31 de março de 2005

31 DE MARÇO DE 1964, CRIME HEDIONDO



Está no site oficial do Exército brasileiro um texto que dá o alarma sobre a verdadeira natureza da falsa democracia de hoje: a de que continuamos no regime de 1964, consolidado em 1985 com a posse do ex-presidente da Arena (o partido da ditadura), José Sarney. Pois o presidente Lula, sendo o comandante em chefe das Forças Armadas Brasileiras, como reza a Constituição, torna-se conivente com as seguintes posições, que constam nesse site: "No início de 1964 vivíamos um ambiente que refletia as inquietações de um mundo ideologicamente bipartido. Receios, incertezas, conflitos e perplexidade por toda parte. Agitadores infiltrados nas instituições legais realizavam um trabalho destrutivo das estruturas. Buscavam substituir as Forças Armadas por milícias. Disseminavam a anarquia. Virtudes, autoridade legal e consciência nacional claudicantes. Foi preciso coragem para defendê-las e preservá-las. O povo brasileiro precisou de alta dose de disciplina para manter-se fiel discípulo de sua própria vontade. (...) Vitoriosa, a Revolução de 1964 nos assegurou perspectivas mais nítidas de convivência e a tolerância com limites. Ela nos passa a silente mensagem de que, a qualquer tempo, atentos e preparados, estaremos prontos para a defesa da democracia".

POPULISMO - Pessoas podem defender esses argumentos toscos, mas não um texto abrigado numa instituição do governo da República. Não se pode justificar assim a derrubada de João Goulart, que foi eleito vice-presidente pelo voto direto, e ungido presidente por um plebiscito popular (onde obteve grande maioria dos votos) depois da renúncia do populista Jânio Quadros (a direita inventou o populismo para tentar vencer o trabalhismo nas urnas; foi desmascarada por Jânio, que não agüentou o repuxo; por isso partiu para a ignorância em 1964, sendo que já tinha tentado em 1955, quando foi derrotada pelo contra-golpe do marechal Henrique Teixeira Lott). No texto há também a ameaça velada de que esse tipo de intervenção poderá se repetir. Passaram décadas exercendo a ditadura dizendo que defendiam a democracia. O que houve não foi a infiltração, nem a ameaça das milícias, nem destruição das estruturas, mas sim o fracasso de um projeto da direita. É fácil de entender. O golpe de 29 de outubro de 1945 derrubou Getúlio Vargas, o presidente que enviou tropas brasileiras para lutar contra o nazismo e o fascismo (ao contrário da Argentina, que apoiou a Alemanha e abrigou os carrascos). Os regimes autoritários foram derrotados na Europa, mas inspiraram o poder nos Estados Unidos, onde existem até hoje sob a forma da mais horrenda ditadura imperial planetária (são racistas, se acham o povo escolhido e querem o mundo todo para eles).

DIREITA - Aqui no Brasil, a direita quis fazer o que faz hoje, ludibriar o povo por meio das campanhas políticas de cartas marcadas. Mas o trabalhismo não deixou e foi crescendo na base do voto popular (para isso foi consagradora a vitória de Getulio em 1950, contra todo o marketing da época). Com o desgaste do regime ditatorial de 64, instaurado para impedir a ascensão do trabalhismo, era essencial a neutralização dessa força eleitoral no projeto da chamada distensão política, obra da direita para perpetuar-se no poder (de autoria de dois ditadores, Geisel e Golbery, que tem como historiador oficial Elio Gaspari). Inflaram Lula (sabiam em quem confiar) e desmoralizaram a sigla histórica, o PTB. Empurraram Brizola para o fundo do poço, com a ajuda da distorção do voto trabalhista, a ilusão petista, escada para a ascensão social do lumpen proletariado e da classe média escolarizada que subiu na vida graças à cultura (como já notava Plinio Marcos em suas crônicas na Folha no final dos anos 70) e à política. Foi assim que o golpe triunfante de 1964 (a chamada Revolução vitoriosa, como diz o site do Exército) estabeleceu-se para sempre. Hoje esse regime completa 41 anos de poder.

AO VIVO - Tive o privilégio de viver sob um governo municipal trabalhista enriquecido pelo socialismo. O prefeito Antonio Chiarello, líder dos bancários, fazia parte de um grupo de socialistas que uniram-se aos trabalhistas nos anos 40. Nos anos 50, sua gestão em Uruguaiana foi um primor. A cidade era resplandescente. Como lá existe o clima do deserto (la pampa, como dizem os argentinos), muito calor e muito frio, árvores foram plantadas por todas as calçadas, fruto da noção do equilíbrio ambiental, coisa que hoje é só discurso. A cidade era varrida regularmente todos os dias. Havia paz, riqueza e concórdia. Havia autoridade, saneamento, educação e saúde. Chiarello é pai de Nidia e Nicia, colegas de minhas irmãs. Nidia (Didi) casou-se com Agildo Ribeiro, que vem a ser filho do revolucionário Agildo Barata, que participou de 1930 (ocupou o lugar do arquivo do Juarez Távora num pequeno avião quando foram comemorar a vitória da revolução no Rio; o arquivo perdeu-se para sempre); de 1932, quando foi preso de pijama antes do movimento estourar, graças à irresponsabilidade de Julio de Mesquita (sempre tão incensado no Estadão; enfim, o ser humano perfeito); e em 1935, na chamada Intentona Comunista. É história demais? É como dizia para mim Samuel Wainer, quando eu me retirava no meio das histórias que me contava: o que é isso, menino, não queres ouvir História do Brasil ao vivo?

29 de março de 2005

A MAJESTADE EM VISCONTI




Luchino Visconti filmou a decadência de um estilo de vida fundada no direito divino à majestade. Confundem essa catedral envolta na neblina com aristocracia, mas ela pode nascer do povo, como em TerraTrema, das posses e da riqueza, como em Il Gattoppardo, ou da virilidade ferida do proletariado e dos migrantes, como em Rocco e seus irmãos. A majestade encontra um limite, mas deixa os vestígios diante do nosso olhar demolido pela intervenção do Mestre. Estamos perdidos, nos diz ele. Mas antes disso, veja o que posso te mostrar. Numa de suas inúmeras obras-primas, Morte em Veneza, o que finda é a possibilidade de um resgate, de uma salvação. O professor que busca a cura vislumbra a redenção ao entregar-se à radicalidade das diferenças. Não é seu encantamento pela beleza adolescente que está em jogo, mas o limite que encontra na própria grandeza ao descobrir uma porta que o levará para outra vida, longe de suas rotinas, hábitos, percepções, relações. Os personagens de Visconti estão livres para chegar perto dessa porta, mas ela se fecha no último minuto e fica apenas a sinfonia plena de uma cultura que se despede, inadequada diante da realidade que joga o sonho na terra nua. É um cinema que jamais existiu fora desse diretor que nos olha com sua brutal indiferença, mas que nos carrega no colo de uma grandeza que nunca tivemos, mas que sempre, desesperadamente, quisemos encarnar.

BATISMO - De onde nasce essa grandeza? Dos romances inesquecíveis, da literatura genial e eterna de escritores sem igual. Vem da formação aprimorada em colégios seriíssimos, de professores exigentes e cultos. Vem das famílias que cultivavam a cultura. Vem das pressões de um tempo de guerra. Vem de inúmeros cruzamentos, das ciências humanas e exatas, vem das necessidades de espíritos livres, que dobraram o mercado impondo seus trabalhos. Tive o privilégio de ir, por um bom tempo, diariamente ao cinema e seguir todos os geniais cineastas que formaram minha cabeça e meu coração. Visconti é uma descoberta tardia, quando nem a tela pequena consegue diminuir seu gesto. Ver pela primeira vez Claudia Cardinale pelo rosto retorcido das mulheres invejosas e só depois impactar-se com sua aparição no castelo é um momento único do cinema. A dança de uma valsa com Burt Lancaster nos remete a uma certeza: esse cinema majestoso encontrou atores à altura, ou será que os atores ascenderam à genialidade quando foram focados por esse cinema? O que importa é que jamais teremos alguém como Burt e Claudia em cena, rodopiando para sempre no salão do nosso encantamento. Pelo menos nesta vida, nunca sofreremos tanto como em Rocco e a família que se estraçalha na grande cidade. É tão profundo esse cinema, que Glauber Rocha começou a partir dele, com seu Barravento colado a Terratrema. Visconti nos trouxe Glauber, e só isso já basta para colocá-lo entre nossos grandes inspiradores.

GROSSURA - O que temos hoje? Faça uma experiência e compre a Folha de sábado. Gosto de seguir as novidades do mundo literário na Ilustrada. Mas, estava lá. O novo livro do Cadão Volpato (!), o terceiro de mais um Titã (sempre tem um Titã no meio, seja livro, filme, música, história infantil, teatro) e o último de Paulo Coelho (que escreve suas obras em duas semanas, depois de dois anos de reflexão, uau). Na página de esportes, um cartola gordo ilustrava um título sobre bundões. Um colunista diz sobre o jogador Adriano: o sujeito parece um touro premiado. A maior parte dos textos são ilegíveis. Na página de ciência e tecnologia há a frase lapidar entre parênteses: os planetas extra-solares agradecem. Seja isso o que for. Há uma frase que em certa passagem chega a dizer: os efeitos gravitacionais deles sobre elas. Não há informação, há boutades, apelações, grossura e falta total de talento. Na mesma página dupla de Dinheiro, tem títulos com: diz especialista, diz analista e para fundo. Em toda edição, nenhuma migalha de uma reportagem. Por que os jornais vendem cada vez menos? Porque são mal escritos, mal intencionados e estão na mão de vigaristas iletrados, que expulsaram o talento das redações. Essa vigarice seleciona os amigos, os comparsas, os parceiros, e deixa de lado o que está se fazendo de sério no país.

HORROR - Felizmente MadMaria (ou A Vida Sexual de Tony Ramos) chega ao fim. Não deu audiência porque é ruim, não porque o BigBrother (bleargh!) atrapalhou. A única coisa que se salva é a Arósio, linda e talentosa como ninguém. Li e resenhei o romance de Marcio Souza, nos anos 80. É muito bom. A minissérie é uma droga, não porque tenha traído o livro, mas porque é ruim mesmo. Juca Oliveira está ótimo, mas quem agüenta a estética conservadora e retrógrada, como se Glauber Rocha, Nelson pereira dos Santos, Luis Sergio Person jamais tivessem existido. A TV brasileira se especializa em desconstruir todos os avanços da civilização brasileira. É por isso que a TV se dedica tanto ao chapéu americano de cow-boy, à babaquice dos noticiários, aos programas sem sentido, ao horror da mídia fajuta. Mas há exceções. O melhor repórter da TV atualmente é Edney Silvestre. Quero há tempos comentar uma matéria sua sobre gestos populares. A reportagem se desenrolava e de vez em quando dava um break reproduzindo pessoas do povo fazendo gestos. Uma beleza, de autoria desse jornalista de primeira água e excelente autor, como prova seu livro de entrevistas que tive a honra de produzir na W11 Editores. Existe coisa mais estúpida do que o livro dos recordes? Fulano bate o Record de cuspe à distância montado num camelo na Bessarábia Central, de costas.

ARREGLO - Passei a vida escutando que 1930 foi um arreglo das elites. Não foi. Teve ruptura, teve guerra, teve morte, teve tropas por todo o país lutando, com participação popular pesada (só no Rio Grande do Sul, cem mil voluntários se alistaram). A revolução de 1930 mudou o país para melhor. Já 1985 é o verdadeiro arreglo de elites. Oficializou o regime de 1964, instaurado por um golpe de estado de direita, aprofundou a entrega da soberania e anexou novos aliados, como a falsa esquerda democrática (FHC e seus banqueiros emergentes) e o lumpen proletariado, aquela porção sem ideologia e louca por ascensão social vinda das camadas populares (Lula).

26 de março de 2005

RECEITA PARA CHOCOLATE E VINHO




É simples: basta uma caixa velha de sapatos. Você recorta esse retângulo frágil ao meio com a tesoura, justapõe as metades e cerca as paredes do cubo que resulta dessa operação com papel celofane brilhante, finamente trabalhado, e colocado graças à força do grude, ou seja, farinha de trigo misturado com água. Finamente era modo de dizer. Bastava dar uns retalhos para inventar as franjas, picotar algum papel colorido para imitar a palha do ninho. A alça era mais complicada. Poderia ser também de papelão, mas o resultado ficava comprometido pela fragilidade. O certo era torcer um arame e também recobrir o arco com crepom colorido. Mas o sensacional não era o cesto, mas sim aguardar a chegada do Coelho. Colocávamos tudo na sala, como no Natal e varávamos a madrugada esperando. Mas, cansados, dormíamos antes que o milagre acontecesse. Só no dia seguinte, ele estava lá, explícito em enormes chocolates de farda vermelha com cintas amarelo ouro. Nunca escondemos cesto algum, como é costume, a não ser uma vez, em que, claro, fui o último a descobrir onde estava o meu (bem no meio do galpão, embaixo de uma caixa de madeira). Talvez tenha sido aí minha última Páscoa.

VINHOS - Hoje a infância faz parte do mundo adulto, ou vice-versa. Crianças tentam falar como gente grande, principalmente nos comerciais. Quando eu era muito pequeno, tínhamos nosso mundo à parte. Construímos um rancho de tábua no fundo do quintal, o qual apelidamos de CTG (Centro de Tradições Gaúchas) Os Gaudérios. Lá fazíamos churrascos no inverno, aos domingos, às sete da manhã, depois de acompanharmos a mãe na missa das seis (quando ainda estava muito escuro). O pai cedia uma de suas valiosas garrafas do importado alemão Liebfraumilk (Leite de Mulher Amada, como fazia questão de traduzir). Os adultos eram convidados e adoravam. Cada um tomava um pouco do vinho. Frio de rachar, carne assada com vinho mal nascia o sol de domingo. Isso realmente aconteceu? A proximidade com a Argentina nos franqueava grandes marcas, a começar pelo legítimo White Horse ( o Cavalinho Branco, claro), com gosto e cheiro de malte que nunca mais encontrei em scotch algum. Meu primeiro porre, aos 14 anos, foi em casa, com essa bebida, sorvida em altos copos de cristal com marcas das doses, que minha mãe guardava zelosamente na cristaleira. No verão, meu pai colocava a cadeira preguiçosa na calçada, o copo de Cavalinho Branco no chão (duas doses no máximo em algumas noites) e ficava tomando a fresca, sendo cumprimentado pelos passantes. Odiava bêbados. Detestava cachaça. Nos últimos dez anos de sua vida, dedicou-se ao vinho chileno, que ele definia como muito melhor do que o francês (não teve sorte, talvez, com as garrafas francesas a que teve acesso). Nas pescarias, a cerveja bem gelada era só para acompanhar o peixe frito e salgado. Acampamento era para a pesca, nunca para a bebedeira.

ALELUIA ? Só comíamos chocolate no domingo de Páscoa. O sábado era para bater no côco alheio e gritar aleluia!, brincadeira estúpida, mas tradicional na minha terra, naqueles tempos. A cabeça raspada se prestava a esse tipo de sacanagem. O cabelo era exclusividade dos adultos. Os meninos tinham a cabeça pelada, no máximo com um topete na frente, feito o Ronaldinho na última Copa. Depois cortávamos o corte reco, de soldado raso, que exibia vasta protuberância no alto da cabeça sem nenhum fio (daí vinha o tabefe dos prevalecidos, que adoravam bater nos menores). Aos 13 anos, era permitido fazer o meio-corte. Meu primeiro meio-corte (em que se deixava coberto o cocoruto e o cabelo vinha até a metade da cabeça, ou seja, o raspagem atingia até a altura das orelhas, no máximo) foi no barbeiro da esquina, ex-combatente da Segunda Guerra. Ele levantava a barra da calça e mostrava sua perna totalmente queimada por um lança-chamas no combate de Monte Castelo. Tínhamos ex-combatentes naquela época, ex-guerreiros, gente de paz que lutou no front. Era um privilégio de países soberanos e sérios. Havia orgulho nos veteranos que participaram das inúmeras guerras (1924, 1930, 1932, 1944). Jamais estudávamos qualquer uma delas. Líamos sobre os romanos e os gregos e os holandeses no Nordeste, jamais na visita do Conde D?Eu a Uruguaiana, que no seu livro Viagem ao Rio Grande do Sul (Editoras Itatiaia/USP) descreve com minúcias sua chegada ao campo de batalha, o cerco à cidade, na guerra do Paraguai, com destaque para a paisagem do Toro Passo. Nunca tínhamos lido Monteiro Lobato comentando André Rebouças, que no seu diário descreveu a tomada de Uruguaiana. Nada sabíamos de Honório de Lemos, a não ser algumas anedotas. A guerra não fazia parte dos livros que nos cercavam. Ela estava nas pessoas, nas posturas, nas narrativas. Fazemos parte dessa raça orgulhosa de leões. Quem poderá conosco? (faço aqui uma paráfrase de célebre texto de Coelho Neto ao comentar o raid sobre Copacabana pelos combatentes de 1922).

RETORNO - Neste domingo, o caderno Donna do Diário Catarinense publica minha crônica Leitura de Elevador (com belíssima ilustração de Samuel Casal), que faz parte da seleção canarinho desta minha faina diária que é escrever.

25 de março de 2005

ÁGUAS DO SÃO FRANCISCO




Quando a mídia em massa incensava o Brasil por participar do buraco sem fundo do Haiti (lembram daquelas materinhas que mostravam o lado humano da ação militar? sem falar nos enviados especiais, cheios de boa-fé em relação ao imbroglio), o Diário da Fonte denunciou a furada em que o país se metia, fruto da arrogância do seu governo, que quer, a qualquer preço, participar do Conselho de Segurança da ONU (o Lula faz qualquer negócio para ficar na História; ficará, mas não do jeito que gostaria). O conflito sangrento internacional comandado pelos Estados Unidos mostra sua cara no Haiti graças a relatório sobre Direitos Humanos no país conflagrado do Caribe onde, diz o texto, a participação brasileira é conivente com a brutalidade local. Agora é a vez das águas do São Francisco: no momento em que nosso bolso cacifa a milionária campanha a favor do desvio de parte do rio para o semi-árido, o DF pergunta: dá para confiar num projeto que arranca o sorrisinho elvispresley do Ciro Gomes, que ficou 15 longos minutos na TV em cadeia nacional para dizer como vão acabar com a seca nordestina à custa do equilíbrio hidrográfico brasileiro?

CAMPANHA - Sorrisinho elvispresley é aquele que puxa o canto da boca de maneira pretensamente cool e que faz a delícia de imbecis como o Datena. O próprio Elvis uma vez comentou que passou vinte anos forçado a fazer o sorrisinho porque os produtores achavam que isso era o máximo. Pois toda a campanha a favor do desvio das águas é em cima do diferencial deste governo em relação a todos os outros (daí o sorrisinho, pretensamente superior do Ciro). Não fazem nada há 150 anos, diz a propaganda oficial e agora então vão acabar com a seca. Antes de tudo: o velho Chico está morrendo, como prova inúmeras reportagens sobre o pouco caso com que a mentalidade extrativista trata o rio. Não existe um projeto para salvar o rio porque isso significaria muito trabalho e o que mais falta neste governo, coragem (vejam como o Lula é engraçadinho diante do assassino Ruinsfeld, o cara que mata adoidado no Iraque e vem aqui, na maior cara de pau, falar dos fuzis comprados pelo idiota do Chavez; que moral tem os americanos de falar em armas, eles que possuem arsenal para acabar com o mundo várias vezes?) No lugar de salvar o rio, querem arruiná-lo, extraindo seu sangue em função de um ato criminoso e demagogo.

CORONEL - Quanto custa essa campanha para os cofres da nação? Por que, no lugar de gastar milhões em propaganda, não fazem um trabalho de recuperação do rio? Porque isso seria uma ação silenciosa e não distribuiria a renda via mercado publicitário. Por que não peitam o latifúndio nordestino e fazem um trabalho de reformulação total no semi-árido? Porque o Lula quer ser latifundiário. É por isso que ele gosta tanto do Ratinho (dono de vastos latifúndios), do Di Camargo e Luciano (a voz berrante dos donos da terra). Lula quer ser coronel nordestino e ao mesmo tempo faz força para ficar na História, que nem o FHC, que entregou o país e hoje posa de Abrahão Lincoln. Jamais chegarão aos pés do estadista que fica na História de verdade, Getúlio Vargas, que tem seu espólio disputado por dois partidos, apesar de os coveiros do trabalhismo se locupletarem em análises asnáticas. Vocês viram o troglodita que faz o papel do personagem Emprego na TV, dizendo que está na área novamente? Essa propaganda mentirosa, populista, cretina, impera na mídia enquanto o subemprego desmoraliza a população e o desemprego a aniquila. O país está entregue à sanha dos bandidos, que trabalham como vasos comunicantes: os poderes completam o trabalho dos criminosos e vice-versa.

LOTERIA - O Brasil não tem saúde pública. Milhares de infectados com o mal de Chagas por que? Porque o negócio é extrair o caldo do cana e foda-se o resto (assim como o negócio é extrair a água do São Francisco, esteja ela morrendo ou não). Não há esgoto suficiente por que? Porque o saneamento básico precisa do dinheiro que é desviado para a publicidade oficial. O que dizem os seqüestradores para suas vítimas, conforme depoimento visto na TV? Que não suportam mais essa vida e por isso jogam sem piedade o jogo da vida e da morte. Isso justifica o crime? Não, mas ajuda a explicar. O Brasil agora é o case do mundo. Todos se enganam achando que aqui temos um povo feliz, cheio de mulheres gostosas para dar. Temos um povo sofrido, com mulheres com tripla jornada de trabalho. O desencanto e o desamor grassam como ervas daninhas. A frustração, a morte e a fuga destroem as esperanças. Na novela América, o que se destaca atualmente são vários grupos de peruas e peruinhas caçando macho. Parece que esse é o jogo que a TV quer para o povo brasileiro. Vão dar adoidado, gravidez, o que é isso? Deixem de bobagem, fiquem disputando o galinhão americano, o peão bem sucedido, o pai de família rico. Disputem machos nos dados, diz a novela. América implodiu antes do tempo. O único sonho possível nesse universo é conseguir grana para sobreviver. Isso não é sonho, é necessidade básica. Assim como o sonho da casa própria. Casa é direito, não é sonho. Sonho é outra coisa. Imagino que o Brasil é o único país em que as pessoas sonham em ganhar na loteria para ter uma chance de ficar vivo.

24 de março de 2005

PEGADA

PEGADA

Nei Duclós

Sou folha no ar
não faço alarde
Grito uma vez
depois me calo

Voz de ninguém
tombo de orvalho

Sou fole de mar
eco de praia
Vento alto
na noite solar

Luz de nenhum
lugar
Sou louco luar
de torna-viagem
sopro mortal
silêncio amargo

Trouxe o bolso cheio de balas
Pólvora do coração ao largo
Volta, que eu entendi a rosa
Fica, antes que eu te estrague

RETORNO - Este mais um poema do Partimos de Manhã, livro que já tarda. Ei editores: tem alguém aí?

23 de março de 2005

ARMAS NO QUARTO DE DESPEJO




Espingardas de dois canos, revólveres, pistolas, pentes de balas, cartuchos sempre existiram na minha casa, estocados num quarto especial, o de badulaques. Jamais foram usados contra ninguém. Era armas de caça, de tiro ao alvo, de comemorações quando havia necessidade (como a passagem do ano novo). A gurizada aprendia cedo a atirar. Gastei muito tiro de repetição das automáticas em caixas velhas de goiabada, nas pescarias. Raramente acertava o alvo. Nas caçadas de perdiz, meu pai gostava de oferecer o bicho bem perto, no chão, de bandeja, como dizia. Era preciso acertar na cabeça para não estragar o almoço. Havia também longas sessões de carregamentos de cartuchos, feitos minuciosamente com bucha, chumbo e pólvora. Ninguém saiu atirando dali. Quando parte minha geração optou pela luta armada, eu sabia do que se tratava. Falei: conheço as armas, quero distância delas. Não vou usar o que aprendi na infância para atirar em gente. A guerrilha foi uma furada, mas meu pai, caçador que nos ensinou a respeitar a artilharia, continua na minha memória como um exemplo.

INERMES - A palavra inerme aparece muito na literatura de memórias dos militares, acervo no qual mergulhei por vinte anos, fascinado pelas histórias e pela proximidade com o ethos paterno. Descobri o senhor Elo Ortiz Duclós ali, conversando, participando de guerras (foi da Brigada Militar do Rio Grande do Sul), resgatando personagens. Inerme quer dizer desarmado. É o que somos hoje, uma população inerme (que rima com verme, que lembra imóvel, parado, sem forças nem resistência). Não reajam, nos ensinam, e lá vamos em massa para o matadouro. Num dos livros que li sobre a revolução de 1924, está descrita a cena magnífica de um tremor de terra em São Paulo. O barulhão provocado pelo evento fez com que os moradores da cidade saíssem atirando a esmo, pois acreditava-se em alguma investida dos muitos inimigos à espreita. Era uma época, como a nossa, de bandidagem, e oposta à nossa, de revolução. Não existe mais revolução porque acabaram-se os revolucionários. Foram todos mamar no Planalto e franzir o nariz para mostrar como são tigrões diante das câmaras do Jornal Nacional. Pegaram em armas só para fazer durar eternamente a ditadura que nos consome. Justificaram a repressão e depois aderiram aos inimigos ao entrar no jogo do poder. Fingiram que se revoltavam, mas no fundo queriam as mordomias do poder, para poder chorar de emoção em visitas oficiais a Havana. Lambem botas em Washington, onde garantem que são bons meninos e vão nos arrochar até o osso para que tudo continue a mesma coisa. Agora vão assinar a lei do abate, que reforça nosso papel de paga-pau do império que quer conflagar totalmente o continente sul-americano. Veja qualquer cena de qualquer filme americano hoje: o Mal está armado, torturando e matando. Enquanto nós, espectadores inermes, estamos à mercê da bandidagem e tendo como único e grande apoio, Deus. Enquanto isso, a extrema direita, que continua no poder de fato, afia as garras para voltar ao governo.

REFORMA - Não entendo a reforma ministerial. Estão negociando cargos, ou seja, verbas. Quem vai pegar o butim aonde. Aí essa excrescência que é o Severino (que a mídia adora, enfim encontraram o seu Ratinho no Congresso) vem a púlpito para ameaçar, pois quer uma porção para seu partido. Os jornalistas ficam semanas, meses, fazendo matéria sobre o assunto, quando deveriam denunciar a grande porcaria que é isso. Um ministério deve ter comando técnico. O que um político vai fazer na Educação, na Comunicação, nos Transportes a não ser exercer seu domínio sobre a verba disponível? (um americano descobriu que tomar posse é uma expressão essencialmente brasileira). Os ministérios deveriam ser geridos pelos técnicos, que implantariam projetos votados publicamente. Saneamento básico, salvação da rede rodoviária e criação de vasta, extensa e moderníssima malha ferroviária deveriam ser prioridades. Outra: construção ou reforma de prédios escolares da educação pública. Mais uma: disponibilização de sistemas completos de televisão e banda larga para Internet para toda a população, em todo o território nacional. São coisas simples como idéia, e complexos operacionalmente, que precisam de grandes recursos e gente capacitada. Mas ficam perdendo tempo com gracinhas diante das televisões, comemorando os vinte danos de democracia (quá, quá, quá), um regime espúrio abençoado pelo Jarbas Passarinho e o José Sarney na sua origem, e que nada mais é do que a consolidação do regime autoritário e ditatorial de 1964. Regime do qual usufruem todos os inimigos do trabalhismo. Dá vontade de dizer: chumbo grosso neles. Ou será que existe prazer coletivo em ficar vendo os falsos menores matando e se drogando em horário nobre, debochando da nossa enorme incapacidade de nos governar com o mínimo de eficiência? Ei, inermes, estamos cheirando agora para depois ir atrás de você e sua família!

CAÇA - Finalmente a perdiz, entocado pelo cachorro, levanta vôo no pampa. Meu pai mira a arma 32, de tiro mais leve, melhor do que a calibre 12, que é para matar capincho. Está de chapéu de feltro, casaco, calça posta nas botas encharcadas de barro. O cão ainda está estático. O caçador segue o vôo com a mira. O cano obedece a ondulação suave da ave em fuga. O tiro seco então ecoa no campo. O baque surdo do pássaro no chão desencadeia a trilha nas patas afiadas de Pingo, o cão ensinado. Meu pai acertou em pleno vôo.O matraquear da perdiz sucumbiu diante do rei daquelas terras. Dentro do carro, de olhar cruzando o vidro, meu coração aos pulos grita: Matoou? Matoou? Meu pai volta seu olhar profundo em minha direção. Ele sorri. A arma fumegando descansa em seu braço. A outra mão segura mais um cartucho. Uma grande nuvem azul, chumbada pela luz do entardecer, toma conta da paisagem. O carro fica estacionado no acostamento, na curva da carreteira. Pingo late para Deus, que está a cavalo.

22 de março de 2005

O JOGO ANTES DO ÚLTIMO VÔO




Escutas coisas insuportáveis. São os outros que emitem sons, na sua faina de arrebentar teu dia. És um bom carregador de lixo, dizem, falta muito para chegares a um tratorista de represa. Lave infinitamente esse canto sujo, meu caro, quem sabe desamarro essa caratonha feroz. Serás feliz por alguns segundos, te entregarás a teus devaneios? Pois então tenho algo a te dizer: aquilo que esperávamos acontecer, desaconteceu. Pior: desencadeou a fúria do tempo. Levante daí e venha repartir meu inferno, pois disso eu preciso mais do que tudo. Falas com entusiasmo de algo? Deixa que eu diga coisas no mesmo tom, ao mesmo tempo, para que sufoque teu quarto crescente, para que não chegues à lua cheia. Por que faço isso? Por prazer e medo. Não quero que vivas, poderei sucumbir se te deres bem. Vamos jogar o jogo? Fecharei a cara até caíres no chão. Tente contar as estrelas, tente. E nem pense em ficar mal. Ficarei pior, para que me atendas.

SAPATOS - Não fique tão desesperançado. Seja zen, não reclame, isso é coisa de pobre. Quem se importa? A oposição morreu. Restamos na maré alta do consumo, como vagalumes de barro, a tatear no escuro. Tudo é presente, previsível. A dor, o sofrimento, passam. Fica esse rescaldo de guarda-chuva na boca, esse porre pelo avesso, essas palavras podres. Tens tempo para ficar vendo algo que se move à tua frente? Jogarei todos os slogans do mundo, até ficares exausto. Depois, quando meus emissários souberem que estarás dormindo cheio de pesadelos, eu colocarei no vídeo morto uma obra-prima, que guardo num baú de ossos, só para te aporrinhar. Nessa faina tenho o apoio de todos os monstros existentes, que se travestiram com ternos dourados, gravatas brilhantes, cabelos salientes, óculos da moda, relógios que funcionam até em Marte, sapatos italianos, , micos de Madagascar, canetas de madrepérola. Todos estão milionários com suas satisfações em dia. Só tu desces os degraus da miséria porque foste torpe, insististe nesta doença infantil da poesia, resolveste virar o que sonhaste um dia. Que idiota. Essa performance já foi chupada pelos vampiros que aspiram a ser o que sempre foste, mas não te deixam ser. Então temos clones de ti, a pairar no ar como mariposas do mal. Quem é você? O único que jamais poderá ser, sob pena de eliminar todos os outros. Calce então teus coturnos, verifique a mochila, saia para a estrada. Veja o caminhão chegando carregado de soja. Estás com o dedo esticado, o cabelo ainda molhado do último banho. No volante, alguém mira uma espingarda. Já viste esse filme e no fim, levantas da cadeira.

BANDEIRA - Aquela pessoa faz que te escuta, mira para bem dentro dos teus olhos, chega a cruzar os braços para dar descanso ao corpo. A cabeça está fixa, toda a atenção voltada para ti. Mas ela quer falar é de suas próprias coisas, nem sabe o que estás dizendo. Basta você respirar um pouco mais fundo e ela vai retomar a conversa do ponto em que deixou. Estavas o tempo todo iludido que conversavam, mas és apenas o espectador dioturno, farto de tantas queixas, mas ainda vivo, como um tamanduá agredido no asfalto que perde a perna, o bico, mas arrasta sua bandeira até o formigueiro mais próximo. Estás em extinção, meu camarada. Ninguém mais te chama de amigo, ninguém quer te ver, ouvir, suportar. Então calças teus coturnos, apertas bem o nó que prende o couro à tua perna cheia de irritações na pele. A calça jeans voltou a ser fina, leve, grudada no corpo. Caminhas ao som de guitarras mortas, que gemem blues no Outro Lado. O mundo acabou há muito tempo e sobrevives como alguém prestes a ser enquadrado em alguma gaveta conceitual, familiar, literária. Não tens existência, meu camarada. Sabes carregar uma lata de lixo, mas não engatas a primeira no trator que procura a ametista na mina. Veja quem chega de todo o lado da estrada. São aqueles que um dia abandonaram teu sonho. Eles voltaram, fazendo rugir o horizonte. Tens companhia, meu camarada. Acabaram-se as súplicas. Engatilhas a espingarda. Nenhuma ave deixará de tremer diante da tua pontaria.

21 de março de 2005

PALAVRAS COM PODER




Assim como não existe um John Ford "menor", não pode existir jamais um Inácio Araújo maior. Habituado ao próprio estilo, o crítico da Folha usou essa expressão, na sua coluneta da Ilustrada de domingo, para divulgar O Aventureiro do Pacífico, que Ford filmou com John Wayne em forma de comédia romântica e de costumes, mas que no fundo é uma trama complicada que tenta dar um perfil aos conflitos entre os povos depois da segunda guerra mundial. Tudo encanta em Ford, cineasta sempre maior, hoje confinado ao Programador do Traço, essa invenção sinistra da televisão brasileira, que decide apresentar filmes importantes depois que todo mundo desiste e vai dormir. Ford deveria ser obrigatório, diário, apresentado em horário nobre. E não um refém da nossa insônia, retalhado pela publicidade criminosa, a mesma que impera impunemente em todas as mídias, para desespero espiritual do povo que a sustenta.

SAGRADO - Do que trata O Aventureiro do Pacífico? Um grupo de americanos decide ficar numa ilha da Polinésia, que conquistou aos japoneses com a ajuda da população local. O convívio entre as diferenças é o que dá o tom do filme, apesar da maneira caricata com que é apresentada essa diversidade. Faz parte da cultura americana, a de reduzir o comportamento alheio a alguns gestos de subserviência. Lá estão as domésticas japonesas servindo ao patrão americano, os chineses broncos que tentam jogar no caça-níquel estragado, as nativas se oferecendo aos machões gringos. Mas isso é John Ford ou simplesmente América? Prefiro achar que Ford obedece ao cânone godardiano de que o cinema é a verdade 24 vezes por segundo, mesmo que, nele, essa verdade seja apresentada sempre pelo mito, ou pela versão artística. Ford é o respeito ao sagrado, representado pela devoção à rainha morta e sua legítima descendência, fonte de estabilidade e da paz na diferença; é o destaque à tolerância, representado pelos filhos mestiços, pelo governador negro latino, pelo guarda irlandês bêbado; é a preferência à representação do conflito em detrimento de coisa muito pior, a guerra, como provam as cenas de sua especialidade, as brigas de bar. O que faz a trama andar é a chegada da americana afetada de Boston, solteira, que acaba conquistando e sendo conquistada pelo celibatário John Wayne. A seqüência final, em que Wayne finge dar uma surra na amada, que se entrega aos seus encantos, culmina com o machão carregando as malas em direção à nova casa, numa referência óbvia à mútua concessão que todo casal faz ao abraçar o casamento. Você pode pegar cada detalhe desses e desancar Ford, mas se enxergar o conjunto, a obra magnífica que é esse filme, como todos os outros que o grande cineasta fez, verá que o cinema já teve sua época de esplendor, quando havia alegria em ver e quando os princípios (amor, amizade, paz, sinceridade, luta, respeito) nos eram apresentados em forma de arte. Cinema é civilização e sua decadência define o atual estágio de miséria a que estamos submetidos.

ZERO - A televisão brasileira zera a cidadania a cada fim de semana. A mediocridade triunfante e assassina, que coloca o microfone por horas na boca de imbecis; os filmecos bandidos, repetidos à exaustão nos melhores horários; a apelação ao Falso Bem, onde travecos dão aulas de moral, médicos comerciantes nos assustam com doenças crônicas, pastores evangélicos destilam sua baba, e palavras horrendas nos perseguem por todos os cantos, como a cerveja oficial do nananana, ou ser redondo é ser do bem. Sem falar no Faustão asqueroso. Por que me insurjo contra isso? Porque a TV aberta é a única coisa que a população brasileira dispõe. A TV cabo (que é outra choldra, cheia de propaganda e repetições) é para um minoria. Existem vastas porções do território em que se pega um ou no máximo dois canais. Ou seja, o que você evita com seu zap pagando cem paus ao mês é o pesadelo do povo inerme (desarmado) diante da bandidagem. Depois de tantos atentados, o cidadão brasileiro zerado acorda na segunda-feira sem nenhuma força, mas precisa sobreviver. Antes de ver onde pôs o chinelo, pergunta pela sua auto-estima. Foi-se pelo ralo. Somos, como prova a TV, gentinha, à disposição dos faustões, bigbrothers, gugus, hucks, raul gils da vida. O que pode nos salvar são as palavras com poder. Descubra quais são.

20 de março de 2005

LEITURA DINÂMICA



No domingão da mídia impressa, Dorrit Harrazim mostra, no Globo, como ensinou Elio Gaspari a escrever. Sua narrativa sobre o brasileiro Junior, que enfrentou julgamento nos Estados Unidos por estupro e foi absolvido, resgata a idéia perdida de reportagem. O assassinato de líderes comunitários em Curitiba pelo desplante explícito do narcotráfico também é outro excelente texto de O Globo, o melhor jornal do país, como me lembrou recentemente, numa conversa na última das redações, o jovem talento Wendel Martins (que daqui a pouco estoura na imprensa no Rio ou São Paulo, além de prometer uma obrigatória sacudida com seu futuro livro sobre Anselmo Duarte). A novela América, por estar sendo perseguida, me afiou os sentidos e descubro algumas coisas que minha má vontade nunca deixa transparecer. Uma delas é a cena em que o amor eterno se manifesta no segundo encontro casual. Graças aos atores, à direção, sei lá, o flagrante sem texto é de uma Débora Secco inconformada ao ver sua paixão, o concentrado Murilo Benício, cercado pelas peãozetes. E o pobre do peão desconfortável com a situação absurda, pois nem sequer tinham se declarado ainda.

AMÉRICA - Malhar novela das nove da Globo virou esporte nacional. Mas cada trabalho precisa ser visto com os olhos livres. A polêmica sobre os animais torturados em rodeio é fruto do oportunismo, pois esse tipo de evento cresceu com todas as honras no Brasil e jamais foi contestado. Agora a novela mostra e, pronto, vira caso de polícia. Coincide com a eterna luta contra a Farra do Boi aqui em Santa Catarina. É uma bobagem sem fim. Existe maior farra do boi do que aquela dos touros soltos em Pamplona, na Espanha? É uma farra do boi idêntica a que temos aqui. Soltam o boi para o povo fugir dele. É uma tourada popular, que nenhuma campanha erradica. Nunca soube de judiação do boi depois da farra. O boi persegue os participantes e depois é sacrificado. É o mesmo que acontece em qualquer tourada. Muito mais violência existe nos estádios de futebol, onde meia dúzia de bandidos surram sem piedade quem estiver na frente e matam quando acham necessário. O problema da novela América não está no rodeio, mas na sucessão de conflitos toscos. A esposa cleptomaníaca, a perua enfastiada, o rico que tem amante, o ambicioso latifundiário, o sonho como fuga da realidade, tudo isso faz parte de um acervo intragável, mas nem tudo está perdido. É preciso deixar que a trama corra solta antes de fazer crítica. O que me agrada é Murilo Benício, que rema na contramão dos canastrões da Globo, ao ser contido, e por isso tem sido achincalhado pelo José Simão, que já achou tudo uma merda. O ator que faz o policial aposentado é também uma caricatura que aspira à antologia, de tão bem feita que é sua atuação (daqui a pouco todo mundo vai saber o nome dele). Nívea Maria surpreende na periferia da trama e Francisco Cuoco mantém-se refém da respiração. A sorte de América é que não tem nem Tony Ramos (horroroso, como sempre, em Madmaria), nem Antonio Fagundes (o eterno papo-anjo pretensioso). Débora Secco precisa parar de respirar tão profundamente e encontrar outra solução para tornar seu personagem marcante. Faça como Murilo Benício: ofereça apenas seu olhar, seu olhar.

MEDICINA - O outono perdeu sua capacidade de misturar eventos, fazer suco de temperatura amena com brisa ou friozinho leve. O que temos é uma estação em ruínas. O sufoco do verão continua, mas sopra um ventinho gelado que te gripa até a alma, por semanas. Voltei aos médicos, depois de alguns anos de desencanto. Continuam iguais. Não sabem nada em sua maioria e te destratam, te culpam pela doença e ainda te dão ultimatos. Mais uns 15 anos de vida, me disse um, sorrindo o riso dos morcegos. A vida é infinita e jamais morremos, essa é a verdade. Algo pode nos levar para o outro lado e isso deve ter um sentido. Acho que é para puxar as pernas dos médicos cretinos, que erram diagnósticos porque jamais prestam atenção em ti. Mas existem exceções. Conheci alguns gênios da medicina, pessoas maravilhosas na sua simplicidade espiritual, generosas no seu olhar protetor, que me salvaram a vida várias vezes. Mas o que temos no geral é um monte de gente sem noção vestindo jaleco e te chamando de velho e obeso. Galã e guri, sempre saio furioso dessas consultas.

16 de março de 2005

A IMPLOSÃO DO CENÁRIO

"Longe do Paraíso" é uma exposição de pintura em busca da divindade

Nei Duclós

Não existe reconstituição de época. O que existe é a disposição de elementos do cenário em função da narrativa. "Longe do Paraíso", de Todd Haynes, é a composição de um ambiente que implode ao fazer o cruzamento com seu oposto. A dona de casa que serve de modelo para a publicidade e confunde seu vestido com as cores da parede descobre que está prisioneira de lustres, bibelôs, sofás e cortinas. O arco que a sustenta, o marido, abdicou da sua função, sufocado pela cela construída como um evento social.

Ao refugiar-se no jardim, para expressar sua dor, ela é capaz de seduzir-se por um cenário diferente, que começa nas folhas do outono e deságua na dança enfumaçada de um bar da periferia. Sua busca da salvação está definida na opinião do seu jardineiro, que enxerga a divindade na arte moderna - vista aqui como transgressão do cenário. Enquanto as pessoas "normais" confessam seu desagrado por Miró e invocam Michelangelo parta justificar seu preconceito, ela descobre que Deus pode também estar fora da arte clássica.

O lugar onde ela habita, que era uno graças ao hábito e o olhar contaminado pelo Mesmo, dissolve-se junto com o casamento. Primeiro, os elementos que eram poucos multiplicam-se, como uma revelação do olhar abismado pela surpresa e a descoberta. Depois, impedida de assimilar tudo o que acumulou e de partir para o lugar que descobriu, seu mundo desmorona e o que era diverso torna-se azul, ocre, quase sépia. A felicidade,que era a harmonia da repetição dentro da diversidade das cores e formas, é substituída pelo sofrimento, que é o cenário múltiplo virando uma grande e única massa espessa. A possibilidade do amor é representada pelo lenço lilás, aquele que voou por cima do telhado e foi encontrado pelo Outro.

O marido que procura libertar-se do casamento que entronizou o Mesmo, foge para o Outro que é sua imagem no espelho. O marido perde a luta contra o cenário e dele se retira para continuar com sua maldição. Ela entrega-se à luz que as flores brancas acenam como uma trégua.

O amor inter-étnico e o homossexualismo são apenas as formas de rupturas de cenários hegemônicos. Quando a vida é composta de objetos que ditam os destinos, a transgressão é a única saída para o que é humano. Mesmo que essa ruptura seja involuntária, de seres colocados contra a parede, fica evidente que o drama é render-se ao pincel que determina os papéis e que a emoção verdadeira é a viagem em direção ao oculto e desconhecido - o bairro negro, a estrada de ferro, a música que sugere o desespero e que não faz parte da falsidade representada pelas imagens. A verdade surge num flagrante no escuro, numa dança acanhada, numa visita noturna. O amor que escapou do cotidiano assoma na despedida e dissolve o horror da repressão, exercida pela tocaia de quem faz parte do cenário de badulaques efêmeros.

. O cinema existe em função do que lhe escapa. Por mais objetos que componham sua trama, por mais personagens que o povoem, por mais emoção que desperte, ele só se revela inteiramente quando a palavra soa depois que o filme acaba. A palavra sobre o filme é o sonho marginal do cineasta que pinta um afresco como um Mestre insuperável. Mas ela se revela só quando levantamos da cadeira, quando perdemos enfim o filme todo para reencontrá-lo, inteiro, num texto insolúvel.

RETORNO - Uma gripe que não vai embora, um dinheiro que não chega, um verão que se apressa em nos deixar, umas palavras que não descem, um país que não anda, uma vida que não desata: tudo conspira para a não renovação das edições do DF. Mas hoje republico texto-base do meu futuro livro (futuro, mas já escrito) sobre cinema.

12 de março de 2005

HORÁRIO NOBRE É HORÁRIO POLÍTICO



Nesta quinta-feira fomos brindados com a presença firme e solidária de Leonel Brizola na televisão, transformado em bandeira do PDT, que se apresentou por 15 minutos em cadeia nacional como partido coerente e em ascensão. Gostei do programa, especialmente do Carlos Luppi, que o apresentou. Mas era dispensável ficar fazendo propaganda da expansão das exportações, obra dos governos FHC e Lula. Elogiar o fato de exportarmos proteína para os países ricos é de uma contradição sem fim. O agronegócio bem sucedido só se justifica se for para alimentar o povo brasileiro. Senão é apenas especulação e lucro e beneficia a poucos. Logo depois o horário político continuou, com a voz do dono, o Jornal Nacional, expondo o cinismo de José Dirceu e o ministro Palocci, defendendo o aumento da carga tributária na maior cara de pau, diante de vários empresários importantes, que escutaram quietos (pelo menos é o que se viu no JN). Recebo a bela Revista da Indústria, de visual editado por Luiz de Moraes, que traz a chamada A gota d?água sobre a medida provisória 232 que intensifica o arrocho tributário. Não adianta nada. Eles fazem o que querem.

INSONDÁVEL - Brizola mostra-se fatalista diante do que ele chama de o insondável do processo social, ou seja, as eleições de nulidades para a presidência da República no lugar dele, o legítimo candidato ao cargo (legítimo porque iria resgatar o que foi interrompido pelo golpe de 64, o trabalhista reformista). Ele acha (sempre vejo Brizola no presente) que deveríamos passar por toda essa bandalheira porque assim o povo quis e isso não se explica. O que ele poderia fazer? Foi destruído no processo político de terra arrasada a que todos fomos submetidos, com uma sucessão de discursos que disseminaram certezas como o avanço do neoliberalismo, a necessidade de ter um ex-operário na chefia do governo, a irreversibilidade da submissão à pirataria financeira, e outros mimos, todos aplaudidos de pé pelos colunistas de economia e política, com honrosas exceções. A mídia adora o poder e adota a cara de advertência para ensinar ao povo como deve se comportar. Depois que o horror se manifesta em miséria e mais violência, eles mudam de conversa para continuar pontificando. Carreiras longevas se fizeram com esse tipo de expediente. Serve para o colunismo político e econômico o mesmo que o professor Nicolau Sevcenko disse dos apresentadores da TV: eu era criança, disse ele em aula, e as estrelas da TV eram Silvio Santos e Hebe Camargo. Hoje sou quase um ancião, e eles continuam lá, firmes. De minha parte, conheci alguns deles. São graníticos em suas lógicas mutantes (conforme gira a grana), soberbos em seu capital simbólico (trata-se de os reis da cocada preta do jornalismo pátrio) e imexíveis em suas posições de privilégio (enquanto o resto da redação, em eterno rodízio, pasta).

RETORNO - Está difícil postar. Insondáveis copmandos tomam conta do blog. O Diário da Fonte continua, apesar de tudo. Aos poucos tudo voltará ao normal. Quis escrever aqui sobre o fim do verão, mas algo não deixou. Paciência. Me escrevam.

VERÃO - A estação criança se despede com dias ainda muito quentes, pouca gente na praia. Às vezes roça aquele frio assustador

10 de março de 2005

FALTA COM BARREIRA, A CIÊNCIA INEXATA






É complicado. A barreira serve para tirar a visão da bola, para quem defende, e do gol, para quem bate. Como não é possível enxergar o objetivo, tudo depende de cálculo, talento e imaginação. Rogério, do São Paulo, por estar escolado nos dois lados da barreira, sabe o que um goleiro pensa quando ouve o baque surdo da chuteira. A barreira fica a meio caminho entre o artilheiro e o arco. O goleiro não pode confiar na visão, esperar para ver de onde vem a bola, pois será tarde demais. Precisa se antecipar, pensar junto. Nesta quarta-feira, Rogério chutou por elevação, em curva. É quando o chute sugere uma trajetória e toma outra direção, graças à forma com que o batedor define o chute. A região do pé escolhida, o leve roçar para criar efeito, a firmeza do gesto, a energia cinética criada pelo pensamento (que se reflete no chute), tudo isso define uma falta com barreira. Mas nem Rogério nem o São Paulo foram as estrelas da noite. Brilhou o time do Cianorte, que aplicou uma lição ao Corinthians de Passarrola, onde se sobressai Tosquito Tevez, a aparição mais sinistra dos nossos gramados, pelo dinheiro que custou, pelo que representa (a entrega do patrimônio nacional a máfias estrangeiras) e pelos resultados que consegue.


BICICLETA - Sei da existência de Cianorte desde os anos 60. Era uma das daquelas ruas que cruzamos em direção a Goioerê, ficava naquela região onde só tinha mato e barro vermelho. Cidades recentes, que dão banho de crescimento, são a resposta brasileira à falta de políticas públicas. O Brasil é feito assim, na marra, por gente que se enfurna no nada por gerações e faz brotar, do fundo do ermo, uma civilização. O time de Cianorte dominou o jogo, não só pelo conjunto e a objetividade, que se refletiram em três gols memoráveis na Legião Estrageira paulista, mas principalmente pela garra e a competência dos seus jogadores, que driblaram, não erraram passes e ainda nos brindaram com um antológico gol de bicicleta. Vibrei com o Cianorte e gargalhei diante da obscura presença do Passarrola, que nem sabe a língua do país que escolheu para trabalhar, pois a língua espanhola é muito limitada e não consegue entender o português. Já a nossa língua, pela riqueza, torna mais fácil o entendimento não só do espanhol, mas do italiano e do francês. A lição do jogo é que não precisamos lavar dinheiro trazendo nulidades estrangeiras, porque aqui mesmo, no Brazilsão, conseguimos gerar craques sem parar, conseguimos montar times primorosos e basta uma oportunidade para isso ser provado em cadeia nacional. A Copa do Brasil, um arreglo de cartolas em busca de poder, foi transformado pelos times pequenos em chances de aparecer e crescer, como aconteceu com o antológico Criciúma de Felipão, que papou a taça surpreendendo todo mundo. O que mais me irrita são os apresentadores, achando que estão vendo uma excrescência história. O Cianorte, vejam só. Não enxergam a diversidade da vida brasileira, ficam confinados às rotinas dos grandes times que estão no nariz deles. Quando essa mídia viciada e monopolista se defronta com o Brasil, cai de quatro. Impera então jornalismo pois-é-ístico: Pois é, quem diria, acredite se quiser.


ALEX - Os grandes batedores de falta são Alex, Ronaldinho Gaúcho, o antigo Neto e Marcelinho Carioca. Eles sabem do que se trata. É preciso definir, com a mente, o gol impossível. Fazer com que , no momento do chute, a bola encontre o endereço certo. Neles, a bola encontra outras alternativas. O pé de anjo de Marcelinho quica a bola e ela bate no travessão, no ângulo, rola para dentro do gol beijando a rede. Neto destruiu o goleiro Gilmar no Maracanã com uma falta batida a cem quilômetros de distância. Alex é um estrategista (o melhor jogador brasileiro da atualidade). Ele chuta e desiste, vai para casa, toma um banho e volta para comemorar. Ele faz uma divisão interna na cuca para que o pé encontre sua dimensão quântica. O goleiro adversário apenas olha o rastro da bola que entra miseravelmente no fundo. É por isso que Alex não anda, já que cada pedaço do seu corpo tem vida à parte, o que é uma maneira de driblar sem bola, só com o movimento, os adversários. Dizem que ele é preguiçoso e não sei mais o quê. Existem muitos cracaços no Brasil, mas só Alex é gênio. É uma pena que seja tão mal aproveitado e possa acabar como Ademir da Guia, lenda que jamais foi campeão do mundo, ou Canhoteiro, que ficamos conhecendo, décadas mais tarde, por Chico Buarque. Na Alemanha, teremos Alex ou nada. Pois não adianta dar a chance de bater faltas ao bisonho Roberto Carlos, que dá chutão na barreira. Roberto Carlos não entende: bater falta, essa ciência inexata, não depende de força no pé. É complicado.


RETORNO - Não podemos deixar de destacar também a presença abominável de Roger, esse Edmundo loiro, que depois de pisotear deslealmente o adversário, saiu com aquela cara de malandro criminoso que finge não ter feito nada. Desse jeito, o Coritnhians, patrimônio do povo brasileiro, e meu time desde criancinha, vai acabar exibindo o maior número de caras-de-pau por metro quadrado.

9 de março de 2005

OS AUTORES OCULTOS


Entre as pautas que jamais fiz ou pedi para fazer, está a magnífica reportagem sobre os autores de títulos brasileiros para filmes inesquecíveis. Quem serão eles? Quem é que teve a audácia de titular o clássico Shane, de George Stevens, com o bombástico Os brutos também amam? E de onde surgiu Assim caminha a humanidade, para Giant, com James Dean, Rock Hudson e Elizabeth Taylor? Depois daquele beijo, para Blow-up, provocou um ataque de riso na época do seu lançamento. Mas não deveriam rir. É criação pura, atrelada ao mais escabroso marketing. Faz parte do imaginário nacional. Envolveu gente anônima, redatores, ou talvez os próprios distribuidores, que deveriam fazer esses títulos às gargalhadas depois do expediente, consumindo bebida falsificada (que é só o que tem no Brasil). Quanto mais quente, melhor, de Billy Wilder, é uma transcriação de Some like it hot, ou Tem gente que prefere fazer com tesão, ou estou enganado e também sou candidato a traduzir títulos estrangeiros de filmes? Toda língua estrangeira para mim é uma mistério. Não consigo conceber pessoas emitindo aqueles sons alienígenas. De onde tiram toda aquela lógica? E dizem tudo aquilo com o maior desplante.

LÉVIS - É uma tendência: a gente sempre acha que as coisas surgem do nada, ou estiveram sempre à disposição. Mas alguém queimou neurônios (ou a pestana) para inventar o que usamos com a maior displicência. A autoria some quando algo faz muito sucesso e se espalha meteoricamente, tornando-se parte do acervo comum. O iê-iê-iê é uma designação nacional para o rock dos 60. Quem inventou, o Carlos Imperial? Bossa nova teria surgido de um engraxate que comentou o sapato branco, usado sem meia por Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta: bossa nova, hem, doutor. Ou seja, já estava inventado pelo povo e serviu de batismo para o samba recriado por João Gilberto. Mas bossa vem do francês bosse, que é uma atrofia, uma corcunda, portanto um diferencial. Não acredito em criação coletiva. No meio da multidão, toda ela criativa, sempre tem os que bolam coisas especiais, e estas se propagam. Coloco os autores ocultos dos títulos de filmes entre esses criadores. O bagunceiro arrumadinho, título para filme de Jerry Lewis, é uma graça por ser tão tosco. A tradução literal costuma provocar gagalhadas. Até hoje lembro uma rádio argentina dar o crédito para a música tocada minutos antes: acabamos de oir Socorro, com Los Beatles. Help nunca foi tão cucaracho. Mas é preferível a marca nacional do que o paga-pau explícito ao império estrangeiro. All type! me dizia meu amigo editor de arte depois que eu pedia algo só com letras, sem imagens. Delivery, dizem para a entrega. Eitchi bi ôu, me corrigem quando digo agá bê ó. É por isso que insisto: em Uruguaiana, não tinha essa frescurada não. Era filme com Jérri Lévis e Dêan Martin. Levei um choque quando um narrrador disse que o Jerry era Louis. Um bom cacete, repliquei. É Lévis. E mãos ao alto, em inglês, é chamuchalei. Era assim que dizíamos: chamuchalei aí, e o inimigo levantava os braçso, rendido. Rânds ãp, ora rânds ãp.

INTERAÇÃO - A moda agora é colocar o título original seguido pelo complemento em português (a língua subalterna). O pequeno little, como diz o título do desenho animado do Spielberg. Pequeno Little, convenhamos, é pior do que jérri levis. Apocalypse Now é insubstituível (fim do mundo agora?). Meus títulos favoritos para filmes brasileiros são: aviso aos navegantes, matou a família e foi ao cinema, carnaval de fogo, deus e o diabo na terra do sol, São Poaulo S/A (a obra-prima de Luis Sergio Person, um dos maiores filmes brasileiros de todos os tempos). Alguém lembra de títulos inesquecíveis? Aklguém sabe quem inventountudo isso? O Diário da Fonte, com tantas visitas e tão poucos (mas fiéis) comentaristas, nunca foi muito interativo. Mas desta vez acho que vale a pena.

RETORNO - Vejam as fotos do massacre americano no Iraque e no Afeganistão. Crianças, mulheres, homens, todos morrendo, enquanto a gente diz delivering.

8 de março de 2005

A BURRICE DA VIDA PÚBLICA


Chico Buarque estaria jurado de morte porque deu bandeira com mulher casada no Leblon, à tarde. Chorão, do Charlie Brown Jr. provoca acidente com feridos ao atravessar sua Blazer na avenida porque o grande aviso de Pare desenhado no cruzamento era apenas uma sugestão (não havia farol, ou sinaleira, portanto estava desobrigado). Severino Cavalcanti é lançado à presidência d República. Luis Nassif defende seu direito de chamar amigo preto de negão. Nos programas de TV, a desconstrução total do pensamento: pessoas são submetidas por horas a uma saraivada de depoimentos sobre sua vida pessoal, exposta publicamente. Deputados querem a cabeça de Lula porque ele confessou ter abafado escândalo no Banco Central. Quem tem uma âncora no pescoço chamada Waldomiro Diniz não pode se arvorar a ter autoridade, dizem de José Dirceu. Martha Suplicy, que deixou um rombo de dois bilhões de reais na prefeitura paulistana, segundo seu sucessor, volta da Europa com todo o cacife para disputar o governo do Estado. Enquanto isso, o tédio mortal assola a cidadania, brindada com todo o cardápio asqueroso da burrice entronizada no poder e na mídia. A cultura, que é o encontro entre pessoas dedicadas à criação, fica de lado. As livrarias estão atulhadas de asneiras. Crianças só pensam em sexo. Gangs se enfrentam em lutas de morte. Daqui a um ano e meio, teremos eleição presidencial.

SOBERANIA - Lula revelou-se o rei do marketing forçado. Vai usá-lo de todas as maneiras para se reeleger. A direita terá força em 2006, já que a moral foi deixada de lado pela esquerda, que agora se locupleta no poder. Ex-comunistas voltam à propaganda política propondo um novo caminho. Esse apelo morreu junto com o governo Lula. O que vai vingar na campanha é a pena de morte, o fim da prostituição nas ruas e na mídia, a homofobia, a repressão aos movimentos de reivindicação popular, na cidade e no campo. A democracia brasileira está identificada com o caos e o entreguismo da soberania nacional. A direita procura um nome. Esboçou Aécio Neves, que já perdeu gás. Apressa-se com Severino, mas este não tem fôlego. Pode voltar com FHC, que está definitivamente queimado. Sugere César Maia, mas o Rio de Janeiro em guerra é seu cartão de visita. Maluf já foi. Quem será o candidato da direita, com reais chances de ganhar? A História mostra a receita: Jânio Quadros, Collor de Mello, no passado, serviram direitinho. Desta vez, basta escolher um nome e colocar a máquina da propaganda a funcionar. Uma alternativa é inventar algum prefeito ou governador para ser a salvação, a esperança que resta. Enquanto isso, Lula contará com o hábito, com o deixa estar para ver como fica, e tem chances ainda reais de ganhar, mesmo que seja no segundo turno. Mas o governo Bush mostra claramente o que deverá acontecer: a guinada total para a direita em toda a América do Sul. Hoje, há um quadro de saturação da esquerda, desde Lula ao presidente peruano. O pragmático Kirchner não se revela uma tendência. Vem aí uma tempestade de merda.

TRABALHISMO - Quem vive, como eu, numa terra de conservadores em todos os estamentos sociais, vê claramente o que está ocorrendo. Toda a campanha da esquerda a favor da cidadania volta-se contra ela. Cada pessoa é um delegado de polícia, um advertente de dedo em riste, um moralista à antiga (já que a moral foi deixada de lado pelos progressistas, que perdem a luta contra o tráfico de drogas e armas e ocupam importantes cargos no poder). A saída é resgatar o trabalhismo para as suas bandeiras e escolher um candidato que acene com o futuro, que é a harmonia, garantida por lei, entre capital e trabalho, assestando as baterias contra a corrupção e a pirataria financeira, dando ênfase ao Brasil soberano, sem cair na armadilha direitista do moralismo ultra-retrógrado. Um resgate histórico com uma plataforma pragmática, focada na infra-estrutura e na distribuição de renda via economia responsável. Como pode alguém especular com o preço do feijão? Por que quatro multinacionais dominam a produção e exportação da soja, o deserto verde que toma conta de todas as terras férteis do país? Por que o trem, no Brasil, pertence ao passado, quando ele é o transporte do presente do e do futuro, como provam a Europa e o Japão? A tarefa é dura e não temos tempo suficiente. Certamente teremos mais um arreglo trabalhista com candidatos pífios e voltaremos à vaca fria. Haja.

MULHER - Um dia de homenagens à mulher é apenas insumo para pautas rotativas, aquelas que se repetem à exaustão. Privilegiar o gênero em detrimento do indivíduo é um erro crasso. Hoje é dia de Condoleeza Rice, a interventora do Iraque? Mande flores para ela. Ela vai sorrir de alegria, com aquele riso de vampira. Homenageie Clarissa, Ana Terra, Cecília. Mas não a Mulher, essa bandeira publicitária cheia de equívocos. Um deles é achar que as mulheres só passaram a ter existência a partir dos 60. Antes, eram uma pobres coitadas. Dá licença. O matriarcado, o poder exercido pelas mulheres, é uma invenção ancestral. A pílula anticoncepcional, a panacéia da liberdade feminina, virou pó, basta ir a qualquer maternidade, onde sobra concepção não desejada.O que é preciso reforçar é outra coisa. Cada indivíduo deve existir em função de alguém, já que deve a vida a pelo menos duas pessoas.

7 de março de 2005

O EUROCENTRISMO É DATADO




O pensamento fundamentado na ilusão de superioridade racial e histórica está com os séculos contados. Poderá durar ainda uns 200 anos, mas acabará sendo desmoralizado. Leio navegadores alemães, ingleses e franceses que visitaram a ilha de Santa Catarina nos séculos 16 e 17 e lá está o vírus mortal. Eles lêem o gestual dos negros como simiesco, para dizer o mínimo e prestam atenção apenas na floresta (o butim desejado), colocando o Brasil (o empecilho eterno) como algo descartável . Leio Pasolini sobre futebol no Mais! e lá está o vírus mortal: o futebol brasileiro é poesia, o futebol europeu é prosa, diz ele. Pasolini nunca me convenceu, apesar de ser considerado um cineasta e pensador importante. Seu cinema depende de algo externo, o texto que o justifique. Prefiro encarar o futebol, como aprofundei aqui no DF, como a tensão entre retas e curvas. A triangulação, que Pasolini coloca no colo exclusivo dos europeus, é a base das tabelinhas entre Pelé e Coutinho (que tinham um desfecho genial, a corrida para a linha de fundo e o atraso da bola para quem estava no centro do gramado). Isso não é poesia nem prosa, é solução de linguagem que atinge o estado da Arte.

FILÉ -Dizer que somos poesia quer dizer que somos ainda os mesmos macacos de sempre, intuitivos, jamais cerebrais. Não nos cabe o privilégio do raciocínio, que é coisa deles, europeus. O fato é que os brasileiros são inventores que usam todos os recursos, da lógica à imaginação, para superarem dificuldades. Só que não possuímos capital simbólico que nos identifique com o homo sapiens. É por isso que inventamos a máquina de escrever e a Remington roubou a patente. Inventamos a transmissão radiofônica e a telefonia sem fio, mas quem levou as honras foi o italiano Marconi. Inventamos o avião, mas os reis da catapulta e da patente linkada com o armamentismo, os irmãos Wrong, é que são os imperadores da cocada branca. Somos pentacampeões do mundo em futebol, mas continuamos os mesmos macaquinhos de sempre. Vencemos porque somos poéticos, patéticos e jamais seremos como, digamos, Beckham, que não é nada, nunca foi nada, mas à parte isso continua sendo a coisinha de Jesus do papai. Essa visão não é apenas estrangeira, é nacional: nós somos nossos principais algozes. Evitamos todo o ensaismo realmente inovador e criativo para inundar as universidades de redundâncias bem comportadas, que reproduzem teses acadêmicas dos doutores e cuidam do pensamento clone e marginal ao pensamento eurocêntrico. Um Roland Barthes, o maior ensaísta do mundo, autodidata, foi recebido com honras na universidade francesa. Aqui geraria risotas. Olha o cara que fez ensaio sobre o filé com fritas, que panaca. Pois o filé com fritas, segundo Barthes, faz parte da nacionalidade francesa. A França acolhe os inventores. Acolheu Santos Dumont, que venceu em Paris e suicidou-se em Santos.

GESTOS - Vejo o cartola mafioso às gargalhadas com seu novo parceiro, o execrável técnico argentino (o futebol argentino é uma correria de pernas de pau com a precisão de relógico cuco). De que riem? Riem dos macaquinhos brasileiros. O Passarrola chegou com o desprezo típico do seu país ao Brasil (fruto da inveja e da falta de cascudos) fazendo piada de que ia raspar o côco de todos os jogadores. Como ninguém riu, fingiu que falava sério. O mafioso está à vontade. De camiseta e jeans gargalha diante do seis a um do Corinthians contra o União São João. De que ri? Logo depois do jogo, seis atletas do União fizeram queixa na polícia contra o juiz, que os teria destratado durante o jogo. Então é assim? Como surge uma goleada dessas, do nada? Antes da partida entre Palmeiras e Santos, gangs verdes rivais se enfrentam numa luta de vida ou morte. A juventude quer lutar, disso entendiam os antigos, que inventavam uma guerra a cada vinte anos. Colocavam a testosterona no campo da batalha e quem sobrava voltava mutilado ou pai de família. Acabava assim com as arruaças. Como superamos essa fase, por que deixar a juventude por sua própria conta, inventando guerras para exercitar os seus hormônios mal resolvidos (se trepassem direito, não sairiam matando)? Jogam a massa jovem no crime e no subemprego e depois querem falar em democracia. Fechem o país para todas máfias, repatriem o tosco Tevez, devolvam o Corinthians ao povo brasileiro, enfrentem a violência das gangs nas ruas e depois conversamos.

RETORNO - O casamento de araque no castelo virou barraco puro e simples. Para isso existe a moda hoje. Para a disputa de alpinistas pagas a peso de ouro para usar roupas descartáveis e atirar-se aos bons partidos (as estrelas cevadas pela má distribuição de renda). A televisão só se concentra nisso. Haja.

4 de março de 2005

ANOS 60 SEM SAUDADE


Incentivar a saudade dos anos 60 é uma das muitas formas de enterrar a época em que o enfrentamento coletivo contra a ditadura do Império ( que se desdobrava planetariamente, do Vietnã a Brasília) lançou os fundamentos de uma nova civilização. Esse projeto não fazia parte da oposição conservadora de esquerda, que no fundo é o clone do Mesmo, como provam os governos socialistas europeus e o governo Lula. Os anos 60 são muito mais perigosos do que qualquer guerrilha, porque criou a plataforma completa de uma alternativa real ao horror da direita. Caíram de pau nesse projeto e vivemos o tempo em que a reação brutal ao esboço da nova era tornou-se muito mais sofisticada e profunda. A principal arma dessa desconstrução da utopia é desmoralizar a revolução da qual fizemos parte, nós daquele geração privilegiada, que incorporou completamente o sopro de luz que não foi apenas sonho, mas a nossa carne. Matar quem levantou a bandeira mais alto foi só um detalhe. O mais importante veio depois, ou seja, agora: repetir à exaustão que aquilo é passado, que jamais voltará. Só que os anos 60 são o futuro e por isso não podem fazer parte da saudade.

ABC - O novo aluno de Letras da USP, daniduc, extrapola e nos envia, aqui para o ermo do Capivari, o álbum completo, em MP3, do Submarino Amarelo. Todos juntos agora: a, b, c,d; um, dois, três, quatro; nada do que você vê será impedido de mostrar, nada do que você quer deixará de ser feito, é fá-cil. It?s easy: os Beatles não são os anos 60, apenas fazem parte dele. Sobrevivem como o iceberg maior, integralmente à tona, navegando no mar dos buracos. Eles respondiam ao clamor das ruas, eles, como todos nós, éramos o que um dia seremos. Lennon dizia para um admirador pirado: faça suas canções, não perca tempo com as nossas. Assuma, porra, senão vão nos matar. Lennon viu que a barra ficou preta e lançou a frase que todos repetem à exaustão. Mas no Submarino Amarelo tem tudo: o anúncio estridente dos navios transformado em música, a música incidental da navegação no Mistério, a constatação de que tudo é demais, ou sejam, colocamos o pé na Maravilha e sossega que a viagem é sem fim. Cante conosco, crie sua vida, saia do cerco, rompa. Essa é a fonte da alegria, o de criar sempre, o de reiventar-se, o de construir o sossego por meio de uma luta que mexe com teu corpo e teu coração. Parece fácil entender, mas é complicado. Não se trata de algo que mudou o mundo, já que o mundo continuou igual, ou seja, a mesma choldra de sempre, cada vez pior. Não tem nada a ver com a força do rock transformando nerds em muito loucos, como dizem sempre os documentários execráveis. Trata-se de um fundamento, de um mapa, de uma criação gigantesca de uma enorme população, da qual Woodstock era só um ponto. Foi um exercício de imaginação que deu certo por alguns anos em uma parte da humanidade e quase foi vitorioso. Perdeu a batalha, mas não a guerra.

CABEÇA - Para mim, há muitos anos 60. Primeiro, nossa mudança da grande casa da esquina para o subúrbio, quando descemos alguns degraus da escala social. Depois, o golpe de estado de 64, que me tirou todo o gosto de ficar em Uruguaiana. E terceiro, Porto Alegre, a cidade da cultura, onde entrei menino e saí guerreiro. Assumir os anos 60, naquela época, equivalia uma pena de morte. Não era como hoje, em que tudo é badalado na televisão mesquinha e comprada. Não se tratava de sacudir os braços e a cabeça ou simplesmente consumir drogas. Era enfrentar o ódio de quem nos via quebrando todas as regras, em todos os lugares. O ódio profundo daqueles olhares, que cercaram minha juventude de desespero. Era viver perigosamente: expor poema na praça, usar qualquer roupa, jamais pentear o cabelo, sorrir para todos, fazer a cabeça com a música tratada como mero produto comercial. Era realmente cultura e filosofia. A última fase dos 60 para mim foi a visita que fizemos ao Rio de Janeiro em 1969, quando nos lembraram que dez anos antes o verso chega de saudade tinha sido proferido como uma revelação. Éramos o futuro, e sempre seremos. All together now.

ROTEIRO - O que são hoje os anos 60? Um roteiro, um sinal. Youssuf, saia dessa mesquita e cante como Cat Stevens. Desça pela Internet todos aqueles sons, inigualáveis e jamais superados. Ninguém tocará como Hendrix, ninguém cantará como Janis. Não se trata de saudade, mas de constatação. Não se trata de ficar preso ao passado, mas de enxergar o óbvio: bombardearam a revolução com todas as armas e agora repetem no Iraque a brutalidade do Vietnã. O Brasil continua preso pelo cangote ao arrocho financeiro comandado pelos Estados Unidos, como sempre foi o projeto da ditadura. Quem é saudosista? O conservadorismo. A revolução não sente saudade. A luta é com qualquer palavra, é com a palavra carregada pela poesia, é com a poesia feito flecha e não esse mar de trocadilhos dos poetastros trocaletras. É fácil fazer, basta querer. É difícil entender, porque sempre existe alguém para sorrir de lado, como um palhaço. Tem saudade da juventude, é normal, é normal, diz o abombado. Quem falou em juventude? Nasci com a eternidade.

RETORNO - Um verso bem anos 60 corre pela internet: Nenhuma pessoa é lugar de repouso, do meu livro Outubro, poema Salvação. Citado pela escritora Martha Medeiros e reproduzido em inúmeros blogs. É a segunda vez que Martha invoca o verso, defendendo a idéia de que encontrar a pessoa certa é, sim, um bom lugar de repouso. Enviei um e-mail para ela argumentando que o poema fala em navegar até onde dá, ser livre para o que pintar. Viver até o limite e encontrar, talvez, a pessoa que sempre esteve ao seu lado. Não deixar-se levar pela modorra no relacionamento e não, como ela sugeriu, assumir a irresponsabilidade no amor, fazendo rodízios de encontros amorosos. Mas a citação de Martha valeu. Raramente me citam. Gentil como sempre, ela me respondeu dizendo que não citou o poema todo para não perder o foco do assunto.

3 de março de 2005

O PRIVILÉGIO DO SEXO PLENO




O sexo deveria ser um assunto de foro íntimo, mas sabemos que não é bem assim. Necessidade básica, está cercada de vetores poderosos, como saúde, educação e situação financeira, estes totalmente dependentes de políticas públicas. No arrocho financeiro em que vivemos, de um país sem fundos e, portanto, com cidadãos igualmente falidos, o sexo está sob o jugo da falta de grana e isso é feito de propósito, pois assim é possível gerar uma considerável indústria que não se restringe apenas à prostituição. A publicidade, os produtos ditos culturais e a mídia em geral dispõem da cidadania mal resolvida para explorar a tesão bem remunerada. Quando o cantorzinho sacode a genitália para o auditório, e este retribui atirando calcinhas, quando a starlet faz a dança do tchan e da garrafa, para que sovacos peludos uivem e balofos apresentadores sacudam as banhas de tanta euforia, quando a top model caça um bom partido, quando a rainha da bateria ocupa o espaço da velha guarda, a situação é idêntica aos bordéis e ao entretenimento de massa. O resultado é uma tragédia: desde a gravidez precoce ao alpinismo social, desde o tráfico de mulheres e menores à exposição maciça dos traseiros, tudo passa pela exclusão da maioria a uma vida que poderia ser cheia de alegria, porque no fundo é para isso que deveríamos estar neste mundo, para nos completarmos na maravilha que é viver sem a alienação entre a fantasia e a realidade.

AMOR - Faltam parceiros que assumam a responsabilidade de uma vida a dois, falta tranqüilidade e silêncio, para que as pessoas se dediquem à libido em harmonia, sobram preocupações que impedem o orgasmo sucessivo. Fica difícil falar mais sobre isso sem cair na tentação das palavras que caem no lugar comum, já que o sexo tornou-se o alvo principal das distorções, e isso é ensinado desde a infância. Fico imaginando o que pensam as crianças sobre o mundo adulto tão explícito em cenas dantescas, e implico com os adultos que invocam a repressão milenar para garantir que tudo deve ser permitido. Uma senhora uma vez me disse uma frase lapidar, ao se referir a uma filha que fez questão de levar o namorado para dormir em casa. A senhora não permitiu (eram os anos 70) e foi submetida a uma saraivada de dizidas sobre a libertação. Os jovens acham que só eles trepam, disse ela. Hoje vemos a situação inversa: os programas da Terceira Idade, que servem para tirar a sobriedade dos mais velhos para assim submetê-los à ditadura do comportamento pretensamente liberado, exibem cenas que poderiam ser dispensadas da exposição pública. A imposição da juventude e da magreza a qualquer preço tirou da maior parte da população seu bem mais precioso: a auto-estima. Muita gente se mata na lipoaspiração, no consumo de remédios perigosos, na injeção de anabolizantes, tudo em nome da Forma, colocada como oposição frontal ao Conteúdo. Nesse ambiente, falta clima para medrar o Amor, que é fruto do sexo pleno. O sexo se serve do corpo como instrumento, mas começa na cabeça e parte para o coração. É imaginação e abandono, é confiança mútua, é sentimento e transgressão das amarras que nos impedem de viver (romper, e não ficar sob o jugo das amarras fingindo que elas não existem; os limites impostos pela ditadura e o arrocho são os mesmos que mentem sobre a liberação total; o sexo pleno é a liberdade que começa na sociedade e pousa na cama) .

ÔNIBUS - As mulheres, por destino ditado pela anatomia, estão sempre em desvantagem. Não falo contra os avanços femininos das últimas décadas, falo de contingência biológica, gravidez, por exemplo. Nunca entendo porque costumam chamar algumas celebridades de Poderosas. Poder aí só se explica se houver chantagem baseada no gênero, e isso passa longe do sexo pleno. Curvas, líquidos, fragilidade (de quem é, por natureza, receptora) estão à mercê da força bruta se não houver segurança e paz social. Li que existem dois milhões de casos/ano no Brasil de agressão às mulheres. O Brasil é uma espécie de campeão mundial do machismo prepotente. Lembro sempre Paulo Francis que matou a charada do gesto típico do machão, o de estar sempre colocando a mão nos países baixos. Um povo castrado precisa verificar se tudo continua no lugar, disse Francis, mais ou menos com essas palavras. Nos ônibus, detesto ficar ao lado dos homens. São sempre espaçosos e jamais fecham as pernas, pois acham que têm o direito de usar todo o espaço disponível. As mulheres se encolhem ao lado desses sujeitos, e eu, quando sou premiado com isso, me irrito e revido dando uns encontrões. Fecha as pernas coração, digo entre dentes. Mas se a mulher senta ao seu lado, o esforço é deixar explícito que você não é um desses assediadores, que tudo fazem para tirar uma lasca da presença feminina. Ou seja, é um angu de caroço. Fico aliviado quando chego no terminal. É por isso que no ônibus executivo os lugares mais disputados são aqueles que não possuem um banco ao lado. O isolamento necessário para enfrentar a vida diária faz parte desse pesadelo em que se transformou o sexo no Brasil, país que exibe as pudendas para o resto do mundo, como se aqui fôssemos uns folgazões incorrigíveis. A macacada gringa vem para deitar e rolar, já que vendemos essa imagem para quem quiser comprar.

PRAÇA - Uma professora minha, emérita doutora em História, nos disse em aula que o mais complicado para as brasileiras no exterior era explicar que não são as vagabundas que a indústria de turismo vende para os outros países. É brasileira? Então vai tirando a calcinha. A senhora sua mãe, ô estrangeirinho panaca, é que deveria fazer uma performance em praça pública. No fundo, o que vemos nas ruas, pessoas de cenho carregado e cara infeliz, vem da impossibilidade do sexo pleno, que fica restrito ao privilégio. O que faz sentido, no país da exclusão social.

2 de março de 2005

A IMPOSIÇÃO ARTIFICIAL DOS VERBOS




Costumo enfrentar oposição quando elimino o vício, muito comum hoje nas redações, de se usar quinhentas variações para substituir o verbo dizer. Soube por importante jornalista amigo meu que ele tem aturado renitente defesa por parte dos adeptos dessa bobagem, que afasta leitores e torna intragável qualquer texto. Compus então uma argumentação básica que pode ser brandida diante da mediocridade imponente que confunde babaquice com criatividade. Antes, um ataque frontal necessário à atual impunidade dos publicitários que, sem oposição, tomaram conta da mídia e precisam urgentemente levar um corretivo.

FREEZER - A publicidade é a redundância levada à exaustão, mas os publicitários ganham mais porque vendem a imagem de seres especiais criativos. Recentemente tiraram um comercial de cerveja do ar que chupava cena de uma comédia romântica americana, em que um monte de pretendentes perseguia um pobre rapaz. Substituíram o noivo por um desses biotipos garanhentos execráveis que servem de modelo para a virilidade ascendente, ou seja, barba por fazer, calça meia canela, camiseta fajuta, toca na cabeça, cara de esperto. E as noivas por senhoras da terceira idade. O cara então, para fugir ao assédio das velhinhas, se refugiava num freezer cheio da cerveja em questão, onde tomava contato com uma beldade milionária, dessas que ganham montes de dinheiro público para berrar e sacudir as carnes. Isso em lugar civilizado dá cadeia no mínimo, mas aqui é visto como uma gracinha. Tiraram tardiamente o comercial do ar, mas existem outros. As pessoas vão comprar produtos de uma marca de sorvete e vêem lá dentro do freezer algum galã ou beldade e aí se refugia no gelo para ter um pouquinho de sexo. Na ditadura em que vivemos, o sexo é vedado para ser vendido virtualmente, aos borbotões, linkados com todos os tipos de marcas, para a massa mal resolvida. Sem falar no celular que, ao ser comprado, te dá direito a uma Cicarelli ou Bunchen. Para você cair na arapuca (que custa os tubos para ser usada) é preciso que tentem te seduzir com o sexo que lhe negam. Em compensação, os reis espanhóis chegam aqui, deslumbrados com a capacidade que temos de baixar as calças para eles (já que deitam e rolam na telefonia e nem tugimos nem mugimos) e são recebidos por macumba para turista na Bahia, com o nefando Carlinhos Brown faturando diante da nobreza, para mostrar como somos nativos exóticos cheios de amor (que na linguagem publicitária, é o rabo) para dar. Esse é o ambiente da nação de escravos que tenta dourar a pílula da narrativa jornalística substituindo o verbo dizer por milhões de pretensos sinônimos.

ASPAS - Quando a pessoa diz algo, sua fala é reproduzida no texto entre aspas. Ela simplesmente diz. Se o texto se referir à fala, citar a fonte sem colocar a frase dita entre aspas, então ele pode garantir, destacar, definir, concluir. Como vivemos na época do jornalismo morto, a narrativa do repórter perdeu completamente a função. Os textos da mídia só servem como instrumentos de falas alheias, especialmente as corporativas. Os repórteres estão proibidos de compor a própria narrativa, o que sempre insuflou força ao jornalismo. Então eles terceirizam e cada matéria fica cheia de frases entre aspas. Claro que se você colocar depois de cada aspa o verbo dizer ficará redundante. O problema não é com o verbo dizer, é com a estrutura do teu texto. Você colocou tudo nos ombros da fonte, inclusive a tua função, que é escrever para jornal. É a fonte que está montado no teu cangote, dizendo sem parar. Então você tenta disfarçar e depois de fechar aspas coloca um desses milhares de verbos que pretensamente substituem o dizer. Já cortei coisas como suspira fulano. No fundo, a invenção artificial de substitutos ao verbo dizer significa, entre aspas, que os jornalistas estão sendo criativos. Não estão. São apenas redundantes. Incorporaram os vícios da publicidade: repetir as mesmas fórmulas até a o público optar pelo suicídio coletivo. Foi o que aconteceu com os incas quando viram os espanhóis chegar: se atiraram no abismo. Lá vem a telefonia castelhana! gritaram eles e se estatelaram nas pedras.

GERAÇÃO - Usufruo do privilégio de conversar, nos últimos tempos, com formandos de jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina e sempre me deslumbra a capacidade que existe no Brasil de produzir gente bem preparada e talentosa. Todos com quem falei têm noção exata da armadilha em que estamos metidos no jornalismo. Estão à cata de estágio ou simplesmente trabalho. Não conseguem ler os jornais ou revistas e apontam a bizarrice de personagens badalados da mídia. Temos gente boa para fazer jornalismo de primeira água. O problema é o poder nas redações, atualmente sob o jugo e o tacão do departamento comercial. Quando trabalhei na Record como diretor do telejornal (1992) não permitia que os pastores da igreja universal entrassem na redação. Durei apenas sete meses e o diretor de plantão, na hora da minha saída, veio me falar em vida espiritual. Quantos anos tem sua igreja? perguntei. Quinze anos, disse ele. Pois a minha tem dois mil anos. Não me venha falar em vida espiritual.