeza, respondem sempre, está frio mesmo. Puxa-puxa-puxa.

JÁ,JÁ - Medida de tempo que pode durar dez minutos de propaganda. É para disfarçar que você está vendo mesmo é publicidade e que o programa é só um chamariz para ficares plantado no teu trono, ô da poltrona sem movimentos. Nem tenha a ousadia de levantares daí, que o cardápio anunciado vem daqui a pouquinho. É pá e bola como diria o Elias Jr. (aquele que dizia para o Luciano do Vale: patrão, se o senhor espirrar, saúde!).

NÃO É PARA MENOS - Nunca é para menos. Quer dizer: invariavelmente teria que ser assim. É um sinônimo de afinal.

SÓ PARA TER UMA IDÉIA - Jamais tenha duas idéias, é proibido. Você só pode ter uma. O complemento é não pensou duas vezes. Para ter uma só idéia, você tem que pensar uma só vez.

TARTARUGAS E CAPOEIRAS - As ongs cuidam de preservar as tartarugas e ensinar capoeira (essa-gente serve mesmo só para isso). Faz sentido. Como as tartarugas duram 80 ou cem anos, daqui a pouco o planeta estará infestado. Então, só aprendendo capoeira para enfrentá-las. As ongs cuidam do futuro da chamada essa-gente.

RETORNO - O grande editor Jesus Gomez, de La Insignia, publicou meu ensaio sobre A Vampira do Lago, de Tailor Diniz. Urariano Mota, que difundiu meu romance aos quatro cantos da terra com um texto maravilhoso, me apresentou Gomez. Tailor publicou na revista Aplauso um ensaio brilhante sobre Universo Baldio. Eu revelo um romance magnífico ainda inédito. Somos nossa própria descoberta. Escritores unidos contra o monopólio da informação. Que nem se conhecem pessoalmente, somos barcos à deriva no mar da Internet. Nada temos em comum a não ser a paixão pela palavra e a vontade de respirar. Viva a revolução! Cara, como é bom lutar.

12 de julho de 2004

CEM ANOS DE NERUDA



Não queria sobrepor um post ao ensaio sobre A Vampira do Lago, mas blog é assim mesmo, essa tripa sem fim que obriga o leitor a usar o cursor. Além disso, este é um jornal diário e como diz aquele festejado poeta, muito profundamente, gasp, o tempo não pára (é mesmo? nossa!). Pois fica o aviso: abaixo desta edição, visite a viagem que fiz ao romance de Tailor Diniz (que ganhou caprichada edição do nosso webmaster no site. E hoje, para comemorar o centenário de Neruda, destaco aqui o que publiquei em 18 de setembro de 1993, na Zero Hora, com o título de Neruda: O animal ferido da palavra. Depois do texto (que considero um dos meus manifestos poéticos) vem o poema Pablo, do livro No Mar, Veremos (que obteve zero resenhas nos grandes veículos, com exceção do Jornal da Tarde e uma bela nota da IstoÉ - parabéns, grande imprensa!).

GRITO - Poesia é a palavra diante da morte, a distância de um braço entre o poeta e seu destino. A tensão permanente do poema é a visão desse desenlace e é disso que se alimenta a sua eternidade. É por isso que o poeta sobrevive, não porque lute para ficar vivo, mas porque escreve sabendo que vai morrer. Quando, enfim, a última batalha desce sobre seu corpo em brasa, a obra grita, como condenada. Pablo Neruda, morto há vinte anos (N.B: hoje são 31), encarna esse animal que cruza todas as fronteiras e regressa à pátria para ser assassinado. Está na moda hoje destruir o mito para celebrar a exposição das vísceras, compensação de um tempo onde triunfa a indiferença. Assim, o vazio é confundido com virtude para privilegiar os "erros" de Neruda, como um poema para Stálin, por exemplo. Mas o que é datado, no poeta, morre com ele. O que permanece é o crepúsculo enrolado aos seus pés e a solidão, como um túnel.

ENCARNAÇÃO - Não é apenas a sua lírica que cresce quanto mais nos distanciamos do réquiem de 21 de setembro de 1973. Assoma a pátria, sua metáfora extrema: na hora em que morria , era o Chile que estava sendo devorado. Pois não bastava matar o presidente, era preciso também eliminar a esperança. Neruda entendeu que tinha chegado a sua hora. E acabou-se, puxando a toalha no momento em que os tiranos comemoravam a vitória. Do seu engajamento fica essa encarnação do povo e terra, o lirismo épico de sua caminhada, a manutenção do mito, não restrito ao seu país. Ele pertencia a uma raça quase extinta, aquela que sumiu do mapa porque o mundo mudou de estilo. Já foi longe a época em que as nações cultivavam seu poeta, que recitava versos na praça e traçava biografias andarilhas. Ele alimentava assim a multidão faminta de História, ainda presa a palavras hoje mortas, como atávico, mártir, telúrico. Era um artista popular da palavra, mas a mensagem que ele inventou para a rápida passagem do tempo atraiu a atenção dos lobos. Minaram então sua sorte trazida do berço, desmoralizaram seu andar partido, imitaram seu timbre, roubaram-lhe a voz. Pablo Neruda é a expressão maior desse romantismo tardio, desse último suspiro da imaginação emocionada, que morre nos braços do povo ao som da metralha.

TÚNEL - Hoje, quando o Chile ressurge como tigre, lembramos o comportamento dos chacais. As manifestações do 20º aniversário do golpe de 1973 ainda não cobraram a conta. Falta visitar o túmulo do poeta, gritar seu verbo em praça pública (N.B.: o que já está ocorrendo, assim meio do avesso, pois nas comemorações vejo mais circo do que poesia, o que é comum hoje). Para o Brasil, retalhado numa guerra interminável - exatamente porque adiamos todos os desenlaces - ele inspira o tom de eternidade, que nos escapa. Estamos presos demais à pressa, à ilusão eterna do presente.Muitos poetas apostam no supérfluo, no fugaz, no palavrão - ainda ludidos de que é possível "chocar" alguém com gestos ou palavras, não fôssemos nós observadores permanentes das chacinas. A poesia brasileira costuma ficar dividida entre o mimetismo nerudiano e o espólio da demolição concretista, entre a pomposidade inútil e o falso vanguardismo. Estamos mergulhados demais no horror para enxergar a poesia.

SILÊNCIO - É nesse túnel que deve se desenhar o poema ainda em silêncio, como um animal ferido. A longa cicatrização imobiliza o gesto, enquanto a palavra estilhaça nos vidros de uma nação que derrapou. Nesse exílio obrigatório, a morte de Neruda abre uma trilha. Ele identificou-se com a grandeza e a tragédia chilena e tornou-se o mais caro patrimônio do país. Precisamos deixar que ele nos toque com os dedos longos da palavra. Não podemos entretanto, mergulhar no equívoco de endeusá-lo, nem nos deixar enganar pela maior parte da sua obra póstuma. O que ele mesmo publicou já basta: Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada, Confesso que Vivi, As mãos do Dia, Canto Geral, entre outros livros iluminados.

PABLO

Nei Duclós

Da cordilheira desce a lava que fecundou as ilhas
o sêmen das águas profundas
a mão que alimentou o arco-íris

Da cordilheira desce Neruda, o passageiro noturno
pai que nos jogou no meio do mar
braço possante colhendo a mínima flor

Do Chile desce o diamante que força o túnel
magia da clara mina onde o sol resiste
duro perfil de pássaro ferido

Das cidades sagradas da América desce Neruda
coração a serviço diário do futuro
ninho de um povo que ainda será livre.

RETORNO - 1. Paulo Florêncio despede-se da primeira parte do meu romance Universo Baldio: Caro Nei Duclós: Hoje (domingo) me despeço de Alípio, Jacaré, Peneira e André, o do cooper. Juntos com esses personagens, deixo a República de Itaguaçu um pouco saudoso como se eu tivesse vivido lá junto com vocês. Estou com uma tremenda curiosidade para saber por onde andam hoje esses seus amigos de juventude. O que eles pensam, inclusive você, dos rumos que tomaram o nosso país.Apesar das duras penas vividas com os seus amigos à época, sua despedida da República foi poética. Você saiu para encarar outra vida com a sua companheira e mais um acompanhante (ela estava grávida), ou seja, mais um personagem dessa sua história. Que, aliás, não seria apenas mais um personagem. Mas, mais uma pessoa parte de sua vida para dar continuidade em sua história. Enquanto isso eu me embarco no Segundo Tempo de Universo Baldio , Papel de Bala. 2. Rubens Montardo Junior envia notícias da fronteira: Prezado Nei:Continuo lendo e fanático pelo teu Diário da Fonte. Bem, vamos as novidades:a) Miguel Ramos et caterva está filmando Cerro do Jarau, de Beto Souza, exatamente no Cerro do Jarau, hoje, amanhã (segunda) e terça-feira. Depois, dois dias e o filme será concluído em Porto Alegre. No sábado, no Segundo caderno da Zero Hora saiu uma "enorme" (que espaço ridículo dão a boa cultura, a cultura propriamente dita, embora nos inundem com banalidades e mediocridades) reportagem sobre as filmagens em SantAna do Livramento;b) Na próxima sexta-feira, dia 16/07, às 18h30min, o Ubirajara Raffo Constant, o Biratuxo, lançará no Centro Cultural Dr. Pedro Marini, em Uruguaiana, seu primeiro romance intitulado Pampa em 23, que versa sobre a "rebolução" de 23, seu início em nossa cidade e seus desdobramentos de forma romanceada. São mais 480 páginas. Imperdíveis! 3. Já avisei o Rubens que o Biratuxo precisa me enviar o romance dele, senão eu mando o Cabo Adão pegar todo mundo.