30 de novembro de 2003

O CÍRCULO DA EDIÇÃO


Definir o perfil de uma edição significa implantar um sistema circular, onde a matéria de capa “pauta” o que vem a seguir, costura a maioria das páginas, desdobra-se em combinações afins, cruza referências para complementar leituras e consegue assim impacto e profundidade. As havaianas que estão na capa e foram reproduzidas como um selo ao longo da edição da Carta Capital desta semana são um exemplo dessa arquitetura, que apresenta-se com a lógica de uma construção, sem cair na redundância comum das edições feitas sem planejamento.

COERÊNCIA - Para conseguir esse resultado, é preciso que a equipe esteja sintonizada, mas não é só isso. Há mágica também, pois o que poderia ser apresentado de maneira dispersa, é colado de propósito pelo diretor de redação e os editores. É claro que há a previsão de que essa é a abordagem adotada, mas acontece também a incrível coerência da edição, que ao estocar inúmeros vetores, deságua no fechamento impondo-se com uma síntese que parecia oculta no início do trabalho. Nesta Carta Capital número 269, o foco é a má distribuição de renda do Brasil, onde um pé de havaiana de pobre faz par com outra, de milionário. O apartheid social e financeiro rebate na cobertura do encontro do FMI no Brasil, e encontra farto material teórico na deslumbrante entrevista mediúnica de Karl Marx. Tudo faz sentido quando há rigor e, neste caso, engajamento: o lado do jornalista é o da fidelidade aos fatos e a realidade brasileira é explícita na sua injustiça diária e violenta. Não há como fugir do sol, que atravessa a peneira. A edição aprofunda-se na coerência ao exigir também seriedade na edição de livros, quando José Onofre, o texto maior, garimpa ouro ao falar sobre O Verão em Baden-Baden, de Leonid Tsípkin (que eu desconhecia). A fragilidade das estrelas do entretenimento, a falta de competência nos transplantes de órgãos e tecidos e o perigo do alcoolismo funcionam assim como complemento (sem ficar em segundo plano) do vetor escolhido para costurar a edição. É preciso determinação e competência para conseguir esse tipo de resultado, que ao longo das edições torna-se cada vez mais apurado. Por isso uma reunião de pauta é um encontro de decisões coletivas, de combinações prévias, de reflexão, e não apenas uma operação tapa-buraco. O espaço a ser ocupado nas páginas que ainda estão em branco é uma responsabilidade muito grande para ser deixado ao vento do que se entende por notícia. Ou à deriva de interesses maiores, interferências que surgem de fora do jornalismo. A excelência do ofício é a medida de todas as coisas.

RÁDIO – No programa Comunique-se, no sábado na allTV (18 às 20 horas), falei, entre outras coisas, sobre rádio, já que descobri ter sido conquistado para a profissão graças a esse veículo, hoje em decadência. Eduardo Ribeiro me perguntou sobre a falta de consideração da publicidade em relação ao veículo e eu rebati que os radialistas e os empresários de comunicação precisam investir numa grade de qualidade (tudo pode ser visto no endereço http://www.alltv.com.br/ondemand.php?arquivo=2003112918.wmv). E aqui entra o tema da coluna de hoje: o rádio precisa também obedecer ao círculo da edição, obter coerência na sua plataforma de lançamento, criar motivos para a audiência aumentar e assim atrair publicidade. Para que os anunciantes aumentem, deve-se, além de criar, mostrar o que está sendo criado. Uma união das rádios para promover o veículo deveria tomar conta das televisões, dos jornais e out-doors. Para que funcione, é preciso motivos para isso. Não se pode fazer estardalhaço em cima de vitrolões ou baixarias. Jornalismo é um bom apelo. Programas culturais de alto nível (é disso que o povo gosta) também. Lembrei no Comunique-se que eu ouvia o Fausto Canova falando sobre e mostrando as jóias do jazz todas as noites na rádio Tupi nos anos 60. Também escutava o Walter Silva e seu Bo-65, programa do início da tarde que trazia Elis Regina para entrevistas. Assim, vai. Isso precisa ser resgatado. A decadência faz com que o fosso fique mais profundo: como aturar tanta propaganda? Com uma programação melhor, mais apurada, os reclames aumentam de preço e diminuem de freqüência. Também acho que deveria ter apoio estatal para que haja uma virada na rádio brasileira, que já nos deu momentos de ouro, que ninguém esquece.

RETORNO – 1. Ficou supimpa a edição que o Anderson Petroceli fez do texto aqui publicado Viagem ao Princípio do Mundo, que está junto às fotos dele no www.portaluruguaiana.com.br. Quem tiver paciência de ver um poeta diante do rio Uruguai, deve fazer uma visita.
2. Infelizmente, ouvi só uma parte do programa do poeta Ubirajara Raffo Constant na rádio São Miguel de Uruguaiana, que vai ao ar todos os sábados, das 10 às 11 horas. Mas soube por Rubens Montardo Junior que ele recitou No Acampamento, poema de No Mar, Veremos, e me dedicou duas músicas. Biratuxo é terra, é querência, é talento e inteligência do pampa.

29 de novembro de 2003

O JORNALISMO COMO ESCOLA

Se você assumir todas as tarefas do jornalismo, da pauta ao fechamento, da reportagem à edição, da coluna à primeira página, do caderno cultural ao noticiário político, da nota ao caderno especial, você está apto a colocar todo esse conhecimento não apenas nos redutos da notícia, mas em todo o espectro da comunicação. Não há melhor aprendizado, por ser completo, árduo e complicado.

UM RIO EM NOSSA VIDA – O jornalismo, como eu entendo e tive a oportunidade de me envolver, é uma formação humanista completa, pois aprofunda os princípios clássicos da convivência humana. É preciso ética, seriedade, talento e suor. É um trabalho de equipe, que depende do repasse contínuo de conhecimentos, pois a difusão do que se aprende viabiliza o trabalho e a sobrevivência de todos. Não faz sentido, portanto, uma redação dividida pela vaidade ou o oportunismo. Compartilhar é o verbo principal de um grupo de pessoas que se dedica a refletir, descobrir, prospectar e intervir na realidade. Para que ocorra a formação completa do jornalista numa redação, deve-se garantir o fluxo das funções, o rodízio de cargos, a comunhão de interesses, a admiração mútua, a crítica fundamentada, baseada em tudo o que a experiência formata não só no presente, como a herança de gerações passadas, que deixaram seu rastro de luz em inumeráveis trabalhos. Por mais complexa que seja a atividade jornalística, ela obedece a alguns vetores principais que garantem o bom funcionamento e a desenvoltura das redações. É assim em todos os setores: o rádio ainda define muita coisa na televisão e as revistas e jornais ainda seguem o que foi formatado há tempos, apesar das modernizações e mudanças. A divisão por setores do noticiário, os editoriais entre as primeiras páginas, a manchete principal, os cabeçalhos, a seção de cartas, o espaço nobre das grandes reportagens (cada vez mais raras) são definições que cruzam os tempos, significando que a herança, longe de ser uma velharia, é uma garantia da continuidade de soluções que funcionam. Por isso insisto tanto em linhagem no jornalismo, aquele rio de talento e experiência que passa pelo jornalismo ao longo do tempo e beneficia as novas gerações, que antes ou durante o desenvolvimento do seu trabalho, entram em contato com o que há de melhor do que foi feito antes deles.

SÍNTESE - É obrigação do jornalista veterano repassar o que sabe para quem está chegando. Não se deve deitar na experiência, nem vender caro suas lições. O fundamental é a transparência desse processo, para que haja recepção completa e retorno dos mais jovens. Ao mesmo tempo, o veterano acaba aprendendo muito nessa sintonia, porque a meninada sempre traz muita bagagem boa e não apenas entusiasmo ou inexperiência. Dar atenção a quem chega é também um ato de humildade: reconhecer que o sabido é um presente de quem estava ali quando chegamos, e que nunca se sabe o suficiente, já que o aprendizado é para todos, o tempo todo. No fundo, as coisas mais importantes são as mais simples, mas a simplicidade é uma síntese que demanda muita reflexão. Depurar a experiência num conjunto de claro de informações sobre o exercício profissional não deve ser motivo de exposição numa vitrina, mas um acervo exposto ao aprimoramento. A partir disso, quando mais nos aprofundamos nas tarefas jornalísticas, mais poderemos intervir em outras áreas. Numa assessoria de imprensa, por exemplo, fazer o serviço focado na informação e no atendimento ao que os leitores precisam é algo que trazemos do jornalismo. No marketing, a sobriedade do jornalismo serve de contraponto ao que a divulgação traz de superficial ou oportunista. A redação de artigos na comunicação empresarial bebe no que o trabalho dos editorialistas tem de melhor. Numa editora, a formatação de livros pode obedecer (não obrigatoriamente) ao que a criatividade desenvolvida numa redação soube ensinar. E assim por diante.

OS MESTRES - Com Mino Carta aprendi como fazer uma revista a partir do ponto zero, entre muitas outras coisas. Com Tarso de Castro, do que é capaz um caderno cultural e o que pode-se conseguir apostando em pessoas desconhecidas. Com Macedo Miranda, Filho, aprendi a editar textos de revista. Com Hélio Nascimento, o clássico crítico de cinema de Porto Alegre, a profundidade possível de se alcançar em poucas linhas de resenha. Com Wagner Carelli, a força da imaginação e das idéias próprias. Com Reginaldo Fortuna, a importância do cruzamento entre o clássico e o moderno, não só no departamento de arte, mas também na redação e na fotografia. Com Samuel Wainer, a adaptação veloz dos recursos escassos ao que se pretende transmitir. Com Cláudio Abramo, a dignidade de um diretor de redação, o poder da ética e a capacidade de um veículo impor-se pela postura do seu conteúdo. Com Múcio Borges da Fonseca, a necessidade de planejar uma edição sem abrir mão da emoção de trabalhar. Com Caco Barcellos, o despreendimento da coragem, um atributo pessoal que nele adquire uma intensidade que nem de longe podemos sonhar. Com Leonid Strelaiev, a fidelidade total ao talento a serviço da revelação – o que é nele não um ornamento, mas um princípio de vida, que leva radicalmente até o fim, coisa que também não ouso chegar perto, mas que me serve como parâmetro. De todos eles, recebi, como a praia recebe o mar. E a partir desse ponto, procuro devolver às águas da nossa profissão tudo que aprendi, só pelo prazer de ver os navios partirem novamente, em direção ao infinito.

RETORNO – Trechos do texto acima foram lidos por José Paulo Lanyi neste sábado, 29, no programa Comunique-se da allTV. Foram duas horas de conversa. Quero agradecer ao Lanyi e ao Eduardo Ribeiro pela oportunidade de apresentar minhas idéias e meu trabalho. Foi bom demais. Depois do programa fomos ao lançamento do livro de Lanyi "Quando Dorme o Vilarejo" (teatro, XXIV Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos-2002), quando tive a oportunidade de ganhar o autógrafo desse ex-morador de Itaqui e Alegrete, que na Paulicéia semeia a amizade como poucos.

28 de novembro de 2003

INDIFERENÇA, O ESPECTRO QUE MATA


É moda fingir responsabilidade social, mas o que pega de fato é a suprema falta de atenção aos outros, no país da exclusão e da má distribuição de renda, onde vemos amigos sumindo para países mortais e sem nome. Somos ninguém na mão do horror que é o monstro de olhos vazados que apelidei de Tantufas.

GANÂNCIA - Tatiana Palombo pediu para me despreocupar em relação ao seu longo internamento (um mês!), e eu atendi. Por quê? Porque é mais cômodo. Mas não é nada confortável saber de alguém muito próximo que se foi por falta de apoio, porque somos indiferentes, porque não fomos atrás. O editor de arte Luiz Carlos Moraes, ao comentar o texto sobre Tatiana aqui no Diário da Fonte, chama atenção para essa tragédia e ao mesmo tempo me conforta ao abordar o assunto: “A vida nos mostra coisas que não conseguimos enxergar. Por pressa, por materialismo, por ganância, por vaidades, não vemos o simples, o passageiro, o humilde. Não vemos as melhores coisas que passam pelas nossas vidas: a amizade, a consideração, o respeito, a admiração, e o carinho tão especial que você demonstrou em seu texto falando de nossa colega que se foi.” Você não tem um tostão no bolso, numa contingência? Isso provoca gargalhadas e sentimentos de superioridade em muita gente. Há uma certa alegria quando os outros não conseguem o mínimo para andar na cidade (e que cidade!). Somos os comodistas que se deitam no colo de Tantufas. Que, como a Morte no filme Sonhos, de Kurosawa, tenta te transmitir tranqüilidade, mas no fundo quer que você não enxergue que a salvação está perto, que basta dar mais alguns passos para descobrir a cidade cheia de calor e comida que estava encoberta pela neve. Se a gente se entregar, Tantufas nos envolve e nos mata. É isso o que queremos? Claro que não.

TEM TODAS - Vivemos em comunidade por um princípio básico: a união das pessoas assegura a sobrevivência e garante contra inimigos externos, soma forças para conseguirmos cruzar o tempo que nos cabe na Terra. Perdemos hoje o sentido de comunidade, como se não precisássemos uns dos outros. No fundo, estamos esperando que uma catástrofe nos lembre porque vivemos no mesmo lugar. A noite poderosa que nos assusta se não houver luz, a falta de pão e carne se houver plano econômico mal sucedido (como aconteceu com o Plano Cruzado, em 1986), o apagão que tudo reduz a estaca zero: os perigos se multiplicam no meio da violência e do medo. Por isso vivemos em comunidade. Mas esquecemos e somos pobres criaturas à mercê das forças do mal que nós mesmos desencadeamos. E como isso acontece? Por obra de Tantufas, o Mal sorridente e tranqüilo, que poderia muito bem ser resumido numa espécie de slogan da minha geração (e que foi o sintoma da sua catástrofe): “Não tem nenhuma!” Pois disse para uma pessoa dessa convicção: “Tem todas!” Tudo tem a ver conosco. Não falo em sentir pena de mendigo ou de participar de programas de caridade. Falo da importância que você dá para seus pais ou irmãos (o que não vale muito, pois eles são desdobramentos do eu), seus amigos novos e antigos. Não se trata de ajudar velhinha a atravessar a rua, é prestar atenção quando alguém lhe diz, como quem não quer nada, num grave sussurro: “Ei, estou morrendo, faça algo por mim”. Pois as pessoas morrem sem que a gente saiba como estender a mão. Tantufas é um palhaço sinistro que gargalha.

GRUDE - Desde o dia 10 deste mês estou trabalhando como Editor Executivo da W11 Editores. Ainda palmilho um território complicado, mas deu para sentir a importância de poder intervir nos produtos que levarão o trabalho de autores para o público. Ainda é cedo para avaliar. Há tempos Wagner Carelli e eu ameaçamos retomar uma antiga parceria. Hoje fui ao lançamento da W11 de O Momento Culminante, de Roberto Freire, o primeiro romance policial deste autor especializado no amor. Freire lembrou o que eu disse para ele na editora: que, ao checar o livro dele, meu olho grudava no seu texto e não conseguia escapar, e eu acabava me enrolando na checagem final do seu trabalho. Ele gostou e não esqueceu. Roberto Freire é Brasil.

RETORNO – Este fim-de-semana será especial para mim. Domingo, 30, das 10 às 11 da manhã, o poeta Ubirajara Raffo Constant, o popular Bira Tuxo, fará uma edição especial do seu programa na rádio São Miguel de Uruguaiana, sobre minha poesia. A São Miguel pode ser acessada via www.portaluruguaiana.com.br . E no sábado, 29, das 18 às 20 horas, estarei por duas horas com os amigos do programa Comunique-se, da allTV, como convidado. No fecho do programa, vou me dirigir à leitura do livro de José Paulo Lanyi, evento que divulguei na edição de ontem. Dia de agito e conto com a participação de todos.

26 de novembro de 2003

NA CASA DO POETA MAIOR


Em Porto Alegre, roçando a beira do rio, passei de táxi pelos bairros de Praia de Belas, Tristeza, Ipanema e Espírito Santo. Numa pequena rua que desemboca na avenida vizinha às águas do Guaíba, anuncio-me. Desce então, do alto de sua casa, pela ladeira suave que vai até o portão, aquele homem reservado e digno, que me dá a honra de receber-me em seu refúgio. Foi uma tarde de revelações.

O HOMEM DO CREPÚSCULO - Enquanto sobe de volta para levar-me até sua sala de estar, J.A. Pio de Almeida vai me mostrando as árvores que fazem parte do seu sítio, e que o protegem do movimento da rua, abraçando-o em folhas fartas, sombras tranqüilas, raízes saltando do chão com cheiro bom de terra boa. Aponta seu braço para o alto, para onde vão os troncos espalhando galhos, em gestos que o identificam com a natureza próxima, memória de uma rede telúrica de laços. Nosso Poeta Maior desdobra-se em gentilezas, apoiado pela tranqüila presença de sua esposa Naja, que todo o tempo nos cerca de atenções. Vou então para uma sala de móveis sólidos, arrumados em torno de uma ampla janela, fazendo vizinhança a uma bandeira antiga do Rio Grande do Sul e um quadro de um índio charrua montado e sacudindo a alma mortal da boleadeira. Tudo tem história na casa de Pio de Almeida. Não por ser de outro tempo, mas por ser uma opção consciente de coerência pessoal, que nos transmite segurança e conforto, assim como suas palavras, que saem com a maestria dos grandes narradores. O sol que cruza a folhagem de sua floresta particular lá fora atinge em cheio seu perfil. Só as palavras poderão descrever aquela cena, só o verbo encarnará aquela tarde, nenhuma imagem que seja criada por mim traçará um perfil mais nítido do que este, que recomponho de memória, porque assim tem de ser, assim trabalha o espírito do poema, translúcido cavaleiro a temperar a vida. “Qual o sentido da minha existência?” pergunta o poeta, sem cair no lugar comum: “O que significa esse espaço de tempo entre meu berço e meu túmulo?” E ele mesmo responde: “Sou o crepúsculo do gaúcho pampeiro, sou a testemunha daqueles homens que se foram. Não faço parte deles, pois muito cedo fui retirado do seu convívio para ir à escola. Mas posso te assegurar: tudo o que escrevo está impregnado daquele mundo que vivi na infância, e daquela gente que me criou é feito o sangue da minha palavra”.

O AUTOR OCULTO - O sol foi entregando os pontos, mas a claridade permanecia firme. O poeta me recita, em espanhol, o poema de Neruda que fala de alguém que sabia ler o alfabeto do relâmpago. Neruda é um dos autores que levaria para uma ilha deserta. Outro é Guimarães Rosa. E o terceiro guardo para mim, para não despertar certas curiosidades, mas é um autor que um dia será plenamente reconhecido. Ele tem a grandeza poética que toda antropologia deveria ter, e encerra mistérios que nenhuma outra obra possui. Fala-me então o poeta da sua paixão pelo Uruguai, lugar onde já teve terra, homem que é descendente de proprietários de sesmarias no início do século 19. Teve terra lá, mas vendeu. Agora passa um bom tempo naquelas bandas da fronteira seca, onde visita campos, vertentes, morros e marcos históricos. Diz de sua amizade com Breno Caldas, o mítico proprietário da Caldas Junior e de como entrou naquele que era o reduto maior do jornalismo da nação riograndense. De como teve de romper cercos, transpor cercas e tocar a boiada de suas palavras. “Nunca quis cargo nenhum, sempre quis ser redator do Correio do Povo”, confidencia-me. Olha para fora e conta sobre sua relação reservada e amistosa com vizinhos.

FRIAGEM - Chamo o táxi de volta e o Poeta Maior me acompanha novamente até o portão, depois de eu ter compartilhado a mesa da família, onde a filha única, casada e moradora numa bela casa que fica nos fundos da propriedade, faz par com o marido simpático e jornalista que ainda sente-se um estreante. O motorista, que estava perdido, atende aos nossos gritos e João Araújo Pio de Almeida então se despede de mim, privilegiado visitante daquela casa sagrada, onde vive o maior entre os maiores, o escritor que soube construir uma obra e nada exigiu em troca. Hoje ele vive tranqüilamente, sem nada a dever a ninguém, me recebendo porque sua grandeza extrapola os limites das distâncias e das admirações. Somos homens da mesma geografia e eu sou seu aprendiz. Chamo-o de Mestre, porque ensinou-me, antes de conhecê-lo pessoalmente, só pelo exemplo de sua obra, a importância da postura de um autor, a necessidade de comportar-se como um escritor clássico numa época que apostou na superficialidade e na cultura descartável. O carro parte e Pio de Almeida acena com todo o braço, como fazem os homens do pampa, estejam onde estiverem - nós, que fazemos parte da terra banhada pelo rio Uruguai e seus arroios, Ibicuí, Itapitocai, Rodrigues, Touro Passo...O som dos pássaros noturnos marca o território dos espíritos: Caa-porã, Mãe de Ouro, Homem-de-Preto. Vejo o trem parar no ermo de Guassu Boi. Lá está o menino João, pronto para cruzar a noite numa estalagem sinistra, denominada Friagem. Tem apenas nove anos. O universo o observa, como um gigante respeita um herói.

RETORNO – Recebo convite do jornalista e escritor José Paulo Lanyi para participar no próximo sábado do programa Comunique-se, na allTV (das 18 às 20 horas). Ao mesmo tempo, me faz outro convite: “Neste sábado (29), às 20h30, vamos fazer a leitura do meu texto Quando Dorme o Vilarejo, vencedor do Prêmio Vladimir Herzog em 2002. Essa atividade, sob a direção do Walter Sthein, vai marcar o lançamento da obra pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Depois da leitura, vou autografar o opúsculo, meu terceiro livro. A Livraria da Época é da nossa colega, a jornalista, escritora e editora Solange Sólon Borges. A livraria fica na Rua Braz Cubas, 429- Aclimação-Tel. 5539-7455. Te espero por lá.” Todos lá, prestigiando esse agitador cultural de primeira grandeza, que não deixa água parada nesta profissão que precisa de um empurrão para pegar no tranco.

TATIANA PARTE PARA O OUTRO LADO

Repórter de primeiro time, Tatiana Palombo foi-se embora para sempre aos 28 anos, sem se despedir. Para resgatar um pouco sua presença, sempre tão doce e séria, que nos envolvia com o bom humor da inteligência, dedico a ela a coluna de hoje. Perder a amiga e colega significa inaugurar nossa missão de recordá-la, desejando que seu espírito encontre paz.

MENSAGENS – Tatiana me escrevia para falar sobre a matéria que fazia para o projeto da revista Vocare, desenvolvido este ano por um grupo de jornalistas (além de Tatiana e eu, participam Sylvia Leite, Luiz Moraes, Luciana Felix, Daniel Del Fiore, Ida Duclós, Marcelo Min, Hélcio Toth, Anderson Petroceli, Adriana Maricato, Mônica Serrano). Tatiana fez a matéria sobre a Embrapa, a meu pedido: “Já experimentou ler alguma revista nacional focada na área de pesquisas? Geralmente são meras cópias dos modelos americano e europeu, coisa que acredito não funcionar por aqui... pelo menos não de uma forma que amplie o número de leitores e, claro, beneficie a propagação da notícia. /Só para informar que eu não morri nem sumi com a matéria. Estou apenas aguardando as respostas do entrevistado que mais teve contato com a pesquisadora. O entrevistado participou ativamente da pesquisa que desenvolveu a soja com qualidade elevada e que é responsável pela economia de milhões de reais a cada ano no Brasil. Espero que ele resolva responder logo para que eu possa, enfim, enviar a matéria./ Segue arquivo anexo contendo a matéria a respeito da pesquisadora Johanna Döbereiner. Procurei falar dos benefícios de suas descobertas e um pouco da vida da agrônoma tcheca naturalizada brasileira. Não sei se era bem isso que vc tinha em mente... qq problema, por favor, ligue ou me mande um e-mail./” Depois de eu elogiar a reportagem: “ Ufa... confesso que abri o e-mail com reservas. Ainda bem que está dentro do que vc esperava. Que tudo dará certo, isso eu sei... deu pra sentir só pelo projeto que vc me mandou. Espero, em breve, ver o lay-out da revista./ Fico feliz com o bom andamento dos trabalhos, se bem que eu já esperava mesmo por isso... Ah, muito bacana também o apoio do seu amigo de Uruguaiana. Fiquei sem Internet por uns dias e só agora pude ver as muitas mensagens - e, claro, spams - que recebi./ Antes de mais nada, peço desculpas por não poder comparecer à reunião de quarta-feira. Moro do outro lado do mundo (São Bernardo do Campo) e o horário complica a minha vida. Por outro lado, não seria justo transferir horários por causa de uma única pessoa. / Tendo esse probleminha em vista, me coloco à disposição de vcs, mentores da revista, para qualquer coisa. Vou pensar e ver se chego a alguma boa idéia de patrocínio para as próximas edições. Aliás, seria viável apresentar o projeto a uma editora? Recentemente, uma emissora de rádio de SP conseguiu o relançamento de sua revista através da parceria com a Sisal Editora... não sei, mas seria o caso de buscar algo nesse sentido? Bom, também vou colocar o cérebro para funcionar com o objetivo de criar uma pauta decente - aquela do cupuaçu, descobri que já é produzido na Unicamp o cupulate (chocolate à base de cupuaçu), o que não torna o assunto exatamente uma novidade. Se bem que é algo inovador... vc acha que vale a pena?/ Nossa, me excedi de novo... tentarei, um dia, ter maior poder de síntese.Um abraço, Tatiana/ Estou curiosa para ver o boneco da revista.Vida de frila é flexível (grazie a Dio); marque o dia que ficar bom pra vc e eu dou um jeito na minha agenda.Por hora, é isso.Boa reunião para vcs./ “

ADIVINHOLOGIA - Depois, Tatiana fez outra matéria, sobre astrofísica: “Nei, peço desculpas. Fiquei de entregar a matéria na quinta-feira passada mas fui internada na noite anterior e só tive alta hoje de manhã. Entrego a matéria o mais rápido possível." Preocupado com sua internação, transmiti meus receios e ela respondeu: “ Então, Nei... não sei exatamente o que eu tenho. Cada médico fala uma coisa (até parece que são todos formados em adivinhologia). Não se preocupe: tendo como base a teoria de que vaso ruim não quebra, posso me considerar quase eterna. (rindo) Só contei da internação para te dar um parecer da situação, explicar mesmo a não entrega da matéria no dia em que me comprometi. Comecei a escrevê-la hj à tarde e acho que termino logo mais, à noite. Despreocupe-se./ Segue anexo arquivo contendo a matéria sobre astrofísica. Li, reli e li mais uma vez... mas como ainda estou meio grogue por conta do antibiótico, peço para que vc dê uma boa lida e me mande de volta caso haja coisas sem pé nem cabeça./

Eis a abertura da sua matéria para a segunda edição da Vocare, texto que é um exemplo da sua doçura, do banho poético das suas palavras, ela que sempre sabia sorrir e me fazia visitas rápidas, cheias de consideração e alegria:

Olhos voltados para o céu

O Brasil está entre os cinco países de ponta em astronomia e astrofísica

Tatiana Palombo

Passar as noites acordado, com os olhos fixos no telescópio para observar e contemplar as estrelas e a Lua... Ainda hoje há quem pense que a vida de um astrônomo se resume ao trabalho noturno. Ciência antiga, a astronomia só não antecede o desejo do homem de descobrir o que se passa no céu. Ao conhecer melhor os movimentos do Sol, da Lua e da Terra foi possível criar os calendários, e assim programar as épocas ideais para plantio e colheita. O homem descobriu uma ligação muito próxima entre os ritmos celestes e aqueles que acontecem aqui na Terra. A coincidência entre a época do plantio do milho, por exemplo, e a posição de determinadas estrelas ajudou na criação dos calendários.
Entre os anos de 1800 a 400 a.C. já se desenvolvia na Babilônia (uma das principais cidades da Mesopotâmia, região onde hoje fica o Iraque) estudos muito rigorosos, que calculavam os movimentos do Sol, as fases da Lua, já previam eclipses. Tudo isso porque os estudiosos registravam sempre suas observações e comparavam acontecimentos terrestres e celestes. Isso em uma época em que não havia telescópios ou qualquer outro instrumento óptico sofisticado, mas apenas instrumentos simples como transferidores e compassos. As primeiras lunetas para observação do céu surgiram só a partir do século XVII, com o filósofo, matemático e astrônomo Galileu Galilei (1564-1642).
A partir do século passado, os telescópios se aperfeiçoaram cada vez mais. O Universo ficou aparentemente mais próximo de nós. Com a ajuda de modernos instrumentos e teorias matemáticas aplicadas à prática, o homem começou a conhecer melhor não só as órbitas e as massas dos corpos celestes, mas também suas temperaturas, composições e estruturas. Nos anos 50, Estados Unidos e a antiga União Soviética (hoje Rússia) começaram a brigar para ver quem desenvolvia a melhor tecnologia para chegar na frente na conquista do espaço. O Brasil, considerado obsoleto tecnologicamente durante muitos anos, é atualmente uma das cinco potências mundiais em tecnologia e grau de conhecimento de seus profissionais, cada vez mais reconhecidos no cenário internacional por suas importantes descobertas e projetos.

23 de novembro de 2003

VIAGEM AO PRINCÍPIO DO MUNDO


O pampa amanheceu na janela do ônibus com o veludo verde do chão pontilhado de tufos de árvores e banhado pelo ouro da alvorada de um dia inesquecível. Espelhos gêmeos, o céu fazia par com o campo, e a cidade aos poucos se apresentava, primeiro nas casas esparsas, depois nas longas e largas ruas, e finalmente no mar de abraços das pessoas, que expressaram a generosidade de uma terra intacta e eterna.

ENCONTRO NA CALÇADA ? Disse naquela hora que talvez não acreditassem em mim quando contasse que estávamos reunidos na calçada em frente da prefeitura, um espaço urbano recuperado pela atual administração do dinâmico e jovem prefeito Caio Repiso Riela, que tem em seu secretário de Cultura, Esportes e Turismo, o compositor, instrumentista e cantor Bebeto Alves (que está lançando seu selo Upa) o braço direito para inúmeros projetos que vai implantar na cidade, a começar por um teatro, que vai funcionar no belo prédio que pertencia à Exatoria Estadual. Éramos uns 20 autores da cidade, debatendo o que era melhor para Uruguaiana. Quando chegou a minha vez de falar, lembrei que foi no mesmo tipo de calçada, na nossa casa em frente ao Colégio Santana (que está esplendoroso, sob administração do Irmão Arno, meu professor de História do ginásio, que voltou depois de muitos anos), onde nos reuníamos para contar causos, debater política e música, atraindo visitantes de todos os quadrandes, vizinhos e parentes, todos em volta de um chimarrão, sob a lua, as estrelas e as luzes da cidade. A idéia de fazer o encontro na calçada dá bem a medida da atual administração: criatividade e projeções para o futuro, resgatando o que Uruguaiana sempre teve de melhor. A idéia, além do teatro, é também construir (as obras começam daqui a pouco) uma bela estrutura de turismo e lazer na beira do rio Uruguai, com passeios de barco, um trapiche para pesca e uma avenida para o exercício físico e passeios dos cidadãos daquele quadrante do mundo. Naquela calçada, naquele momento, num espaço onde pontificam os postes de luz antigos que foram resgatados de depósitos, diante do prédio da prefeitura que um dia foi nosso Grupo Escolar Romaguera Correa (nome do grande dicionarista do pampa), onde aprendi a ler e a escrever, fui tomado pela grandeza do momento e travei no meio das frases, impossibilitado de levar adiante tudo o que sentia. Mas me recuperei depois e tive o prazer de dar entrevistas para as rádios Charrua e São Miguel, emissoras que me ensinaram a gostar de música e do Brasil.

O LIVRO É DO POVO - Na abertura oficial da Vigésima Nona Feira do Livro (que vai até o dia 30 deste mês), o prefeito Riela fez um discurso inflamado, em plena praça Barão do Rio Branco, absolutamente iluminada e maravilhosa, chamando os autores convidados que moram longe. O poeta Luiz de Miranda, o escritor e cineasta Tabajara Ruas e eu fomos saudados pelo prefeito e aplaudidos pela multidão na praça, numa demonstração de carinho que nem nos meus mais loucos sonhos tinha imaginado. Foi absolutamente indescritível. O que a cidade quer agora é reconhecer seus talentos, reaprofundar sua auto-estima, projetar-se como centro cultural e turístico. Encontrei pessoas que há décadas não via e que traziam meu livro "No Mar, Veremos" (que estava lá, graças ao dinamismo da equipe da Editora Globo), embaixo do braço para autografar. Um me disse: vim na praça para te cumprimentar, talvez tu lembre de mim, sou teu amigo há muitos anos. Veio uma professora que diz colocar meus poemas entre seus alunos, que gostam sempre de apresentarem poesia feita por mim como se fosse deles, o que é uma homenagem sincera e profunda da meninada. Junto com a feira de livros infanto-juvenis do Sesc, o evento tornou-se um absoluto sucesso, numa terra que procura difundir ainda mais a leitura e quer ser vista como um centro de propostas. Inclusive Uruguaiana faz parte de um grupo de municípios da Metade Sul do Estado, que está conseguindo uma verba de cem milhões de dólares do Banco Mundial para obras de infra-estrutra, onde entram as obras culturais, o que vai dinamizar toda aquela região, que é o Brasil no que tem de mais sincero e transparente.

TERRA DE ESCRITORES - Outro encontro emocionante foi com Ubirajara Raffo Constant, poeta que teve a coragem de ficar, que está pronto para lançar seu romance de 500 páginas sobre a revolução de 1923. Bira estava no seu Quartel General, um bar em frente à sua casa, e quando me reconheceu me abraçou como nunca. Além de Bira, tive o prazer de reencontrar meu querido amigo Miguel Ramos, vereador da cidade, um dos maiores talentos artísticos do país, aquele cara que foi fazer uma ponta na novela A Casa das Sete Mulheres e foi recebido como um rei pelo genial Othon Bastos. Tive também o prazer de conhecer pessoalmente meu amigo Anderson Petroceli, com quem desenvolvo um trabalho foto-poético sobre a cidade, que me levou num tour memorialístico, me fotografando diante da casa da minha infância (as imagens do evento estarão no www.portaluruguaiana.com.br) e me levando pelos lugares novos e antigos, especialmente lá onde repousam meus pais, irmã e tias. Visitei também a Catedral de Santana, que abriga as grandes obras do mestre Fulvio Penachi, que por si só já justificam uma visita a Uruguaiana. Foi tudo muito intenso e maravilhoso e sobre essa viagem sem fim de apenas três dias falarei ao longo das próximas edições (a síntese do que senti e vivi lá fará parte de um livro que todos os autores se comprometeram a escrever sobre o encontro). Houve também vários outros momentos de grande emoção, quando em Porto Alegre fui visitar o poeta maior J. A. Pio de Almeida, que me recebeu elegantemente de bombacha bege, camisa verde clara, uma faixa colorida na cintura e sua postura de grande escritor e poeta, me falando coisas que guardarei para sempre. Essa foi a viagem da minha vida e a ela estarei sempre retornando, como uma visita permanente a um território mítico, do qual faço parte, com muito orgulho.

RETORNO -

1. Nosso conselheiro editorial e amigo Moacir Japiassu me condecora na sua coluna definindo como o melhor texto da semana "O Iluminista Quântico", que publiquei no Comunique-se sobre a revista Senhor e Mino Carta.

2. O poeta Rubens Montardo Junior destacou-se também na minha visita à cidade com sua atenção e calorosa recepção. Eis uma nova amizade que aprofundo com este conterrâneo que eu ainda não conhecia pessoalmente e que soube ser um anfitrião de primeira.

19 de novembro de 2003

TODO O TEMPO DA PALAVRA

Antes de ser criada, a fala não está empilhada dentro de nós, nem fechada num banco de dados. O que dizemos é feito de matéria viva, que se alimenta do nosso sonho, do que percebemos por necessidade ou prazer, do que lembramos. Ela faz parte da forja que a inventa e não há divisão entre o ofício de dizer/escrever com o que é dito/escrito. Somos criadores de materiais mutantes, as palavras, e as usamos por meio do corpo e do ar para enfrentar a fome do tempo.

O PORTO FECHADO - A reflexão não prepara a linguagem, apenas esboça algumas linhas que não existem em forma de palavras, mas de castelos no ar. Construímos uma cidade nas nuvens enquanto andamos e dentro dela seres que falam a nossa língua nos sopram pontes reais, que nos levam a todos os lugares. Por isso implico com especializações, treinamentos, metas específicas. O que é humano extrapola os cadeados dessa cadeia que se formou ao longo do tempo, exatamente porque o poder teme a prática demolidora da linguagem. Colocou no lugar dela o que batizo de discurso, o palavreado fosco, a ferramenta-âncora. O discurso é um eterno porto em ruínas. Nenhum navio chega, nenhuma vela se enfuna. A linguagem, ao contrário, é a proa embicada para o leste, é saber navegar com a força do vento – a divindade. Chegou a hora de soltar as amarras do dizer, recuperar os sons perdidos dos sentimentos e sentidos, desfazer nós, atingir a gávea, avistar terra nova. Nunca tivemos tanta facilidade para cruzar nossas linguagens, de desfazer a teia bruta do discurso e atingir o topo da fala, em letra, imagem, movimento, música. Isso já existe, mas está disperso, lutando por um lugar mais destacado, fazendo onda na limpidez ferrada do porto fechado.

A LONGA ESTRADA - Um dia, quando estava ainda lutando para ter um espaço em São Paulo, recebi um pacote de palavras enviadas de além mar. Era o primeiro romance de Tabajara Ruas, a Região Submersa. Vinha a encomenda da Dinamarca, onde o autor amargava longo exílio. A música daquela ano de 1976 era Como nossos Pais. Li aquela síntese demolidora contra um regime político que já se mostrava exausto, um mundo estilhaçado em mil pedaços de linguagens, todas percorridas por esse romance seminal, que inaugurou, muito antes dos Gabeiras aportarem por aqui, o romance de combate da minha geração. Naquela época, tinha acabado de lançar meu livro Outubro, fruto de uma refrega de rua com meus leitores, de uma viagem com meus companheiros e de conversas com pessoas como Luis de Miranda, poeta e cidadão da liberdade. Os dois, irmãos de jornada, estarão na Feira do Livro esta sexta-feira, no encontro entre autores uruguaianenses. Lembro de Miranda me falando o que era a poesia, o que havia de concreto na palavra, sem ser concretista, no que havia de ofício no verso, no que tinha de cuidado com cada detalhe. Eu ainda era muito esparramado antes de escrever Outubro. Foi a convivência com meus pares que me fez acordar para o que havia de tensão na linguagem, no que havia de força na fala, no que havia de grandeza no andar. Nosso objetivo era a salvação pela criação literária, era ajudar a transformar o mundo começando a mudança por nós mesmos, homens feitos em busca de seus destinos. Hoje, quando Miranda carrega sua obra com orgulho e alegria pelas ruas, e Tabajara Ruas é um dos mais conceituados romancistas do Brasil (além de cineasta de sucesso com Netto perde sua alma) , sinto que nossa trajetória, longa, ainda tem muita estrada pela frente. Somos teimosos, somos escritores da fronteira, cidadãos de um mundo em desencanto, a carregar o fogo que alimenta o farol, o mesmo que acende aquele porto mudo, e que se reinaugura todos os dias.

RETORNO - 1. Continua a alta incidência de visitas e a calorosa recepção ao blog e ao meu artigo no Comunique-se. O www.outubro.blogspot chegou a receber um prêmio, o Killifish Award. Não sei exatamente o que é, até pedi mais informações. Não sei, mas já gostei.
2. Ainda acho que a obra-prima de Tabajara Ruas é Perseguição e cerco de Juvêncio Gutierrez. Precisa ser lido. Tive também o privilégio de ler datilografado.

17 de novembro de 2003

O TREM VAZIO DO DESTINO

Vocação não basta, é preciso arrumar as malas, despedir-se do seu mundo, gastar sapato até a via férrea e lá pegar o trem que passa sem te dar a colher da marcha lenta. Já exausto, você corre junto aos vagões e gasta sua última força para alcançá-los, imaginando o pior: que faria a viagem de pé, pois não haveria mais lugares vagos. Mas como na porta inacessível da história citada em O Processo, de Kafka, não existe ninguém mais tentando entrar naquele conjunto de rodas barulhentas. Ele foi feito só para ti e seria perdido para sempre se não tivesses tomado a decisão correta na hora certa.

PRIMEIRA COMUNHÃO - O rosto do meu pai contraiu-se quando apareci em pleno ano letivo, de barba e cabelo comprido, vestido jeans e camiseta e casaco roto de brim, bem na hora da almoço. Sentei no chão enquanto o que restava da família naquela época ainda estava na mesa. Minha mãe fez seu gesto típico de preocupação e mudo desespero, que era o de colocar a mão espalmada cobrindo metade do rosto, de cotovelo dobrado, enquanto seu olhar perdia-se em melancólica observação. Tinha enfim um filho perdido. O mesmo que alcançara as melhores notas, que fizera primeira comunhão vestido de branco com uma fita dourada no ombro, de cabelo engomado e uma grande vela acesa na mão, quando entrou com seu colegas na nave mãe da catedral de Santana, sob os olhares das magníficas pinturas de Fulvio Penachi, o melhor, o maior, o mais brilhante pintor do Grupo Santa Helena, de São Paulo, e que tem lá em Uruguaiana suas obras mestras, as mesmas que tinham me criado, embalado e até hoje me inspiram em deslumbramento e orações. Aquele mesmo menino que tinha colocado smoking no Ano Novo, e que cumpria horário comercial nos estudos, das oito ao meio dia no colégio, e das duas às seis da tarde, com intervalo para o café às quatro e meia. Pois o garoto que fazia poemas agora estava matando aula, querendo ir para o Uruguai, justificando sua atitude bárbara com o papo furado de que estudava jornalismo, portanto precisava correr mundo para poder escrever sobre ele. Eu sabia que era tudo mentira. Estava lá só para dizer para meus pais quem eu era, o cara que tinha escolhido uma "profissão" (ou seja, um ofício digno de ser exercido), a poesia, que estava por contingência numa faculdade, de jornalismo, e que acabara de atravessar o pampa onde tinha sido preso uma vez e agora partia para a cidade mais próxima, para ser preso novamente. Não havia heroísmo, havia erro: poderia ter escolhido uma forma mais humana e adulta de me comportar, mas eu estava com a macaca dos 19 anos e nada nem ninguém poderia me impedir. Hoje lembro meus pais e rezo por eles: quem merecia um filho desses, a não ser eles mesmos, amorosas criaturas do Bem, que tudo me deram, inclusive aquela liberdade que fui exibir na minha tosca irresponsabilidade de menino crescido?

OPORTUNIDADES – Se você deixar fora da sua bagagem o veneno do ressentimento, poderá enxergar o horizonte que se abre à sua frente quando tudo parece perdido. Na nossa sociedade sem fundos, temos a tendência de colocar a culpa nos outros, mas basta um mergulho rápido em você para entender que o único problema aqui é você mesmo. Isso tem tudo para ser literatura de auto-ajuda, mas não passa de verdade simples, pois sobram exemplos diários de como o talento se desperdiça em ódios internos, como a falta de reconhecimento acaba minando a esperança e a alma, e como ver alguém subir como um balão de gás para alturas maiores costuma encher as pessoas de supremo horror, como se tudo estivesse perdido e o fracasso fosse definido no berço, como se não houvesse vontade e o destino maior não passasse de algo inacessível. Nosso destino é único e ninguém nos tira. Precisamos apenas trabalhar a seu favor. Escrever como se fosse a última palavra, caminhar para longe de todos os refúgios, abraçar até cansar as pessoas que nos cercam e enxergá-las sempre no que elas tem de melhor.

A PORTA KAFKIANA - Vou resumir a história de Kafka citada acima, já que aqui não transcrevo tudo, apenas cito partes (tradução de Torrieri Guimarães): “Diante da Lei está um guarda. Vem um homem do campo e pede para entrar na Lei. Mas o guarda diz-lhe que, por enquanto, não pode autorizar-lhe a entrada. O homem considera e pergunta depois se poderá entrar mais tarde. "É possível" - diz o guarda. -"Mas não agora!". O guarda afasta-se então da porta da Lei, aberta como sempre, e o homem curva-se para olhar lá dentro. Ao ver tal, o guarda ri-se e diz. -"Se tanto te atrai, experimenta entrar, apesar da minha proibição. Contudo, repara, sou forte. E ainda assim sou o último dos guardas. De sala para sala estão guardas cada vez mais fortes, de tal modo que não posso sequer suportar o olhar do terceiro depois de mim. Durante anos seguidos, quase ininterruptamente, o homem observa o guarda. Esquece os outros e aquele afigura ser-lhe o único obstáculo à entrada na Lei. Antes de morrer, acumulam-se na sua cabeça as experiências de tantos anos, que vão todas culminar numa pergunta que ainda não fez ao guarda. Que queres tu saber ainda?", pergunta o guarda. -"És insaciável". "Se todos aspiram a Lei", disse o homem. -"Como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar?". O guarda da porta, apercebendo-se de que o homem estava no fim, grita-lhe ao ouvido quase inerte: -"Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a". Ao contrário dessa porta, o trem do destino é acessível. Mas não pára se você levantar os braços. E se algum guarda tentar te impedir, atente: aquela é a única viagem a ser feita.

RETORNO - Houve uma explosão de visitas de ontem para hoje, segunda-feira. Fiquei impressionado e emocionado com a carinhosa recepção dos leitores, especialmente dos que não conheço e que agora fazem parte de mim. Isso prova que o Diário da Fonte veio para ficar, e crescerá como as árvores nascidas para dar fruto e sombra, e que espalham sua presença como a paineira, a figueira e o umbu no pampa.

15 de novembro de 2003

O HOMEM DO TERNO AZUL


O programa Comunique-se, na allTV, que comemorou neste sábado seu primeiro ano de existência, difundiu horas de conversa com o maior jornalista do país. Esta coluna agradece aos responsáveis pelo programa, que incluíram uma pergunta que enviei por e-mail, e ao Mino Carta, que ao responder fez uma referência à minha participação na sua equipe da revista Senhor, nos anos 80.

ECLETISMO - A pergunta era a seguinte: “Mino, qual a comparação que você faz entre a revista Senhor e a Carta Capital? “ A pergunta era direta e guardava uma ansiedade: fico sempre surpreso que Mino fale muito da sua fase no Jornal da Tarde, na Veja, na Istoé, na Quatro Rodas e na Carta Capital. Ele sempre pula a Senhor. A resposta, magnífica, como tudo o que Mino diz e faz, foi mais ou menos assim: “Existe um parentesco entre as duas revistas, com uma diferença que a Carta Capital é mais eclética e original, enquanto a Senhor era mais voltada para a política e economia, e baseada na The Economist.” Na sua resposta, Mino me descreveu como “um bom companheiro naquela jornada” e observou (nada escapa ao grande mago) que de uma certa forma eu estava reivindicando essa sintonia entre as duas publicações, no que ele concorda plenamente. Acrescento: uma das minhas lutas na redação da Senhor era exatamente a favor do ecletismo. Achava a Senhor extremamente amarrada. Foi por isso que, ao convencer Mino a incluir uma seção de Livros – que ficou primeiro apenas nas obras que faziam parte do espectro da revista (política, economia e negócios) - consegui, depois de alguns anos, introduzir resenhas sobre literatura. O que dizer desse momento em que considero uma homenagem por parte de um homem justo, que consegue enunciar claramente o que costuma pousar dentro de nós nem sempre de forma clara, que é de uma coragem sem fim, que serve de exemplo para jornalistas e cidadãos de todas as profissões? Ele ensina a inventar o próprio emprego, ensina a não abdicar de suas convicções, ensina a enfrentar os poderosos, ensina a ser sóbrio e ao mesmo tempo emocionado, abraçado de coração ao ofício, ao Brasil, ao povo e aos seus colegas, aos quais sempre que pode faz homenagens e dá crédito. Nada mais justo: ele sabe como ninguém despertar na equipe o que cada um tem de melhor e respeita sempre o trabalho alheio.

DÍVIDA - Mino é uma universidade humana, no sentido maior da palavra: sua cultura é universal, seu comportamento é de cidadão do mundo (uma bênção para quem, como eu, está preso no país continental), e seu senso de justiça é inspirador. Estou devendo (não a ele, mas a mim) a leitura dos seus dois livros, onde mergulharei em breve, não apenas no Castelo de Âmbar quanto no recente A Sombra do Silêncio, que nosso amigo comum Wagner Carelli está lançando pela sua W11. Para quem não assistiu ao programa e não costuma, como eu, ver sempre o que Mino tem a dizer ao vivo ou por escrito, explico o título da edição de hoje do Diário da Fonte: quando foi convocado por seu pai, pela primeira vez, a fazer reportagens, Mino acreditou que um terno azul bem talhado seria ótimo para abrir portas e conseguir seus objetivos na profissão. A sutileza com que ele conta uma história, suas metáforas e ironias, seus advérbios e adjetivos que são ornamentos clássicos de uma vida substantiva , fazem de Mino um dos mais gratificantes contemporâneos, uma pessoa com quem temos orgulho de conviver prestando atenção nas suas palavras esculpidas com rigor e bom humor.

RETORNO - 1. Leia na seção Em Pauta, do Comunique-se , artigo "O Iluminista Quântico", que aprofunda este assunto abordado aqui.
2. Já estou sendo recebido com entusiasmo pelos meus conterrâneos, que festejam minha visita a Uruguaiana na sexta-feira próxima, quando irei participar da Feira do Livro organizada pela Secretaria de Cultura, Esportes e Turismo do município, a convite do próprio secretário, Bebeto Alves. Rubens Montardo Junior, Miguel Ramos , Anderson Petroceli, Ubirajara Raffo Constant, mais Tabajara Ruas, Luiz de Miranda, entre muitos outros, estaremos todos numa confraternização cultural e pessoal que pretende fazer história .

14 de novembro de 2003

O SILÊNCIO DE LIANA



Ficamos sabendo que Liana Friedenbach parou de falar quando seus algozes informaram que tinham eliminado o namorado Felipe Silva Caffé. Sofreu toda a tortura sem mais nenhuma palavra. Ela tinha já partido para o outro lado, para os que não possuem mais voz e estava agora nas mãos de Deus, depois de ter caído numa armadilha mortal ao tomar uma decisão que faz parte da História do mundo e povoa a literatura como um sopro majestoso de luz.

CASAMENTO - O rapaz que “rouba” a moça para desconetá-la do universo conhecido e assim inaugurar uma vida adulta completa e feliz é pura literatura, ou seja, arte ligada diretamente com a vida, salto humano de superação, fruto da ousadia e do amor. O objetivo, neste caso, era compartilhar da natureza, já que a mata devolve ao corpo o que a cidade lhe nega: a alegria de existir fora da rigidez dos gestos, dos sons dos motores e dos metais, dos caminhos exaustivamente percorridos, das conversas repetidas.

Cachoeira, pássaros, folhas e grama são elementos do paraíso terreal, onde o casal encontra o prazer na solidão e compõe a metáfora de uma convivência baseada não nos laços de sangue, nem na amizade ou na convenção, mas no reconhecimento mútuo, na inauguração de um sonho, na confecção de uma alegria inédita. Não podiam apostar, como não apostaram, na banalidade do mal à espreita, na fatalidade do mal, na forma de uma monstruosidade social.

Quando foram presos pela quadrilha, tomaram contato não apenas com o horror físico que agora os cercava, negando-lhes o sonho de um corpo liberto para a beleza, mas também com as palavras horrendas que compunham o inferno, caídas como napalm em cima da roseira. Não se trata de casal rico diante de algozes pobres, mas da Inocência diante do Terror, do Sonho em frente à crueldade, da vontade como um salto em direção à vida sendo tragada pela vontade distorcida de um país que abandonou-se e é incompetente em todos os sentidos, impossibilitado de prover o básico para que as novas gerações encontrem, não apenas a sobrevivência, mas um sentido para viver.

ORAÇÃO - Faltou tudo, Liana. Faltou proteção para que você pudesse voltar, faltou Estado que deixa à míngua porções gigantescas de terra, à mercê da brutalidade e do desengano. O lugar escolhido deveria ser como você viu antes de partir, imaginado e maravilhoso, onde a juventude, hoje atirada nas cidades cemitérios, onde se empilham corpos mortos como se fossem lenha, pudesse trilhar o mato cantando canções novas e antigas. Faltou ação inteligente dos que tentaram salvá-la, já que não enxergaram o que nunca enxergam, as casas abandonados no meio do nada, as pessoas despossuídas que vagam pelo território como se não existisse nação.

Como ninguém viu, você calou, Liana. Chegaram até a ouvir um grito de socorro, mas o que fazer no meio do não-país? E quando o Mal cansou-se dos seus atos, já que o enjôo e o vazio é o que se colhe quando se atenta contra o Bem, quando não havia mais esperança de gozo, a vontade ruim partiu para você como se não houvesse mais esperança nenhuma no mundo. Assim como você, Liana, outras mulheres sofrem hoje nas mãos dos marmanjos assassinos neste país que mata crianças e vende mulheres, que destrói os homens e foge de todas as responsabilidades.

Faltou oração para que você escapasse, Liana, para que chegassem a tempo, para que te devolvessem ao teu lugar e a tua família. Não deixaram você construir uma nova família, não deixaram você com vida. Hoje, há choro e lamento por todo o lado. Mas o abandono continua, a nação que não se encontra ainda está em ruínas, o amor que precisávamos partiu. Na garupa de um cavalo branco, o poema, teu coração volta para a literatura, ou seja, para a arte que precisa resgatar o que é humano desse Mal que nos cerca e nos abate. Paz a você e Felipe, Liana.

Paz ao casal que sonhou com o amor e que foi punido sem razão, foi violentado na mais completa solidão, e tombou, como tomba diariamente a grandeza que em vão tentamos construir.

O PROGRAMA POLÍTICO


Ontem, em horário nobre em todos os canais, o PDT fingiu estar numa entrevista coletiva (muitos entrevistados e um só entrevistador) , para tornar mais "dinâmica" a mensagem sobre a traição do governo Lula. Um desastre, como todo programa político de qualquer partido. Nos pequenos anúncios do PMDB, uma apresentadora andava apressada para sugerir, também, um dinamismo inexistente. O resultado é a mesmice num espaço que deveria ter soluções próprias, criadas, de preferência, por jornalistas.

SERIEDADE - A obrigatoriedade do programa político torna-o odioso para a população. Não deveria ser apresentado em cadeia compulsória em todos os canais, nem deveria ter tanto tempo de exposição, nem mesmo dividido em mensagens de 30 segundos ou um minuto. Cada partido deveria ter ombudsman, que seria o âncora do programa político. A população desancaria o partido e o ombudsman estaria lá para coordenar o debate. Os políticos só apareceriam para responder às demandas. Deveria ser algo sério, de verdade, e não mais uma armação. Mas quem tem coragem para isso? O programa político está fundado na publicidade, quando deveria ser eminentemente jornalístico. No lugar do discurso, a narrativa da reportagem, no lugar do oba-oba, a informação. No lugar da cançoneta pífia com crianças correndo em câmara lenta e a abordagem cínica dos apresentadores ao pobre do telespectador, que é tratado como um imbecil, um pouco de profundidade. Deveria ter jornalistas convidados, que fariam qualquer pergunta para os candidatos ou líderes de partido. Ganharia confiança, o que significaria aumento de votos. Deveria ser o que jamais será, pois o que existe é o oportunismo, retrato de uma política onde pouco se faz, enquanto o povo sonha com soluções e mudanças. O programa político deveria levar ao ar o que é censurado na mídia, e esclarecer sobre História do Brasil sem tentar puxar a brasa para a sardinha do partido. Para isso, seria preciso chamar historiadores e não marqueteiros. É tão simples. Basta lembrar que somos mortais, que esta vida é a oportunidade única de fazer algo para o País e que no futuro, qualquer semente plantada vingará com força, na terra que nos viu nascer e que precisa do que nós temos de melhor.

MANIPULAÇÃO – Ontem, nos comentários a esta coluna, Hélcio Toth tocou num aspecto interessante da política universitária: a manipulação das reuniões e das eleições. O ambiente universitário sempre foi dominado por pequenos partidos clandestinos, a maioria desconhecidos. Os lideres estudantis, na época em que estudei jornalismo, faziam parte de grupelhos, que estavam abraçados a partidos maiores. Isso desaguava em detalhes fundamentais dos discursos e plataformas. Mas o que se destacava era o ato de iludir a massa estudantil, sem jamais confiar nela. O que temos hoje no poder federal são os representantes daquela política viciada. Eles reproduziam, já nos anos 60, os vícios da grande política, e hoje cumprem seu papel no poder, para desespero de todos nós, que nada vemos mudar. Lembro que me mandaram embora de uma reunião de cúpula porque fui bastante debochado com um líder clandestino, vindo aqui de São Paulo, que dizia coisas para nós em Porto Alegre, reproduzindo um discurso batido, que já mostrava sua inoperância naquela época. “Vocês dizem sempre as mesmas coisas”, falei, para logo depois ser convidado a me retirar. Tive certo prestígio passageiro por ter me destacado no vestibular e , sabendo disso, meus colegas me elegeram representante da classe. Com isso entrei no movimento estudantil e virei secretário de imprensa do CAFDR, Centro Acadêmico Franklin Delano Roosevelt. As reuniões eram extremamente intrincadas, todo mundo fera em política, tinham lido absolutamente tudo e pontificavam com grande propriedade, como se estivessem mudando o mundo através dos livros. Ficava impressionado com aquela capacidade de articulação, mas logo vi que tudo se perdia com a falta de confiança no que os estudantes realmente pensavam e queriam. Havia o equívoco de que era preciso uma vanguarda esclarecida para conduzir os acontecimentos. O resultado foi o esvaziamento, provocado não só pela brutal repressão política, mas principalmente pela falta de discernimento da liderança.

RETORNO – A Feira do Livro de Uruguaiana será do dia 21 ao dia 30 deste mês. O secretário de Cultura, Esporte e Turismo do Município, Bebeto Alves, já conseguiu do governador gaúcho a licença para instalar um teatro na cidade e está tratando de atrair investidores para uma atividade turística magnífica: o passeio de barco pelo rio Uruguai. Esse é o verdadeiro dinamismo na política, que dá resultados imediatos e faz justiça à tradição cultural brasileira.

13 de novembro de 2003

A MOCHILA POUSOU NA LUA


Na noite em que os americanos mostravam pela TV que estavam pisando na Lua, cruzávamos ainda a estrada, de mochila nas costas, chegando de carona no Rio de Janeiro. Nem sabíamos do grande evento. Era julho de 1969 e nada havia de verdadeiro nos jornais. A não ser, é claro, no Pasquim que surgia naquela mesma temporada. Debaixo do braço, carregávamos nosso primeiro livro, feito a muque, na base do mimeógrafo, e que tinha o título de “Tombam os primeiros homens nos trigais”.

ENTALHADORES - Até hoje lembro aquela viagem do subúrbio do Rio (onde nossa carona nos deixou) para a Zona Sul, dentro de um ônibus lotado. Já tirávamos do corpo lãs e casacos (vínhamos do frio gaúcho de julho) e um carioca negro improvisava, cantando, sobre a briga espacial entre russos e americanos, tirando um sarro dos comunistas que tinham perdido para os vencedores gringos. Depois de nos instalarmos numa cobertura habitada pela fauna de Ipanema, capitaneada por artistas entalhadores como o recifense Zé Barbosa, na rua Farme de Amoedo, subimos o Morro do Pinto e paramos na primeira birosca para uma cerveja. Um morador daquelas bandas nos explicava ser impossível alguém chegar até a Lua e que tudo não passava de armação. Quando recentemente publicaram provas de que a grande façanha tinha sido armada em estúdio, o que não serve de prova nenhuma, fico imaginando a força do ceticismo popular naquela cidade que me deslumbrou não apenas pela paisagem, mas pelos seus habitantes únicos. Descobri compositores de música popular que viviam como mendigos, aposentados filósofos, entre outros exemplares de uma grandeza humana exposta na rua e que mudou minha vida para sempre. Junto com meu amigo poeta Marco Celso Viola (autor do verso-título Tombam...), que bolou toda a viagem e descobriu o lugar para nosso pouso, fomos até a praça General Osório expor poemas. Comíamos pão de padaria com leite em saquinhos. E dependíamos da caridade alheia, para almoçar, jantar e dormir. Éramos mendigos em plena ditadura e fomos até presos pelo Exército, pois demos bandeira absoluta perto do Forte de Copacabana, usando jaquetas velhas do Exército emprestadas por meu cunhado capitão. Dentro da limousine preta, onde íamos detidos, Marco Celso teve a petulância e o sangue frio de filar um cigarro do tenente. Acontecimentos que hoje parecem ser de pura ficção, mas que aconteceram de verdade.

SÃO PAULO - Antes dessa aventura no Rio, tínhamos chegado em São Paulo, onde fomos dormir no estádio do Pacaembu. Apresentamos nossas carteirinhas de estudantes e ficamos em dormitórios gigantescos e vazios. São Paulo foi um deslumbramento. Nunca tinha visto cidade como aquela. No entardecer de ouro da avenida Paulista, descobri uma paixão súbita pela cidade que mais tarde me adotou e onde moro até hoje. Foi assim: de mochila, tentando descobrir o Brasil e minha real vocação, expondo poemas na Praça da República ( que não despertou, claro, interesse ou atenção de ninguém) vi São Paulo pela primeira vez. Assisti peças impossíveis (não sei se exatamente naquela época ou quando fui visitar a cidade mais tarde) como Cemitério de Automóveis, com Stênio Garcia, e Gracias Señor, o terremoto do Teatro Oficina, uma ousadia e radicalidade que nunca mais vi em lugar nenhum. E antes mesmo do Rio, quando queríamos ir para o Uruguai, atravessamos o pampa, passando por Santa Maria da Boca do Monte, a cidade central do Rio Grande do Sul, lugar maravilhoso onde sempre me sinto muito bem. Do trecho de Santa Maria para Uruguaiana, fui sozinho, atrás de uma licença especial que meu pai deveria conceder para eu atravessar a fronteira. Não deu certo. A turma com quem eu viajava encantou-se com Santa Maria e lá ficaram. Eu fiquei esperando todo mundo numa Livramento chuvosa, depois de ter conseguido o papel assinado pelo meu pai em Uruguaiana. Chegaram a me prender e me levar para o quartel, mas viram que eu era estudante e apenas um menino completamente tomado pela necessidade de correr mundo, mesmo sem dinheiro nenhum, atrás de sonhos que até hoje me povoam.

RETORNO – Dessa viagem pelo Brasil veio a inspiração tanto para meu primeiro livro, Outubro, quanto para o segundo, No Meio da Rua, que diz: “No meio da rua/ o coração do passageiro/ bate o bumbo.” A poesia foi o fruto colhido pela minha caminhada junto à geração a qual pertenço. Quando vejo meninos hoje que se expõem no mundo como eu me expus e que são assassinados porque querem sentir também o gosto da aventura, lamento esta época que mata crianças e não os embala como o meu tempo me embalou e permitiu que eu sobrevivesse, apesar de toda a barra que enfrentamos.

12 de novembro de 2003

LÁ LONGE NO HORIZONTE

Um convite-surpresa feito pelo novo Secretário de Cultura do Município de Uruguaiana, o compositor, instrumentista e cantor Bebeto Alves, me abre a possibilidade de caminhar novamente naquelas ruas largas e bonitas, visitar meus conterrâneos queridos, abraçar antigos e novos amigos, rezar junto aos meus pais, irmã e tias que lá estão em repouso, e conversar sobre literatura, essa linguagem disciplinada para a liberdade absoluta.

SUSTO NO ERMO - O assassinato do jovem casal na mata da sinistra serra de Juquitiba, reavivou os ódios contra a maneira frouxa com que a justiça leva a impunidade de jovens menores de idade, que abusam das prerrogativas da lei para aprofundarem seus crimes. Esse é um assunto tenebroso, que inclusive gerou uma briga feia entre dois deputados na Câmara Federal ontem, com direito a xingamento e sopapos (uma covardia, pois um dos parlamentares é mulher). Sinal que vamos adiando as decisões importante para o dia do São Nunca, deixando que medre solta a loucura da violência e recalque na sociedade o mau conselheiro do ódio total. É preciso resolver esse impasse, para que aos poucos (junto com outras providências fundamentais, como a distribuição justa da renda) tenhamos a paz de volta, já que vivemos atualmente em guerra total de todos contra todos. Precisamos de paz porque esta é a ordem natural do espírito humano, porque a guerra é a ruptura do que a vida tem de melhor e mais importante, porque viver em sossego é a maior bênção a que podemos sonhar. Precisamos de anistia uns com os outros, de perdão e convívio pacífico, de tolerância mil e ressentimento zero. Não se trata de discurso descartável, mas questão de sobrevivência.

COMPARTILHAR - Fico felicíssimo com a participação dos meus pouquíssimos leitores, como Mauro Mendes (jmaurom@terra.com.br), que publicou aqui um belo comentário sobre nossa vida com os livros. Vou transcrever, para que seu depoimento faça parte do espaço, digamos, oficial, desta coluna: “Nei, tenho sempre lido o blog. Não deixe de escrevê-lo! Seguem alguns comentários. 1. Sobre "Rolava Proust" - Teu comentário me fez voltar no tempo. Lá em casa, de certo modo, também rolava. Eu tinha uns 10 anos e lembrei-me de que meu pai tinha um livro misterioso, que eu não conseguia ler(acho que nem ele!) e que era "Du côté de chez Swann" ou "Un amour de Swann", do "tal" de Proust. Embora ainda não pudesse lê-lo, ficou o exemplo, a "dica", a sinalização sobre a importância da leitura. No mais, eu lia tudo que me caía nas mãos, inclusive os livros que meu pai trazia para minha irmã, como os de M. Delly, que eram só para meninas(Seriam mesmo só para meninas?) Sem dúvida, são divertidas, hoje, estas nossas fantasias da infância, como pensar que os livros de Proust eram para moças. Neste caso, talvez se explique pelo fato de que ele tem um livro chamado "À l'ombre des jeunes filles en fleur". Não sei como a Editora Globo traduziu este título, mas talvez tenha vindo daí a tua confusão. A propósito, alguém já encontrou o tempo perdido de Proust?” Tempo e memória em Proust, Mauro, tornaram-se realidades espirituais de grande complexidade. O texto dele é a suprema glória da literatura. Continua Mauro: 2. Morro dos Ventos Uivantes – “É um dos grandes livros já escritos. Está na minha lista. Queria transcrever, fazendo um gancho, um comentário de Camus, na Introdução do seu contestado livro "L'Homme Révolté"(A tradução abaixo é minha. Se preferires mando o texto original): " Há crimes cometidos por paixão e crimes de lógica. O Código Penal, de maneira bastante cômoda, distingue uns dos outros pela premeditação. Vivemos o tempo da premeditação e do crime perfeito. Os criminosos de hoje não são mais aquelas crianças desarmadas que invocavam a desculpa do amor. Ao contrário, eles são adultos e seu alibi é irrefutável: é a filosofia que pode servir para tudo, até para transformar assassinos em juízes. Em "O Morro dos Ventos Uivantes", Heathcliff mataria o mundo inteiro para possuir Catarina, mas ele nunca teria a idéia de justificar seu crime através da razão ou de um sistema. Ele simplesmente o cometeria, nisto reside toda a sua crença. Isto supõe a força do amor e o caráter. (...) Mas, a partir do momento em que, por falta de caráter, se recorre a uma doutrina, desde o instante em que o crime se torna lógico, ele prolifera como a própria razão, ele toma todas as formas do silogismo. Ele era solitário como o grito, hoje é universal como a ciência. Ontem julgado, hoje faz a lei."(Camus, L'Homme Révolté, Gallimard, 1951).” Diz Mauro: “Qualquer semelhança aí acima com Bush e quejandos, não será mera coincidência...”

ÍCONE – Beto Q (betoq@yahoo.com), do Zadig (http://www.zadig.blogger.com.br/) , também me envia o seu comentário: “Caríssimo Nei: Bom demais para este "goiúcho" que é teu leitor há muito tempo, eu, um pobre-diabo do mais fundo Goyaz, reencontrar você neste "mar de conhecimento compartilhado" (que é ou deveria ser a Web).Não vou perder contato mais. Como você e meus seis leitores já sabem: seu "Outubro" é, e será por muito tempo, meu poema-ícone. E a cada novo outubro que Deus me conceder, lá estará estampado no diário ou na memória afetiva. Ah! Lembrando-me daquela Porto Alegre dos meus verdes anos de formação: Urgs, Grêmio, Ospa, Folha da Manhã, minha jovem esposa, minha primeira filha (Maíra), sonhos e poesia (com Proust espalhado para todo lado).” A poesia não seria nada, Beto, sem a recepção dos leitores, que abraçam o poema e o levam pela vida afora. Obrigado.

RETORNO – Sobre minha visita a Uruguaiana: do dia 21 a 26 deste mês, será realizada a Feira do Livro da cidade. Grande evento, que terá a repercussão merecida.

11 de novembro de 2003

O PRIMEIRO JORNAL DO MUNDO


Chamava-se Sai-Lasca, era feito à mão e tinha apenas um exemplar, que era lido aos berros no recreio do Colégio Santana pelo seu editor, que possuía cicratizes de um acidente na infância, quando visitou o circo e teve parte de seus músculos do braço e dos lábios arrancados por uma fera enjaulada. Por isso, atendia carinhosamente pelo apelido de Puchero de Tigre. Puchero é um espanholismo que significa comida.

SUCESSO - O Sai-Lasca era um sucesso absoluto. Todos os alunos aglomeravam-se ao redor de Puchero, às gargalhadas, para saber das suas últimas sacadas sobre professores, colegas, irmãs de colegas, mães em geral. Eu tinha verdadeira admiração pelo primeiro jornal do mundo. Era tudo obra de Puchero, que também fazia narrações esportivas, colocando um ramo sem folhas, bem fino, para imitar antena, atado a um tijolo que fazia de conta ser um microfone. Os eventos que narravam eram brigas homéricas acontecidas fora do colégio. Todo mundo prestava atenção no narrador, mais do que na briga. A descrição da pauleira era absolutamente hilária e lembro que sentávamos na calçada de tanto rir. O Sai-Lasca gerou uma série de epígonos, nenhum tão bom quanto o original. Esse pequeno veículo significava a liberdade da minha geração, criada na agitação do Brasil pré-64 (o golpe que destruiu o país), que tinha sido criada na disciplina e experimentava a alegria da agitação política, cultural e comportamental. No salão nobre do colégio, o grande futuro ator Miguel Ramos (que fez uma ponta impressionante em Netto perde sua alma, filme de Tabajara Ruas e Beto Souza, entre outras admiráveis performances) imitava Juca Chaves cantando Presidente Bossa Nova. Um colega chinês cantava (bem) o sucesso Oh! Carol, com todas as nuanças de voz a que tinha direito. Nesse mesmo espaço, davam-se as grandes tertúlias poéticas, onde pontificavam declamadores como meu irmão Elo, um carismático recitador de versos gaúchos. Eu morria de vergonha de ter de subir ao palco e ficava na minha, para depois ir correndo escrever alguma coisa na máquina Smith-Corona, de tipos manuscritos, que ganhei de presente do meu pai e perdeu-se para sempre numa mudança quando eu estava em Porto Alegre.

PASSAGEM - Por falar em Elo (atualmente babando seu primeiro neto na Nova Zelândia), transcrevo aqui um texto que ele me enviou, a meu pedido, e que gostei tanto que está incluído no meu romance, ainda inédito, que pode ser publicado no próximo ano: “A vez primeira que me levaram numa caçada de capincho ou pescaria foi depois de eu ficar muito tempo, vendo diversas saídas dessas, com cara de também quero. O seu Ortiz me disse devereda, vamos guri, e eu subi na carroceria de uma caminhonete. A mãe fez cena e no fim me deu uma trouxa com alguma roupa. Me fui, ou melhor me levaram. Era mui pequeno e nem lembro bem dos detalhes do transporte, talvez nem importasse. A ansiedade era grande, e se desmanchou quando o Compadre Magro e o Ulisses Villar me disseram que nós ia caçar no Passo do Cemintério.Sei lá hoje onde fica, mas depois de algum tempo, em estradas daquela época, se chegou num lugar que tinha um arroio que atravessava a estrada, era o Passo, passagem. Uma passagem par mim também. O cemintério? Não vi. Talvez nem existisse, fazia parte dos ritos de iniciação: assombrar as crianças.Armaram acampamento, daqueles que tu sabe, a moda dos três parceiros. Gosto pela vida, pelo ar livre, pelo mato, pelo cheiro da fumaça, pelas histórias recontadas, pelas bravatas de pegar, pontaria e outras mais.Era sábado de tarde, e de repente eles saíram cada um para seu lado, ou dois prum lado e o outro pra o lado contrário, procurando capincho a pé pelas barrancas do arroio. Fiquei solito, loco de assustado. Mais pelo cenário, que pelo cemintério. Era mato, uma clareira no mato, pro lado que se olhava se via mato, e ouvia barulhos, talvez metade inexistentes. Foi anoitecendo, escurecendo e nada deles voltarem.Quando chegaram eu estava tangido pelo medo. Quieto, sentado na beira do fogo, colocando lenha, esperando, imaginando, voando. Nada de capincho.Me colocaram num pelego, e dormi depois do churrasco de carne que eles levaram. Com bolacha, que ficava num lata com tampa pra não endurecer, no entanto ficava molenga, que precisava colocar na trempe para dar uma melhorada. Não tinha refrigerante naquele tempo, e nem se bebia nas refeições. Eles não eram de beber nem vinho. Cerveja? só no verão e assim no primeiro dia, que era o tempo que o gelo comprado na "fábrica" de gelo durasse. Essa do Passo do Cemintério ainda era uma caçada/pescaria de pobre. O Ortiz ainda não tinha colocado as mãos nos pilas. Mas me lembro de alguns detalhes, do mato quando entrei pra ver se achava capincho junto com o Pai, na manhã seguinte. Das barrancas do arroio, baixas, de modo que os capinchos pressentiam o andar dos caçadores se iam à água. Mas deram sorte, mataram um ou dois. Tiraram a buchada e deixaram para serem carneados por um índio da cidade que era especializado, em tirar o couro e extrair o óleo ( argh! - tu não passaste por isto). Levavam os bichos prá lá na volta e pegavam as carnes e parte do óleo que prevenia doenças de inverno. Acho que deixavam o couro pro cara e algum dinheiro. Minha primeira saída, com dormida no mato, acho que foi por aí que peguei gosto pelo acampar, que agora se chama camping, e só tem chato.Mas o café de manhã fria, com cerração levantando das águas do rio, eu sempre tomei café preto, com bolacha esquentada nas brasas, um resto do churrasco, um sonho, essa hora era a mais prazeirosa, e ainda é até hoje. Mesmo dentro de casa, saio pra comprar o pão, monto a mesa e leio jornal enquanto tomo café. Até quando estou solito.”

RETORNO – Finalmente o espaço dos comentários está sendo preenchido pelos leitores desta coluna, a maioria deles também com blogs, que devem ser visitados e admirados, pois todos possuem excelente qualidade. Aos poucos, vou colocando os links, uma operação que eu não domino, pois sou o único blogueiro do mundo que tem a ajuda de um webmaster (meu filho Miguel). Daqui a pouco, comento os comentários. Agora, à luta!

10 de novembro de 2003

ALIANÇA COM OS LIVROS

Empresas de comunicação deveriam ter bibliotecas amplas, com bibliotecário(a)s contratado(a)s para atender os jornalistas, que são pagos para escrever e precisam ser estimulados e abastecidos por leituras mais profundas do que artigos e reportagens. Mas, mesmo com essa precariedade – a ligeireza do conteúdo diário nos veículos de comunicação – basta um bom texto na imprensa para ganhar o dia.

FRANCISCO FAUSTO - Este jurista, presidente do Tribunal Superior do Trabalho, escreve hoje na página três da Folha sobre os 60 anos da CLT, outorgada por Getúlio Vargas em 1943, e diz coisas como o seguinte: “Tínhamos conquistado a indústria do aço em trabalho de engenharia política internacional liderada por Getúlio Vargas.” Parece óbvio, mas diante da campanha contra nosso estadista, é sempre bom ver esse tipo de constatação ser publicada. Continua: “Hoje fala-se em pôr um fim à era Vargas e cada vez que se dá um passo nesse sentido é como uma marcha de Átila sobre o campo onde não nasce grama.” O jurista chama a atenção para o sucateamento das leis trabalhistas: “Esse retrocesso nos passa a sensação de que a evolução do fato social brasileira caminha às avessas: do presente para o passado. “ E pergunta, depois de destacar fatos como a volta do trabalho infantil e escravo e o aumento do desemprego para 20% da força social ativa: “Qual era devemos adotar no lugar de Vargas? A era Alca ou a era FMI?” Vejam que essa é a opinião de um erudito e não a de um escritor e jornalista gaúcho como eu, que fica aqui diariamente batendo nessas teclas que esse artigo maravilhoso tocou de maneira tão soberba. Agora, podem acreditar no que estou falando. A nova lei, segundo o doutor Fausto, “falou, em verdade, a linguagem dos mais fracos no discurso conciliador da elite política”. Alguma dúvida?

ROLAVA PROUST – Na minha casa, a obra de Proust, Em Busca do Tempo Perdido, rolava pelas estantes, armários e sofás. Sinal de que essa edição da antiga editora Globo era lida naquele tempo, quando eu confundia esses livros fundamentais com “leitura para moças”. Hoje, ao terminar o primeiro volume dessa mesma edição, fico abismado com a imensidão da minha indiferença no tempo em que era garoto. Cheguei a fazer uma quadrinha intitulada Proust: “Obrigatório em qualquer encarnação/ Melhor ler nesta/ para não perder tempo.” Outro livro “para moças” (minhas irmãs liam muito) que me deixou impressionado foi O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Bronté, que li de uma vez só. Minha casa tinha a coleção completa do Monteiro Lobato, proibida pelos padres (morávamos em frente ao colégio dos irmãos Maristas), mas que sempre foi nosso civilizador maior. A coleção O Mundo da Criança também fazia bonito e foi completamente debulhada de tanto uso. Tínhamos ainda a Coleção Província, onde tomei contato com João Simões Lopes Neto e um pouco sobre a história do Rio Grande do Sul. Na biblioteca do Colégio Santana, naveguei na coleção completa de aventuras do Emilio Salgari, entre outras leituras. Minha mãe, leitora ardorosa de Erico Veríssimo, Mario Quintana e Jorge Amado, entre outros, me levava pela mão para a literatura brasileira. Meu pai, que tinha abandonado a escola quando, aluno brilhante do terceiro ano primário (foi tão bem no primeiro, que os professores o fizeram pular o segundo ano) recebeu uma reguada da professora que não gostou de vê-lo se espreguiçando em classe. Ele contou a vida toda essa história, sempre muito magoado. Por isso fez questão que todos nós tivéssemos diploma. Ele também lia sem parar. Lia o Correio do Povo (que era imenso) inteiro, até os anúncios e, desconfio, os classificados. Costumava dizer: “Tem gente que não tem cultura nem de Seleções”. Em casa, além das Seleções, líamos as revistas Alterosa (de Minas), Manchete, Cruzeiro (das grandes reportagens), e as argentinas Para Ti (feminina) e Billiken (infantil, com as impagáveis historietas do pássaro Paco-Pum e as peripécias de Pelopincho e Cachirula). Claro que ninguém ouviu falar dessas últimas. Pertencem ao Mundo Perdido.

EMOÇÃO E SOBRIEDADE - Minha relação com os livros, portanto, foi sempre de uso e convívio (especialmente nas longas noites de inverno), e não de status intelectual. A arrogância da pose dos literatos metidos a intelectuais sempre me deu urticária. Ler livros, para mim, faz parte da formação passada pelos pais e pelo ambiente onde vivia. Os livros tinham as orelhas dobradas de tanta leitura, já que eles passavam por todas as mãos, eram emprestados para os vizinhos. Assim mesmo, com toda essa manipulação, herdei intacta toda a coleção infantil do Monteiro Lobato, que meus filhos também “leram, releram e requete-leram”, como dizíamos em Uruguaiana. Quando escrevo sobre um livro, é com paixão, com alegria e com a maior dose de lucidez possível. Não quero afastar os leitores da obra que estou comentando. Quero que abracem o livro como um velho amigo, como um amor correspondido, como uma tábua solta em alto mar. Náufragos dessa vida dura, somos acompanhados pela produção cultural dos nossos semelhantes, absolutamente geniais e maravilhosos. Isso não elimina a necessária sobriedade na leitura, pois passei vinte anos estudando História do Brasil, lendo as maiores pedreiras com a mesma satisfação. Tudo isso não me faz um intelectual. Sou apenas um brasileiro que os livros carregam para uma vida mais generosa.

RETORNO – Achei que não conseguiria escrever aqui todos os dias. Estou conseguindo. Mas talvez o Diário da Fonte enfrente alguns intervalos. Espero que não. Vamos ver.

9 de novembro de 2003

O REPÓRTER DIANTE DAS CÂMARAS

Por que José Hamilton Ribeiro é o melhor repórter da televisão brasileira? O ex-correspondente de guerra, exemplar de uma linhagem do jornalismo brasileiro que deveria ser hegemônica em todas as redações, dá show no maravilhoso Globo Rural, o programa que todos gostamos de ver. Quando Zé Hamilton sobe na carroça para a passagem de uma matéria sobre o cavalo na cidade, é o povo brasileiro, no que tem de melhor, que nos leva junto.

RESPEITO E EFICIÊNCIA – A matéria a que me refiro acaba de ser veiculada. Foi feita em Passo Fundo, com toda aquela galeria de personagens que fazem parte da minha infância, já que o interior do Rio Grande do Sul é uma nação com identidade própria, mas não à parte, pois ajuda a compor o Brasil que nos enche de orgulho. O grande repórter faz a narração da matéria em versos, como se fosse uma trova gaúcha, dita naquele tom coloquial que nos cativa, ao contrário do que acontece normalmente, em que o tom do reportariado soa sempre como um misto de arrogância e estrelismo. O que me impressiona nos repórteres da TV é que eles estão convictos que estamos “no sofá” (expressão horrenda, que coloca o telespectador como um ser imóvel e preguiçoso) para admirá-los. Por isso apontam o dedo para a câmara a cada segundo, sacodem os ombros e fazem caras e bocas de canastrões insuperáveis. Acham que são atores, dando espetáculo, quando deveriam ser apenas repórteres narrando uma história. Zé Hamilton deve ser encarado como uma escola, não para disseminar a padronização do seu estilo, mas como exemplo de como deve se portar o profissional de imprensa diante das câmaras, mostrando mais o assunto do que a si próprio, intervindo para fazer fluir a narrativa, e respeitando a inteligência de cada interlocutor, fonte de conhecimentos que devem ser conhecidos por todos. Além disso, no Globo Rural, os apresentadores completam a matéria com uma sacada brilhante: a de que a mecanização da agricultura acabou empurrando os cavalos para as cidades, onde desempenham as mais diversos funções. Essa é mais uma lição desse programa imperdível: o apresentador não é um boneco exibicionista que só fala redundâncias (apropriando-se do trabalho do repórter ao repetir as informações contidas na matéria) ou que fica pontificando sobre o que não sabe. Nunca é demais repetir o que escrevi há anos: o jornalista é aquele que não sabe, por isso vive perguntando. Sua função é fazer a fonte decifrar a linguagem cifrada e veiculá-la de maneira eficiente. A especialidade do jornalista não é o assunto que aborda, sua especialidade é o próprio jornalismo, já que ele é mídia, meio. Não precisa, portanto, achar que é ator, fingir que é economista, historiador ou sociólogo. Basta ser o que José Hamilton é: jornalista, na glória absoluta da concepção dessa palavra.

MISSA E CHURRASCO - E já que falei do interior do Rio Grande do Sul, lembro que por muitos anos minha mãe nos levava à missa das seis da manhã nos domingos, quando ainda estava muito escuro (especialmente no inverno) para cumprir uma promessa que tinha feito. Éramos as únicas crianças naquele horário, povoado de velhos e velhas e carolas que entoavam os cantos de Davi. A missa das crianças era mais tarde, às oito, e às vezes comparecíamos nesse horário. Na volta da missa super-matinal das seis, acendíamos uma fogueira no quintal, onde tínhamos construído um pequeno galpão feito de caixotes (e que apelidamos de CTG Os Gaudérios, em homenagem ao conjunto musical que revolucionou a música regional e do qual participava meu atual amigo José Gomes, o maestro, cantor e compositor que fez e faz História na música brasileira). Lá acontecia o churrasco dos meninos, onde só criança (meninas inclusive) participavam. Meu pai liberava uma garrafa de legítimo vinho Liebfraumilk (naquela época um licor maravilhoso) e churrasqueávamos ali mesmo no pátio, dividindo o vinho entre oito ou dez pessoas (vizinhos eram convidados). Era um santo remédio contra o frio e transformava o domingo numa experiência única. Depois dessa pequena confraternização, tínhamos futebol e mais tarde, nas matinês, cinema – filmes brasileiros, seriados de aventuras, filmes de piratas e faroestes. Quem tem uma infância dessas é feliz para o resto da vida.

PESCARIAS - A exceção era a convocação do meu pai para enfrentar o mato - quando passávamos o fim-de-semana no mais completo isolamento. Dormir ao relento com uma temperatura de menos dois graus, ou abrigar-se numa barraca do exército que cheirava a uma gordura milenar, ou mesmo sair no campo para catar bosta seca de vaca para queimar e assim espantar os mosquitos, eram coisas para “virar homem”. Sem falar nos micuins, que davam terríveis coceiras, no barro infernal que emporcalhava o acampamento, na obrigação de lavar as panelas do almoço e da janta na beira do arroio, nas linhadas que ficavam tão maçarocadas que só meu tio Antenor, pescador de verdade, conseguia desembaraçar. Tio Antenor viva na beira do rio. Meu pai comprou uma casinha de madeira para ele, com uma novidade: tinha portas! Fomos visitá-los e todos os filhos e ele próprio estavam com os dedos inchados. A mulher dele (teve inúmeras na sua longa vida) gritava: “Olha a porta, Gibraltar, olha a porta Lindomar!” Também ganharam de meu pai outro presente, um fogão a gás. Mas jogaram fora. “A comida ficava com gosto de gás”. Rimos, mas é a pura verdade: nada se compara a uma boa comida com fogão a lenha. Tivemos fogo a lenha por muitos anos, capitaneado pela nossa cozinheira Rita, que Deus a tenha e que ajudou minha mãe a criar todos os sete filhos. As comidas eram fantásticas: até hoje jamais comi um peixe desfiado com farofa que minha mãe fazia, nem aqueles pastéis que meu Tio Waldemar conseguia fabricar desde a massa até o recheio, ou mesmo aquele feijão com arroz da Rita. Tudo isso para o paladar faminto de crianças devoradoras. “Vocês tem fome de gerações”, dizia minha mãe, que era muito magra, comia mastigando bem, tomava dois cálices de vinho na hora do almoço para dormir uma sesta dominical deliciosa, momento em que deveríamos fazer absoluto silêncio. Eis minhas memórias dos dias inesquecíveis de domingo, naquela época em que o Brasil era seguro e tinha estadistas de verdade. E o que era melhor: era um país tão tranqüilo que se dava o luxo de ter infância.

RETORNO – Meu genial editor Wagner Carelli – também conselheiro editorial do Diário da Fonte - me envia e-mail em portunhol. Sempre que eu esqueço que sou gaúcho (acontece, podem acreditar) pessoas como o Carelli me trazem de volta à realidade.

8 de novembro de 2003

A PRISÃO DO CURRÍCULO

A biografia profissional mais esconde do que revela. Se a pessoa for muito jovem, não faz nenhum sentido, pois currículo é coisa para quem tem estrada. O mais grave é que os jornalistas são avaliados por gente que nada tem a ver com o jornal, os especialistas em “treinamento”. Esta palavra execrável está relacionada com os experimentos com animais e mostra o degrau a que descemos em falta de humanidade.

MARX EXPLICA - A declaração de Lula de que a capital da Namíbia nem parece ficar num país africano por ser limpa pode ser entendida à luz de Marx, que detectou o problema. O sábio alemão disse que a mentalidade dominante é a mentalidade da classe dominante. Bingo. Lula expressa não o povo que chega ao poder, mas aquela parte do povo que gruda na elite para adquirir vantagens, clona suas idéias e posturas e tenta pensar como os poderosos. Por isso foi mais longe do que FHC no sucateamento do País, enquanto se pavoneia mundo afora como se fosse o rei da cocada preta. Outra declaração sua, a de que nunca foi de esquerda, revela o quanto serviu à pseudo-esquerda, a mesma que agora faz Cooper nas mansões ministeriais e que levou uma vida para botar a mão na bufunfa. A falsa esquerda precisava de um “líder operário” para justificar suas teses da revolução “autêntica” em contraponto ao “populismo” da era trabalhista (no trabalhismo, nunca tiveram chance). Para reforçar esses alicerces de palha, mentiu sobre a História do Brasil, tentando provar que os comunistas foram os responsáveis pelos “avanços” da luta popular e que as reações da direita estavam todas voltadas contra eles. Pura besteira. As grandes manifestações de massa antes de 1930 foram desencadeadas e lideradas pelos anarquistas, já que o comunismo nasceu no Brasil nos anos 20 e desde lá nunca teve expressão significativa. Serviu apenas para justificar a repressão nos anos 60 e 70, quando irresponsavelmente partiu para a luta armada, sem ter cacife para isso. O golpe de 64 não foi contra os comunistas, foi contra a ascensão irresistível nas urnas do trabalhismo vitorioso, que tinha um presidente, João Goulart, no poder, e fatalmente iria colocar Brizola (então o deputado mais votado do País) em Brasília. O golpe foi obra de quatro governadores civis reacionários: Adhemar de Barros em São Paulo, Carlos Lacerda no Rio, Magalhães Pinto em Minas e Ildo Meneghetti no Rio Grande do Sul. Os militares aproveitaram para chegar no comando do processo e erradicar por algum tempo seus aliados civis – que foram substituídos com o tempo, fazendo com que o regime fosse um autoritarismo comandado tanto na caserna quanto nos palácios. Lembro de minha mãe, furiosa com a população de Uruguaiana que se deixou engabelar pela campanha das “mãos limpas” de um candidato a governador anódino, Ferrari, que roubou votos do trabalhismo e deu a vitória para Meneghetti. Ela reclamava do povo, que achava ser possível ascender socialmente se votasse nos ricos. “Votem na xiruzada do PTB”, aconselhava, sabiamente. Quando deram o golpe e o marechal Castello Branco começou a discursar, ela teve um surto de tristeza profunda.

LICITAÇÃO - Já entraram numa licitação para preencher cargo de jornalista? É uma experiência interessante. Nunca te escolhem, alegando que seu currículo não preencheu os requisitos. Você não é avaliado por alguém da redação, um editor, mas por um gerente de treinamento. Se você não está latindo do lado certo, não serve. Cansei de chamar pessoas sem olhar o currículo. Acho que não vale nada. Para quem tem uns cinco ou mais anos de profissão, todos os currículos se parecem: fizeram frilas em tudo que é lugar, sofreram na Gazeta Mercantil, foram explorados por empresas de comunicação muito vivas (lideradas por empregadores que fingem ser jornalistas e por isso desencam em suas colunas as leis trabalhistas, único refúgio do trabalhador despossuído) e por aí afora. Também não gosto de “olho no olho”, como me sugeriu, pouco antes de conhecê-lo, o Carlos Marcondes. Falei para ele: vamos fazer uma reunião, mas temos que nos olhar de soslaio, porque olho no olho é muita responsabilidade. Selecionei a Luciana Felix num estágio porque ela escutou o que eu tinha a perguntar e a dizer, interagiu com o entrevistador. Não tinha currículo, estava no terceiro ano da faculdade. Acabou, em pouco tempo, fazendo matéria de capa da revista que eu editava. Por isso não aturo quem desova currículos oralmente no meu ouvido. Imagino sempre uma vingança: recitar para essa pessoa todo o meu currículo, que tem partes absolutamente inverossímeis, mas verdadeiras, como o fato de ter feito horóscopo no interior de Santa Catarina enquanto fechava páginas e páginas de noticiário internacional a partir de telex em espanhol da UPI. Quem acreditaria num negócio desses?

ERRO HISTÓRICO – Para quem desconfia que aqui só defendo o trabalhismo, é bom destacar que vejo na aliança de Getúlio com Adhemar de Barros nas eleições de 1950 como um grande erro histórico. O acordo era Getúlio ser eleito em 50, o que realmente aconteceu, e apoiar Adhemar para presidente em 1955, o que gorou com o suicídio de Vargas. O pacto é típico da burrice com que o getulismo sempre tratou São Paulo, a começar por 1930, quando impediu que a oposição, encarnada pelo Partido Democrático, assumisse o poder, colocando no lugar dessa liderança legítima, que tinha apoiado a revolução, o interventor desastrado João Alberto. Hoje, quando vejo Brizola abraçando-se a tudo o que não tem nada a ver com o trabalhismo em São Paulo – como foi no passado Adhemar de Barros Filho e Airton Soares – lembro do meu amigo Marcos Faerman, um dos mais brilhantes e talentosos jornalistas do Brasil em todos o tempos, que morreu sem jamais ter entrado no PDT paulista. Faerman era brizolista roxo e nunca foi convidado. O trabalhismo, por seus equívocos em São Paulo, além de perder as eleições (como aconteceu em 1989) deixou que medrasse aqui esse monstro chamado PT, que nasceu à sombra das obras de Getúlio – basta dizer que Lula estudou no Senai, criado em 1942 no governo Vargas, e foi líder do sindicato que, segundo Brizola, existia porque Getúlio tinha colocado a polícia para garantir essa existência. Brizola tem uma vocação explícita para cercar-se de traidores, desde César Maia a Garotinho, e continua fiel aos erros de Getúlio, que nunca permitiu nascer em São Paulo grande lideranças trabalhistas (medo de dividir o poder, certamente). Já desisti da idéia de Brizola dar uma virada nisso, pois o vejo até hoje tentar ser oportunista em São Paulo, em vez de implantar um trabalho aqui de longo prazo, legítimo, convidando os autênticos trabalhistas para participar das atividades do partido. Se tivesse feito isso, há tempos já teria feito um prefeito em São Paulo, em vez de insistir em coisas como aquele ex-prefeito de Osasco que esqueci o nome e que acabou malufando. Lembrei: Francisco Rossi. Brrrr.

RETORNO – O POETA APRONTA

1. Cumprimento o poeta amigo Mario Chamie pelo prêmio que seu fundamental Horizonte de Esgrimas ganhou no concurso da Brasil Telecom e anuncio que dei por encerrado meu quarto livro de poemas, ainda sem editora. Ele responde: "Aleluia! e vivas pelo seu novo livro pronto. É isso aí: o poeta tem que aprontar, ou seja, deixar os seus livros prontos. O resto (editora, lançamento, etc.) fica por conta dos acasos providenciais que acabam acontecendo".

2. Atenção para o glossário: até hoje não consegui explicar direito para um paulista o que significa a palavra xiru. Vou tentar novamente. É simples: é a pessoa do povo, “essa gente” como dizem os responsáveis sociais, aquela parte da população que significa também “o brasileiro” (o brasileiro são os outros, nunca nós). Somos todos xirus.

7 de novembro de 2003

A SEÇÃO DE CULTURA

Tem jornalista que se diz “especializado na área cultural”, o que é uma extrema barbaridade, pois quem lida com cultura precisa de bagagem na política, na economia e na História. Com cacife, portanto, para encarar qualquer pepino nas páginas consideradas, sem motivo, “mais nobres” da comunicação. Vamos analisar o que se passa com o centenário de Ary Barroso, por exemplo, que se comemora hoje.

DESCONSTRUÇÃO - O que o Brasil tem de melhor foi criado na época de Getúlio Vargas, mas essa declaração é uma espécie de crime de lesa-majestade. Quantos presidentes fajutos precisamos ainda aturar para nos dar conta que a desconstrução do getulismo coincide com as sucessivas hordas de políticos que enriquecem à custa do dinheiro público, especialmente do patrimônio criado e implantado nos 25 anos em que Getúlio esteve no poder? Ary Barroso faz parte dessa riqueza. Sua música Aquarela do Brasil, hino nacional alternativo, só pode ser entendida como expressão de políticas públicas focadas no povo e num país que se fazia respeitar no mundo todo (em 1945, quando derrubaram Getúlio, nossa dívida externa estava paga). Hoje é moda elogiar personalidades da época getulista como se fossem expressões isentas do seu contexto histórico. Gustavo Capanema, o grande ministro da Educação e Cultura? Era ótimo, mas “nada tinha a ver” com o presidente com o qual trabalhou durante muitos anos. Pelé? Um ET surgido no nada, jamais ligado ao que se fez em saúde e educação por décadas e que permitiu que o grande craque surgisse em meio a uma multidão de virtuoses da bola (basta ver hoje os pernas de pau que nos servem em horário esportivo na televisão para entender o que estou falando). Ary Barroso? Um gênio que pertence à eternidade e não à época getulista. O que o Francisco Weffort chamou de populismo (para galgar cargos públicos e depois virar ministro de FHC) foi apenas a justificativa política do esquema traçado pelo ogro do regime autoritário civil militar, Golbery do Couto e Silva, que ao fazer a distensão ditatorial e prever a anistia achava fundamental destruir o trabalhismo (por isso a legenda histórica PTB voou das mãos de Brizola) e inflar Lula, pois os ditadores sabem quem são seus verdadeiros inimigos. A continuidade da política econômica escorchante via Lula é a evidência de que Golbery sabia o que estava fazendo. Tudo isso está sendo dito aqui para quê? Para provar que a seção de cultura não pode ser uma “área” isolada. Não é um espaço de amenidades e frescuras e nem deve se prestar ao papel de porta-voz da indústria do espetáculo comandada pelos Estados Unidos. Exaltar os homens-aranhas em milhares de páginas dos cadernos culturais e bater no cinema nacional é um exercício de colonização a que os jornalistas se dedicam com fé e orgulho. Talvez porque não saibam a quem estão servindo. Ou sabem e gostam.

OLGA - Agora teremos novo surto anti-getulista com o filme Olga, baseado num livro sério de Fernando Morais, mas que pode engrossar o coro de equívocos sobre o grande estadista. É preciso argumentar com cuidado, para não gerar mal entendidos. Nos anos 30, todos os países do mundo tinham relações normais com a Alemanha nazista e a Itália fascista. O filho de Mussolini foi recebido com honras de chefe de estado em Nova York. O primeiro ministro inglês Chamberlain foi para a Alemanha negociar com Hitler. Os campos de concentração só foram conhecidos no final da guerra, em 1945. Nos anos 30, portanto, quando Olga foi deportada para a Alemanha – porque era alemã e o governo alemão mantinha relações normais com o Brasil – o escândalo dos campos de concentração não era conhecido. Olga era uma revolucionária, tinha tentado tomar o poder à força, via luta armada. Queria derrubar o governo atirando. Para isso veio ao Brasil junto com Luis Carlos Prestes. Não estou justificando nada, apenas colocando fatos, a realidade da época. Sem isso não se pode entender porque Olga foi deportada. Nas eleições de 1945, depois que Prestes saiu da prisão e foi fazer campanha política para se eleger Senador, ele dividiu o palanque com Getúlio, porque entendeu ser Getúlio a única força capaz de combater o assanhamento pelo poder da direita. Esse gesto coerente de Prestes é tratado como um escândalo. Imaginem, apoiou o ditador que enviou sua mulher para a câmara de gás. Getúlio não enviou ninguém para a câmara de gás. Ele cumpriu um acordo internacional, o de deportar pessoas indesejadas para seus países de origem. Poderia simplesmente mandar matar Olga, que tinha participado de um golpe armado – a chamada Intentona. Matar foi o que fez o regime de Médici/Geisel, como revela Elio Gaspari no seu novo livro. Quando se fizer a resenha sobre o filme, é importante ter tudo isso em mente.

RETORNO – GAUCHADA NO EXÍLIO

1. O jornalista gaúcho Jorge Freitas, correspondente do Diário da Fonte no Rio de Janeiro, me envia comentários sobre a grande diáspora dos conterrâneos: “ O Rio Grande do Sul tem amor ao Brasil e aos outros estados.O gaúcho é sempre louco pelo Rio e pelo Nordeste, pelo sol e o mar. Encontramos gaúchos em todas as cidades em que chegamos. É incrível. Sempre adaptado. Alguns com bombacha e chimarrão, mas outros nem usam esses apetrechos e sempre afirmam suas origens sem competir neste item, se confraternizando com os brasileiros dos vários cantos do país. Inclusive isto vale para os paulistas contra os quais não registro nenhuma prevenção. No meu caso pessoal, trabalhei muitos anos da minha vida profissional de jornalista em veículos paulistas, sendo que por isso conheci uma infinidade de belas pessoas e profissionais, com as quais convivi com satisfação e alegria.” Jorge conta que encontrou no Rio a nossa maravilhosa artista Magliani: “Ela estava no seu atelier em Santa Teresa, trabalhando com outros artistas e senhora de si, como sempre foi e será. Uma maravilha.” Acrescento : a revolução de 30 colocou a gauchada no Rio, onde foram recebidos como heróis, depois de décadas de ditadura civil, a chamada República Velha.

2. Outro jornalista gaúcho, Virson Holderbaum, que mora em Florianópolis, me envia brilhante sacada sobre o uso do rádio no apagão: “Pelo que eu pude sentir e observar com relação ao apagão, as pessoas estavam surpreendidas pela perplexidade do caos iminente, do pavor de ficar sem água por quem sabe quantos dias ainda. Acho que o tremendo esforço dos técnicos e operários foi subestimado ou não foi passado corretamente pela mídia, leia-se rádio CBN, a única no ar quase todo o tempo das 55 horas do apagão. A mídia local rasgou elogios ao veículo. Faltou dizer: o rádio mostra seu valor quando se faz jornalismo com ele.” Virson, que foi meu colega na faculdade em Porto Alegre e me ajudou a debochar da falsa seriedade tanto da direita quanto dos pseudo-esquerdistas, me envia cumprimentos pelo aniversário, assim como Marcelo Min, um cara tão ocupado que está agendando almoço para daqui a duas semanas. Meu Deus, Min, imagina quando você for realmente famoso, teremos de agendar para daqui a dez anos!