28 de setembro de 2019

CAVALEIRO DE AVENTURA

Nei Duclós


Não quero, pastora, ser teu vassalo
Amarrado ao amor pela cintura
Cerzir versos no inverno da planura
Nosso campo com clima de deserto

Prefiro rasgar o chão e sonhar trigo
A ficar embevecido na beldade
Para tanto renunciei à minha cidade
Pois de festas e salões estava farto

Leio Camões em exigua biblioteca
Para ferir canções no pinho antigo
Isso depois de semear e fazer fogo
Para teu rosto iluminar parede e teto

Quanto mais perco mais pesado fico
Deveria ser o contrário disso
Estaria leve por sofrer martírios
Mas sou um xucro cavaleiro de aventura

Fui poeta agora sou mendigo
Vivo das plantas que à força medram
E para não me limitar ao esses redutos
Amo-te sem razão porque sou loucura



21 de setembro de 2019

NOVO MUNDO

Nei Duclós


Reconstruímos o mundo
Nas ruínas depois do cataclismo
Dele ficaram essas pedras retorcidas
Monumentos sem rosto
Esculturas de gigantes
Perfis de um enigma
Sem retorno a nos perguntar
Quem somos nós
Criaturas geradas em águas profundas
Ou pelo fogo fátuo das estrelas?



20 de setembro de 2019

INVASÃO

Nei Duclós


Não me entenda mal, a tua beleza não é o motivo
De me aproximar com tanto esmero
Fico longe pois conheço que sou número
Entre tantos que sobram pelos cantos

Mas fico à vista, a esperança é a grande fantasia dos cativos

É o teu jeito, tua auto estima
Que projeta essa postura de estadista
Como se fosses dona do meu reino
E eu um pobre cavaleiro andante

Por isso arrasas sendo apenas o que vives
Com esses atributos de escultura
Houvesse uma religião minha devoção
Teria a força de um templo dos romanos

Deixo meus exércitos fora da cidade
Como ordenam as leis dos sacerdotes
Mas a insurreição parece inevitável
Deusa do Olimpo que invadiu o Capitólio



19 de setembro de 2019

SAÍDA


Nei Duclós

Poucas palavras bastam para cobrir a fuga
Uma senha que encontre a saída
Uma porta de entrada
E basta para despir as roupas antigas
Ganhar outro nome
Viver de brisa



BARCO PEQUENO


Nei Duclós


Talvez precise, mas não devo recitar o poema
Dizê-lo em praça pública
Ou confiná-lo em salas de leitura
Ou sussurrar versos em pérfida epifania
Ou mesmo inseri-lo em discursos

Devo abster-me
Como se estivesse sempre mudo
Ele estará recolhido em conchas
Ou velhos livros
Enquanto me mantenho à deriva
No mar que é meu segredo
Barco pequeno que rema contra o Tempo



ARGONAUTA

Nei Duclós


A maior aventura é o conhecimento
É o que me anima, máquina do tempo
Não para saber, que é pilha nas estantes
Mas descobrir, navio dos argonautas

Ver pela primeira vez é o assombro
Terras ignotas, gigantes de granito
Crônica em papiro, diários de bordo

Voltar então com o olhar devassado
Por ter cruzado o mar de estrela distante
Marco polar, aurora permanente
Mais de um sol, luas delirantes

A grande aventura é conhecer-te
Amor, mulher madura, coração ainda verde



16 de setembro de 2019

ENSINO


Nei Duclós


Você me ensinou os poemas de amor
Me aceitou, me quis
Foi e voltou como as estações
Depois me exilou

Na solidão medito nessa consagração
Que me devolveu o sentimento
Que ao contrário de você
Ficou


14 de setembro de 2019

AMARRA

Nei Duclós


Escreveste na pedra para que eu não esqueça
Mas não decifro rabiscos ou hieroglifos
Fico na mesma, não te compreendo
Sou leitor desatento, homem sem brilho

Herdaste dos deuses a inteligência
És de outra estirpe, talvez de outra espécie
Sobrevivente de um cataclisma
Mas que sucumbiu com algo mais forte
Meu desamor, tosca linguagem
De poemas forçados diante da deusa

Sou arauto da dor, sumida princesa
Preciso reler teu alfabeto
Talvez eu encontre o que nos separa
E costure uma ponte e aperte essa amarra



NO BALCÃO


Nei Duclós

Por acaso nos encontramos num café, em lugares opostos no balcão.
Ela se mostrou surpresa pois achava que tinha sumido de vez do alcance do meu sonho.
Ficamos nos olhando longamente, chamando a atenção de quem estava ao redor.
De repente eu disse num murmúrio, arrancando dela um sorriso profundo:
- Eu te amo.

A mulher que estava de olho grudado em nós na extremidade do balcão, chorou.



13 de setembro de 2019

LAÇO DE CATIVO

Nei Duclós


Só você não leu o que te escrevi
Exausto da solidão, que é viver sem ti
Já pedi perdão, já me arrependi
Estenda sua mão que ainda estou aqui

Não pense que sumi apenas que sofri
E continuo teu como nunca estive
O amor é uma emoção, laço de cativo
Não nasce em vão, não ache que morri

Me dê uma razão, volte para mim
Posso imaginar se acaso te perdi
Mas não hei de passar por essa traição
Pois tens o punhal beldade de um verão
E podes machucar mais do que já errei



AFRODITE

Nei Duclós


Te roubei do altar onde um oportunista
Quase te levou do meu convívio
Queria te expor como um bibelô
E não pelo que és, glória feminina

Nasceste porque Deus chegou ao limite
Da sua obra, esplêndida Afrodite
Ele se apaixonou mas deixou-te livre
Já que não é Zeus e numa sarça ardente
Disse-me que eu não deveria perder-te
Que eu não sou Odisseu que abusou da sorte
E quando voltou ainda tinha a bela
Que a todos resistiu ao tecer destinos

Te roubei do altar, momento de perigo
Com meu cavalo branco que foi do imperador
Soldados nos seguiram fazendo a segurança
E logo depois casamos, o povo estava em festa

Jogaste as flores para mill mulheres
E o mundo te amou, noiva que me deste
A felicidade por ter corrido o risco



ESCONDERIJO


Nei Duclós

Não tenho mais acesso, levantaste um muro
Pelo crime de eu ter dito o que não devia
Foi em vão a carga de poesia
Que te de dediquei de maneira explícita

Resolveste te ofender, plena de vurtudes
E eu pecador, com meu jeito rude
Sem jeito de tentar uma nova chance

Foste embora por um erro de cálculo
O tempo é meu aliado, não o meu verdugo
Fico melhor no amor correspondido
Mas não perco o prumo, mesmo tão sozinho

Perguntam porque exibo este rosto triste
Acham que perdi o gosto pela vida
Nisso não aposte noiva em sóbrio exilio
Posso não sorrir mas serei forte
Busco onde estiver teu esconderijo
Do deserto vim, rastreador indígena



11 de setembro de 2019

TUS OJOS

Nei Duclós


Tus ojos tienen el frescor de las mañana
Tu cuerpo es árbol, agua de montaña
Soy tu pájaro que sube hasta las nubes
Dices amor e el mundo se transforma
Es la primavera muy temprana



O PRESENTE



Nei Duclós


Como brincar na rua se as ruas estão mortas?
Como aprender se perverteram os livros?
Como crescer se envenenaram a comida?Nei Duclós
Como sobreviver se destruíram o trabalho?
Como acreditar se aparelharam a fé?
Como obedecer se todas as tendências se corromperam?
Como sonhar se a arte foi devorada pela mediocridade?
Como pesquisar se anexaram o passado às suas hostes?
Como escrever num ambiente ágrafo?
Como te amar se fui amarrado à indiferença e o desengano?

Só a palavra solta me levará até a ti
O poema, último reduto de uma Criação humana
Respaldo dessa divindade que no berço nos deu o presente da alegria



4 de setembro de 2019

LUGAR

Nei Duclós


Viajei por todo lado o tempo todo
Serra e litoral, capital e interior
Pantanal e Passo Fundo, de maria fumaça com baldeação em Cacequi
Alegrete Itaqui e São Borja
Passei por Curitiba morei em São Paulo
Peguei um avião para Brasilia outro para Foz do Iguaçu
Cruzei a ponte e fui para Libres Bella Unión Quarai
Fiquei um ano em Blumenau dois dias em Santa Maria
Estudei e comecei a trabalhar em Porto Alegre
Conheci Ubatuba Cabo Frio Parati
Tomei chuva em Livramento e Rivera
De carona cheguei no Rio
E me estendi até Vitória Jacareipe Nova Almeida
De casaco pulôver terno camiseta calção

Estive em todos os lugares
Em qualquer idade
De Uruguaiana a Tramandaí
Da Lapa ao Butantã
Mas só num permaneci
O meu próprio coração



A LÂMPADA

Nei Duclós


Primeira letra quando nos conhecemos
Tu perfeita com tantos tiques humanos
Rosto sem aparelhos ou truques insanos
Olhos que me colocam aos pés de Vesúvio

Toda surpresa é um presente para quem está esperando
E parecia impossível e já nos desvencilhamos
Quem acredita no amor à primeira vista?
Certamente os solitários mas deixamos passar

Com o tempo o que senti volta ao lugar do crime
Procuro na praça castigada pela chuva
Olho para o chão e escuto: achou?
Não, dizemos em uníssono
Estava bem aqui mas agora está escurando
Debaixo da lâmpada que no fundo era a lua
Olho para ti a segunda vez que nos apaixonamos

É só um poema cercado de buzinas
E uma frase solta no ar
Um eu te amo



GARRANCHOS


Nei Duclós


Passou a hora do poema
Que eu entregaria em mãos
Fiquei com a letra ardendo
Muda na hora da desunião

Melhor assim. Vejo agora
Que era preciso reescrever
Para disfarçar a bandeira

É o que faço agora no teto
Sobre teu quarto fechado
Vou mudar para pássaro
E bicar tua janela até de manhã

Hás de notar o papel com garranchos
Que ostento para que leias

Não me importa que digam
Queo amor é tão ridiculo
Que parece bobagem o sentimento


1 de setembro de 2019

ÁGUA DO PLANETA

Nei Duclós


Em cada planeta as criaturas escolheram os elementos essenciais da vida.

Em Jupiter foi o gás em Mercúrio o enxofre em Plutão a sombra na Lua a areia em Vênus as nuvens baixas pesadas em Marte o fogo em Saturno os arcos e na Terra foi a água.

Daí vieram os lagos os rios os canais as cisternas as cachoeiras os aquedutos as represas.

E também a Deusa da Água, mãe generosa sem a qual não haveria nada a não ser pedras colocadas por toda parte a expor o remorso do dilúvio.

E tem o mar, espaço não domesticado a combinar com o vento o terror do desamparo e com o sol os gloriosos dias de praia.