30 de abril de 2020

ESTRANHO

Nei Duclós

Perdemos este outono
Que transcorre fechado
Sem nosso transtorno
Sem passeio ou festa
Sabemos apenas que as flores
Continuam ativas sem noção do que passamos
E as frutas tombam sob o céu azul

Perdemos o rumo, o namoro
Ficamos em celas e sítios
E conversamos sem a rede de segurança
Que trapezistas providenciam para não haver drama

Padecemos do medo neste abril estranho
Que de costas para nós avança o calendário


MENSAGEM

Nei Duclós


Flor é tua mensagen de confinada
Não flor de buquê ou de aniversário
Tampouco as delicadas de jarros e canteiros
Ou as dos quintais que nem são plantadas

Não és flor de beira de estrada
Ou das que ofertam em véspera de casório
Não és flor de palavrório ou de acenos fofos
Ou das que são jogadas na praia em busca de milagres

Assim mesmo és flor, explícita, esgarçada
Proxima e escarlate com petalas viradas
Muito além do perfume das tímidas e falsas
És funda, extensa, gloriosa
Toda aberta como boca de vulcão
Flor de comunhão dos pares
Que arrasa quarteirão e nunca perde a graça



28 de abril de 2020

TESTEMUNHAS DA AVENTURA

Nei Duclós


Agora que vivo confinado
A contar os dias iguais
Como um rebanho antes do sono
E não saio a não ser para receber encomendas
Que desde o portão precisam ser saneadas
Tenho como fotografar meus passos e meu rosto
Que se repetem com legião de clones

Quando era moço e parti para a aventura
A desbravar cidades como num safari africano
E fiz tanta coisa que meu corpo hoje duvida
Não havia uma lente apontada para os gestos e seus entornos

Só havia as nuvens, as estrelas, os corredores e ruas
Como testemunhas



27 de abril de 2020

ANTES DA PASSAGEM




Nei Duclós


Na outra vida está escuro e tateamos em busca dos óculos
Não sabemos o acontecido
Não há memória da passagem ou antes dela
Nossas mãos procuram o para sempre perdido
Uma neblina se impõe e um anjo triste
Repete a ladainha sobre o futuro

Acho enfim os óculos
Volta a luz que estava cortada
E eu retomo o verso para te flagar nua


O JARDIM

Nei Duclós


Comprei casa no ermo
com terreno baldio ao redor
Mulheres vieram de toda parte
limpar ervas daninhas
Plantaram frutas, cereais e legumes
Distribuíam uma parte da colheita
para mim e suas famílias
O resto vendiam

Assim foi por vários anos
Até que ultrapassei a barreira dos 80
Então elas arrancaram tudo
e colocaram apenas flores nos canteiros
Era para abastecer meu funeral

Elas se foram
E no vazio do entardecer olho o jardim
Com um misto de fascínio e terror



BENDITO

Nei Duclós


Poesia não é dizer coisas
As coisas se sustentam
Sem tua interferência
Como as artesãs que criam sozinhas seus filhos
Como as colhedoras de cereais
Que com as mãos dispensam o apoio das máquinas

Poesia é o contrário
É ser dito pelas palavras
Que possuem voz própria
Elas existem antes de você
Que é apenas um instrumento
Muitas vezes só um abusado
que se acha capaz de manipular o verbo
Como se o barro fosse burro
Infenso à recepção da alma imortal

Poupe a poesia de teus dísticos ditirambos conselhos conversas
E entregue-se como um filho da mãe à sabia onipotência
Da linguagem
Esse troço antinatural onde te enredas


25 de abril de 2020

REMOTO CAIS


Nei Duclós


O mundo anda depressa
E ficamos à margem
Em paisagens que só aparecem para nós
Não me refiro a memórias
Que estas estão na fila do comboio
Que nos deixou para trás
Mas em hábitos, lembranças sem importância
Ideias de leituras ou canções que ninguém mais visita por estarem acessiveis

Penso que inexisto como personagem possível
E estou em quintais que as águas invadem
Ou viram condomínios
Náufrago, descubro que meu bote salva-vidas
Aportou num cais decaído
De um mar, falsa teoria, e que sou apenas
O único leitor de uma biblioteca submersa



24 de abril de 2020

RUBRA PELE

Neu Duclós


O pouco que me vês já extrapola
Porque te vejo pouco, e bem menos que outrora
Agora preservamos o que já foi excesso
Grude no sofá, aliança de noivado

Enxergas uma parte, meu rosto transtornado
Por sofrer de ausência, e o resto eu resguardo
Pois não necessitas saber como não vivo
Vegeto entre livros na casa abandonada

Mas permites que eu olhe nas fotos tão escassas
A barra do vestido que no namoro usavas
E que eu explorava por baixo num arrulho
Expiravas de amor, pomba em minhas palmas

O corpo estava inteiro, mas não mais intacto
Rasgamos no cruzeiro quando fomos ao Caribe
Lá morava o sol, calor que hoje nos falta
Rubra em tua pele, polvilhada de sardas



FUNDO DE GAVETA

Nei Duclós


Fui treinado para o silêncio
Abro a boca só quando bocejo
De vingança não escuto mesmo
Sou invisível nos lugares que frequento
Como neutrino que não deixa marcas
Todo espaço é propriedade alheia

Sou como na história dos homens de preto
Que não são vistos tocando a boiada
Pois viraram sombras em cavalos negros
Seus olhos brilham como boitatás no ermo

Quando digo eu é de você que falo
Sou o personagem que evito conhecer
Atribuo tudo ao Outro para ficar à parte
Porque fui treinado para ficar em silêncio
Até quando os trabalhos de ser excludente
São repassados para alguém que nem desconfia
Das intenções que escondo em fundo de gaveta



23 de abril de 2020

O HERÓI: CINEMA EM CAMADAS

Nei Duclós


Cada momento da terra gera uma camada que se acumula sobre os vestígios da época anterior e essa pilha de níveis diversos serve pra decifrar as eras geológicas. No filme O HERÓI (2017, Netflix) acontece o mesmo. Uma camada de cinema nesta obra onde brilham grandes intérpretes, é muito  remota: trata-se do gênero faroeste, hoje em decadência e quase totalmente sumido e que neste filme serve de referência para o drama do ex-cowboy veterano e em fase terminal (Sam Elliot, incorporando a si mesmo, já que participou de vários faroestes como Butch Cassidy e Sundance Kid).

Outra camada, mais próxima, são as cenas do filme lendário interpretado pelo personagem e que aparecem em seus sonhos. E há a camada do filme em si, tratado como "realidade", em que o ator de 71 anos faz comerciais e aguarda algum papel importante. Mas é tarde demais e o diretor e roteirista Brett Halley mostra um sobrevivente que sente remorso e procura continuar fugindo, enquanto as mulheres d sua vida, interpretadas pela namorada Laura Prepon, a filha Kristen Ritter e a amiga Katherine Ross (esposa de Sam na vida real) o levam para um reencontro consigo mesmo e seus vínculos afetivos.

Serve par desconstruir um mito hollywoodiano do herói que a todos vence, colocando o ex-vencedor diante da sua mortalidade. O saldo positivo é a sinceridade e a lucidez do ator que não espera mais nada  nem acredita em sua carreira, considerada vitoriosa. A camada explícita, da história sendo narrada como realidade, enterra as ilusões da camada mais remota, o gênero que serviu para fundar o mito da América.

É um filme maravilhoso. Todo filme é sobre cinema.




20 de abril de 2020

VENTO NA CARA

Nei Duclós


Render-se ao óbvio diante da surpresa
É manter-se ovo sem gerar rebentos
Ficar à mercê dos venenos
Apegar-se ao ninho apodrecendo

É assustador quebrar a casca, alimentar-se de restos
E tentar o voo na precária borda
Falo isso em relação ao poema
Que prefere a tradição do sentimento
O conforto da imagem pronta
E não o vento na cara
E o pouso num incêndio



19 de abril de 2020

LENÇÓIS

Nei Duclós


Não tenho direito ao amor
Não por ter jogado fora as chances
Mas por ser destino, como sofá
na sala entre móveis e tapetes
Acompanhado mas sem companhia
Porque todos se foram
E lençóis brancos cobrem a casa

Não há mais mudança mas demolição
A fantasia faz parte da desconstrução
As cenas se repetem e não há saida
Na imaginação que por um tempo havia

Não nasci para o amor, como no exílio
me despedi da última surpresa
Que veio me ver estando ocupada
E deixou um rastro de perfume caro



AR

Nei Duclós


Como a arte que exerço é silenciosa
Ao criar o que chega e vai embora
Como a vida se repete e se renova
Arte movida em espaços rarefeitos
Onde se respira o ar que os anjos deixam

Por ser assim sem barulho nem conceitos
A poesia dispensa os trâmites da prosa
E não deve despertar quem está calado
Que dorme sem saber do tom precioso
Da palavra seletiva como o ouro
A brilhar no escuro do tempo morto
Onde escutamos o mar distante nos chamando
Com a voz das sereias e a força de Netuno
A dizer-nos sim na época do abandono
Em que silenciamos para que a terra cante



VIAGENS

Nei Duclós


Exibo minhas viagens pelo mundo
Eu em Notre Dame, que acabou em incêndio
Bebendo vinho em Toscana, que não tem mais turismo
Navegando em Veneza, das gôndolas recolhidas
Fazendo selfie em estátuas e sepulcros famosos
Diante do Big Ben ou do Taj Mahal
Na fila do Louvre e da Santa Familia de Gaudi

São apenas retratos na parede
Dores que agora me acompanham
Faço cruzeiros na varanda
Vejo pirâmides de formigueiros
Comboios de lixo reciclável não recolhido
Vizinhos que fogem para o fundo das casas
E este céu sem aviões a carregar o vazio dos passaportes



FARRA DE GIGANTES

Nei Duclós


Nem é preciso lembrar aos de pouca idade
que ainda nas fraldas
se dão ares de autoridade
Eles sabem

Que os mais velhos alvos de risco
Construíram pontes e cidades
E semearam os campos
e organizaram as águas
E hoje estão sentados ou levados em macas
Eles criaram o mundo que alimentaram
Os moços sem paciência ou mesmo solidários
E os facínoras de todo o tipo de aniversário
Que sugerem guetos e outras barbaridades

Nem todo ancião morrerá plácido
Dentro das casas ou hospitais lotados
Alguns só de farra poderão levar para o buraco
Mil sujeitos que queiram abreviar sua sorte



18 de abril de 2020

CATRE

Nei Duclós


Pela primeira vez me sinto derrotado
Deus se preocupa e senta ao meu lado
A morte não é sua obra me diz num sussurro
Queria que não fôssemos datados
Adão durou mil anos
Mas também se foi, por um erro de cálculo

Não se pode atribuir à divindade
Os caminhões lotados de cadáveres
É o tempo humano avesso à eternidade
Que nos surpreende com sua péssima arte

Estirado na cama como um soldado
Que no catre mergulha em bruto balanço
Amargo o fim coletivo de um mundo torto
Nenhum plano foi feito para tão fundo ocaso
O sol se recolhe em luzes douradas


AMANHECE

Nei Duclós


Amanhece e esta é a lição do dia
Não porque obedeça a manuais de auto ajuda
E celebre o que é automático no mundo
Mas por extrair da noite a luz que ninguém via
E conseguir romper o ancestral casulo
No esforço com determinação e teimosia

E seus primeiros raios venham borrifar as flores
Aquelas que a amiga com amor cultiva
E hoje fica saudosa das pétalas e raízes
Por estar confinada como é sabido
E só pode imaginar como as plantas vivem
Sem o seu cuidado e olhar tão puro

Porque o amor é como o tempo em rodízio
Não um hábito que vai virar mania
Mas um trabalho de coração e pele
Que a natureza insistente nos ensina

Amanhece e ninguém garante
Que seja normal a noite virar dia
Ou o verão em pesadelo gerar a pandemia
Nada é normal em cada instante
Nossa alma animal fareja o sonho lúcido
Somos o fruto num outono frio
O açúcar no sal do deserto bruto
O espírito que mantém-se firme como em pradaria
a arvore solitária saúda o sol com seus galhos tortos
Nada está morto, dizemos para Deus que conosco cisma



17 de abril de 2020

POEMA NO PONTO

Nei Duclós


Esperas o poema na parada mais próxima
Ele virá de longe na hora incerta
Todas as linhas já passaram céleres
Mas tu, fiel ao ponto, és um ângulo reto
Sentada no banco que agora é deserto
Olhas a esquina na esperança das luzes
Lotação com poucos saltimbancos
Sonora vigília de noite no ermo

De repente ele surge, montado na nuvem
Traz doces e frutas na bagagem imensa
Abre a porta para que subas
O poeta te lança um olhar de criança
E te cerca de amor de adulto e confiança
O poema tarda mas chega
porque vive em teu peito



15

CAIR NA CONVERSA


Nei Duclós


Não caio mais ns tua conversa
Esse larga e pega quando assopras
Perco nas damas enxadrista perversa
Quisera te levar para um campo de várzea
E te dar carrinho sem apito do guarda

Mas tens apoio por fazer parte
Do poder que consulta a sociedade
para debater nossa sexualidade
Falta de piedade, isso sim, bela maleva

Pedes que eu viaje até tua cidade
Pura maldade de quem se aproveita
Sou teu objeto, meliante suspeita
Sabes do amor que um homem professa


CASAS ANTIGAS

Nei Duclós


Essas casas antigas que envelhecem conosco
E que não podem ser vendidas
Porque somos parte delas como um osso
Esses quintais sem cuidados
pois já não somos moços
E custamos a abrir a porta cheia de ferrolhos

Não saímos aos domingos porque não há mais calendário
E os dias se sucedem sem visitantes ou sonhos
Sentados esperamos o café ficar pronto
E nos gritam da rua que algo está queimando
É apenas a memória, respondo para a lua
Que nos olha vermelha cobrindo o horizonte

E o tempo vem conversar cansado na varanda
Pergunta se vai chover pois ele também está velho
E dizemos talvez passe alguma nuvem
E nos leve para sempre como se fôssemos crianças
A viver de novo, só que em outro corpo


15 de abril de 2020

VOCÊ QUER DISTÂNCIA

Nei Duclós


Você quer distância depois do avanço
Como se eu fosse invasivo mas não é o caso
Você acompanhou o rolo bandido
E agora quer tirar o time de campo

Para mim tanto faz, dourada serpente
Sou veterano em andanças de risco
Acampo onde eu possa fazer o fogo
E lavar minhas mãos nas sangas ou rios

Sou mais profundo nesta superfície
Assim como tu, sereia de água doce
Não pense em virtude sem o compromisso
Afastas o sonho como se fosse vício

Eu continuo aqui, monstro ferido
Não deboche do açúcar que vertemos juntos
Não precisa ser amor, nem desperdício



13 de abril de 2020

JURO

Nei Duclós


Juro que tinha a lua
De dia. Pálida
Confundida no céu
De abril. Frágil azul
Que a continha
Logo acima do muro
Entre os postes e os fios
De luz. Disfarçava
Por ser timida? Ou por ser
Bruxa? Olhava-me achando
Que eu não a via
Quase não percebi
Mas tenho olho de tigre
Enxergo quem me assedia
Sob vestidos de vidro
Que mostra a flor
Mais íntima
Sou tua, ela me diz
Trêmula de tão felina



FICAR SÓ

Nei Duclós


Ficar só é uma arte que aprendo por acidente
Não fechando portas mas ao desistir por dentro
Depois que a ruptura estraga o sentimento
E nada vale a pena na ilha deserta

Cultivamos cereais e inventamos jogos
Atiramos em quem de nos se aproxima
Meu único amigo é o horizonte
Que se afasta mesmo que eu chegue perto

A pomba que faz sinais ao voar em bandos
Nada me traz, náufrago do oceano
Não me fale em amor, barco a remo
A convidar o norte nesta alma errante

Sei que aguardas a esperança da palavra certa
Mas eu a escondo, venha para a terra
Quem sabe o tesouro brilhe no monturo
E o escuro dos meus olhos ache a estrela Dalva



CRUZADA

Nei Duclós


Cruzo o dia andando a trote
Levando na garupa o cobertor e o vinho
Faço fogo quando chega o escuro
E a lua ilumina o campo
de vagalumes
Durmo ao relento e dou cobertura
Às alpargatas de corda para que o sereno
Não molhe meus pés quando despertar de novo
Na jornada que me impus, gaudério reiúno

Pertenço ao império que a natureza planta
Neste chão aberto para o céu mais puro
Sou da campanha, tenho o corpo a prumo
Herança mais funda que a raiz perdida
No húmus do tempo, barro que deu vida
Ao meu canto, trovador convicto

O mundo é a poesia que celebro junto
À sombra da casuarina, meu amor atento
Tens o dom de ser minha andança
Para ti cavalgo, doce e feminina



PAZ NA TERRA CONFLAGRADA

Nei Duclós


A chave está dentro de nós
Para abrir o cadeado que aprisiona
Doença inundação morte miséria
Fazem parte do que somos
Habitantes rotos sob as ordens do que achamos natural

A paz é decisão interna
Ainda mais agora que nada faz sentido
A carreira a obra o currículo
O cargo o cofre o acervo
O mundo virou um museu de si mesmo
E nós somos os bonecos de cera

A pomba é o sinal que tudo submerge
E depende apenas de um ramo de oliveira



10 de abril de 2020

BEIJEI TEU CORPO




Nei Duclós


Beijei teu corpo mas era tarde
Foi só tua foto do amor sem base
Formas no vidro solidão amarga
Estavas fora do meu alcance fátuo

Amei aos pés da estátua sem a carne
Sou traste num sonho tardio e precoce


QUALQUER AMOR

 Nei Duclós


Com qualquer amor estaria arrependido
Porque não há amor no final da vida
Nenhum amor atura tuas birras
Falas de amor só por teimosia

Amor na mocidade é possivel
Não existe a ressaca da tempestade
E tudo é novidade no amor que nasce

Mas vem a idade e o tempo prevalece
Raspa tua pele e descostura o rosto
As pernas já não se entrelaçam
É o amor que morre por falta de motivo

O amor é a armadilha da espécie
Venha amor e diga que é mentira
O que acabo dr dizer e faça a prece
Para que eu chegue a tempo em nossa casa

Estive fora seduzido por palavras
E uma só servia, o amor que nos aguarda
Para nos acompanhar enquanto houver guerra
O amor é a paz sem protocolo
É só amor, fruto da coragem
Nenhum tempo é maior, nem a divindade
nega seu legado, ritmo do cosmo


MUDANÇA DE ESTAÇÃO

Nei Duclós


Outono faz frio no dia claro
O corpo habituado ao calor se ressente
Puxa coberta, abriga-se do vento
O que nos espera, santo Deus dos Exércitos?

Tuas legiões de fé constroem muros
Prometem emendar-se, pedem trégua
O tempo varre o chão outrora firme
O pântano se instala em nossa alma

Mas a estação esperada se manifesta
Época de frutas que agora tardam
A colheita aguarda o mal virar memória
A história se repete, chegou a nossa hora



ENXUTO

Nei Duclós


Custo a jogar fora o que me trava
Mas vou conseguir, flor e palavra
Espadas de fundo corte e retomada
O espaço onde encontro minha sorte

Conto comigo e a sintonia fina
Com a causa melhor e próxima
Moro numa nação, sou a cidade
E a rua que desenha passo e casa

É simples a confissão dita sem farsa
O verso tocado em tom mais claro
Sinto abrir mão do som sofisticado
E exerço a canção beira de estrada

Estendo a mão e a natureza
Joga no caminho a luz escassa
Fico pronto para assumir a saga
Ser enxuto com a força da borrascà



ÉS INACESSÍVEL

Nei Duclós


O que eu fizer contigo será pouco
Porque és inacessível mesmo louca
Nunca chego ao âmago da espécie
Criatura sem fundo algum do poço

Mesmo demorando até o osso
E te fazendo todas as vontades
Serás sempre a mulher que não alcanço
Com as artes de amor e travessura

Podes deixar-me sempre sem a base
Onde eu poderia fincar minha conversa
Tiras o que trago de mais forte
Porque sabes a direção da flecha

Obrigas meu perfil ao pior dos mundos
Exercer contrariado as virtudes
Resguardo o impulso do selvagem
Para arremeter na hora certa



7 de abril de 2020

MEU PONTO

Nei Duclós


Você sabe onde me encontro
Na chuva com chapéu de feltro
Estação da última esperança
Barulho de trem e desespero

Era meu ponto agora é fome
Tua ausência é meu único alimento
Recebo um bilhete do fim do mundo
É o que chamas de residência

Resta o soneto, corpo sem abrigo
Nada será o mesmo, não vivo contigo
Partiste antes do nosso embarque

Aqui permaneço, distante beldade
Não por teimosia ou por alarde
Mas por ser o amor que volta tarde


2 de abril de 2020

ALIANÇA

Nei Duclós


Estamos em guerra
Uns contra os outros
Nós conosco mesmo
Os poderes divididos
As nações em duelo
As ideias e as notícias

Nossa normalidade foi invadida
Nas casas campos e cidades
As camas contra as paredes
Suspeitas atrás das portas
Sacadas que viram palcos
Conversas interrompidas
Abraços para sempre adiados
Beijos que morrem cedo
Corpos que se acumulam

Estamos em guerra
E perdemos inúmeras batalhas
Sob as leis da limpeza
E os sonos com pesadelo

E tu amor
Que ainda espero
Traga um ramo de oliveira
No bico da primeira pomba
Que foi buscar o segredo
O acordo com Deus
E sua aliança
Ponha no dedo
Com todas as cores da esperança



PAPEL TROCADO


Nei Duclós

Perto da palavra
A melhor companhia
Não por ser escrava
Ou fiel parceria
Mas pelo papel
Que trocas nas coxias
Ela é real
Você sua fantasia



DIZEMOS VIDA


Nei Duclós

Só o que importa é a vida
Não desistiremos
Nem mesmo obrigados
A jogar fora todo o resto
Estaremos na última pedra do canyon
Diante da tempestade de areia
Da queda dos céus
Do avanço do incêndio

Dizemos vida
Pelo que somos
E fomos feitos