31 de agosto de 2012

ESTRONDO



Nei Duclós
 
Pela primeira vez te chamei de querida. Houve um estrondo mudo nos confins da tarde. Era o sonho saindo do casulo.

Que amor é esse que desperta sem esperança, só pelo prazer de acordar e fazer festa?

Eras minha antes de ser vista. Estavas em mim como dentro da pedra bruta, a ametista.

Eu de sonho estou lotado. Vens para derrubar as ilusões da temporada. Viajas em mim como pássara de seda. Zeras minhas fantasias e ocupas teu espaço, eliminando o vazio enorme do coração exausto.

Só mesmo tu, bela, para me devolver a poesia, nova como gota de orvalho em pétala. Estava cansado de mexer nos arquivos, mortos de tédio.

O mar te beija pelas costas. A areia te pega de jeito. Tudo sou eu e meu delírio supremo.

Tens o cuidado de ficar sem companhia nas imagens que me mostras. É uma sugestão para que eu faça parte da foto.

A bandeira venta, estou perdido. Faça de mim instrumento da tua vontade.

Está combinado. Te quero de verdade. Não sei o que farás com esse toque. Coloque em teu seio, majestade.

A extrema beleza é o recado explícito da divindade, que resgata o Paraíso, quando sentimos pela primeira vez o calorão que nos devasta.

O amor estava de tocaia em teu sorriso esplêndido. Quando me aproximei, vi que ele era o detalhe da tua personalidade, perfeita dentro, fora, de cima a baixo.

Que fazes longe de mim, inigualável? Te vi primeiro entre as beldades. Agora o sol já vai alto. Desista de pedir trégua.

És tão bonita que corro o risco de repetir o erro, só de pânico: o de tentar escapar depois do laço.

É amor, novamente. Que posso fazer? Cometemos sempre o mesmo desatino. Armadilha desse evento bizarro, a vida.

Teu nome é pedra preciosa no fundo do regato. Sou o barulho da corrente que desce até o vale.

E depois? me perguntas. Não sei. Só tenho o mapa do sentimento, não da profecia.

Vou te esperar na praça. Sou o cara da flor, um pouco alto. Esperei muito e o vinho foi farto. Mas releve. Direi o que sei. Te amo, desesperado.

Estou contigo em toda tua viagem. Embarcas, voas, descansas e minha voz te beija, amor que nem começa.

Não te conto nada. Só te peço um tango, bem cruzado.

Estreei uma sinfonia em tua homenagem, mas abandonaste a sessão no segundo movimento. Mais tarde, quando tudo terminou, fui no teu camarote sentir o perfume.


RETORNO – Imagem desta edição: Priscila de Gustin.

AMOR O TEMPO TODO



Nei Duclós
 
Amor o tempo todo. Para não ficar deserto
Amor tarde da noite. Para acender a estrela
Amor que não se prende. Motor de tempestade
Amor jamais se rende. Te pega nos costados

Amor porre de sempre. E não finja cuidados
Amor fica de frente. E fere ao dar recado
Amor doçura plena. Comece antes que tarde
Amor que nos resgata. Da sede em mar aberto

Amor cheio de verve. Palavra de concreto
Amor que não dá certo. E que jamais se dobra
Amor volta e repete. No drama e na comédia

Amor sonho do corpo. Espírito em desacerto
Amor vira soneto. Depois canta por perto
Amor venha que eu quero. Teu beijo cor violeta


RETORNO – Imagem desta edição: Elizabeth Taylor.

27 de agosto de 2012

EXAGERO


Nei Duclós

Mulher é o exagero, veja as roupas
sobrepostas em pilhas de estocagem
saias de mil folhas, pontas no penteado
caudas de vestidos soltos pelo espaço

Mesmo quando falta há overdose
e junto ao nada sobram os babados
extravagância nos mínimos detalhes
nuvens de acessórios mais escassos

Seríamos bichos não fossem as pinturas
sabem os índios misturados com a selva
a invenção de um rosto propõe a criatura

Homem não se enxerga, vive opaco
sem atinar para os detalhes da miragem
Mulher é de outra espécie, a humanidade


RETORNO – Imagem desta edição: Nancy Novak.

26 de agosto de 2012

CHOCOLATE


Nei Duclós

Gesto sem futuro, ficar só na vontade
registro de sonho que não faz sentido
passo lotado em teu portal de chumbo
deixo para trás o impulso racionado

Escapo do óbvio, retribuir tua carta
letra formal de um aceno coletivo
que fantasio ser o convite exato
quando é resguardo, área de limite

Poderia te beijar em qualquer palco
para que saibam o quanto quero amar-te
Mas fiquei amargo, essa é a verdade

És como a barra de chocolate ao leite
que espero me servir em mesa farta
Finja que é doce, quando é dor suspeita


RETORNO – Imagem desta edição: Juliette Binoche.

25 de agosto de 2012

PROJETOR


 Nei Duclós

Tempo é lugar, hora é espaço
busco a planície do minuto
ponteiros de círculos em falso
sargaços do mar sem futuro

Acerto sons no compasso
desenho uma agenda mágica
Lua maior mergulha no ácido
condão de madrinha no surto

Tens o tesouro de rosto frágil
brusco luar numa vida escassa
molho final no sal da doçura

Já viste o filme, sou quem projeta
escolho a cena do beijo em sarjeta
urso polar no rasgo das rendas


RETORNO – Imagem desta edição:  Alida Valli.

24 de agosto de 2012

O URSO E A PRINCESA

Nei Duclós

O passo é o mesmo, a lenda se mistura
o reino é na lonjura, sob a neve
o andar é a busca de uma trilha

que devolva os dois para o castelo

Expulsos pela usura, a bela e o bicho
cumprem o destino do resgate
a majestade é como a luz, não morre
fica difusa e ressurge além do muro

É uma luta, que não exige fúria
só a magia que substitui a força
São iniciados, por isso há esse clima

que nos seduz pela composição do mito
A princesa que acompanha o urso
e o brilho de um amor que toma o rumo

SINTONIA VIGIADA



Nei Duclós

Foi de manhã que se soltaram todos os laços cortados à noite. Voaste para bem alto e depois voltaste lentamente para meu corpo.

Não quero te ferir, mas há o risco. Sou feito de espinhos e tua natureza é a seda. O bom é que aprendeste a nobre arte de dar uns murros. Assim nos mantemos em sintonia vigiada, belíssima.

Se quiser distância nem sequer tropece. Porque terás retaliação do teu objeto sem freio.

Não se aproxime do urso se ele estiver solto. Melhor ficar no conforto da tua gana remota.

Sei de onde tiro meu assíduo assédio sobre nosso jogo de pega e larga: das curvas que sugeres de longe, traiçoeira enjaulada.

Poesia é quando acordo com teu olhar saciado mas ainda guloso enquanto o amanhecer doura tuas rendas sobre a cama detonada.

Te acostumei à minha ausência. Depois me queixo.


DIVIDIR

Somei nossos momentos. Ficamos devendo.

Dividi tudo contigo. Disseste que eram só palavras. Peguei de volta.

Encerrei o expediente. Agora, em vez de poesia, contas.

O primeiro beijo é o primeiro encontro. O que veio antes não conta.

Estava passando aqui perto e lembrei que estavas longe.

Tenho até medo de dizer, mas o que sinto está ganhando um corpo físico, feito de nossos apertos em cantos, som de grudes, estalos de pêssegos, doce escorrendo. Parece loucura.

Foi tão perfeito que nos perguntamos o que fazíamos antes disso e porque custamos tanto a experimentar esse encaixe de íntimas sintonias

Puseste tudo no caldeirão mas esqueceste que és fada e o feitiço não funciona. És do sol, pátio luminoso da Lua nova. A noite te beija, por minha encomenda.

Nada vale o que dizes não fosse o mel que domina o coração ainda vivo.

Me chamas, me afogas, me acendes, me queimas. Tudo em ti é labareda, vulcão na correnteza.

A Lua Nova é o que restou de um mobile construído por algum deus com gana de seduzir a mais bela da terra. Ficou esse pingente no céu que volta sempre que existe esperança de um novo amor

Não posso mais abrir tua gaveta para tirar de lá os versos que te dediquei. Eles pertencem ao amor perdido. Preciso enxergar o que há de fervor na Lua Nova.

Fui deletando as mensagens como se estivesse rasgando as tuas cartas. Até que cheguei à primeira vez em que me disseste bom dia. Resolvi responder de novo.


RETORNO – Imagem desta edição: Rosie Huntington-Whiteley.

23 de agosto de 2012

SETE CHAVES


Nei Duclós

Amor te conto um segredo
guardado em lugar remoto
sete chaves de um relógio

A Lua nova encorpada
virou Crescente do nada
moça madura na estrada

Consiga a imagem mais forte
da mulher que virou barco
ao navegar sem as velas

Era um sorriso na abóbada
a luz que alimenta os olhos
deixou-a assim muito cedo

Profecia é a trajetória
que a Cheia leva para o norte
pulsando o sonho que morde

Amor não guarde segredo
do que digo em sobressalto
és uma estrela que sobra


RETORNO – Imagem desta edição:  Mariane Faithfull.