30 de setembro de 2012

VIOLINO



Nei Duclós
   
Tudo, perto de ti, perde em beleza
das aves ao algodão da via láctea
quando o sol se põe pede tua bênção
numa oração situada além da estética

Não falo em compensação interna
esse álibi do susto em pose tétrica
virtudes que no espelho pregam peças
 princípios que mascaram os tropeços

Falo da beleza mesmo, a que evapora
toda e qualquer ameaça que contesta  
a geração do sonho de um virtuose

Tocas um violino em cena aberta
esses teus olhos e as linhas da beldade
brilhas mais do que a Lua nesta noite


RETORNO – Imagem desta edição: Audrey Hepburn.

29 de setembro de 2012

A PRAÇA

Nei Duclós

A praça ficava depois do cinema
adolescência com Bardot em cena
árvores de namoro antes da missa

memória da idade sem surpresas

quando o mundo era estável e sereno
e não ultrapassava Uruguaiana
lá vivemos, sem saber, a utopia
livros não iam além de Castro Alves

Em frente ao amor existia a igreja
onde casavam princesas e parentes
íamos só ver as moças, como sempre

Esse é o espaço da profunda fronteira
a que some de vista mas fica o remanso
por estar dentro de nós, graça suprema


RETORNO - Imagem desta edição: praça Barão do Rio Branco, foto de Anderson Petroceli

O TEMPO TE LIBERTA



Nei Duclós

O tempo te liberta da sensação do eterno
és datado como planta do deserto
duras uma tarde para virar farelo
o vento espalha o que um dia foi esporo

É bizarro ver o moço achar que permanece
quando a moto se espatifa antes da festa
a morte subornou os donos do tráfico
não sobra ninguém na dança do massacre

Fica o velho em longa fila de privilégios
pode comprar açúcar ainda subsidiado
e ler o que abandonou há meio século

Verso livre levou ao trocadilho esperto
prefiro colocar o verso na soga do soneto
quatorze linhas decretam o desenlace


RETORNO - Imagem desta edição:  obra ded Bispo do Rosario.

CHAPLIN, FORD E KEATON EM TRÊS OBRAS PRIMAS



Nei Duclós
 

Vi  três obras primas recentemente: A General, de Buster Keaton (1926), Limelight, de Charles Chaplin (1952) e Rio Grande, de John Ford (1950). No século 20, a Sétima Arte estava sob o comando dos gênios. São filmes hiper analisados e prefiro abordá-los numa visão pessoal, sem pagar tributo ao cânone da crítica.


NÃO SOFRERÁS MAIS, KATHLEEN

Vi Rio Grande como uma aula sobre toques de clarim do exército americano, um conjunto de canções com temas ambientados na cultura da caserna, uma celebração da diferença de gêneros ao contrapor a magnífica Maureen O´Hara a um regimento inteiro capitaneado pelo marido John Wayne e à brutalidade dos guerreiros dentro e fora do forte. É também um conflito entre a conduta regida pelas normas e o livre arbítrio como território da camaradagem, do bom senso e do amor.

John Ford, apesar da fama de mau, com suas cenas de massacres de malvados apaches invadindo a boa vontade dos pioneiros, é um mestre da lentidão narrativa, a que mergulha, se aprofunda e busca o toque íntimo de personagens endurecidos, que se deixam levar por alguns instantes pela possibilidade do sentimento. O humor bruto e hilário do sargentão incendiário, a eximia capacidade dos jovens cavaleiros, o desprendimento da coragem em todos os momentos, o sofrimento pela família e pela pertença a uma pátria são os sinais dessa civilização que medra à sombra da guerra e da necessidade de defender o território para a sobrevivência da espécie.

Teremos sempre grandes soldados, mas não os melhores, diz a canção sobre os heróis irlandeses mortos, cantada em Rio Grande. Vou te levar para um lugar onde não sofrerás, Kathleen, diz outra canção sussurrada por um conjunto garboso de uniformes para uma esplendorosa senhora Yorke, que veio buscar o filho frustrado e abandonado pelo pai. Ela treme de paixão ao lado do marido do qual se separara depois que ele deu a ordem para queimar as plantações da família por contingência da guerra. Não escolhi essa música, diz ele, ao que ela replica: lamento, gostaria que tivesse feito isso.  

No fim, toda a rigidez imposta pelos limites da vida militar vão por água abaixo quando se sente necessidade de cruzar a fronteira para pegar os assaltantes que infernizavam as famílias . A transgressão consentida da guerra surge como solução para o que o manual e a diplomacia não conseguem resolver. O resultado é a quebra na rigidez do pai que rejeitara o filho e a volta do casal que tinha experimentado a longa ruptura em função dessa defasagem entre família e nação, entre amor e dever, entre honra e sobrevivência. No filme tudo se resolve, mas sabemos que na vida o conflito é mortal e nem sempre há sobreviventes.


A COMÉDIA ASSISTE AO DRAMA

Limelight é a narrativa de um casal improvável, o velho palhaço (Calvero, interpretado por Chaplin)  e a jovem e estonteante bailarina (interpretada por uma perfeita Claire Bloom). Há um vínculo de gratidão dela em relação ao seu salvador e que é confundido com amor. A renúncia da vida em comum, por parte do veterano, permite que a carreira da talentosa dançarina deslanche e encontre seu verdadeiro par. Mas não tão depressa: o sacrifício do personagem que tem um ataque cardíaco quando enfim é homenageado na fase terminal da sua carreira é ao mesmo tempo a celebração da solidão que se transmuta em arte pura.  A situação é representada pelo palhaço moribundo nos bastidores admirando o rodopio clássico da mulher que o ama e que assim se despede.

A impossibilidade da consumação desse relacionamento, em que uma arte (a da comédia) morre para dar lugar definitivo ao drama, é a grande tragédia do filme. O mundo perde a capacidade de rir e abraça definitivamente a de chorar. Que chora de forma poética e com noção da morte, sem a ilusão do eterno presente. Somos criaturas datadas e podemos transcender por meio da arte que chega à excelência. O empresário sempre gargalhando, a plateia organizada em claque, os indiferentes cidadãos que dão as costas para os ambulantes não estão á altura do que Chaplin quer atingir. Seu objetivo é o mais alto ponto do humano, sua decadência e sua glória.

O filme que chega ao desfecho nesse embate entre a dor e a superação é um momento decisivo do cinema, quando podemos encará-la como arte maior, que chega ao nível das grandes sinfonias ou dos romances fundamentais. É também poesia, lírica e épica, e teatro da melhor extração. Esse é o Chaplin que homenageia o personagem que o consagrou, o vagabundo que fez ir e chorar o mundo inteiro, neste filme que merece ser estudado em classe e por isso tem todas as qualidade e a grandeza de um clássico.


RITMO A SERVIÇO DE UMA CAUSA

Buster Keaton aparece como o atrapalhado pianista numa cena antológica de Limelight, numa aparição mais do que merecida, pois o jovem Keaton de A General é um dos modelos, a inspiração e a semente do vagabundo de Chaplin. Keaton é um artista de circo, um atleta, um gênio do timing, um cineasta impressionante e um ator de primeiríssima grandeza. O pobre cidadão marginalizado que acaba usando uma locomotiva para salvar os confederados é o improviso da coragem numa situação limite, em que o ritmo consegue achar uma saída: o andamento da montagem trabalha a favor de uma organização universal das capacidades individuais a serviço de uma causa. A General consegue dizer tanto com tão pouco.

 A exímia performance de Keaton neste que é considerado um dos cem filmes fundamentais da historia do cinema  alcança a permanência de grande obra de arte. Rever esses três filmes, entre tantos outros, é não esquecer nossas origens culturais: viemos das manifestações dos gênios e é para lá que devermos seguir. São obras tão solenes e importantes que deveriam ser assistidos de pé, como nas cerimônias que coroam o êxito dos heróis.

28 de setembro de 2012

CANÇÃO DA LUA CHEIA



Nei Duclós
 

Lua Cheia friorenta
já cansada de ser bela
se maquia com a nuvem
sua neblina predileta

Madurona em céu confuso
não se exibe como outrora
vestiu o tom da coragem
não levam mais na conversa

Sem deixar de ser beldade
procura mais do que espera
não cai na mesma armadilha

Engatilha o que era trava
desencadeia o viagem
na noite alta e deserta


RETORNO – Imagem desta edição: obra de Gauguin.

DIZER O QUE NÃO DIGO



Nei Duclós

Sem querer te guardas para o dia em que eu pousar no teu ouvido, dizendo o que não digo, projetando na tua tela a louca fantasia.

Quero que venhas sempre até eu criar coragem de te dizer o que imagino.

Talvez me queiras e isso acaba comigo pelo tempo perdido.


Não precisa dizer, basta que eu diga. A ti cabe o gesto de querer abrigo.

És apaixonada pela onda. Quero ser a volta da espuma quando te leva junto.

Passaste bem rapidinha. Volta, diminutiva

Escapas, lisinha, com tua presença que sonho um dia ser minha


Quero que venhas sempre até eu criar coragem de te dizer o que imagino.

Não precisa muito. Só dizer a palavra sublime, a que te deixa no ar, sem fôlego.

O passeio que não fizemos quando podíamos agora é lembrança que invento enquanto te atraio com versos, café e passarinhos.

Toda vez que vens pertinha lembro o quanto te vi tão linda pelo tempo afora, andorinha.



 SINGULAR PLURAL

Amor fechado, botão de rosa, ou que se abre, plural, festa de pétala: qual sua verdadeira natureza?

Soltei os pássaros e você veio, repetindo o aceno onze vezes. Sabes que te quero, andorinha.

Preferes as cobertas do que meu karaokê de sílabas, de baixo teor calórico.

Gosto quando você para de papo furado e me tira para DANÇAR

Você sozinha pensando. Desenhei alguma coisa.

Quebre o gelo. Pouse em meu sonho.

Amor é vermelho, não disfarça nunca.

Todo meu olhar te pertence.

Penso o tempo todo em ti porque estás longe. Preciso de ti ao meu lado para pensar em outra coisa

Partiste para a sutil defesa. O torcicolo contra o cheiro, o cinto prevenindo o encosto, a manta escondendo o seio. Te guardas para mais tarde, quando ninguém estiver vendo.

Teu rosto mudou, foi o exercício. O amor machucou só pelo vício

Troco a dor por duas pétalas. Passe o mel no canteiro obsoleto.


VANGUARDA

O que foi vanguarda hoje é altar-mor. O enterro do poema no suicídio do verbo. Mas não há retorno, o abismo é sempre o próximo passo.

Quebro a pedra da palavra. Reparto o repasto da obra. Volto para a fonte fora da paisagem. Resta a letra torta, trilha rota no paredão concreto.

Por que estou aqui te falando? Deveria estar no front, fazendo coisas. Mas me recomponho. Volto para a batalha enquanto cultivo a flor que desabrocha cedo.

Amor mal acostuma. É tão forte que abusamos. Achamos que podemos esquecê-lo na chuva que não ficará doente.

Tínhamos mais o que fazer. Ganhar a vida, salvar o mundo. O amor ficou para depois, se fingindo de morto.

Acordei contigo me perguntando o nome. Era o que faltava para fechar a noite.

Comigo será sempre assim. De manhã um verso, à noite uma surpresa. Se não quiser, basta mudar de telefone.

Não tem mais graça querer-te. Achas que é rotina. Vais em busca da incerteza. Depois não volte para pegar o lenço esquecido sobre a cama.

Bateu o vento de frente. Trouxe teu rosto rente. Dobrei os joelhos quando o clima ameaçou o beijo.

Reli nossas cartas. O amor é o único álibi convincente da bobagem.

Já vi tudo: olhar comprido, vestido curto.

Leve consigo o recado dos deuses. Eles falam em código, por sinais dispersos. Junte-os no poema

Tão frio que chamei a ambulância, teu corpo em chamas.



RETRNO - Imagem desta edição: obra de Manet.

27 de setembro de 2012

NÃO ARRISCO O POEMA



Nei Duclós
   
Não arrisco o poema, teu chão me falta
sem ti é impossível sobreviver o verbo
escrever dá cadeia de solidão eterna
se por acaso te afastas como o vento

Simplicidade não vem em meu socorro
a que arrebata sem que mova a letra
acabo caindo em extremo paradoxo
vou de vanguarda na idade da pedra

Distraio o coração com temas loucos
como criar sonetos junto ao sótão
guardo com as fotos de cenas bizarras

Deixei o hotel enfim depois de anos
esperando tua volta com o cigarro
que levaste junto com o meu carro


RETORNO – Imagem desta edição:  Brigitte Bardot.

SEMENTE NO AR



Nei Duclós
 
Você sabia que o som que você escuta no mar
é o mesmo som estelar, feito num diapasão
pelo Compositor Maior? Dom do teu coração,
que ouve por amor.

Você sabia que a flor que nasce por nascer,
quando a atenção do deserto vê algo fora de si,
é a mesma flor que você recebe pela manhã
de mãos de um sonho qualquer?

Você sabia que a luz que existe ao despertar
é uma espécie de cor que o arco-íris gerou
fora da sua pauta composta de solidão
e que se manifesta para te sacudir?

Você sabia que ser o que jamais planejou
é a resposta que dás à tua imaginação?
E que a verdade depende do ato da criação,
aquele gesto que existe como semente no ar?

Você sabia que o Tempo obedece ao teu comando,
basta dizer a palavra cultivada no sereno,
sob esse denso luar inventada por estrelas
e que não passa do rosto que exibes sem veneno?

Você sabia, portanto, não deixe que por capricho
você esqueça a origem da falta de compromisso
do teu andar acima de manhas que desconcentram.
Tudo se salva na vida que por vocação te contempla


RETORNO – Imagem desta edição: Elizabeth Taylor.

26 de setembro de 2012

RECADO



Nei Duclós
 

Caí do alto da madrugada. Abriu o paraquedas do teu sonho.

Leve consigo o recado dos deuses. Eles falam em código, por sinais dispersos. Junte-os no poema

É difícil despertar para o que parece ser o Mesmo. Mas o dia guarda um segredo. Procure em teu coração tranqüilo.

A brisa que dobra a relva é igual à minha vontade em voo de pássaro sobre teu arrepio.

Perca a paciência para a desesperança. Há sempre lugar para o amor, despertar dos sentidos.

Gosto do teu remorso. quando lamentas a amargura. Prepara o futuro, teu coração pronto para a doçura.

Estaremos prontos para partir quando imaginarmos o mundo impregnado por nossa coragem.

O que deixas de dizer se perde. No lugar dessa fuga assume o que sempre negas.

Não tema repetir as palavras que te invocam. Basta mudar de posição que elas se revelam em mais sortilégios.

Cultura é o esforço de sentir e compreender. Cruza o deserto da estranheza e se alimenta da água de plantas amargas para gerar o fruto que permanece.

Vibre, mesmo sem motivo. A vida só existe quando ficas trêmula.

Quando o silêncio é a indiferença, melhor o ruído dos teus medos.

Não vamos perder a conta. Há dez telefonemas não te vejo.

Crescente ganhou barriga, vai gerar a Lua Cheia.

O mar é a representação do infinito. Navegar nele é impor limites, recortar as bordas de um convés que abrigue teu corpo líquido

Viver é gritar por socorro sem que ninguém escute. A solidão é o ponto exato onde se situa a nossa natureza no cosmo interminável.

Não ousamos ser amantes. Tínhamos compromisso com o sofrimento

Você passou por isso, me entende. É como ser trespassado por um trem e continuar ileso, mas com a ferida ainda aberta, doendo.

Palavra não foge do expediente. Cumpre sua sina, põe na mesa, depois retoma para sua vocação de beijo.

Não tente retomar o ritmo do nosso entendimento. Rompeu-se para sempre. Não confiaste que eu estava te querendo.

Chegaste no ninho e nem disse nada. Foi forte a balada.

Venha, bonita. Sou teu aperto, antes e depois do banho.

Ficas monitorando, laço de fita. Cabelo no ombro, olho de pérola fria.

Crescente no zênite, universo cortado como queijo, metade para a noite, metade para o sereno.

O mercado da poesia tende a desaparecer, dizia a manchete. Alguma vez existiu? perguntou o mendigo trovador.

Só tenho um poema, disse o menino. Serve, disse o contrabandista. Agora te manda.

Cheia de querer. Transborda. Sou o vale onde estendes tuas águas.

É hora em que o dia recolhe suas luzes como numa aldeia colocam crianças ao redor da lareira. Aí vem a Noite, pontuada pela Lua, rainha, e o séquito de estrelas.

Onde fica tua ausência quando o domingo desmaia? Se eu soubesse, poderia entender teu esconderijo.


RETORNO – Imagem desta edição: Anna Bederke.

24 de setembro de 2012

FADO



Nei Duclós
 

Tudo o que for dito será remorso
até mesmo o silêncio, coro aflito
nenhuma palavra doce terá abrigo
e o corpo feito de luz será amargo

Amor, vã tentativa de equilíbrio
escorre pelo abismo e pelo fado
ficamos sós a combinar conflitos
gerando chances na infelicidade

Falei por falar, mas acabou o espaço
em que podia manobrar o sonho vago
dor foi o que sobrou do nosso trato

Eu deveria estar acostumado
mas o sal lava o bruto ferimento
erro por sentir, sou reincidente   


RETORNO – Imagem desta edição:  Grace Kelly.

23 de setembro de 2012

LEVANTEI OS OLHOS



Nei Duclós
 

Já te perdi. Me explique porque o mundo continua.

Não preciso te explicar. Leste o verso quando eu levantei os olhos para não chorar.

Se eu tirar o poema, fico sem serventia. Passarás por mim com tua postura de rainha no exílio.

Amor é o que costura. Vivemos aos trapos soltos no vento dos minutos.

Quando enfim conseguirmos acertar o ponto, estaremos prontos para fugir um do outro. É sempre assim, amor sem futuro.

Te invento comigo, se consentires.

Não há sentido na tarde se não houver um abraço.

Hoje começa a primavera, com o azul que eu perdera e o som de despertar a terra.

O maior prazer é a doçura. O maior arrebatamento é o amor. A maior emoção é a bravura.

Ouvi um grito longo no dia claro. Era apenas teu suspiro que turbinou o espírito.

Aquele tope de fita por trás do que escondias. Vontade de romper o selo do teu fingido recato.

Não suporto a atenção que desvias para outros alvos. Quero o dissídio coletivo para que só eu toque a barra do teu vestido.

Tentei te pegar, mas era tarde. Na hora do toque te desmanchaste.

Ficaste escondida esse tempo todo. Foste traída pelo olho rútilo, aquoso de tanta vontade.

Recortas o impossível do previsível pano. Costuras um vestido que impressiona. Em ti ele revela o que mais esconde.

Corto o bolo do evento. Dentro sais dançando o arabesco de metal luzente. Brilho que me cega por um momento. Quando caio nos teus encantos.

Preciso dizer sempre para que não digas nunca.

No toque no fundo. Passe ao largo. Beije a borda para evitar o abismo. Sue a camisa do domingo.

Embale o dia que está nascendo. Dê-lhe colo e curta o que ele tem de mais precioso: a prova de que há vida.


ACORDE O SONHO

Se achar que é perda de tempo, se mande. Eu cultivo a solidão como um projeto manso. A toda hora tiro uma maçã do bolso.

Deixe-se cobrir enquanto hibernamos. Nenhum frio é capaz de apagar esse fogo.

Não acreditas que te amo. Pior para o amor, esse delinquente.

Não sou previsível, como a elipse dos cometas. Nem surpreendente como os buracos negros. Sou o luar que te banha quando, por falta de ar, abres a janela.

Não pense que está vendo tudo. O que te escondo é a flor que cultivei sofrendo.

Já falei que Scorpio está chegando? Afio as garras na amoreira.

Não me peça o que não tenho. Prudência, por exemplo, dos imóveis seres do planeta chumbo.

Digo ao vento o que te digo no canto. A palavra acorda se fores sonâmbula.

Um ficcionista não mente, ele inventa uma outra realidade. Inventei, por exemplo, o beijo que te dei agora.

Acorde o sonho.


RETORNO – Imagem desta edição: obra de Steve Hanks.

ASSINATURA



Nei Duclós
 
Amor é entrega, não conquista
afasta-se o galeão da terra à vista
voto de confiança, eucaristia
abre-se mão da morte do gentio

Depois a lição que civiliza
leis acordadas longe da cobiça
natureza cumprindo assinatura
obrigação da paz definitiva

Teu olhar decide a mesa e a cama
divide o coração, doce partilha
convívio sonhado de quem ama

Poema como norte de uma bússola
imantada pelo dom de um aço nobre
teu corpo, fusão gerada no meu cobre


RETORNO – Imagem desta edição: Keyra Knightely.

VALSA NA CINTURA



Nei Duclós
 

Passo por cima do teu medo e te conduzo numa valsa que rodo na tua cintura.

Fazes qualquer coisa para me trazer de volta. Dá até gritinhos, tonta.

Melhor falar por telegramas. Bilhetes em garrafas jogadas ao mar. Pombos correio. Código Morse. Em todos os sinais, dizemos a mesma coisa. Amor.

Não permites mais que eu chegue perto. Sabes que estou lobo quando farejo tua pele.

Volta, coração vermelho. Eu me recomponho. Desisti também desse terremoto.

Imaginei a felicidade, mas veio o abandono. Recomeço a palmilhar o deserto

Lua partida ao meio: iluminas uma porção do céu que vem em meu socorro.

Perdi de novo a minha estrela. Que adianta o céu bordado de luzes?

O céu abriu só meia porta. Ficou espiando depois que a Crescente deixou de ser Lua nova.


LIVRE DO AMOR

Tentei, em vão, te amar. Conseguiste impedir a queda irresistível da água da montanha.

Livre do amor, olhas o crepúsculo e ele está vazio

Voe, pássara, na noite sem sentido. Encontrei um diamante, mas ele pertence ao teu convívio

Afaste-se da maldição, doçura. Hoje convivo apenas com as sombras que me transformam. A não ser que você me beije e liberte o sonho travado de esperança.

Já estava demorando. O Mal de Scorpio se anuncia nas fendas de setembro.

Lua partida ao meio: iluminas uma porção do céu que vem em meu socorro.

Sou Crescente, Meia Lua: meu lado escuro morre ao lado do teu brilho.

Sábado de tocaia chega de surpresa. Pergunta pela balada mas estás em recesso. Aquele amor, ainda ausente.

Preciso a palavra inteira para compor o poema. Não posso cortar ao meio uma peça do atacado. Amor não se sustenta na escassez do varejo.

E resolveste, bem resolvida, passear no campo. Na volta verás que estou na trincheira com todas as setas.

Virei você do avesso e agora finges ressaca. Para onde foi aquela sede?

Chove em setembro na ilha. Há um sino mudo batendo na memória. Onde fica o exercicio de achar um sentido?


BATOM DA LEITURA

Viciei na escuta. Aproximei demais o ouvido. Rocei no batom da tua leitura.

Hoje não tem poesia. Desconfigurou a fonte. A não ser que me digas: onde fica o lugar inacessível do teu sonho?

Madrugada é o mar onde navegamos o sonho. Peixes palavras sobem à superfície. Ventos de sono se aproximam.

Digo o que sentes. Escutas o que sinto.

Passou da hora. Onde está o realejo que tocas ao comando de um bilhete da sorte que tiras do teu peito?

Vamos dar um tempo. Depois, pegamos de volta.

Não se acanhe, é só poesia. Depois voltas para teu expediente de espinhos.

Não tente me conquistar. Sou insensível. Afio palavras doces no meu coração de pedra, onde medra a flor irresistível da tua amorosa teimosia.

Somos a memória presente. Visite-nos, aspirante.

Sentimento é perda de tempo. Como é mesmo aquele troço da zona do euro?

Não se preocupe, não estou sofrendo. Estou off line, entenda.


RETORNO – Imagem desta edição: Megan Fox.