31 de março de 2010

O VERDADEIRO JOHN LENNON


A foto acima, tirada no início dos anos 70, encerra definitivamente a polêmica sobre a verdadeira identidade do mais importante dos Beatles. Peço desculpas aos inúmeros aspirantes, mas o fato é que eu sou John Lennon. Escrevi todas aquelas canções com meu parceiro Paul, morto num acidente de automóvel, como todos sabem. Paul foi substituído por esse babaca que acabou fazendo os Wings e perdeu 60 milhões de dólares num casamento tardio. Depois de ver o corpo do autor de Yesterday estendido no chão, quis ir embora e deixei no meu lugar o sujeito que acabou detonando a banda e disse que o sonho tinha acabado. Clone besta.

Fugi para o Rio, mas não me dei bem lá. Muita bandeira, iriam logo descobrir quem eu era só para me esnobar. Acabaria sendo colunista do Pasquim ou pior, do JB, já que, sem poder me apresentar nos palcos, tinha de me disfarçar como jornalista e escritor. Resolvi vir para o sul, que tem um clima quase londrino, não fosse o excesso de alemães, o que sempre me deixa nervoso pois lembro da época da guerra, quando os chucrutz barbarizaram uma barbaridade.

Assumi a identidade de um poeta da fronteira, coisa que me dá trabalho até hoje porque não sei quando se deve se dizer che ou tchê. Quando me pedem para fazer mate, entupo a bomba. E como nunca fui da elite britânica, não fiz aulas de equitação. Portanto, ao me colocarem em cima de uma sela, caio, arrancando gargalhadas. No tempo em que eu estava parecido com o John ainda me desculpavam, dizendo: o cara é hippie, deixa quieto. Mas hoje, nas cavalgadas nativas, sempre me jogam no lombo de um matungo, que morre no final do evento.

É o excesso de peso que provoca esse desfecho trágico. É uma desvantagem, mas serve pelo menos para eu assumir que sou John sem ter que me preocupar com as conseqüências. Quando eu tinha a aparência da foto acima, era um perigo, a toda hora queriam que eu cantasse alguma coisa e apertasse os olhinhos por trás dos óculos redondos coloridos. Agora, por mais que eu grite que sou Lennon ninguém me dá crédito. "Ara", me dizem lá na zona do Cafarate. "John Lennon Chacreiro!" E se agacham nos pombos, aquelas grandes pedras lisas de beira de rio. Por isso sempre digo para meu inimigos que, se quiserem me atacar, passem antes lá perto da Cafarate para ver o que é bom pra tosse.

Uma coisa boa de ser ainda John Lennon, apesar da idade e de ter sofrido muito quando mataram meu clone com cinco tiros em Nova York, é que continuo a compor canções. Canto no banheiro baixinho para não assustar a família, já que perdi toda a afinação depois de uma gripe braba que peguei no mato, em pleno mês de junho. Ficou um rasqueado fanho que às vezes é confundido com as músicas de vanguarda de Lennon e Yoko. Mas como não tenho nada com Yoko, nego com veemência. Sou apenas o sujeito que mudou o mundo, mais nada. Pelo menos mereço um pouco de respeito.

A única coisa que realmente me incomoda é não ter podido ir a Woodstock. Eu já tinha decidido vir para o Brasil. Estava estudando a língua com uma professora portuguesa, o que me tornou um sujeito de fala bruta. Levei um tempo para recuperar as vogais e começar a escrever poemas nos parâmetros brasileiros. Acho que aprendi. Musicaram alguns. Mas meus parceiros atuais nem desconfiam que sou o John Lennon. É duro de admitir. Agora encontrei a prova definitiva, posso convencê-los. Meu nome é John Lennon, vou dizer. Sou o cara da foto.

O BRASIL SE DESPEDE



Nei Duclós

Vai-te embora, Brasil, navio da minha vida
És grande demais para submergir
Saia deste porto guardado em degredos
E suma cercado de sereias e apitos
No horizonte exposto como cão vencido
Leva contigo o pão e o desperdício


Vai-te embora Brasil, convés do meu segredo
Na amurada se debruçam nossos ancestrais
De ternos eternos e chapéus de feltro
Mães e irmãs vestidas de espólios
A passear nas calçadas do tempo em sépia
Quero te ver longe daqui, país da memória

Vai-te embora, Brasil, sonho que recebi no berço
Como faca de estimação, um pacto de apertos
Um corpo torto, um rio junto à ponte
Não posso mais te ver pilhado em minha frente
Quero que escapes para a ilha que um dia foste
E de lá me mande sinais, a piscar na névoa

Vai-te embora, Brasil, campo de mar, porão de gávea
Naveguei contigo, contando apenas com palavras
E teu apoio do alto, quando me vias exangue
Pai que hoje nos falta, irmão que assopre o pano
Preciso que te salves e leves contigo a coragem
De sermos maiores do que esta mina de pó e pedra

Vai-te embora, Brasil, que já é tarde
O verão fechou as portas e há terremotos
Entidades armadas se abrigam nos tornados
E o céu ofusca de gás néon a perversa idade
Preciso me despedir, fechar as portas
E aguardar o vento final que traga a trégua

Vai-te embora, Brasil, que te quero inteiro
Leva contigo o chafariz, o arroio, retretas, praças
Vidros e venezianas, espelhos do verbo
Cuida bem do que tens, barca terminal das eras
Pois um dia voltarás para este templo torpe
E poderás restaurar o que virou deserto

Vai-te embora, Brasil, idéia de um coração altivo
Mão soberana que me traz cativo
Corte fundo de um perfil que nos abriga
Céu de estrelas cadentes, flâmula de gritos
Ando contigo para habitar o espírito
Porque inventei, como tu, o meu destino


RETORNO - 1. O video é do melhor disco de samba de todos os tempos, Axé, de Candeia. Nesta época de dourado e ouropel, nada como "Ouro, desça do seu trono", de Paulo da Portela. Brasil soberano, presente. 2. Atenção, como o poema é de hoje, fiz duas pequenas modificações minutos depois de postar. Portanto, quem copiou no bate-pronto, refaça a operação. Ficou melhor. 3. 31 de Março de 1964: O Golpe Civil http://bit.ly/1aVVnG. 4. O poema de hoje segue a trilha de O país perdido, poema do meu novo livro e traduzido para o italiano por Julio Monteiro Martins e equipe.

30 de março de 2010

O JN E A DITADURA QUE GANHA O MUNDO


O Jornal Nacional, da Rede Globo, não mudou o jornalismo, ajudou a matá-lo. Concebido logo depois do AI-5, em 1969, obedeceu ao formato americano por obra de Walter Clark, o executivo da publicidade festejado como gênio, mas o conteúdo precisava de um ajuste, adaptado às necessidades da ditadura. Foi aí que entrou Armando Nogueira, prestigiado no jornalismo impresso, hegemônico, na época, na comunicação de massa, e excelente cronista. Falecido recentemente, Nogueira está sendo lembrado como o grande artífice do JN, quando a obra deve ser creditada a Clark e a José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, que no JN de ontem tentou tirar da reta atribuindo toda a responsabilidade do jornal sacana ao editor chefe.


Foi assim que se consolidou entre nós a imposição oficial das versões por meio de recursos técnicos (equipamentos e rede de transmissão, movidos a muito dinheiro) e ideológicos (o sucateamento da oposição ao regime, o que levou à divisão bipolar MDB/Arena, atualizada no tucano-petismo, que depende totalmente do poder do JN para governar).

Não por acaso o primeiro ato de Lula quando eleito pela primeira vez foi comparecer ao JN, obedecer ao William Bonner e servir de âncora para o noticiário global (aquele do “horário nobre”, ou seja, elitista), numa cena premonitória do que estava por vir, por mais que não acreditássemos. É fundamental recordar também que Armando Nogueira participou como protagonista do evento sinistro da manipulação dos resultados das eleições para o governo do Rio em 1982, quando a totalização dos votos pela Proconsult aparecia na Globo sem fazer justiça ao candidato vitorioso, Leonel Brizola. Este chamou a imprensa internacional (mais séria há 30 anos) e denunciou a patranha. Nogueira teve de comparecer ao vivo (exigência de Brizola,que não iria permitir manipulação da sua fala) diante do governador já eleito que estava sendo esbulhado nas fuças da nação mergulhada em nova fase de tirania.

Foi uma lavada. Brizola arrasou com um gaguejante Nogueira, que não teve mais condições de insistir na falcatrua. Nos bastidores do JN, lembro quando Jorge Escosteguy, grande jornalista com quem trabalhei mais de uma vez, me contou com detalhes como foi fritado na Globo depois de transformar a sucursal paulista do JN numa unidade de jornalismo da pesada. Foi fritado pelo silêncio e a lenta demissão, levando-o a uma situação desesperadora. Nunca é demais repetir que a Globo ajudou a esconder as gigantescas manifestações das Diretas Já, o que é público e notório. Mas não vou insistir no que todo mundo sabe, apesar de ficar escandalizado que ninguém se manifeste quando começam de novo a transformar o JN num fato histórico a favor da democracia, que até, veja bem, teria lutado (ah ah ah) contra os anos de chumbo. A Globo é a era de chumbo, ponto.

O que pega é o jornalismo rastaquera que tomou conta do mundo. Le Monde, que nunca fez algo aparecido, elege Lula o Homem do ano. Pois bem, sabemos que o Le Monde foi comprado pela industria de armas, não por acaso cliente do governo brasileiro. Os franceses nos vendem armas (agora são os caríssimos helicópteros) desde a época da Missão Francesa, nos anos 20 do século passado. O Wal Street Journal, por sua vez, usou o velho expediente de bater para depois cobrar a conta. Há uma semana, fez matéria sobre o excesso de corrupção no Brasil. Dias atrás, fez outra, sobre esse fenômeno que é o Brasil onde, pasmem, a corrupção é relativamente baixa comparada com outros gigantes. Os jornalões viraram jornalecos de meia pataca.

Para substituir o magnífico jornalismo impresso que tínhamos até os anos 60, por uma falcatrua metida a besta e vazia como Jornal Nacional, foi preciso fazer o serviço completo, ou seja, destruir a alfabetização e a formação escolar, bases de uma opinião pública lúcida e atuante. Mandaram para as calendas cartilhas eficientes, como a Caminho Suave, que alfabetizou mais de 40 milhões de brasileiros e colocaram no seu lugar o analfabetismo puro e simples. Como era impossível, no sistema tradicional, passar de ano sem saber ler, inventaram a aprovação por decreto. Assim está feito o público para consumir JN, em que o parâmetro, segundo o próprio Bonner, é o Homer Simpson, o idiota da série americana.

A verdade é que o grande sucesso do Brasil foi transformar um regime sinistro numa ditadura consentida com vestes de democracia. Com a crise mundial, em que os jornalões mais notórios perdem leitores e faturamento, está tudo sendo loteado e comprado. A ditadura brasileira faz a festa, como provam alguns artigos pesquisados pela equipe do Diário da Fonte. Leiam aqui e aqui. Mesmo no Translate Google, fica legível. Dá trabalho, mas não muito. É de explodir os gargomilhos. Simplesmente estamos cacifando a pirataria internacional com o aval do Banco Central, transformamos os responsáveis pelos milionários fundos de pensão em especuladores que compõem hoje uma nova elite, entre outras mumunhas.

RETORNO – Imagem desta edição: vídeo em que a voz do dono, Cid Moreira, lê uma carta de Leonel Brizola contra a Rede Globo, a mando da Justiça. Em pleno Jornal Nacional. Brizola presente!

29 de março de 2010

O FIO DO VERBO NO TWITTER



O que tenho feito além de postar sobre cinema aqui no Diário da Fonte? Tenho afiado o verbo no Twitter, onde as frases não podem ultrapassar 140 toques. Escrevo sobre tudo, dialogando com muitos seguidores, das mais variadas profissões, principalmente jornalistas, poetas, assessores de imprensa, gente do Brasil e de outros países. Uma viagem e tanto. A seguir, uma seleção de insights que publiquei lá no meu espaço @neiduclos.


MISCELÂNEA

Estava distraída. Deixou cair a saudade por um instante e viu-se de novo em frente ao desatino

No final da noite, o garçom varre para debaixo do tapete todas as estrelas

Quando perguntam se podem me dizer uma coisa, eu tenho um troço

Desconstruir é uma operação complicada Seria assim como destuitar

Vou te dizer uma coisa: não me diga coisas

A verdade é o pão da consciência que mofa por falta de uso

A versão é o carro que atropela a verdade na faixa de segurança

A verdade é apropriada pela mentira de cada um

A verdade convence, mas quem escuta faz parte de outra religião

A verdade é uma órfã expulsa de casa pelos falsos pais que fingem adotá-la

Deus toma notas, não para lembrar, mas para mostrar como prova


MÍDIA


É preciso dizer, para que se ouça É preciso ousar, para que algo fique de nós desta vida datada e prisioneira

É uma contradição deixar de viver em nome da sobrevivência

Liberdade não é dizer palavrão Palavrão apenas confirma o preconceito contra a liberdade
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Estudar aqueles que ensinam a aprender

O marketing, a política, os legisferantes, os ditadores de esquina, estão todos a postos para calar nossa boca. Pois agora chega!

Coloque seu candeeiro no alto do telhado É o que manda aquele que teve a coragem de mudar

Se com a rede podemos ser cidadãos livres, o que diremos se perdermos mais esta chance?
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Tivemos medo, deixamos nos dominar mais uma vez?

O cuidados que devemos ter nas redes sociais é de sermos civilizados, mas jamais medrosos A hora é da coragem

Internet é liberdade, a chance de expressar nossa opinião com todas as letras Não pode virar mais uma cela do medo

O twitter é uma tentação. Território livre para a abobrinha

Colunista não trabalha para governo, não vende notinha, não elogia a soldo, não critica a mando, não informa pela metade

Setorista de jornal não faz assessoria para ninguém, editor não assina contrato por fora, matéria paga tem de ser identificada como tal

Departamento Comercial não pauta, repórter não cobre festa de anunciante nem faz link em shopping, anúncio não invade texto

Credibilidade é a separação entre jornalismo e publicidade

O pior dos BBBs são os ex-BBBs, efeito colateral da endemia

O marketing prepara produtos específicos para ex-BBBs. Espelhos com câmaras Dicionário de Baixarias Edredons suados


SEÇÃO VERDE

A hora do planeta deveria ser diária, coincidindo com o Jornal Nacional

Militante sustentável viciado em internet apaga o monitor e continua tuitando

Desenvolvimento sustentável é a substituição das matas por indústrias não poluidoras

Deve-se definir tolerância zero para quem permitir a proliferação de traças em livros virtuais

Os bilhões de dólares gastos em preservação das árvores rendem créditos de papel carbono

A recuperação das matas ciliares implica a escolha das marcas cosméticas de várias procedências

A saúde é uma concessão com data de vencimento da indústria farmacêutica

O recrutamento de voluntários ambientalmente corretos deixa os gafanhotos desconfiados

A indústria de bebidas economiza água depois que joga fora

Estima-se a utilização da calota polar na Fórmula para objetivos ambientais

O aquecimento global não estimula a interrupção do banho quente no inverno

Reciclar água de uso industrial e do esgoto ajuda a repor os nutrientes das campanhas publicitárias

A biomassa da rain forest serve para fazer bolinhos de chuva

O desenvolvimento sustentável conseguiu sair de casa cedo e montar apartamento

Uma boa fonte renovável de energia é dinheiro


POLÍTICA

Não significa que precisa chutar o pau da barraca Mas pelo menoS se afastar desse tranco e criar algo sincero. O país precisa

O fato é que os artigos políticos obedecem ainda ao formato do Castelinho, a elegância consentida da abordagem oficial

Se o jornalista célebre disser o que pensa será que vai perder dinheiro, não vai poder encarar as outras celebridades nos ágapes?

Um blog não pode ser bola de frescobol, sendo jogada para cá e para lá entre Dilma e Serra É tanto medo assim de ser livre?

Blog é a oportunidade de não obedecer à pauta da mídia oficial Mas o que se nota é isso: ou blog é paga pau ou é só firula

É triste ver blog de jornalista célebre pagando pau para a mediocridade da política brasileira Blog é revolução Não vão queimar os navios?


CHATICES

A antipatia é uma das flores mais espontâneas do selvagem jardim humano É a gratuita cara de paisagem em relação a um alô

Algumas celebridades literárias estão no Twitter como estão na sociedade de classes: por cima da carne seca, sem interagir com ninguém

Texto chato é aquele que tenta colocar em passant, como se não fosse o objetivo principal do texto, as emoções da última viagem a Paris

Texto chato é aquele que tenta te convencer que Jesus te ama, que ser feliz é melhor do que criticar e que te manda beijos no coração

Texto chato é aquele que convida à reflexão, como se reflexão precisasse de convite

Texto chato é aquele que comenta o texto que está sendo escrito "Veja bem"

Texto chato é aquele que tenta levar o leitor pela mão e anuncia a toda hora que "isso veremos mais adiante"

Se a era de Peixes acabou, o que será colocado no Aquário?

RETORNO - Imagem desta edição: Afiador de facas, foto de Regina Agrella.

27 de março de 2010

A MONSTRA



Meryl Streep confunde a imprensa. Foram 13 ou 16 indicações ao Oscar? Ganhou só dois, um por "A Escolha de Sofia" e outro por "Kramer x Kramer". Deveria ganhar mais. Comete erros, como "Mama Mia", onde quis ser a Madona. Mas 99% do trabalho dela é gênio. Está na categoria dos monstros, aquele tipo de interpretação em que o ator se transforma numa criatura assustadora.

Foi assim em O Diabo Veste Prada, quando a bruxa da moda massacra uma pobre Anna Hattaway,atriz engolida junto com seu personagem. E é assim na sua magistral interprtação em Julie & Julia, quando encarna de Julia Child, a mulher de diplomata e de família rica do interior dos Estados Unidos que disseminou a gastronomia francesa em terreno estéril, a cozinha americana, onde o frango frito do fast food da esquina substitui o chato trabalho de fazer comida.

Talvez Julia Child seja a responsável por essa frescurada de reunir amigos para ágapes onde se elogia os pratos e “um bom vinho”. Esse tipo de evento, que é um rodízio de vaidades, substitui o fraco desempenho doméstico da família moderna, mais preocupada em aparecer para os outros do que trabalhar o que tem entre quatro paredes. Mas não tenho certeza. O que é certo é que Meryl Streep compôs a personagem na sua intimidade extrapolando o que aparece na televisão, num programa de culinária, para o que imaginou ser a vida “real” de Julia Child. Os cacoetes verbais e gestuais que foram vistos por milhões por muitos anos na telinha ganham vida e cor própria na luta da mulher que procurava uma ocupação na Paris dos anos 50.

Como costuma fazer normalmente, Meryl Streep devora quem a acompanha na sua performance. O marido cordato interpretado muito bem por Stanley Tucci (um ator apropriadamente apagado) ou a blogueira que a admira (Amy Adams) praticamente somem do mapa e o que aparece é a monstra o tempo todo, apesar de o filme ser bem divididod em dois tempos, um de 50 anos atrás e outro deste século. Numa entrevista para o Telegraph, Streep conta como entrou em conflito com a pessoa que inspirou seu personagem neste filme, que estaria a serviço do agribusiness e não atendeu um pedido para apoiar a agricultura e a alimentação orgânica.

Streep jura que admira Julia Child, mas sua performance magistral fundada numa caricatura (a performance televisiva da cozinheira famosa) não seria uma doce vingança pelo que o ídolo aprontou há vinte anos? Talvez, mas isso não tira o mérito da interpretação. Julia Child jamais seria a favor da comida orgânica, já que adorava tudo o que é considerado pecado contra o colesterol, como fartas porçõe s de chocolate e manteiga. Mas o que é admirável nos americanos é que eles não deixam nenhum ídolo solto, à mercê dos detratores. A indústria do cinema sempre dá um jeito de encontrar grandeza em tudo. Neste caso. Streep elogia a determinação da mulher que inventou uma profissão e aguentou tranco da perseguição ao marido proporcionado pelo macartismo. Nada demais. Falar mal dos republicanos agora é moda na era Obama.

Lembro de um filme de 1953, The President's Lady, em que Susan Hayward interpreta uma primeira dama mal afamada. Pois o filme limpa a barra da ilustre senhora, pois é assim que eles fazem: jamais permitem que o país, base da sobrevivência da população, seja atingido em sua honra. Aqui, só falta rebatizar o aeroporto Santos Dumont de Irmãos Wright. Tudo é possível, depois que substituíram o nome do aeroporto de Salvador, que era batizado com a data heróica da vitória brasileira na Guerra de Independência, Dois de Julho, e agora tem o nome do filho do ACM.

Lá a pessoa pode ser uma cozinheira de televisão cheia de maneirismos que eles não deixam barato. Podem até debochar, como acontece num quadro humorístico apresentado no filme, mas no fim das contas retratam a dignidade da pessoa que criou um caminho na gastronomia, levando oito anos para lançar seu primeiro livro. Deveríamos imitar os americanos nisso e não no frango frito comprado no fast-food da esquina.

26 de março de 2010

A TELA E O JARDIM: O OLHAR QUE LIBERTA



A dominação de classe leva à escuridão do olhar e à sua máscara: o que é negado à percepção serve de insumo para a crítica pseudovanguardista da arte, em que o breu não é breu, é o “não-branco”. Com isso, se justifica a imposição perceptiva, já que a pose intelectual encerra os agentes (o pintor e seus críticos) numa prisão ditada pela moda, ou seja, o mercado imóvel de produtos artísticos, que obedece ao movimento pseudocíclico do tempo (as exposições que se repetem). Ali, o que conta é o dinheiro aparentemente despossuído de sua brutalidade natural
de dominação e o silêncio do sufoco, como se fosse o estado natural das coisas.

Para romper essa barreira, o filme Dialogue avec mon jardinier (2007), de Jean Becker, com Daniel Auteuil, Jean-Pierre Darroussin e Fanny Cottençon, propõe uma saída clássica, dentro do materialismo histórico da dialética marxista: a adoção da cultura proletária, a que percebe por meio do domínio da natureza. Ao contratar seu amigo de infância para cuidar do jardim abandonado da família tradicional que se desfez, o pintor redescobre os laços familiares e comunitários, a tradição do fazer operário e, mais importante, sua visão de mundo, antes pautado pelo que produz (seu trabalho nas ferrovias ao longo da vida), e que é substituído pelo que cria (hortas e jardins, seu hobby que acaba virando profissão na aposentadoria).

Assim, não é o convívio “natural” com as plantas que formata as idéias sobre o que é visto, mas seu tratamento, ou seja, a mão na terra, o ato de regar, a colheita cuidadosa e o aproveitamento dos frutos. Não se trata de uma volta à natureza, mas a recuperação da capacidade de enxergar o mundo por meio da ação do trabalho não alienado, no caso, o do jardineiro liberto de sua faina proletária, que está livre para o trabalho prazeroso o dia todo, previsto por Marx quando a humanidade se libertasse de seus grilhões.

O filme, portanto, não é uma gracinha que todos admiram por ser “humano”. Mas uma exposição dos motivos marxistas da História, produzido num país que é, ou foi, o centro do pensamento revolucionário desde a Tomada da Bastilha e que, com a Comuna de Paris, insuflou Marx e Engels a produzirem sua obra que mudou o mundo. O pintor, ao adotar a visão operária, se desaliena do mundo onde estava confinado e recupera sua capacidade de ver, sentir e pintar. Não está mais a serviço das encomendas ou das frustrações de um trabalho que, como qualquer outro, apesar de ser parte da cultura, lhe provocava aborrecimentos.

A verdade é que, para recuperamos o que perdemos no comportamento, na cultura e no sonho, vemos um filme argentino. E para que possamos nos civilizar, avançar, nos conectar com o pensamento clássico da libertação humana, vemos um filme francês. O operário apaixonado pela esposa admirava os olhos do seu grande amor. No olhar está a chave do enigma. No desfecho, quando o operário parte, são exatamente os olhos da mulher que aparecem vazados, como nas estátuas gregas. Uma referência à cultura clássica, que precisamos revisitar todos os dias para não nos deixar enredar nessa soma de armadilhas que nos aguardam em cada esquina.

Cinema, o grande amor de nossas vidas, tem esse dom: nos colocar diante da criação de alto risco, a que não teme fracasso comercial e fala diretamente ao nossos olhos, que, como diz o lugar comum, são as janelas do espírito. Por essa janela entra a luz, as cores, os instrumentos de trabalho, o grande peixe cobiçado nas pescarias. Não se trata de celebrar o figurativismo tradicional, mas o de recuperar a força da percepção liberta dos ditames da sociedade do espetáculo. Tudo no fim vira produto, mas como diz o poema vendo no mercado o que liberta.

RETORNO - Imagem desta edição: Daniel Auteuil trabalha, Jean-Pierre Darroussin observa. E vice-versa.

25 de março de 2010

STRANGE DAYS E 2012: APOCALIPSE ONTEM E HOJE




O Apocalipse é uma das mercadorias do tempo, assim como o horário do almoço ou o período de férias (se formos seguir o rastro das observações de Guy Debord em A Sociedade do Espetáculo). No eterno presente, que é a imposição de tempo do sistema econômico que nos rege, férias, pausa para a refeição ou fim dos tempos são eventos com roupagem cíclica: eles se repetem sem interferir na hegemonia do tempo único imposto pelo capitalismo. São produtos como qualquer outro e obedecem à roda viva da produção e consumo, que escraviza corpos e mentes como se fosse algo “natural” e por isso, incontestável.

Nos anos 90, a proximidade do número redondo, o ano 2000, provocou um frenesi em torno do Apocalipse, que se nutria do texto bíblico de S. João e das profecias de Nostradamus. Foi uma mercadoria que ganhou intensidade conforme se aproximava a representação máxima desse final dos tempos, o reveillon da virada para o chamado novo “milênio”, a palavra que gastou de tanto uso e hoje está esquecida (mil anos passaram em menos de dez).

Como não aconteceu nada demais, como era de se esperar, o Apocalipse precisou de uma nova embalagem para continuar funcionando como mercadoria. Para isso, alimentou-se de novidades explícitas do novo século: o tsunami, onda gigante que varreu a Indonésia; a derrubada das torres gêmeas de Nova York, que interrompeu a arenga internacional sobre a integração entre nações e a Pax americana; e a profecia maia sobre 2012, uma nova data tirada do anacronismo da História transformada em arena do espetáculo. O marco próximo e assustador serve para gerar novos produtos de consumo, na indústria cultural e de entretenimento, e seu entorno, a astrologia e a ciência mutante e adaptável para a circulação de produtos.

Um dos filmes sobre o velho Apocalipse, aquele que foi desmoralizado pela besteira do reveillon 2000, é Strange Days (1995), de Kathryn Bigelow, com roteiro do seu marido na época, James Cameron. É sobre a ruptura das fronteiras das mercadorias da indústria audiovisual, pois no lugar de filmes, segundo a profecia do filme, teríamos o fluxo permanente de imagens e sons percebidos diretamente na cabeça dos compradores (o que se concretizou com a internet). Essa ilusão, pelo excesso, precisava de cada vez mais radicalidade na sua produção e é por isso que a transgressão é a lógica para seduzir os que podem pagar.

O anti-herói do filme, interpretado por Ralph Fiennes, que se chama Nero exatamente porque precisa ver o circo pegar fogo para continuar vivo, é o mercador das cenas brutais que encantam as pessoas imobilizadas no sistema. Recusa-se a vender assassinatos e mortes, mas é empurrado para isso pelas circunstâncias, onde um ex-amor faz o papel de tornassol de uma explosiva combinação química, quando entra de tudo, desde estupro até execução sumária nas ruas de Los Angeles.

Qual a diferença dos antigos filmes com essa realidade de imagens sem forma que tomam conta da paisagem? No cinema ultrapassado, havia um fim, um the end, diz a ex-namorada, interpretada por Juliete Lewis. Esse alívio não existe mais. A esperança é que a virada do milênio traga o desfecho do pesadelo. Mas o que acontece é apenas a resolução de um crime, graças à intervenção de uma mulher apaixonada por Nero, a motorista de limousine interpretada por Angela Bassett . Tudo se reduz a um caso policial com final feliz e com direito ao beijo deslumbrado.

2012 (feito em 2009 e dirigido por Roland Emmerich) joga mais pesado. É a fantasia americana de se livrar do resto da humanidade e ficar com a parte nobre do planeta, o Terceiro Mundo sem seus habitantes para atrapalhar. A arca que salva os eleitos que pagaram para sobreviver revela as imagens do estrago que a destruição provocada pelas manchas solares provoca por toda parte. Para nós, brasileiros, sobra o deboche: é o único lugar onde o Apocalipse desencadeia uma corrida suicida aos mantimentos, já que somos mesmo esses macacos famintos, na visão deles.

A derrubada do Cristo Redentor acompanha a destruição de todos os símbolos da civilização que se esvai: a Basílica de São Pedro (os americanos jamais vão perdoar o catolicismo), a Torre Eiffel (jamais vão perdoar a defecção francesa no Iraque), o monastério budista encravado no alto da montanha (toda devoção será castigada). Resta apenas a família que estava separada e se une na tragédia, já que o Apocalipse cuidou de levar o sujeito que ocupava o lugar do pai das crianças (este, interpretado pro John Cusack). E fica também aquela porção da humanidade milionária ou feita de alguns outros espécimes que acabaram inundando a arca nos minutos finais: todos eles vão reconstruir o mundo agora livre do excesso de gente pobre.

O novo Apocalipse é um alerta para a sucessão de eventos que estão matando em massa por toda parte (como, recentemente, no Haiti e no Chile). É demais o número de terremotos e furacões e tsunamis. Algo está errado. O clima tem sido usado como arma, essa é uma evidência que os cientistas sérios já admitem, apesar da incredulidade dos eternos desconfiados de teorias conspiratórias. Parece que a idéia é fazer uma limpa geral, onde só sobrariam umas 500 mil pessoas. A pergunta é: como vão sobreviver os donos do mundo sem escravos para sustentá-los?

A diferença entre os dois filmes é radical: Bigelow é cineasta da pesada e faz um thriller de prospecção de comportamento coletivo numa época de intensa manipulação do medo da população, enquanto 2012 é uma bobagem avassaladora que deixa no chinelo todos os outros filmes de catástrofe. Uma onda que atinge o pico do Everest é o sinal da demência absoluta que tomou conta de Hollywood na sua faina de produzir mercadorias que o tempo dissolve na primeira curva.

RETORNO - Imagens desta edição: a primeira é John Cusack com Morgan Lily em "2012" e a segunda é Ralph Fiennes e Angela Basset em "Strange Days".

EXTRA: FOI-SE O GRANDE MESTRE

Morreu István Jancsó, grande historiador da USP, nascido e criado húngaro mas brasileiro por escolha e devoção. Foi torturado e preso, mas voltou. Tive a sorte e o privilégio de ser seu aluno em mais de um curso de História Colonial. Já o citei aqui várias vezes. "É complicado" dizia sempre quando abordava um assunto, principalmente da nossa História. O Brasil é complicado. Escasseiam seus decifradores, suas grandes cabeças. Seu livro "Na Bahia, contra o Império", é um clássico.

24 de março de 2010

ATUALIDADE DE GUY DEBORD: REVOLUÇÃO CONTRA IDEOLOGIA



Nei Duclós

O livro A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord, lançado em 1967, foi a base para as ações da ala mais radical do Maio de 1968 na França. Trata-se um milagre teórico, pela sua extrema atualidade e clareza na abordagem de um tema complicado que costuma enredar os scholars. Escrito numa sucessão de aforismas precisos e geniais, Debord decifra o mundo contemporâneo gerado pela abundância e as contradições do capitalismo na era da mass media. Vi o filme de 1973 que ele produziu com o mesmo título, que é o seu livro ilustrado por imagens, filmes, publicidade, acrescido da experiência vivida na revolução operário-estudantil francesa de maio de 1968.

Nesse filme fica claro que aquela foi uma revolta não apenas contra o capitalismo, mas contra seus novos aliados: a ideologia de esquerda engessada em sindicatos e partidos comunistas ou socialistas (soa familiar?). Debord explica que a abundância da sociedade do espetáculo – que é uma relação social entre pessoas numa sociedade de classes e não um acúmulo de imagens - anexou a indignação como mercadoria. As instituições representativas do operariado também entraram nesse círculo, participando do sufoco de um sistema que provoca a divisão e o vazio. Os gestos dos concertos musicais para multidões, que representariam a revolta contra ao sistema, também fazem parte dessa impostura da indignação.

Debord acerta sempre pois usa (sem se deixar cegar pela burrice da leitura datada), de maneira lúcida, radical e criativa, as principais lições extraídas das obras de Karl Marx, uma fonte magistral do pensamento que hoje, por ignorância, é atacada como se tivesse a culpa da existência dos imbecis que a invocam. Reproduzo aqui alguns aforismas que tirei do filme e escrevi de memória: "A mercadoria fetichizada da sociedade do espetáculo perde seu valor quando entra na casa dos consumidores". Quantas vezes não nos encantamos com uma roupa na vitrine e quando chegamos em casa vemos que tudo não passava de ilusão? Também some a idéia de originalidade ao notarmos o uso massivo do que nos seduziu.

"Stalin foi descartado como mercadoria obsoleta da sociedade do espetáculo concentrado, o capitalismo burocrático". Entendemos assim como o stalinismo foi jogado fora para a Rússia continuar tendo o direito de invadir a Chechênia. Confirmamos também que os militares no Brasil foram colocados à margem do poder pelo mesmo motivo, já que a presença da farda não atendia mais aos propósitos do capitalismo da sociedade do espetáculo difuso, o do Ocidente. A nova situação se pautava pelo Consenso de Washington, o que inventou as falsas democracias atuais, totalmente dependentes da pirataria internacional e focado na derrubada das fronteiras nacionais.

"O capitalismo se apropriou de todo espaço urbano, que ficou tão sujo, feio e barulhento quanto uma fábrica". Sabemos agora porque não dá para passear nas cidades brasileiras, elas se transformaram num enorme esgoto industrial, principalmente da indústria imobiliária, que ocupou todo o território ou desvirtuou o urbanismo clássico para que coubesse o automóvel, a mercadoria fetichizada por excelência. Vemos também que foi exatamente esse nicho do supra-sumo do fetiche da mercadoria automotiva que surgiu o atual presidente do Brasil, que assumiu o papel atribuído a ele pela esquerda engessada nos sindicatos, denunciada por Debord. Claro como água.

Na França, o Maio de 1968 foi uma composição de forças entre os estudantes que se rebelaram contra o engessamento da cátedra e de um sistema educacional obsoleto, e os operários que se insurgiram contra a falsidade de suas representações. É esclarecedor o fato de os sindicatos dos trabalhadores serem a favor da polícia e da repressão às manifestações, que tomaram conta da França e incendiaram o imaginário do mundo, tornando-se referência de uma revolução legítima, que atacasse a totalidade do problema e não se deixasse enredar pela armadilha proporcionada pelo capitalismo mutante.

O tempo como mercadoria é uma das maiores sacadas de Debord. O eterno presente, que falamos sempre aqui, nada mais é do que a padronização do tempo da mercadoria e da produção, imposto para o mundo inteiro, à revelia dos tempos pessoais e comunitários ou nacionais. O tempo pseudociclico, ou seja, o turismo e as férias e as festas durante o ano apenas mascaram esse tempo único e hegemônico, pois funcionam como um carrossel do Mesmo que gera a insatisfação permanente e a revolta surda, que acaba um dia explodindo.

Aqui no Brasil,1968 foi essencialmente estudantil e como revolta estudantil se esvaziou. A insurgência operária foi falsa, pois manipulada pelos sindicatos. Gerou um líder falso, que acabou assumindo a presidência. Não há limites para a tragédia brasileira.

RETORNO - É possível ler o livro de Debord neste link, em português de Portugal.

PERSONA



Nei Duclós (*)

Somos personagens no teatro das percepções mutantes e, muitas vezes, inconciliáveis com nossa própria essência. Precisamos da aparência e seus sinais e, principalmente, de script. Ser autor do próprio roteiro requer fôlego e ajustes ao longo do tempo. Temos a ilusão de que publicamos nossas inúmeras versões nos eventos principais, mas elas se definem nos detalhes. Se você é visto num mau dia por alguém influente, assim será difundido para determinadas platéias. Por isso, dizem ser necessário nos preparar cada instante do dia, pois a Fortuna não avisa quando vai passar.

A forte intensidade das expectativas convive hoje com possibilidades reais proporcionadas pela tecnologia disseminada na sociedade do espetáculo (que inclui bem mais do que apenas a indústria cultural ou a do chamado entretenimento). Tudo parece estar à mão e nos vemos impulsionados para várias direções, certos de que seremos vistos conforme as máscaras que formatamos para cada ocasião, todas elas, acreditamos, girando em torno de um eixo imutável, a personalidade que adquirimos pelo hábito e com a idade.

O jogo é pesado e nos perguntamos então qual é nossa essência. Acredito que ela também dança conforme a música da época. Mudar de rosto nos anos 1960 significava sofrer o impacto de estímulos exógenos num ambiente coletivo formatado por uma herança educacional conservadora. Isso aconteceu de maneira mais ou menos igual para inúmeras pessoas. Quando lemos os depoimentos de quem começou a sentir e a pensar diferente de uma hora para outra, depois de ter acesso a portas até então desconhecidas do conhecimento, vemos as mesmas situações replicadas constantemente. Todos, no mínimo, acreditam ter apertado a mão de Deus.

Hoje, quando a proliferação de estímulos sobra, não existe mais aquela base que recebia e elaborava o choque. Há uma banalização geral, com resultados perigosos. O aceno de uma “cura” piora a situação. Isso nem é visto com nitidez e uma tragédia familiar pode destampar o caos obscurantista que permeia a vida nacional.

Para neutralizá-lo, nada como o bom e velho racionalismo. Temos a eternidade para sermos espíritos. Vamos aproveitar essa vida para formar uma concretude que nos falta. Precisamos ser reais, como um grande e portentoso jequitibá, e não enredados, como um cipó.

RETORNO - 1. Imagem desta edição: obra de Ricky Bols da série "Some Girls na linha" 2. (*) Crônica publicada no dia 23 de março de 2010 no caderno Variedades, do Diário Catarinense.

23 de março de 2010

ALICE ADULTA TROCA WONDERLAND PELO IMPÉRIO



Tim Burton projetou Alice in wonderland, seu mega sucesso deste início de ano, para a solução de um impasse: a menina que cresceu precisa revisitar suas fantasias para se jogar numa aventura maior, real e que esteja acima das representações da infância. É assim que ele mergulha no buraco de seu inconsciente para lembrar (fazer o balanço) do seu imaginário gerado pela orfandade, quando, ao perder o pai, o mundo virou pelo avesso e o absurdo tomou conta das cenas cotidianas.


Essa sessão psicanalítica nasce de uma fuga da mulher adulta que é pedida em casamento por alguém que ela detesta, um noivo que é a promessa de uma vida tranqüila e rica. Ela prefere navegar na lama do jardim atrás de um personagem animado, um coelho que fala e que a atrai novamente para o núcleo do conflito deixado para trás, sem resolução.

Esse conflito é uma luta do Bem, a rainha Branca, exilada pelo Mal, a rainha vermelha, a famosa que manda cortar cabeças. Trata-se de uma divisão entre a virtude e o pecado e a necessidade de reentronizar a virtude, derrubada por esse universo partido, inaugurado pela morte do pai. Sua participação no conflito é a mistura de História Sem Fim (1984), o clássico infantil alemão de Wolfgang Peterson (as viagens em cachorros gigantes voadores são idênticas) e filmes antigos de capa e espada, onde Alice vira um Errol Flyn misturado com Rainha Cristina, a Greta Garbo de vestes masculinas e de rosto impassível.

Ela conta com a ajuda de um pretendente, o Chapeleiro Louco, que á a transgressão usada para derrubar a rainha má, o mágico que a carrega para centro da arena. Feito o serviço, ela se livra desse outro noivo imaginário para colocar ordem no mundo real. Habitada por sua experiência, em que erradicou o pecado e o caos (não por acaso vermelho), colocando no seu lugar um reino harmônico e belo (não por acaso branco), ela parte para a definição dos papéis, dela mesma e de quem a rodeia.

É assim que se livra do pretendente rico e propõe uma investida colonial em terras distantes, assumindo a função abortada pela morte do pai, o da expansão do império colonial. Mas Alice vai extrapolar os planos antigos do pai morto, já que faz parte de uma novas geração, espichando as fronteiras da dominação britânica para os confins da China. Ela é o elemento que irá realizar essa ação pioneira, já que está livre das cartas marcadas do relacionamento previsível, o que seria um perigo para o Império, pois estagnaria. Ela parte para uma aventura de verdade, encarnando os princípios da dominação de sua civilização sobre o resto do mundo, por meio da navegação, do comércio e eventualmente da guerra.

Alice Kingsley já teve seu batismo de sangue ao derrotar o monstro em Wonderland. Foi ela quem cortou a cabeça do grande pesadelo que tinha se formado em sua vida. E se alimentou do seu sangue para voltar a si, ao buraco do jardim de onde tinha se enfiado. Tim Burton compõe essa metáfora da dominação, solucionando o pesadelo de Wonderland pela perspectiva da conquista de um mundo exótico, distante e lucrativo. Trata-se de uma artista a serviço da civilização que o gerou. Faz isso de forma consciente, usando um clássico da literatura, criado pela pedofilia platônica de um gênio da linguagem, Lewis Carrol, que inventou a história para as garotas que estavam aos seus cuidados.

Johnny Deep faz um Chapeleiro circense pós-moderno, que dança funk e tem um humor minimalista e cerebral. Mia Wasikowska faz uma Alice angelical, que fica nua ao crescer ou diminuir demais, colocando assim em risco suas virtudes ao experimentar drogas que a espicham ou a encolhem. Helena Bonham Carter, mulher de Tim Burton, onipresente em seus filmes, faz uma rainha má impressionável e, portanto, vulnerável. Sua queda do trono fica previsível, pois o espetáculo arma tudo para que o Mal perca a batalha.

Todos ficam felizes e vão para casa com os olhos cheios de efeitos visuais. Mas na essência, no núcleo vazio do espetáculo, que é a especialidade de Tim Burton, fica essa fidelidade ao poder dominador do império que é o seu berço. Ali, os estilhaços da linguagem são as ruínas da fantasia infantil que virou pesadelo e as frases contundentes no final são a nova cartilha que vai orientar as pessoas em suas novas responsabilidades.

RETORNO - Imagem desta edição: Alice (Mia Wasikowska), antes de mergulhar na viagem do seu inconsciente, a memória de um pesadelo infantil, provocado pela orfandade do pai.

21 de março de 2010

LOKI: UMA HISTÓRIA DE AMOR



As palavras rodeiam Arnaldo Batista, o gênio musical de Os Mutantes reconhecido tardiamente pelos ingleses e, de tabela, pelo Brasil (que o havia esquecido), mas jamais conseguem alcançá-lo: rock, psicodelia, pop, música brasileira. No documentário Loki, de Paulo Henrique Fontenelli para o Canal Brasil, até bossa nova girou ao redor da luz que emana de sua personalidade. Mas a palavra mais apropriada, e que cabe nele em todas as fases de uma vida criativa, explosiva, exilada, complicada e que encontrou a ressurreição e a glória, é amor.

O amor de Arnaldo por sua primeira namorada e esposa, Rita Lee, toma conta de uma bom trecho do filme e quase o confina num rodopio autista (tanta gente sem importância falando sobre o que se passou entre eles...). Mas o que se sobressai, se sobrepõe, se impõe, se destaca é o amor de sua atual mulher, Lucinha Barbosa, que o pegou no chão, na pós-tentativa de suicídio e o retirou da roda vida paulistana para fazê-lo reintegrar-se consigo mesmo num lugar isolado. Essa relação sustenta e costura o filme, provando que a mulher escolhe o homem e este, quando é escolhido, pouco ou nada lhe resta a fazer, enquanto ao tentar escolher, descobre quem dá realmente as cartas.

Mas a palavra amor tem uma amplitude maior, já que Arnaldo Batista colocou a busca da espiritualidade em primeiro plano, deixando de lado a carreira e nem querendo viver do que tinha feito na juventude. Só o que ele produziu junto com o irmão Sérgio, a mulher Rita, e os músicos que os acompanhavam, o colocaram no mais alto pódio da música internacional. “Melhor do que os Beatles”, disseram nos depoimentos dois músicos. “Querem escutar algo que os deixará abismados?” pergunta outro. “Os Mutantes sintetizavam todos os gêneros numa só frase musical, diferente dos Beatles, que faziam uma colagem de gêneros”, diz mais um.

Foi sorte nossa a existência desse amor tardio, mas providencial, da atual esposa, e desse amor eterno, do som que sai dele para o deslumbre geral. Fez com que voltasse à tona, depois que o Brasil tinha resolvido enterrar mais um dos seus grandes talentos, a sina do país que se auto-devora, como se a grandeza fosse nossa principal culpa. Dá dó ver figuras vazias fazendo caras e bocas para falar de Arnaldo, umas estrela que brilha além das arqueadas de sobrancelhas e o fechar de olhos para reforçar abobrinhas. Dá dó ver um dos músicos dos Mutantes achar graça do fim do casamento e da banda.

Ao mesmo tempo, é um alívio ver Kurt Cobain ou Sean Lennon falarem um tempão sobre a importância e a qualidade de um brasileiro que fez História. É uma vocação que não temos, o de admirar os outros, de reconhecer, de lutar para que sejam vistos e ouvidos pelo público. A tendência no Brasil é eleger meia dúzia de imbecis para gritarem décadas nos palcos como se fossem grandes artistas, quando não passam de contrafações. Enquanto isso, nossos criadores amargam o exílio interno, como aconteceu com Tom Zé (que trocou várias vezes de roupa nos seus depoimentos para o documentário para representar as muitas fases da vida de Arnaldo), até que de novo os estrangeiros vissem nele todo o valor que aqui tinha sumido pelo ralo.

O amor, em Arnaldo Batista, junto com sua formação (a mãe, concertista de piano, aparece pouco no filme, infelizmente) o leva por todos os gêneros numa só frase musical, e pontua sua obra melodiosa, tocante, profunda. Pessoa querida por todas, cruzou os umbrais dos preconceitos. Quem o chamava de louco, agora tem de enxergar o gênio. O criador sem carreira é o mais bem sucedido, pois é aclamado por onde se apresenta (as novas gerações brasileiras quiseram saber quem era esse músico que tinha feito tanto e estava no limbo). O que parecia psicodélico era apenas liberdade criadora. O que dizem ser rock era uma composição e interpretação sem rótulos. O que tem tudo para ser brasileira, é apenas a recriação do que há de mais forte no mundo todo, inclusive no Brasil. Por isso as pessoas se curvam diante do menino grande, com a cara marcada pela dor. Por isso quem fala sobre ele no filme diz que ama esse artista único.

Um dia fui ver um show dele em São Paulo. Estava a serviço da Ilustrada, da Folha de S. Paulo. Entrevistei-o em 1977 (ou será que foi 1978?), na época em que ele tinha uma banda, o Patrulhas do Espaço, que achei fraca. Elogiei a performance chapliniana no palco, pois ele fazia questão de surpreender todas as expectativas para mostrar algo silenciosamente hilário. Tocou pouco, e também falou pouco na entrevista no seu apartamento de janelas todas fechadas.

Estive frente a frente com essa mansidão reticente, esse invólucro que guarda o melhor de nós e às vezes sai para a rua a brilhar como uma supernova.

20 de março de 2010

A SEDUÇÃO DO OBSCURANTISMO



Pressionado pela censura do judiciário, da publicidade, do patronato, da política, o jornalismo aos poucos viu-se limitado e, junto com o país que degringola, estagnou. Os mestres do ofício foram afastados por motivos variados, mas principalmente porque incomodavam e não permitiam que forças externas fossem hegemônicas o tempo todo sobre a redação, que sob seu comando, ainda respirava. O sufoco gerou o ambiente ideal para medrar o obscurantismo, que aos poucos virou a conceituação oficial do jornalismo.

Vamos pegar algumas frases, confundidas com pensamentos. São flores do obscurantismo, mesmo à revelia de alguns dos seus autores, transformadas em carne de vaca da comunicação.

UMA COISA É UMA COISA, OUTRA COISA É OUTRA COISA – Significa que tudo pode ser cometido que não levantará suspeita, pois as coisas não interagem, não tem nada a ver uma com a outra. Serve perfeitamente para as negaças dos autores do mensalão, por exemplo, que não tinham nada a ver com isso, nada sabiam, apesar da Procuradoria Geral da Justiça apontar as quadrilhas. As coisas existem em si, não podem ser comparadas, não há conseqüências.

O JORNALISMO SEPARA O JOIO DO TRIGO E PUBLICA O JOIO - Atribuída a Adlai Stevenson, político democrata americano e dita, claro, em tom de blague, foi levada a sério por aqui. Justifica a publicação das tralhas e baixarias que vemos nos jornais, sob o álibi que estariam agradando o povo. Duvido que as pessoas hoje comprem jornal para ler baixaria. Tem tudo no you tube, na internet, na televisão. Para que perder tempo? Mas os jornalistas acham o máximo esse tipo de sacada e repetem sem parar, se achando o suprasumo da esperteza lúcida inteligente.

TODA UNANIMIDADE É BURRA - Nelson Rodrigues não tem culpa de sua frase virar instrumento obscurantista. Ele se insurgia contra os politicamente corretos, que impunham percepções, e procura abrir algumas janelas na inteligência coletiva. Mas não deu certo. Os mesmos criticados assumiram a paternidade da frase e repetem sem parar, confirmando assim a burrice da própria unanimidade. A frase serve para decepar a diversidade do livre pensar e tentar colocar todo mundo na canga ideológica. Você não pode contrariar que toda unanimidade é burra. Dizer por exemplo que a unanimidade de julgar assassinato crime hediondo é algo positivo.

É A ECONOMIA, ESTÚPIDO - Frase dita por um assessor de Bill Clinton na briga vitoriosa contra os republicanos, virou bordão do s articulistas, editorialistas, comentaristas de economia etc. É super usada porque assim chama-se o leitor de estúpido impunemente. Originalmente, quer dizer que a economia é decisiva numa campanha, só imbecil não vê. Mas serve para dizer que sem essa porcaria de política econômica da pirataria internacional não há salvação. Nem tente pensar diferente, você será chamado de estúpido.

CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA - O belo título de Garcia Márquez para um dos seus mais famosos romances já tinha overdose de uso há vinte anos, quando reclamei do excesso. Mas continua, porque os jornalistas acham que sua função é sacar tudo antes. A síndrome das Boneca Teresa, Eu Já Sabia atinge em cheio os jornalistas, que tudo preveem com seu tirocínio fantástico e por isso é que sacodem a cabeça afirmativamente depois de fazer a pergunta, pois já sabem a resposta. É a crônica da tua mãe sem calça anunciada. Jamais vão parar com isso, nem no ano cem mil.

RETORNO - Imagem desta edição: Mulher, de Ricky Bols. Nada a ver com o tema. Simplesmente acho o máximo o trabalho do grande Ricky.

19 de março de 2010

INJUSTIÇA E VINGANÇA: SIMONAL, UMA TRAGÉDIA BRASILEIRA


Vi o documentário Simonal - Ninguém Sabe o Duro que Dei, de Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal. Trata do sentimento de injustiça e sua conseqüência nefasta, a vingança. Sem ser vingativo, o filme tenta reparar a injustiça sofrida por Simonal, acusado de ser informante dos órgãos de repressão na época da ditadura Médici (1970), num episódio que o jogou no exílio interno para o resto da vida. Consegue, em parte, mas o que se destaca é a tragédia brasileira provocada pelos dois lados da injustiça/vingança, o de Simonal e o dos seus adversários políticos.

Simonal, na época no auge da carreira, se sentiu lesado pelo seu contador e resolveu dar uma lição no ex-funcionário, que tinha entrado na justiça por reparos trabalhistas depois da demissão, provocada pela desconfiança do cantor que descobriu-se quebrado. Localizados por detetives, o contador dá seu depoimento ao filme, contando que foi torturado no Dops a mando de Simonal, mais tarde identificado como informante dos órgãos de repressão, acusação que só 20 anos mais tarde foi negada por um processo no governo federal.

Simonal não soube fazer uma gestão competente do seu dinheiro e gastou a rodo. Esnobou o presidente da Shell fazendo-o esperar uma hora e meia num aeroporto, o que lhe valeu a cassação do contrato que segurava seus gastos. Só com o dinheiro dos shows, seu estilo de vida extravagante não agüentou e as finanças exibiram um rombo razoável. Sentindo-se injustiçado, já que teve infância pobre e achava que merecia esbanjar tudo o que recebia, colocou a culpa no responsável pelas contas. Como o acusado não admitiu o desfalque, entrou na roda viva da repressão na época, em que tudo se resolvia no pau-de-arara.

Isso é o que mostra e sugere o filme, ao mesmo tempo que lamenta o ostracismo que o lamentável evento provocou na meteórica carreira de Simonal. Este, pressionado pelas circunstâncias, boicotado pelos colegas de profissão, sem saída, acabou se entregando à mágoa, à raiva, à bebida. Deveria (e isso falamos agora, depois do desenlace, pois sua morte ocorreu em 2000) partir para o Exterior, se concentrar na sua carreira, na sua voz maravilhosa, na penetração que tinha conseguido no mundo todo fazendo seus shows. Mas ficou no Brasil. Deveria ter optado pelo desterro, mas acabou desterrado em sua própria terra, cumprindo assim o diagnóstico preciso de Sergio Buarque de Holanda em "Raízes do Brasil".

Sua reluzente performance junto com Sarah Vaugham apontava para essa saída honrosa, o aeroporto. Quem segura uma interpretação, junto com a diva, do clássico sucesso The Shadow of your smile, teria meio caminho andado num recomeço longe do Brasil. Poderia voltar depois, quando as feridas tivesem cicratizado. Mas a condenação foi perpétua e Simonal entrou numa espiral de perdas.

No outro lado do balcão, vemos o sentimento de injustiça dos que perdiam amigos e parentes na repressão e tortura se manifestar com tudo em cima de Simonal. O ídolo era um prato feito, um alvo fácil. Exposto de maneira escancarada devido ao seu enorme sucesso, negro, debochado, relações públicas de uma multinacional, exibindo riqueza com seus três Mercedes, confessando que não acreditava nas virtudes da pobreza em entrevistas coletivas, não houve perdão para Simonal, que caiu na besteira de dizer que estava sim junto com o governo e seus esquemas policiais. Declaração feita, a mando do seu advogado, segundo a versão não contestado no filme pelo contador.

Vemos então manifestações de racismo e cinismo por parte de quem o ataca e quem o defende. Chico Anísio chega a dizer que Simonal não precisava do paninho na testa, marca registrada surgida, segundo a entrevista de seus filhos no documentário, numa noite que estava com dor de cabeça e teria feito uma simpatia para conseguir alívio; e quando foi chamado ás pressas ao palco, foi com o pano na testa e tudo. Por que não precisava? “Porque seu cabelo jamais cairia em seus olhos”, diz Anísio, de maneira infeliz.

Nelson Motta também debocha ao levantar a falsa hipótese de um Simonal fino e coerente, que deveria ter chamado uma auditoria especializada para verificar suas finanças. “Chamou a Arthur Andersen? Não, pegou três sujeitos e resolveu dar uma surra no suspeito”. Para Motta, alguém inculto como Simonal só podia mesmo partir para a ignorância. Mas o mais chocante são as gargalhadas para dentro, sinistras, de Jaguar, que cinicamente diz que o assunto está encerrado. Puidera, o principal interessado numa solução morreu em função mda perseguição que sofreu!

As feridas continuam abertas. Vemos isso hoje. Basta você emitir uma opinião fora dos padrões do poliiticamente correto para um monte de gente cair em cima. A tragédia profisional e pessoal de Simonal, vista depois da corrupção dos ex-corretíssimos, serviu para desmascarar essa turma. Hoje, nem vem que não tem. Estamos mais soltos, mais livres para dizer o que pensamos. E não foi porque eles "lutaram" não, já que são tão algozes quanto os que combatiam. Ninguém sabe o duro que todos nós demos para falar com liberdade.

18 de março de 2010

UM PAÍS DE ALUCINADOS


Todo mundo sabe o que é a política brasileira hoje. Deveríamos sair às ruas para exigir um novo sistema de representatividade . O voto da capital tem muito menos valor do que o do grotão, é por isso que temos senadores com dois votos aos montes, enquanto candidatos cheio de eleitores são barrados. Deveríamos sair às ruas para impedir que quadros corruptos usassem as artimanhas da lei para se reeleger indefinidamente. Pois como pode o sujeito ser defenestrado por acusações de desvio do dinheiro público e depois ser tratado como grande autoridade nas CPIs da vida? Deveríamos fazer muita coisa, mas, ao contrário, vendemos nossa força de trabalho para segurar bandeiras ou fazer passeatas a favor dos candidatos sinistros impostos goela abaixo.

Estamos um país de alucinados. A ahuasca, droga poderosa retirada de um cipó amazônico, que causa alucinações e gera a certeza de que fantasmagorias são reais, é considerado patrimônio do país, graças à intervenção dos bebedores da gororoba guindados ao poder. Dão o troço até para criancinhas. O presidente sai pelo mundo a dizer sandices, com o apoio e o beneplácito de legiões de admiradores, ministros, empresários, líderes sindicais, militantes. A aprovação do governo chega perto dos 200 por cento nos institutos de pesquisa de opinião (sempre eles, desde sempre), o que permite um contingente de apoio de inhapa, talvez para as próximas encarnações.

As Ongs se dedicam a “proteger” a floresta e armam um poderoso sistema de intervenção em territórios brasileiros potencialmente considerados área de interesse internacional. Japoneses registram o veneno da jararaca enquanto perdemos as batalhas das patentes das plantas da selva. Ongs, religiosidades alucinadas, tráfico de drogas, compra em massa de terras, grilagem de territórios devolutos: tudo cabe na conjunção de ensandecimento, em que se organizam passeatas para garantir royalties do pré-sal, um troço que está a sete mil metros de profundidade e ainda não se dispõe de tecnologia segura para a extração.

Brigamos por ilusões, mas os tiros dados no coração das pessoas envolvidas pela loucura são reais e causam estragos em famílias, comunidades e sociedade em geral. Como não existem políticas públicas de apoio, tudo fica na mão de Ongs e de voluntarismos inconsequentes. Como alguém pode achar que é sacerdote e pitonizo de uma nova era e se dispõe a curar surto psicótico, que é uma epidemia séria que precisa de tratamento adequado da medicina? Na literatura, vemos autores elegendo casos íntimos a grandes cases de resultados, já que as editoras, com raras exceções, embarcam em todo tipo de sandice, menos a de programar a publicação de escritores sérios que explodem em gavetas lotadas?

Jogadores de futebol se apaixonam por travecos de vozinha afetada, participam de festas com gangs armadas, compram motos para traficantes. Na véspera da Copa do Mundo, o país sem soberania, sem grandeza e mergulhada num festival de idiotias exibe os cabelinhos amarrados de estrelas da bola sem nada na cabeça. São estimulados pela mídia monopolista e ridícula, que não faz reportagens, apenas exibe uma série de eventos frescos, transformando os jogos num bate bola de sacadinhas espertas. Mientras tanto, aumenta o número de times fake, desvinculados de clubes, na mão de empresas, coisa que foi proibida na época do Brasil soberano, quando até o Renner (originalmente, marca do comércio de roupas) gaúcho dançou, mesmo tendo sido campeão estadual.

É que a loucura é plantada, o ensandecimento dá lucro para meia dúzia, a gandaia é divertida para quem vive à custa do suor público. Prostituição, frescurada, miséria, assassinatos: quem quer comprar o Brasil a não ser os piratas internacionais, de olho no nosso patrimônio, ou o que resta dele, dos recursos que ainda possuímos? Dispensam a nós, o povo, porque de nós já cuidaram: transformaram todo mundo em zumbis a serviço do Mal.

A candidata a presidente Marina Silva se identificou com os na´vis, os habitantes da floresta de Avatar, filme de James Cameron, que virá junto com o gigolô do aquecimento global, Al Gore, para um evento na Amazônia neste mês. Não quero ser implicante nem faltar o respeito com ninguém, mas o fato é que os na´vis do filme tem focinho de fera e um longo rabo. Nada a acrescentar.

RETORNO - 1. Imagem desta edição: Gilberto Gil, ex-ministro da Cultura. 2. A propósito: "Nova novela de Manoel Carlos mostra o submundo do Leblon", segundo Renzo Mora. Um texto antológico.

17 de março de 2010

PRECIOUS, A BARRA E O SONHO: ONDE ESTÁ O CINEMA?


O cinema está na confissão da mãe de Precious, a jovem obesa, grávida do pai pela segunda vez, analfabeta, soropositiva? Ou nas cenas de delírio de sucesso de uma vida alternativa sonhada por Precious, onde o professor e o enfermeiro participam como príncipes encantados de uma biografia totalmente voltada para o espetáculo? A resposta parece ser óbvia: é claro que está na história brutal filmada com a máxima crueza por Lee Daniels a partir de um romance de Sapphire de 1987, roteirizado por Geoffrey Fletcher, que levou um Oscar pelo seu trabalho.

Mas uma resposta mais completa seria: como está cada vez mais tênue a fronteira entre Hollywood e Festival Sundance (de onde saiu Precious), o cinemão aderiu à transgressão conceitual alternativa e faz a crítica de seu passado, enquanto seduz os espectadores, agora mais exigentes, com novos impactos, com uma história sobre a inclusão de uma cidadã marginalizada (interpretada por Gabourey Sidibe), que interage com um complicado sistema de apoio social na América.

O admirável nos americanos, pelo menos em boa parte deles, nos últimos tempos, é essa visão desassombrada sobre seus próprios problemas. Eles podem: contam com instituições e políticas públicas que cercam a população de alternativas, mesmo que não sejam as melhores. Aqui, o abandono do Estado leva as pessoas a cometer desatinos, de querer consertar o mundo e os drogados apenas por ações voluntariosas, enquanto do dinheiro que deveria ir para as práticas sociais vai mesmo para o ralo.

É tocante ver, em Precious, a professora na escola alternativa, a assistente social que quer saber sobre o caso de estupro, entre outros personagens cheios de coragem e humanidade, sem nenhum resíduo de falsas boas intenções. São vocações adotadas pelo Estado, com uma ação que obedece a critérios e a processos bem definidos.

Se houve um Oscar merecido em 2010, esse foi para a atriz e cantora Mo´nique, que faz o papel de Mary, a mãe de Precious. Ela está assustadora no seu papel dramático em que pressiona a filha até a insanidade total. A cena da confissão, em que narra como o marido e pai da sua filha seduziu a criança ao longo do tempo e estuprou-a, é o ápice de uma performance que começa e termina com extrema intensidade. Mary é a parede contra a qual se bate a filha desesperada, que é levada ao surto permanente, em que tenta escapar pelo sonho, quando só tem para si a barra pesada da vida no Harlem.

Mas a garota que sonhava em ser uma estrela qualquer da sociedade do espetáculo acaba sendo a protagonista da própria vida, conseguindo trabalho, avançando nos estudos e recuperando os filhos que antes não tinha condições de criar. O cinema glamouroso cheio de maquiagem e gestos estudantes e frases vazias cede ao impacto da câmara frontal diante de personalidades do nosso tempo, vistos em sua inteireza. Não tem como colocar para baixo do tapete toda a violência estampada no filme. E isso que a narrativa comporta apenas alguns tapas, socos e empurrões, além de uma cena mais pesada, da briga definitiva entre mãe e filha.

A violência é psicológica, é dos conflitos sociais, é da ignorância, da promiscuidade> isso Precious tem de muito forte. Mas tudo pode ser enfrentado, mesmo na baixa escala social. Isto o filme tem de mais precioso.

RETORNO - Imagem desta edição: Gabourey Sidibe e Mo'Nique numa cena de Precious.

WOODY ALLEN: E NO ENTANTO, FUNCIONA!



Whatever works (2009), de Woody Allen, pode significar “Funciona, apesar de tudo”, ou, como foi traduzido, “Tudo pode dar certo” (tudo no sentido de qualquer coisa). Misteriosamente, contra todas as evidências, isso acaba acontecendo. Desde que haja uma carga de ingenuidade, um pacto entre a escassez e desigualdade de protagonistas, coadjuvantes e o público. Um choque de diversidades, um acúmulo de bizarrices que deságuam em estuários poéticos. Uma sinceridade brutal que em vez de afastar, aproxima. Um escritor como poucos ou quase ninguém. Um cineasta raro. E pelo menos um ator excepcional, convivendo com uma equipe de grandes talentos.

O que funciona, apesar de aparentemente tudo ter a chance de dar errado? Primeiro, o cinema. O filme não aposta em si mesmo, parece algo fora da ordem, sem nexo. Mas é só aparência. O gênio conhece o seu lugar: está a um passo do ridículo, em que a sabedoria toma café com a idiotia.

Segundo, o personagem Boris, interpretado por Larry David (o responsável pelo sucesso da série famosa onde Jerry Seinfeld acabou levando toda a glória), que fala para a câmara, ou seja, para nós, o público. É o único da história que sabe que estamos assistindo. O seu entorno não toma conhecimento disso. Em princípio, narrar o filme para o espectador, não funcionaria. Mas dá certo.

Boris foi acusado de ser um personagem inverossímel. Impressionante como a crítica desconhece o básico do espetáculo. O que pega não é a verossimilhança, mas o mistério do it works. Boris é físico especializado em mecânica quântica, chegou a ser indicado para o Nobel, tem síndrome do pânico, separou-se porque tentou suicídio depois de uma discussão com a mulher super-inteligente, mas sobreviveu. Manca de uma perna e odeia tudo e todos. Acaba se envolvendo e casando como uma moça do interior que não sabe nada e tinha batido na sua porta em busca de comida e teto.

As relações humanas é o terceiro item das coisas que tem tudo para dar errado, mas acabam chegando a bom porto. O suicida que encontra a nova mulher na médium que salva, involuntariamente, sua vida ao interceptar o tombo proposital da janela; o interiorano, membro da Associação Nacional de Rifles, que se descobre gay; a perua provinciana que se revela artista e casa com dois homens; a moça que no início se encosta no veterano para sobreviver a e acaba descobrindo o amor da sua vida. Tudo isso tem uma carga hilária, desconcertante e ao mesmo tempo poética.

É admirável a capacidade frasista de Woody Allen. Quando a perua fala em mènage a trois, o ex-martido exclama: “Eu sabia que não podia confiar nos franceses”, o que é uma referência à “traição" da França de não mandar tropas ao Iraque, um problema americano, entre tantos outros, que Allen curte com sua verve fantástica. Quando a divorciada recém vinda do interior descobre que o bibelô da sua vida, a menina que fugiu de casa, casou com um velho, desmaia. Boris comenta: “Mas ela casou com o pescador do maior bagre da minha terra”. “Ela estaria melhor casada com o bagre”, replica a mulher. Mais: “Gostaria de visitar um lugar divertido, afinal estamos em Nova York”, diz a provinciana. “Por que vocês não vão ao Museu do Holcausto?” sugere Boris.

Tudo isso é dito de maneira largada, sem nenhuma ênfase, o que dá extrema graça às cenas. A intensa carga de achados do script convive com a limpidez das imagens, a Nova York querida de Allen. As ruas, os parques, os carros, o museu de cera, os apartamentos, os jantares, os bares ao ar livre, os pubs, tudo se sucede com uma riqueza de detalhes encantadora.

Woody Allen é para quem gosta dele. Eu gosto muito. Não queria considerá-lo gênio, mas está difícil. O cara se supera a cada filme. Toda vez que ele começa a filmar, começo a imaginar como será. Esse com Larry David eu aguardava ansioso. Valeu a pena. Woody Allen: que bom que o cinema ainda funciona.

RETORNO - 1.Imagem desta edição: Larry David em ação. 2. Em menos de meia hora depois da primeira versão deste post, modifiquei o início do texto. Acho que ficou melhor. No fim, dá tudo certo.

16 de março de 2010

RECONHECIMENTO


Nei Duclós(*)

Parece não fazer parte da natureza humana o reconhecimento dos méritos alheios. Acredita-se que tenha existido um tempo em que havia admiração sincera. Hoje, esse devotamento desprendido deu lugar à “inveja boa”, como se a inveja, que é a eliminação virtual do Outro, possa ter natureza benigna de alguma forma. Quem teve o privilégio de avançar na idade sabe que precisa desistir do olhar alheio agradecido e se conformar com o segredo das próprias qualidades, compartilhadas apenas com a divindade.

“Deus está vendo” é um consolo, mas fica um rescaldo, uma esperança vã de que a qualquer momento a justiça vá se manifestar. Mas isso não se limita aos velhos. Qualquer um pode ser esquecido em vida. Não é outro o motivo das conversas aos berros, em que as pessoas, desesperadas, puxam a sardinha para a própria brasa. Nesses casos, o silêncio é a constatação de que só seremos ouvidos de verdade em outras vidas, quando as lições destes tempos obscuros forem totalmente assimiladas.

Não sei porque as pessoas não gostam de admitir que admiram alguém. Talvez porque haja uma idéia preconceituosa sobre o elogio, visto como manifestação de falsidade ou o mínimo de ser um objeto descartável. Quem elogia precisa ter capital simbólico para isso, senão é encarado como puxa-saco. Cuida-se para não elogiar para não dar o braço a torcer na tal sociedade competitiva. Quando alguém se manifesta a favor de alguém, ou se desculpa sobre o que vai dizer ou exagera até a insanidade para que ninguém conteste.

Não deveria ser assim. Gostar do que alguém faz ou é, sem nenhum outro interesse do que o prazer do convívio com os contemporâneos, sem conotação oculta nem mesquinharia à vista, é sinal explícito de vida civilizada, a que perdemos com a sucessão de ditaduras e de falsas democracias. Não queremos nos comprometer, por isso moitamos sobre as qualidades dos nossos pares. Apontar alguém pode ser confundido com delação. Escondemos as amizades sinceras para que não sofra ameaças.

Talvez seja isso. Ou então temos mesmo essa vocação de negar quem nos cerca, por uma questão de sobrevivência num mundo predatório. O que é trágico, quando vemos talentos verdadeiros sofrerem num exílio injusto, enquanto contamos as feridas proporcionadas pelo longo sofrimento.

RETORNO - 1. Imagem desta edição: Quem, de Ricky Bols. 2.(*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 16 de março de 2010, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.

15 de março de 2010

CORRUPÇÃO E RUPTURA EM "SALVE GERAL"


A criminalização no Brasil atinge todas as classes sociais, o que elimina a ilusão de uma classe média fora desse circuito, vista como a base de um pretenso convívio harmônico. Essa situação é fruto da quebra de paradigmas na economia ( empresas falidas em massa pela crise) nas instituições (judiciário e polícia se misturam à bandidagem) e no comportamento (a promiscuidade dos corpos é a vala comum da nação jogada no lixo). Sergio Rezende, o cineasta maior do Brasil contemporâneo, mostra em Salve Geral como as pessoas trabalham esse ambiente de corrupção e ruptura por meio de histórias pessoais que se cruzam a coletividades em pânico (a população) ou em guerra (a repressão e o crime).

Rezende fala claro, uma raridade no pensamento obscurantista que atualmente nos domina em todos os estamentos e áreas de atividades. A cadeia em ruínas que amontoa pessoas abandonadas pelo Estado é a estufa onde medra a flor da insurgência organizada. Não se trata de uma justificativa, mas de uma evidência. O partido clandestino que trafega pelas celas dando ordens e que acaba incendiando as prisões e a cidade de São Paulo, tem a mesma prática dos partidos oficiais: ameaça, suborna, manda matar, rouba. São vasos comunicantes, o oportunismo político e a solução encontrada pelos condenados, que acabam forçando as autoridades a sentarem na mesa de negociações.

Rezende fala claro. A viúva professora de piano (interpretada por Andréa Beltrão, a atriz completa e segura, uma sobriedade clássica num universo dominada pelo falso talento), formada em Direito mas que não exerce a advocacia, é empurrada para a organização por motivos de sobrevivência. Ela não pode deixar o filho a descoberto num lugar onde todos são marcados para morrer. Também não pode ficar sem dinheiro quando todos os caminhos passam pelo Caixa 2. Ela acaba se envolvendo profissional e sexualmente com o mundo da prisão, levada pela mão da Ruiva, uma advogada do tráfico, interpretada pela excepcional Denise Weinberg, que praticamente engole o filme com sua performance.

Rezende fala claro. O partido nasce das necessidades dos apenados, conquista o coração dos jovens, que acreditam em suas grandes frases, se impõe perante o sistema carcerário e a cúpula de segurança, decidindo o terror na cidade que se descobre também abandonada, tanto quando os que foram para a cadeia. Ficou faltando a última ponta desse processo: a participação dos políticos de grosso calibre, que na época (2006) estavam em feroz disputa pelo butim via campanha eleitoral. Mas isso seria pedir muito para um filme, que trata, como todos os outros, de cinema.

E o cinema, nesta nova obra de Rezende, que nos providenciou Mauá, Zuzu Angel, O Homem da Capa Preta, Canudos, para que pudéssemos continuar sentindo orgulho do cinema brasileiro, é a cidade expropriada de sua identidade, á mercê das forças poderosas que medraram a partir da destruição da soberania do país. O filho que escapa das mãos da mãe está irado com sua queda social e encontra nos rachas de carros envenenados o treinamento para futuras transgressões mais pesadas. Mãe e filho se corrompem porque não há outro caminho, senão ceder ao rompimento de todos os pactos sociais.

Vemos então esse piano, representando o status social perdido, sendo jogado para o exílio do subúrbio e nessa trajetória é extraído de seu teclado o som da cidade que naquele dia acordou sabendo que todos iriam morrer. No fundo, ali morreu definitivamente o país que nos formou. Outro está em seu lugar e mergulhamos no pesadelo marcados por um novo pecado de origem, adquirido nessa saga sinistra de uma civilização assassinada. Resta a individualidade ferida, capaz de enxergar o drama com nitidez, como faz Sergio Rezende e sua brava equipe, mantendo a única virtude que nos manterá vivos: a coragem.

RETORNO - Imagem desta edição: Denise Weinberg (de óculos escuros) e Andréa Beltrão: duas explosões de talento num filme maior.

ABRAÇOS PARTIDOS: A GRANDE ARTE DE ALMODÓVAR


O cinema foi destruído, feito aos pedaços. Seus restos jazem na amargura da memória, mutilada pela dor e o esquecimento. Precisa ser reconstituído, mesmo tardiamente e às cegas. As pistas são as fotos rasgadas numa cesta, os negativos escondidos num armário, um making of rodado à revelia do diretor, um roteiro esboçado por alguém que ressurge do passado, uma cena fora de sintonia, o número de um telefone guardado na gaveta.

Take 1: Um diretor que já não enxerga busca sua identidade perdida ouvindo os clássicos e reencontrado a imagem em movimento do último beijo dado na mulher amada que se foi. Suas mãos enquadram a cena granulada e distorcida. Take 2: Um produtor espiona a amante gravando suas conversas de longe e pedindo para uma leitora de lábios que faça a dublagem. Seu rosto disforme é a senilidade traída. Take 3: Uma agente desvirtua o filme do pai do seu filho e esconde o copião por 15 anos. Sua confissão mostra uma vida desperdiçada.

O filme a ser resgatado é uma comédia kitsch, a exemplo dos primeiros filmes de Almodóvar. O drama do triângulo entre o produtor, o diretor e a estrela é puro Hitchcock e filme noir, o sintoma de sua maturidade, em que vê o cinema como um soberbo espetáculo de mistério e suspense. Os raros momentos de amor são referências a grandes filmes românticos. O mais impressionante é que não se trata de uma colagem, mas de uma narrativa orgânica, que assume todos os riscos, como já foi notado pela crítica.

A grande arte de Pedro Almodóvar estabelece as camadas deste filme sobre cinema. Você vê Abraços Partidos, que por sua vez produz Garotas e Malas, com filmagens capturadas por um documentarista onipresente. O filme dentro do filme é desvirtuado, por vingança, pelo produtor traído. Mas é recuperado no final pelo autor que perdeu tudo, menos a capacidade de continuar trabalhando. Por um tempo, ele assumiu a personalidade de um roteirista com outra identidade, mas as revelações o levam de volta ao seu destino.

Assim, a obra perdida, humilhada, é a representação do cinema fundamental de Almodóvar, que busca a realização apesar do assédio da mediocridade e da superficialidade, que mantém-se fiel ao que é, um cineasta de alta voltagem, capaz de se superar a cada lançamento. Penélope Cruz detona como a secretária pobre que sobe na vida por meio da entrega a um milionário e que busca no cinema a realização que o vazio da sua vida nega. É uma grande atriz, que faz passar por sua performance os rastros de Marilyn Monroe e Audrey Hepburn, sem se entregar às imitações. É uma performática com pleno domínio do seu ofício.

Veja Abraços Partidos. Faz parte do grande cinema do nosso tempo.

RETORNO - Imagem desta edição: Penélope Cruz nos braços de Lluís Homar em Abrazos Rotos.

14 de março de 2010

CLARO/ESCURO: O ESPORTE DESARMA O CONFLITO



The Blind Side, de John Lee Hancock, Oscar de melhor atriz para Sandra Bullock, e Invictus, mais uma obra clássica de Clint Eastwood, ambos de 2009, são dois filmes sobre relações raciais e esporte, no caso o chamado futebol americano e rugby, respectivamente, duas modalidades irmãs, mas não idênticas. As diferenças entre os dois filmes, afora a qualidade cinematográfica, que em Clint sobra, são importantes.

Invictus, que é título de uma belo poema do britânico William Ernest Henley (1849-1903), sobre a vontade que decide o destino, aborda a força política do perdão. Narra a costura do estadista Nelson Mandela da África do Sul, nação dividida e recém saída do apartheid, nos anos 90. A fragilidade da situação, em que tudo apontava para a vingança da população pobre que pela primeira vez era representada na política via voto direto, exigiu que o novo presidente adotasse uma postura reguladora das relações entre as duas facções. “Vocês me elegeram seu líder, me deixem que os lidere agora”, diz Mandela interpretado por Morgan Freeman, contrariando os que queriam destruir o time de rugby, que significava a hegemonia branca no auge da repressão.

The Blind Side (que se refere ao lado cego do atacante do futebol americano, que deve ser protegido por um player poderoso, de grande massa física) trabalha a favor da política de inclusão social estabelecida nos Estados Unidos por meio do esporte. Convidar atletas negros para as universidades que precisam reforçar suas equipes é um expediente exposto a inúmeras críticas, mas o filme cuida de justificar tudo. Sandra Bullock cresce ao longo da trama no papel da esposa do bem sucedido empresário de lanchonetes populares. Ela vive com a família sem conflitos numa mansão, mas não fica satisfeita sem ajudar os outros exercendo a caridade cristã. Republicana, chega a contratar uma professora particular democrata para que o filho adotivo, Big Mike (interpretado por Quinton Aaron), possa ser aceito no time da escola.

Clint prova que é o grande herdeiro dos mestres do cinema de autor da indústria cinematográfica americana ao iniciar seu filme com uma cena antológica: a passagem de Mandela libertado numa estrada que divide dois campos esportivos, um do rugby branco e outro do futebol negro. Em poucos segundos, ele mostra o apartheid representado pelo esporte e foca o filme na necessidade de romper a barreira, para que a nação “com fome de grandeza”, como diz Mandela, pudesse cumprir o seu destino. E esse destino era ganhar a copa do mundo da modalidade, que seria realizada na África do Sul em 1995. O filme é esse projeto de rompimento de barreiras por meio de costura valente e lúcida, empreendida por um herói do nosso tempo. A cena final, em que os negros jogam rugby, mostra o sucesso desse esforço.

O heroísmo da rica dona de casa americana, que se destaca entre suas amigas indiferentes e vazias por meio de atitudes corajosas, é de outra natureza, já que faz parte do voluntarismo pessoal e não de uma ação política (embora tudo seja político, como todos sabem). No fundo, o filme coloca Big Mike como uma força da natureza, com deficiência de entendimento, e que só compreende as coisas por meio de demonstrações explícitas, como gestos e frases curtas. O nível infantil do personagem gigantesco é representado pela grande amizade com o novo irmão branco, que é um décimo da sua altura e um terço de sua idade.

O gesto solidário da protagonista é colocado em cheque por uma investigação que cede à primeira frase sorridente do investigado, mostrando que a narrativa tem a clara intenção de justificar a política de inclusão por meio do esporte contra todas as críticas. Esses defeitos podem colocar o filme para baixo, ainda mais que usa o velho expediente do clip na fase de treinamento do atleta. Mas o aspecto aparentemente bizarro da história intensifica a carga dramática do filme, que começa chocho e sobe para um patamar emocionante. É uma grande qualidade que não deve ser menosprezada.

O esporte é a representação do conflitos que, nos dois filmes, serve para desarmar os espíritos. Esse paradoxo é o que os torna interessante, no caso de The Blind Side (traduzido aaqui pelo batido Um Sonho Possível), e magistral, nas mãos de Clint. Li algumas reparos de que o grande diretor usou uma série de clichês. O que Clint faz, em alguns momentos, é o uso pessoal de soluções cinematográficas consagradas. O ponto final filmado em câmara lenta e arrancando o delírio esperado da platéia é um deles. Funciona, emociona. Quem resiste?

Isso não significa que devemos justificar truques de cinema. É preciso estabelecer diferenças. No claro/escuro das relações raciais intermediados pela representação do conflito via esporte, vale a competência de fazer cinema. Ambos os filmes não caem nos vícios da edição da câmara nervosa e são enxutos, limpos, com uma narrativa consagrada e objetiva. Isso destaca a grande performance dos atores. Morgan Freeman, costumo dizer: vejo tudo dele, o cara é um imã. E Sandra, depois de tantos papéis ótimos, merecia seu Oscar, mesmo que possamos duvidar das boas intenções do filme. Vale o que aparece na tela: a frágil falsa loura enfrentando preconceito para adotar seu gigante e a alegria de vê-lo bem sucedido.

São duas histórias reais que inspiraram obras com um encantamento raro hoje, quando tudo explode e os scripts obedecem a gambiarras narrativas toscas. Você pode não concordar com o que esses dois filmes, muito bem amarrados, querem dizer, mas não pode deixar de se encantar com o que eles mostram e são.

RETORNO - Imagens de hoje: Sandra Bullock e Quinton Aaaron, Morgan Freeman e Matt Damon: interpretações que fazem o encanto da Sétima Arte.