30 de julho de 2008

GORKI: O GÊNIO OBRIGATÓRIO


Quem lê Máximo Gorki, não precisa ler mais nada. No terceiro volume de sua trilogia autobiográfica (sob todos os aspectos, uma impressionante obra-prima), intitulado Minhas universidades (os outros dois são: Infância e Ganhando meu pão, já comentados aqui), algumas cenas nos deslumbram pela contundência, pela precisão dos detalhes, pelo fragor da narrativa, pela atualidade. Fellini deve ter lido, pois a literatura de Gorki revela que estamos cercados pelo surrealismo, que a realidade é hiper-real, que os seres humanos são um mural de exceções, o que chamariam hoje de diversidade.

A mulher gordíssima que faz sexo com a vítima, amarrada a uma mesa, de um ritual satânico num covil de mendigos; o mujique que teve partido o crânio com uma marretada e jaz na beira do Volga com os olhos virados para o céu; os estudantes bizarros que convivem com a miséria do povo e fazem parte dela; os intelectuais ágrafos que orientam o autor sobre a morte e a fome: tudo em Gorki tem a grandeza do humano e enche de vergonha a literatura atual, tão metida a vanguarda, tão intimista e tão oca, tão sem nada a dizer.

Em poucas linhas, Gorki descreve sua tentativa de suicídio aos 19 anos, quando deu um tiro no coração e acertou o pulmão, tendo que pagar o mico de voltar ao trabalho um mês depois (um atentando que provocou nele a tuberculose; mais tarde, quase aos 70 anos, morreu de pneumonia). O que o salvou na juventude foi sua força física, já que ele mesmo era fruto da seleção natural promovida pela pobreza e o inverno russo. Condoído do jovem leitor de livros que tentara o suicídio, um revolucionário o leva para o interior do país e o engaja num projeto de preleção catequista aos camponeses. O tiro sai pela culatra, pois eles tentam eliminar os intermediários da produção de alimentos e acabam tendo que fugir da aldeia.

Não há realismo socialista nesta obra de Gorki. Não pode haver, portanto, motivos para as calúnias favoritas sobre ele. Gorki se engajou mais tarde no projeto cultural stalinista, pois esse era seu tempo e seu país. Mas sua literatura sobreviveu porque está resguardada de qualquer superficialidade ou artificialismo. Ele descreve o povo sem os equívocos de percepção que infletem sobre as pessoas miseráveis. Veio do ventre da velha Rússia, foi chibatado quando menino, recolhia lixo junto com outras crianças, como mostra a obra do cineasta Mark Donskoy nos anos 30. Nunca tinha ouvido falar de Donsky nem de sua filmagem da trilogia gorkiana. Mas conforme eu virava as páginas, via um filme se descortinando diante de mim. Tenho a maior curiosidade de ver a obra de Donsky. O que tem no you tube é muito pouco. Vou tentar comprar "The childhood of Maxim Gorky", que está disponível em dvd desde 2002.

Como não preciso ler mais nada, apenas Gorki, sigo seus passos no seu romance A Mãe. No início, em apenas duas páginas, está descrito um painel da vida operária da Rússia do século 19, sem nenhum retoque, apenas a brutalidade explícita de uma vida jogada fora, em que as pessoas não exibem virtudes, mas a extrema penúria e a ferocidade. Hoje, vemos como a miséria é aproveitada pelo pensamento dito politicamente correto, em que a escassez é mostrada como exceção a um ambiente asséptico. A própria reportagem (com jornalistas engravatados) representa o mundo clean e justo dos bem nascidos, enquanto a câmara foca as paredes roídas, os seres humanos carcomidos, as falas partidas, os rostos em pânico. Há exceções, como Profissão: Repórter, de Caco Barcelos, que foi ao ar nesta terça-feira mostrando o trabalho nas catacumbas do Brasil. Em Gorki, o narrador faz parte da paisagem, não está acima dela, é gerado nesse ninho. Não há escape na literatura monumental do gênio.

As universidades de Gorki são as pessoas. Nelas tenta decifrar os enigmas. Gente o invoca de todas as formas. Acha que estão escondendo algo, perdem o tempo e a vida em rotinas auto-destrutivas. Por toda parte onde vá, ele é o homem que lê, que tem chance de se livrar daquelas amarras. É tratado com pena pelos seus contemporâneos, que vêem nele o maior desperdício da nação rota que a todos devora. Mas ele conseguiu se superar. Não graças à revolução, do qual foi também crítico quando achou necessário e da qual, dizem, talvez tenha sido uma das vítimas, pois teria sido eliminado por Stalin. Mas graças ao seu talento, que nos subjuga como um sol recém nascido e nos leva para a grandeza da arte incomparável que é a literatura de quem sabe o que faz.

Leiam Maximo Gorki. Não é preciso ler mais nada. Façam como Tchecov, o mestre absoluto: quando lia Gorki, tinha vontade de dançar de alegria.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: cartaz do filme de Mark Donsky. Nascido em 1901, ele trabalhou com Eisenstein e morreu em 1981. Dirigiu 27 filmes. 2. "Minhas universidades" tem tradução e prefácio de Rubens Figueiredo e posfácio de Boris Schnaiderman. A trilogia foi relançada, em pacote primoroso, pela editora Cosacnaify.

29 de julho de 2008

DOMINÓ DE ASSOMBROS


Nei Duclós (*)

O cair da tarde é um dominó de assombros. Colunas de fogo tombam, sob a proteção de forças que se desatam das correntes. O grude se desmancha e vemos a queda de uma constelação de anjos, rumo a um abismo de espelhos. Cai o teto que sustenta a lua transparente. Desencadeia-se uma tempestade de eventos: gaivotas que decidem emigrar, mas permanecem presas; navios cortados pelo horizonte, indecisos entre o céu e o continente; apitos súbitos, tocados por capitães de outros tempos; mastros embandeirados com mensagens de socorro, em lenta procissão diante dos impassíveis morros; fúria de elementos, como a onda fustigando a ostra, ou a espuma surrando os peixes.

É mansa essa passagem entre dois eixos, o firme estanho do sol e a morna geléia que anuncia a noite. Ainda é cedo, mas a coruja antevê o sereno. Monstros abrem o olho. Estrelas invisíveis fervem no cinza azulado e aguardam o breu para tocaiar o sonho. Tudo está atento como na véspera do Juízo. Ninguém dorme a sesta de escombros. Há um despertar de açoites, corações incertos, algas que se soltam da cabeça. O acordo era andar, mas há uma pré-estréia de sonâmbulos. Câmaras de silêncios, cavernas de molejos, êxodo de mântras.

É impossível planejar qualquer coisa na tarde que se esvai, criatura em duelo terminal com seu próprio apogeu. É como um susto que vira pesadelo. É como a explosão que acaba no vazio. É como o desfile abandonado pela indiferença. Depois de atingir seu melhor momento, a tarde se derruba como adolescente. Pratica o suicídio dos amantes, que não suportam a glória de chegar cedo ao topo. A vida é apenas um esgar, um alento. Basta colocar a marca no presente para sair de pronto. Assim é a tarde, mãe do crepúsculo. Que choca o ovo impregnado de açúcar. E gera o funeral dos dias rumo ao esquecimento.

Talvez o entardecer seja essa notícia irreversível que atinge a tropa ainda moça, e torna o front obsoleto. “Acabou a guerra” seria esse aviso, que deixaria à mercê do destino os soldados, agora sem rumo, que buscavam a glória e encontram apenas um pastor em repouso. Quem estava de pé é tocado pelo fervor da novidade, como o rosto virgem na imaginação de um noivo. Nada é real se tudo o que é precioso acaba abandonado na pressa de se chegar longe. Lá, onde cai a tarde finalmente. Lugar inacessível, vândalo do Tempo, o deus que se corrompe.

O cair da tarde é uma avalanche. Concentrou pedras e comboios, retesou cordas e persianas, acumulou talentos, e enfim descambou, como chegam sem avisar os cabelos brancos. Na queda, levou por diante os passeios de chapéus e charretes, os namoros no cais de âmbar, os acordos embaixo da ponte. Quebrou-se a trajetória prudente, do sol que retesa o arco, e dispara a seta da iminente sombra. A tinta humana desperdiçada em planos escorreu por becos e calçadas, escura como a sorte de quem partiu para sempre.

Foi apenas a tarde, que recolheu suas vestes, que puxou cobertores de tormenta. Deixou o mundo só, absorto, embaixo de uma luz sem sopro. E partiu para o nada, com promessas de que voltará para fazer de novo a cena. Estaremos à sua espera, imperfeitos. Quem nos dera sobreviver uma só vez a essa armadilha. Saberíamos então para onde é sugada, a tarde e sua estrutura em pânico.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 29 de julho de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Guarda do Embaú, foto de Dauro Veras.

28 de julho de 2008

MINHAS TARDES DE AUTÓGRAFOS


Sempre existe um limite a ser rompido nas tardes de autógrafos. Como uma das mais completas formas de solidão, a convivência do escritor com seus livros expostos para platéias vazias é uma experiência única, que mereceria não apenas registro mais assíduo, mas estudos aprofundados. Neste domingo, por exemplo, aproveitei a sessão de autógrafos para me informar sobre o que acontece aqui no bairro de Ingleses, lendo dois jornais locais, de periodicidade mensal. Fiquei sabendo de vários eventos que aconteceram por aqui, todos eles com quorum mínimo, mas isso faz parte do trabalho dos pioneiros.

Imaginei que meu melhor auge, como diria aquele maratonista, tinha sido um lançamento que fiz no shopping de São José, município vizinho aqui de Florianópolis, em que permaneci ao lado de uma mesa e algumas poltronas na curva de uma escada durante duas horas, sem que ninguém atentasse que eu estava ali. Mas sempre consigo me superar. Uma sessão de autógrafos em que ninguém comparece é uma oportunidade maravilhosa para aprofundar amizades, como aconteceu quando meus amigos Marlon e Janaina me acompanharam por um fim de tarde e noite adentro no Shopping Beira Mar Norte, em que tive o privilégio de travar contato com apenas um leitor desconhecido, mas sincero.

Um dos eventos mais concorridos foi em São Paulo em 2001, quando ameacei minha vasta equipe de free-lances. Eles deveriam comparecer e comprar meu livro, já que eu era responsável pela distribuição de pautas de uma revista em poderosa corporação empresarial. Houve uma tremenda greve de metrô no dia, mas assim mesmo os pobres jornalistas cruzaram a cidade a pé e lá estava eu recebendo o abraço de mais de 50 pessoas. Houve uma sessão com mais repercussão, nos anos 70, quando eu cobria música para a Ilustrada e era copy do caderno. A Folha é gigantesca e muita gente foi na Livraria da Vila, então em início de carreira. Contei mais de cem pessoas, mas isso quando eu era uma celebridade.

As sessões mais gratificantes foram em Porto Alegre e Uruguaiana, em que reencontrei amigos e conterrâneos e conheci novos leitores. Mas aqui na ilha ninguém perde por esperar. Estarei sempre pronto a autografar, mesmo que a colheita seja mínima ainda, já que um escritor leva a vida inteira para convencer os outros de que é mesmo um escritor. Cheguei a levar minha obra completa que cobriu um canto da mesa onde deveria autografar. Foi bonito.

Tudo isso para dizer que confio na feira de livros do bairro, que continua até o dia 10 de agosto. Vou reproduzir aqui as novidades do acontecimento:

"Até dia 10/08/2008 acontece a II Feira de Inverno dos Ingleses, no centrinho da praia de Ingleses, em Florianópolis (SC). Música ao vivo, degustação de queijos e vinhos, distribuição de brindes, apresentação de capoeira, boi de mamão, lançamento de livros e conversa com os autores, são algumas das atrações da feira. Além dos ótimos descontos do comércio local.

A Livraria Mar e Letras preparou uma programação especial, centrada nas crianças. Nos dias 03 e 10 /08/08 - às 15 horas, estão todos convidados para assistir ao espetáculo literário-musical "Brincar de verdade”. O show é baseado no livro de mesmo nome, da escritora Marta D. Martins. A autora vai estar presente para contar sobre as brincadeiras de infância que fazem parte de nossa cultura e de nosso imaginário. No espetáculo, o texto poético das brincadeiras do livro é cantado e vivenciado com a platéia, seja ela criança ou adulto.

A Livraria Mar e Letras abriu um espaço infantil onde a meninada pode desenhar, pintar, ouvir histórias, trocar gibis/figurinhas e conhecer diversos livros infantis, como “Lili inventa o Mundo”, de Mário Quintana e outros autores consagrados."

RETORNO - Imagem de hoje: o chefe não lê jornal, o chefe se informa. (Foto de Ida Duclós).

27 de julho de 2008

A AMÉRICA ABRAÇA A VELHA ALEMANHA


O império americano é fruto da ditadura alemã. Foi a partir da derrota do nazismo e a conseqüente clonagem do sistema desmontado em Berlim que os americanos fundaram um regime global, com todos os instrumentos inventados na era Hitler, a começar pela manipulação da sociedade do espetáculo, da cultura de massas. Goebels, o ministro das comunicações do nazismo, é o pai da abordagem imposta na mídia a partir de 11 de setembro de 2001, que não admite defecções ideológicas.

O que reforça essa idéia são os outros hábitos nazistas totalmente assumidos pelos americanos, como a invasão dos países, a estratégia do espaço vital (anexar Porto Rico, Havaí, intervir no Chile e no Brasil são exemplos), sem falar no roubo da tecnologia alemã dos foguetes, entre outros mimos. Recentemente, temos mais duas provas da conexão entre a velha Alemanha e a América imperial: o discurso de Obama em Berlim e o filme “10 mil anos antes de Cristo”.

O filme é do alemão Rolando Emerich e inventa a lenda dos habitantes das montanhas brancas e o mito da criança de olhos azuis. Anti-darwinista por excelência, o criacionismo do filme instaura uma ancestralidade da raça branca. Por mais que haja luta, evolução, adaptação ao ambiente, o que conta é o destino manifesto do povo atacado pelos terroristas de outras raças que foi atrás do prejuízo, procurando a matriz genética da pureza, a bela mulher seqüestrada pelos bandidos étnicos. É de um nazismo atroz , disfarçado de blockbuster. E com um adendo: a moça de olho azul é filha de americano com brasileira, Camila Belle. É preciso anexar elementos para manter a escrita. Camila encarna a nova roupagem para o mito da velha eugenia. Podem ser anexados novos elementos, como a mestiçagem, mas na essência é preciso manter o núcleo do poder eugênico, a raça caucasiana, das alvas montanhas. No mínimo virtualmente.

Obama em Berlim fez o maior sucesso e é tocante ver sua negritude em contraste com a branquelidade dos loirinhos politicamente corretos. Os aplausos são para a superfície, para o fato de um negro ser candidato à presidência americana. Palmas para ele, veja que exótico. E também para o discurso bem elaborado que retoma um pouco o tom épico perdido na política de hoje. Com sujeitos no poder como esse francesinho amante da modelo, fica fácil para Obama dizer algumas palavras épicas para a multidão branca cheia de complexo de culpa pelos crimes cometidos pelos seus avós. As palavras do candidato são explícitos dessa necessidade de um império que precisa retomar o rumo.

A exploração mundial usufruída pelos Estados Unidos precisa de discursos politicamente corretos para se preservar. Não pode continuar como Bush, que gastou todos os cartuchos gerados pelo ódio ao 11 de setembro. Precisa criar novos insumos para continuar imperando. Se isso significar se retirar do Iraque ou retomar a velha aliança com a Europa, não importa. O que vale é manter o sistema de opressão mundial, em que um império manda e obedece quem perdeu a soberania. Obama é uma lufada de ar fresco no sistema de exploração. Ou ele falou em eliminar a ditadura financeira em todo o mundo? Claro que não, não é louco.

Falar mal de Obama é cair na armadilha de McCain. Você não pode ser contra Obama, senão estaria defendendo Bush. Isso é uma asneira irremovível. Que temos nós a ver com o texano fanfarrão e imbecil? E que temos nós a ver com os orgasmos anais dos alemães diante do homem negro que veio de longe dizer que seu pai foi cozinheiro e agora ele pode reatar os laços da América vitoriosa com o espólio da Segunda Guerra, quando foi composta essa união entre o projeto nazista e o novo império?

Para que falar dessas coisas? Para não cairmos na tentação de desvirtuar o rumo da nossa esperança. Não devemos esperar coisa boa de quem quer apenas renovar o império. Precisamos ter esperança em nosso taco, em nossa lucidez, em nossa vontade de mudar o mundo. E vamos mudar, com o braço de palha da nossa escassez. Um sonho é capaz de sustentar uma estrela.

RETORNO - Imagem de hoje: a bela Camila Belle, filha de brasileira com americano, encarnando a nova roupagem para o mito da velha eugenia. Detalhe: no concerto internacional das nações, o Brasil entra sempre com a mulher.

EXTRA - ENCONTRO NA MAR E LETRAS

Neste domingo, dia 27 de julho de 2008, às 16 horas, estarei autografando meus livros na simpática Mar e Letras, livraria aqui do bairro de Ingleses, no Norte da Ilha de Santa Catarina. A Mar e Letras promove uma feira do livro atraente, cheia de novidades e preços ótimos. Fica no Centrinho de Ingleses, bem em frente ao supermercado Colina. Fácil. Ao lado do Oceano Atlântico.

25 de julho de 2008

O QUE É UM EDITORIAL?


Um editorial é a maneira elegante de defender um crime. É publicado em espaço nobre, a página dois dos jornais, que só deveria ser lido por aqueles que comprovassem renda acima de um milhão de dólares/ano. Usa uma linguagem em cima do muro, mas um muro alto, adornado, que abriga uma súcia de atiradores de elite em seus contrafortes (ah, essas palavras beligerantes!). No fundo, não serve para nada, pois nem costuma ser lido, mas é uma forma de a aristocracia do crime organizado, a que comanda o país ou o mundo, dar seu recado. Se o tema e a abordagem são emitidos por osmose, convicção do escriba, ordem de pagamento, lavagem cerebral, não sei dizer. Mas uma coisa é certa: quem escreve editorial usa luvas de pelica. Aposto que cheira rapé.

Vamos a um exemplo. Com o título de “Licença nuclear”, a Folha elogia o Ibama por autorizar um projeto criminoso, a construção de Angra 3, “mediante solução duradoura para questão do lixo atômico”. Ou seja, o Ibama exige o que ninguém pode assegurar e com essa impossibilidade abrem-se as comportas para o Brasil ter mais um monstrengo desses, causador de inúmeros acidentes, essa estupidez humana travestida de solução científica. O editorialista, usando vaselina nas letras, diz o seguinte: “As fortes emoções que o tema desperta. e o excesso de segredo com que os militares costumavam conduzir projetos nessa área já prejudicaram demais a exploração dessa matriz energética. Passa da hora de abordar a questão de forma racional e desapaixonada”.

Vai conversar com as vítimas de Tchernobyl,se ainda estiverem vivas, ver como são ou foram as fortes emoções deles. Vá conversar de forma racional e desapaixonada com quem se fodeu nos acidentes das usinas nucleares antigos e recentes. “Num cálculo puramente pragmático”, continua o editorial criminoso, “ é interessante para o Brasil investir em usinas nucleares. O país já despendeu R$ 1,5 bilhão em equipamentos e estudos prévios relacionados a Angra 3. Nos cálculos da Eletronuclear, com mais R$ 7,3 bilhões, a usina poderia ficar pronta em cinco anos e meio. Assim, a planta entraria em operação em 2014, quando o país decerto precisará dos 1.350 megawatts (MW) que ela terá capacidade de gerar.” O país “decerto” vai precisar de um troço letal, que gera lixo atômico para caralho e está sempre à mercê de um possível acidente.

“Centrais atômicas exigem investimentos iniciais altos, mas que tendem a ser compensados por um baixo custo de operação - exatamente o contrário do que ocorre com a matriz térmica.” Vejam como usam as palavras. Matriz, por exemplo. Matriz é a mãe. Não existe nada mais anti-geração do que uma matriz nuclear. Que baixo custo é este quando vidas e o futuro da vida na terra estão em jogo? Nada disso importa, apenas os bilhões de dólares “despendidos” ou a “despender”. Gastar, nem se fala, é despender mesmo. Usar verbos alternativos é uma maneira de intensificar o uso da vaselina no texto.

“De resto”, continua o escriba monstruoso, “o mundo inteiro está repensando as objeções contra a energia nuclear. Por não queimar combustíveis fósseis, é uma forma de geração relativamente limpa no que diz respeito ao aquecimento global.” Mas que falta de respeito. Quer dizer que o negócio é achar que energia nuclear é “relativamente” limpa, já que nos assustaram bastante com o tal aquecimento global. E o que significa “relativamente" limpa? Não polui, desde que fique confinada em toneladas de concreto? Só polui um pouquinho, quando mata milhões até ser debelada novamente?

O editorial descobre que “o principal argumento contra a utilização dessa matriz é o da segurança”. E aplaude a construção de um “depósito definitivo” para o lixo atômico, que seria a tal exigência louvável do Ibama. Onde seria esse depósito, digamos, definitivo? Na Lua? Na véia? Sim, só pode ser na véia. Imagino que o editorialista e os responsáveis pela publicação dancem um tango de rosto colado depois de cometerem uma barbaridade dessas. Catem-se.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: não se assustem, a emissão de vapor da usina nuclear é considerado não -tóxico. Garantido! 2. Neste domingo, dia 27 de julho de 2008, às 16 horas, estarei autografando meus livros na simpática Mar e Letras, livraria aqui do bairro de Ingleses, no Norte da Ilha de Santa Catarina. A Mar e Letras promove uma feira do livro atraente, cheia de novidades e preços ótimos. Fica no Centrinho de Ingleses, bem em frente ao supermercado Colina. Fácil. Ao lado do Oceano Atlântico.

24 de julho de 2008

CAVALEIRO


Nei Duclós

Pampa no inverno é a solidão completa
Só há um cavaleiro em campo aberto
Poncho até os pés, imóvel e reto
Não se divisa o rosto na névoa

Ele espera alguma coisa sob o chapéu
Sinal de uma tropa que se escondeu
Talvez um cigarro ardendo no breu
O soco da espingarda contra o céu

Na linha de tiro pôs seu coração
Na guerra suja que o vento lambeu
Na vida ceifada pela refrega

Pampa no inverno, o mundo se despede
Parto partido com a faca de fio cego
Só há um cavaleiro diante de Deus

23 de julho de 2008

LIMPEZA SOCIAL E ENSINO PROFISSIONALIZANTE


Apesar do Toma Lá, Dá Cá fazer de tudo para que eu desistisse de esperar pelo Profissão Repórter de terça-feira, consegui ver Caco Barcelos e sua equipe deixarem sua marca na televisão brasileira abordando as pessoas marcadas para morrer no Brasil da ditadura civil. Já era quase meia-noite quando essa competência carismática que é o nosso Caco veio para cima de nós com seu assunto favorito, a matança institucionalizada no país que escapou das nossas mãos.

O programa, veiculado pela Rede Globo, mostrou o juiz e o padre cercados por seguranças, a mãe que viu todos os filhos serem assassinados sem que nenhum matador fosse preso, a garota que denuncia a liberdade dos bandidos e a prisão das vítimas, os jornalistas do Recife que descobrem a limpeza social que é a mortandade diária em Pernambuco, o Pará entregue à sanha dos grileiros de terras e pessoas, o ex-professor aposentado aos 39 anos que perdeu a tranqüilidade de espírito depois de ver o traficante torturar um garoto (bem nas fuças de um dos teus Cieps, Brizola! bem na frente do teu projeto de educação, comandante!) , tudo são provas de que vivemos num regime de exceção, continuidade do regime que em 1964 rradicou a democracia junto com o Brasil Soberano.

Diga a verdade: se você fosse governante de um país que mata centenas de pessoas por dia, em crimes que ficam impunes, sem que a polícia dê conta ou a sociedade consiga reagir, você iria viajar pelo mundo anunciando como somos viáveis e bons de serem comprados? Não, você ficaria aqui, a postos, tentando resolver os assassinatos em série, procurando uma saída. Senão, para que serve um país, um governo, uma gigantesca comunidade como a nossa? Serve para que a gente se devore mutuamente? Serve para provar que o Brasil e os brasileiros não prestam?

Além do governante omisso e viajador, temos a grande rede de organizações que se locupletam com dinheiro público e estrangeiro para salvar as tartarugas gigantes e treinam as pessoas em ocupações de escravos. Pois é isso que fazem. Ensinam capoeira, como arrumar a cama dos hotéis, como limpar o hall de entrada, como fazer confeitos. Mas não ensinam quanto é dois mais dois, qual o mistério da crase, por que Machado de Assis é grande, o que significa termos uma literatura, o que pega na teoria dos conjuntos, para que serve a gramática e a língua culta. Tudo isso ficou de fora, e a estudantada está hoje confinada a territórios que são alvo de balas perdidas.

A verdade é que sucatearam o ensino de verdade e colocaram no lugar essa excrescência que é o ensino profissionalizante, onde é aprendida a lição datada, voltada para o mercado e que em pouco tempo vai desaparecer para dar lugar a outra, mais digerível. Você não ensina como dobrar um lençol, você ensina matemática. Você ensina inglês para ler Walt Whitman e a revista New Yorker, não para ciceronear turista em favela. Você ensina latim para explicar de onde vem nossa língua, ensina francês para que possamos ler Victor Hugo no original (que epifania! que experiência! que deslumbre!) e assistir Godard sem legendas. O ensino é sagrado, é a base da cidadania e da liberdade. Com o aprendizado do que realmente importa, você faz o que quer, até mesmo passear cachorro em Miami.

Agora, se você ensina o sujeito a só passear cachorro em Miami, quando Miami sucumbir com uma avalanche de ódio étnico e de seu luxo não ficar nem pistas do Miami Vice, então onde você ficará, para onde vai se recolher? Você não pode perder tempo vendo aqueles falsos humoristas energúmenos dizendo baixaria enquanto o "Profissão: Repórter", como cavalo campeão preso na raia, bufa para sair correndo e mostrar o país onde vivemos.

Ou entendemos o que se passa à nossa volta, ou seremos todos massacrados por essa ditadura interminável, que jamais será apeada do poder enquanto acharmos que isso tudo é normal. Normal um bom caçaralho!

RETORNO - Imagem de hoje: Caco Barcelos e suja equipe do "Profissão: Repórter". Disparado, o melhor programa da televisão brasileira atualmente.

22 de julho de 2008

DITADURA INFORMAL


Nei Duclós (*)

Assim como existe uma economia informal, há também um regime político por baixo do pano. Os dois sistemas se parecem, e se alimentam mutuamente. São realidades que colocam em fila, como nos pesadelos da série Matrix, toda a população conectada diretamente aos sanguessugas, enquanto vivemos um mundo de aparências, formatado pelo bombardeio pesado da nossa percepção. Isso parece uma excrescência conceitual e teórica, pois é difícil acreditar que todo o aparato legal, tão reiterado pela correção e a ética, seja apenas a fachada de um esquema perverso, que permanece oculto e ao mesmo tempo presente.

Verdades minuciosamente elaboradas são a superfície de algo que rege nossas vidas pela lei do cão. A Constituição não permite o gigantesco desvio de rumo dos negócios, mas os camelôs do Brás conseguem abastecer a caixinha da corrupção em 800 mil reais por mês. Nem, claro, determina nada que lembre a ditadura, pois há consenso de que vivemos em pleno Estado de Direito. Mas as várias formas de crimes, como sonegação, corrupção, notas frias, produtos falsos se repetem e funcionam em bloco. Assim como são explícitas as várias formas de arbítrio, como arrocho financeiro, engessamento político, assassinatos de jornalistas etc.

O truque de esconde-esconde, que mascara as evidências, é abordar esses assuntos de forma circunstancial, aos pedaços, transformando-os em exceções. Se você somar a quantidade de situações em que se vê envolvido pela economia informal, verá que ela, na prática, não se situa na periferia. Na política acontece o mesmo. Apesar da democracia pré-estabelecida, os fatos geram o mesmo tipo de desabafo: “Mas isso é do tempo da ditadura!”. Privilégios, má distribuição de renda, violência continuam desfilando diante de nós, como um filme já visto.

Precisamos descobrir a fonte da Matrix. Nem é preciso ir muito longe. O movimento das Diretas-Já, por exemplo, é uma prova de que lutamos pela democracia, correto? Mas ele não foi derrotado no Congresso? Uma eleição indireta teria sepultado a ditadura, dando posse a um vice de uma chapa que nem tinha assumido? Ou simplesmente teria instaurando o fim da nossa moeda por sucessivos planos cruzados no queixo?

Depois da primeira eleição direta, o dinheiro da conta corrente foi seqüestrado. Culpa do povo, que elegeu o sujeito, ou do sistema ordenado por pesquisas e marketing? Decretou-se então o fim da inflação. Mas inflação agora é em dólar, já que não temos moeda de fato. E entregou-se o patrimônio público acumulado em décadas de soberania, de mão beijada, com grossa percentagem nas intermediações.

Estaria delirando? Ou o ex-tzar da economia da época áurea da ditadura não é o consultor mais próximo do atual governo? Ou as medidas provisórias pertencem ao passado? Ou falar tanto em democracia, como nos anos de chumbo, perdeu a razão de ser diante da liberdade tão arduamente conquistada? Noto também que os próceres de 1964, quando enfim morrem, são enterrados com honras de chefes de estado. Talvez os verdadeiros ditadores tenham apenas se livrado dos militares, que estavam atrapalhando.

Não podemos negar a economia informal, pois ela sobra em todos os estamentos. É mais fácil negar a ditadura informal, porque é duro aceitar a idéia. Implica abrir mão da nossa mais cara ilusão, a de que derrotamos o arbítrio. Como assim, derrotamos, se houve continuísmo da política econômica e nenhum poder político, seja de qual partido for, consegue mudá-la?

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 22 de julho de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: obra de Ana Viola, um exemplo de espírito livre em tempos de arbítrio.

20 de julho de 2008

A REPORTAGEM DE TELEVISÃO


Na televisão, a reportagem só funciona se você decidir com antecedência o que ela vai ser, como vai se estruturar, quem serão os entrevistados, o que exatamente vai ser dito. Porque é muito dinheiro empatado numa locomoção de equipe, num equipamento sendo deslocado, profissionais engajados durante várias horas do dia para conseguir sempre um pequeno resultado em termos de tempo e de impacto. No noticiário, esse é um desafio tremendo, pois você precisa abastecer uma hora (que em televisão é uma eternidade) de conteúdo. Vemos o que acontece: os apresentadores falam demais, os repórteres dublam a realidade e as imagens de repetem. É uma vida de cão.

O telespectador é o mais cruel dos animais de estimação. Mal agradecido, critica a redundância, se cansa dos mesmos rostos de sempre e implica com as gracinhas que tentam dar molho à maçaroca. Como a televisão sobrevive com um barulho desses? Simplesmente decreta o AI-5. Já sabemos como vai ser a reportagem: a chamada às vezes é maior do que a notícia, a entrevista é um jogo de cartas marcadas (onde o repórter implanta a reposta na maior cara dura) e os assuntos obedecem a uma lógica irremovível.

Assuntos de saúde, por exemplo. Você tem que fazer exercício, ponto, senão o bicho vai te comer. É a difusão sumária de uma droga, a endomorfina, que o corpo produz quando faz muito movimento. Vicia e produz corpos deformados, como acontece com o Sylvster Stalone, que aparece agora num comercial sendo abraçado pela Gisele Bunchen (se fosse ele o abraçador, Gisele, pobrezinha, seria reduzida a pó). Tem outra propaganda, cheia de muxoxos, do Pierce Brosman, que chega numa festa e carrega uma modelo brasileira (para onde?). No concerto internacional das nações, o Brasil entra sempre com a mulher. Nem sempre foi assim.

Mas e a reportagem de televisão? Ah, é mesmo. Como um assunto só pode render bastante, fica mais fácil. Se for a menina jogada do prédio, ou se for o banqueiro que fica mudo quando “dá depoimento” (como insiste a imprensa), basta repetir à exaustão, colocar links na frente de cadeias e residências e pronto, está garantido o espetáculo. É tudo jogo pesado, que mais tem a ver com as dificuldades de se fazer televisão do que com má fé ou coisa parecida. Claro que tem manipulação, mas acho que o problema é mais embaixo: é praticamente impossível fazer reportagem de televisão sem alguns vícios e muletas.

A cobertura especializada é outro desafio. No esporte, o pobre do Tadeu Schmidt, da Globo, tira leite de pedra para não cair na mesmice quando divulga os gols da rodada. Tadeu está acima da média dos jornalistas do ramo e às vezes faz coisas primorosas. Mas tudo vira a mesma coisa, com o tempo, e a gente cansa de ver tanta firula sobre um jogo de futebol. A informação vem junto, mas a prioridade é o espetáculo. O show repetido à exaustão funcionava no teatro, mas no meio audiovisual de massa se transforma numa armadilha.

O respiro para o sufoco é a chamada materinha humana, normalmente linkada com bons sentimentos, Ongs e programas como Criança Esperança. Há a Neide Duarte, com aquele tranco idêntico ao dia anterior, procurando emoção com o mesmo tipo de entonação. É o estilo, dirão. É a televisão mesmo, com suas limitações. É assombrosa a quantidade de gente necessária para levar alguma coisa de produção própria no ar. Mais fácil é chupar conteúdos vindo das agências e de canais estrangeiros. O brabo é ter que produzir sem que haja um sistema político, econômico e social decente no país. O noticiário de TV é uma ilha de perplexidade num mar de miséria e violência, que é o Brasil realmente existente.

Um expediente muito usado nos últimos tempos, é filmar impressos. Destacam-se textos, relatórios, parágrafos, frases. As imagens são feitas apenas por palavras. E tem a interminável sucessão de telefonemas grampeados. É difícil engolir esse monte de conversas lombrosianas decidindo milhões de dinheiro público em conversas cheias de analfabetismos. A malta que dispõe do dinheiro dos impostos nos assombra com sua estultície e suas espertezas.

A imprensa precisa estar acima dessa canalha. Não de maneira sombranceira, como se fosse a ditadora de moda e ética. Mas encontrando soluções técnicas e jornalísticas adequadas a esse meio ainda a ser descoberto, a televisão.

RETORNO - Imagem de hoje: Detalhe da catedral Notre Dame de Paris, fotografada neste mês de julho por Daniel e Carla Duclós.

18 de julho de 2008

RITA LEE NA FRONTEIRA


No site de Rita Lee, a reportagem mais antiga que consta lá é de 1979. Só que dois anos antes, em 1977, publiquei enorme matéria sobre ela na revista Nova. Mais tarde, no início dos oitenta, fiz outra, para a IstoÉ (não tenho mais cópia, alguém tem?). Por um tempo fiquei invocado com a minha matéria da Nova, que reproduzo a seguir, pois tinha sido copidescada pela Fatima Ali, que expôs algumas coisas que achei firulas e cortou outras, que considerei fundamentais, como foi o trecho suprimido sobre a identificação entre São Paulo e Rita, detalhe que mais tarde Caetano Veloso matou a pau na canção Sampa. Ficou um registro, mas não da forma que tinha colocado, mais extensa.

Mas minha revolta foi passageira, durou apenas 30 anos. Agora me reconciliei com minha reportagem (apesar de usar tantas vezes a expressão "afinal") e coloco aqui no Diário da Fonte, já que várias pessoas tiveram a gentileza de postá-la, em blogs e no Orkut. Posso dizer que este meu texto é uma espécie de filho pródigo. Recupera minhas conversas com Rita, que chegou a fazer, quando a entrevistei de novo para a IstoÉ, a música Orrameu depois de algumas conversas comigo sobre essa expressão (eu queria fundar um jornal com esse nome). Costumo dizer que ouvi em primeira mão, na voz de Rita, que folheava seu caderno, a música em que diz "down down down no hight society".

Sempre que o assunto Rita Lee vinha à tona, Wagner Carelli lembrava desse cruzamento entre São Paulo e a fronteira gaúcha. É, meus amigos, a História é o que se escreve. Bem, lá vai o texto:


RITA LEE: SEXY, DEBOCHADA, CORAJOSA

Como será Rita Lee quando os refletores se apagam, ela desce do palco, tira a maquilagem, deixa de lado suas roupas cheias de brilho e vai para casa?

Nei Duclós

Ela está com a mais corriqueira calça jeans deste mundo, combinada (ou descombinada?) com uma bata roxa. Acreditem: chinelinhos com uns enfeites felpudos, como aqueles das nossas avós, estão nos seus pés. Nem sombra de riscos pretos em torno dos olhos, nem sombra de camadas e camadas de batom nos lábios. Funga feito um gatinho cansado, franzindo bem o nariz, quando percebe que esse tipo de graça faz seu filho de 1 ano muito feliz. Um único e mínimo sinal de que tenho à minha frente a figura da rainha do rock deste país - aquela mulher que compôs uma das mais conhecidas músicas do momento, a divertida Perigosa, onde afirma: "Sei que eu sou bonita e gostosa" - está nas meias que ela usa, umas meias amarelas engraçadas, estampadas, "muito loucas", detalhe que a gente espera encontrar, ou acha que combina à perfeição com Rita Lee.

Ela é alta, muito magra, tem a pele branca e olhos bem azuis. Os dentes são um pouco irregulares, e seus cabelos têm exatamente aquela densa cor de fogo que a televisão nos revela. Mas todo o resto que a televisão e seus shows ao vivo costumam mostrar - uma Rita Lee ousada, agressiva, extravagante, irreverente, debochada e sexy - não está ali, sobre o tapete macio, rolando em torno de Beto, o filho, fazendo caretas. Seus 30 anos, que parecem bem menos, não conseguem tirar dela o ar de garota travessa. Fico pensando se é possível, pelo menos, dizer que ela é, como em sua música, "bonita e gostosa". Bem, bonita, naquele conceito clássico de beleza, que exige traços bem delineados, olhos de cor rara, boca que pareça ter sido traçada a cinzel, Rita Lee não é. "Gostosa", depende do que se considere como tal - para quem achar que essa definição se encaixa perfeitamente em Fafá de Belém, e seus tantos atributos, por exemplo, também não é coisa que se diga de Rita Lee.

Mas não se pode negar: nada melhor do que descrever Rita afirmando que ela é bonita e gostosa. Ela é isso de um jeito novo, pelo seu à vontade, pela alegria que cria à sua volta, pela festa que inventa, como ela diz. Sendo mais claro: ela gosta dela mesma, ela se sente bonita e gostosa e não deixa de nos contagiar por completo.

Seus cabelos estão presos por grampos, mas a cada minuto ela os solta e torna a prender. e meio elétrica, gesticula sem parar, anda pelo apartamento. E engraçada. Me pediu um cigarro, logo no começo da nossa conversa - o seu, sempre Hollywood, havia acabado. Mais tarde pediria outro, mas então preferiu fazer a sua cenazinha: pôs as mãos para trás, os pés um pouco para dentro, como uma menina envergonhada, sacudiu os ombros e torceu um pouco a cabeça de lado: "Você poderia me dar mais um cigarro?" Diz que faz isso não para provocar riso, o que fatalmente acaba por conseguir, mas por timidez. "Fica mais fácil eu fingir que sou tímida, sendo mesmo tímida, do que ficar tentando bancar a impetuosa, a valente."

Essas impressões todas vão surgindo do enquanto vamos tentando começar uma conversa mais consistente. Ela mesma diz: "Você já notou que eu não consigo falar da mesma coisa por muito tempo, que eu mudo de papo a toda hora?" Claro, quem não notaria? Assim como logo perco as esperanças de ouvir respostas diretas. Tudo sempre começa com vago "não sei", "acho que não". Mas ela supera os seus pequenos silêncios, e começa a falar. Admiração, por exemplo, ela tem pelos Beatles, claro. Quando o conjunto se desfez, ela adotou os Rolling Stones, paixão que dura até hoje. Os Stones, aliás, estão em dois posters gigantes nas paredes da sala de seu apartamento. Mas tem mais na sua lista de preferências: Dolores Duran. Para Rita, Dolores foi uma pessoa incrível: "Ela sempre me impressionou porque era uma mulher que compunha e cantava". Um certo sabor de feminismo, nas suas palavras? Sim, pode ser. Certa vez, Rita já declarou que acha os movimentos feministas "uma grande confusão, uma espécie de clube da Luluzinha, onde homem não entra, muito pretensioso". Mas acredita na emancipação feminina pelo trabalho.

E depois tem essa história de querer transformar o mundo. Sim, isso é necessário, é preciso romper essa espécie de seriedade oficial que parece aprisionar as pessoas. Mas que ninguém espere ver Rita Lee, um dia, no meio da rua, numa passeata seja lá por que for. "Não acho que isso mude alguma coisa. Acredito que ajudo muito mais às pessoas com o meu trabalho." Ela já cansou de ouvir, também, que deveria se aproximar mais dos "medalhões" da música popular brasileira, juntar o seu jeito debochado de ver o mundo com as visões desse pessoal e ver no que dá. Ah!, ela não fará isso. Por quê? Ela pensa um momento, põe a mão no peito, ri e diz: "Porque, afinal de contas, eu sou uma garota, ora!" Mas ela sabe que. apesar de dar essa impressão, não é mais uma garota. E, embora ainda não tenha se acostumado com seus 30 anos, lembra-se de coisas que a fizeram amadurecer. Sua prisão, por exemplo. Foi em 1976. Rita estava separada de seu primeiro marido, Arnaldo, um dos integrantes do conjunto musical Os Mutantes, com o qual ela começou sua carreira artística, doze anos atrás, e morava com a empresária com quem trabalhava na ocasião. Rita estava começando um caso de amor com um outro músico, Roberto, seu atual marido. Estava começando também uma gravidez. A vida andava animada. A casa onde Rita morava, em São Paulo, também. Era um lugar aberto, no sentido literal da palavra. Portas abertas para todos, a qualquer hora. Ninguém sabe de onde partiu a denúncia, sequer se houve denúncia, ou, enfim, o que aconteceu ao certo. O que Rita lembra com precisão é que um dia alguns policiais entraram porta adentro em busca de maconha, pó, ácido, drogas. O que houvesse. E encontraram uns restos de cigarro de maconha num cinzeiro. No dia seguinte, os jornais contavam a história da prisão: as fotos mostravam Rita, meio abatida, o corpo já revelando o começo da gravidez. Será solta, não teve culpa, não fumou, é uma vítima, mas será que é, e grávida desse jeito - eram as várias considerações que o noticiário ia alinhavando diariamente. Na verdade, Rita Lee ficaria presa durante trinta dias. Numa cela comum. com mais sete pessoas, num espaço onde se arrumariam apenas quatro. "Foi um tempo complicado. mas me ajudou muito. Tudo aquilo era uma coisa tão distante de mim, nunca pensei que passaria perto de uma prisão, e de repente lá estava eu. E eu pude ver quem são as pessoas que estão lá, todas tão parecidas com a gente". ela comenta.

Afinal, veio uma espécie de liberdade vigiada, pôde ir para casa, mas tinha que cumprir horários, obedecer como que um toque de recolher: nada de andar por aí à noite. Exceções eram abertas aos seus shows, inevitavelmente realizados em horas "proibidas" pelo regulamento que tinha.

Aí ela começou a viver a sua segunda fase de ser gente grande: esperar o filho nascer. Mas não se pense numa Rita Lee sisuda, aguardando quietamente em casa o fim da gravidez: lembro-me de uma apresentação dela na TV, nessa época, em que ela alisava ostensiva e marotamente a barriga. enquanto tentava um rebolado dos velhos tempos em que seu corpo era esguio. E então nasceu Roberto que, com o pai. hoje forma a dupla dos "dois Robertos. únicos amores da minha vida". Beto, o bebê, dá lições diárias à Rita. Ela volta à infância, pensa novamente em valores como a importância da harmonia familiar. Beto se diverte ao seu lado. Quando Rita não está em casa, ou quando viaja, ele fica aos cuidados de uma babá e da própria família de Rita - seus pais moram a poucos quarteirões de seu apartamento, no bairro da Aclimação, em São Paulo. Mas quando Rita está por perto. Beto se atira em sua direção, ofega, quer folia.
Os pais de Rita acham que ela é comportada demais!


E folia é a especialidade de Rita Lee. A qualquer hora, em qualquer circunstância. Pode ser que você já a tenha encontrado na rua e nem sequer tenha imaginado que era ela que caminhava ao seu lado. Porque, afinal, como suspeitar que aquela velhinha, toda arrumada à antiga, fosse Rita Lee? E como, meu Deus, Rita Lee pode ser uma velhinha? Porque esse é um dos muitos tipos que ela cria, e gosta tanto, e se diverte tanto. que sai por aí caracterizada. Há também a "Gina", uma solteirona muito exibida e assanhada, segundo a descrição que Rita faz dela. "Gina corre para o telefone cada vez que inventa uma música nova, só para avisar o Gilberto Gil", conta Rita. Confesso que fiquei curioso para conhecer Gina.

Quando Roberto, o marido, aparece na sala, já passa do meio-dia - ele acabou de acordar. Rita falava justamente do romance dos dois. No começo, um não ligava para o outro. Rita havia gostado do arranjo que Roberto, então guitarrista do conjunto de Ney Matogrosso, tinha feito para a música Bandido Corazón, que Rita compôs. "Mas, mesmo assim, cada um fazia pose para o seu lado", ela lembra. A aproximação foi acontecendo devagarinho até que a dupla se formou, profissional e afetivamente. Roberto não é só o marido de Rita, é também seu empresário, o guitarrista de seu conjunto, parceiro de algumas músicas. Com 25 anos, uma carreira artística que a família queria que fosse feita na música clássica, ele é o oposto da mulher. Calmo, um jeito de falar muito sossegado. Beija Rita no rosto quando aparece e adverte, brincalhão: "Não fica inventando aí, não". Rita logo avisa que tem novidade para ele, as revistas da semana inundadas com reportagens do carnaval carioca, mulheres seminuas, de braços abertos para a câmera, gente famosa que veio ver a festa toda. Rita já havia confessado que gosta de ir ao Rio de Janeiro ''curtir o beautiful people", ou seja, as pessoas da moda, os "badaláveis" ou "badalados". E foi o que fizeram, ela e Roberto, no último carnaval. Transformam-se em dois adolescentes quando contam suas peripécias. Procuraram falar com Rod Stewart, um dos iniciadores do movimento de música pop - "um snob, um chato, de origem humilde, mas que acabou se convencendo com o próprio sucesso". Viram Peter Frampton, também ídolo do mundo pop - "um boboca, andava pra lá e pra cá, meio corcunda, procurando não sei o quê" (Roberto imita Frampton). E o Elton John, então! "Coitado", diz Rita, "não sabia o que fazer quando aquelas mulheres deslumbradas se atiravam nos braços dele, gritando Elton! Elton!" (a vez de Rita imitar Elton John). E emenda: "Tudo, tudo mentira, tudo só pra fotógrafo fotografar e pôr na revista, tudo falso, uma alegria fingida".

Muito diferente dela que, quando sobe num palco, faz caretas, borra o rosto em mil cores, se contorce, está sendo muito sincera. Está fazendo o que sente, sem preparação, sem esquemas. Não é alegre para os outros, é alegre para ela mesma. E sabe por que faz sucesso: "Eu tenho talento", ela diz seriamente. "Eu tenho talento, posso demorar, mas chego lá." Ou melhor, já chegou lá: seus discos nunca vendem menos de 200.000 cópias, sua agenda de shows é abarrotada. E vai ganhando admiradores: crianças, para quem ela é divertida, engraçada, alegre; mulheres, para quem é uma pessoa corajosa, capaz de atitudes firmes, inesperadas, capaz ainda de assumir essas atitudes; homens, que a vêem como um novo mito de mulher.

Rita quer todos esses admiradores. "Me preocupo em atingir a todos, por isso componho músicas para outros cantores, quero chegar perto das pessoas, seja como for." Aliás, ela se prepara para que esse contato seja bem mais próximo, brevemente: com um novo show, Babilônia, ela vai percorrer o Brasil. E o que é Babilônia? e como se fosse um retrato, a seu modo, da cidade de São Paulo, onde nasceu, cresceu e está criando o filho. E onde ela vive uma espécie de teima, a de conseguir manter o bom humor e a cabeça fresca, apesar da cidade "séria e cinzenta".

Mas que fique claro não ter ela qualquer queixa de São Paulo. Aqui estão seus caminhos. "Só aqui, nesta terra de imigrantes, é que pode surgir uma nova raça. É aqui que as loucuras chegam primeiro, como o requebro dos quadris de Elvis Presley e o iê-iê-iê dos Beatles." Foi em São Paulo, também, que Rita Lee deu seus primeiros passos como artista. Filha de um dentista, descendente de índios norte-americanos, com duas irmãs mais velhas do que ela, Rita Lee teria, pela vontade do pai, carreira muito pacata: seria veterinária. "Já que ela gosta tanto de bichos, por que não?", pergunta-me Carlos Fenley Jones, o Charles, segundo o apelido familiar, pai de Rita. "Ou então, ela poderia ser dentista, uma dentista cientista. Enfim, poderia ter uma profissão que desse a ela o direito a aposentadoria por tempo de serviço, por velhice, e não dependesse dos caprichos do gosto do público. Afinal, a qualquer momento ela pode deixar de fazer sucesso, e aí terá que forçosamente se aposentar."

Mas Charles não é pessoa capaz de obrigar alguém a fazer o que não gosta, nem dona Romilda, mãe de Rita. E a família em peso acabou renunciando à idéia de ver a filha e irmã caçula, boa aluna no colégio, vencedora de competições esportivas na escola - sua mãe tem medalhas dessas vitórias até hoje -, com uma profissão "estável". Mas ao contrário do que Rita às vezes gosta que se pense, ninguém a considera a ovelha negra da família, como chegou a dizer numa de suas músicas. Rita afirma, até mesmo, que os pais não falam com ela, como que revelando a desaprovação deles ao seu modo de vida. Mas é pura invenção. A única restrição que fazem à carreira da filha famosa é que ela é desgastante. "Rita trabalha demais, não tem hora para comer, o que é um perigo para a anemia dela", comenta preocupada dona Romilda. (Essa anemia, inclusive, já levou Rita para o hospital. Ela sabe que para ajudar a resolver o problema deveria deixar de fumar, hábito que lhe tira o apetite. Mas como fazer para deixar o cigarro de lado?).

Nem mesmo a prisão rompeu a solidariedade da família à Rita. Ficaram abalados com o fato, é claro, mas encararam tudo com compreensão. Afinal, é uma forma de retribuir o apego de Rita a eles. "Não parece, mas ela está sempre preocupada conosco, com a casa. Imagine que há pouco tempo fizemos uma reforma, trocamos um piso muito antigo, e Rita ficou brava, disse que aquilo não devia ter sido mudado, que era bonito, precioso, era uma coisa da infância dela", diz dona Romilda. E, na verdade, Rita não fica muito tempo longe da casa dos pais. Como é perto de seu apartamento, está sempre lá, com Beto a tiracolo - ele é o único neto da família, seus brinquedos se espalham pela casa toda.

Agora, tem uma coisa que Rita Lee não é mesmo: dona-de-casa. Cozinhar, não sabe. Fazer compras, também não. E "desligada", precisa que uma secretária viva lembrando seus horários e compromissos. Se dependesse dela própria, jamais chegaria a algum lugar na hora marcada. Ah! mas também o que se pode esperar de alguém que tenha o ascendente em Aquário? (Astrologia é um dos seus assuntos prediletos.) Mas ela não se queixa, afinal é muita sorte ter esse ascendente, pois ela é de Capricórnio, e os capricornianos são muito rígidos e, se não tiverem um Aquário na vida, correm o risco de ser pessoas, no mínimo, muito chatas. Se ela acredita mesmo em tudo isso? Claro, ela tem provas de que astrologia é assunto sério. Pois não foi um astrólogo que muito antes que ela pensasse a respeito, avisou que ela ia ser mãe do Robertinho?

Não sei até que ponto Rita Lee gosta que as pessoas - o seu público - saibam que fora do palco ela é uma mulher que a gente poderia chamar de muito comportada. Que aquela imagem coleante, coberta de brilhos e cores, desaparece completamente quando as luzes dos refletores se apagam. Ela parece apreciar a idéia de que todos a considerem sempre "bem maluca", "muito louca", "garota engraçada", comentários que sempre fizeram a seu respeito, desde o tempo de Os Mutantes, quando ela se fantasiava a cada apresentação do grupo. Não que queira esconder seu apego à família, sua timidez palpável. Mas, sabe como é, se todos ficam sabendo disso, não acabará "dando um gelo" - expressão de Rita - nessa imensa festa que ela armou à sua volta?

Bem, a festa parece firmemente plantada. Os participantes estão sempre atentos às solicitações da rainha. "Rock é música brasileira?", Rita provocava, num dos momentos de seu show Refestança, feito com Gilberto Gil, no ano passado. "E E E E E E E...", endossava em coro a platéia, para ódio dos críticos de Rita - eles existem, como não! Que falem. Que é estrangeira, que tudo o que faz não passa de brincadeira. Não está preocupada. Afinal, ela é de Capricórnio. E dessas que vai, vai, até conseguir o que quer.

17 de julho de 2008

VERBOS CORROMPIDOS


Existem vários e servem para definir a vidinha que se leva, “jogando conversa fora”. Alguns deles:

BEBERICAR – As pessoas não bebem, bebericam.É como dizia meu pai: tu não fuma, pita. Ou seja, não levam a sério o que fazem. Fingem que tomam todas. Exibem-se de copo na mão. Tem a ver com pilequinho, aquele barato de cuba-libre dos anos 50.

DORMITAR – Em frente à TV, exausto do vazio, você tenta cair no sono, mas como já dormiu bastante tentando fugir das mesmas coisas, então você não dorme, dormita. É como sono leve de sesta, interrompido a toda hora pela má consciência.

CURTIR – Você não vive, curte. A vida só vale se for curtida. Então você atira a cabeça para trás enquanto abre uma gargalhada muda, para fazer efeito diante das câmaras. Ninguém jamais esteve num curtume para ver como é bruta a curtição do couro, mas nem por isso se deixa de usar o verbinho corrosivo que mascara a vida besta.

PAPEAR - Como ninguém tem importância, você precisa de alguém para exercitar o traquejo do linguajar incessante, sem nenhum compromisso a não ser matar o tempo e passar em brancas nuvens neste universo estranho. Conversar é outra coisa. Debater, então, nem se fala. Mas papear, ah, a doce abobrinha da bestagem!

NUTRIR - Está na moda. Serve para consultoria em alimentos, para te encher o saco. Você não come, se nutre. Basta um copo de suco de acelga por dia, duas traíras secas com nozes no almoço, uma sopa de joão-de-barro à noite , e pronto, estás nutrido. Se você fizer alguma palestra, lá pelas tanta diga que algo nutre. Pega bem. Mas jamais defenda a nutrição por meio de uma picanha sangrando. Te prendem.

COIBIR – Coibir é deixar tudo como está. É um sinal de que as coisas vão ser resolvidas da maneira tradicional. É celebrar, fumando desbragadamente charutos Cohiba, a vitória de algum vandalismo contra os outros. Ou seja, toda vez que dizem que vão coibir alguma coisa, esteja certo: vai ser o maior fumacê. Pois não se proíbe mais, se coíbe. Não há punição, há coibição. Há gradações: coibir de primeira linha e de segunda linha, conforme o coturno do crime que deva ser falsamente reprimido.

RETORNO - Imagem de hoje: o charuto do trocadilho.

16 de julho de 2008

CHICO BUARQUE, DA ERA VARGAS

Chico Buarque de Hollanda nasceu em 1944, quando Getúlio Vargas era presidente do Brasil. É filho de Sérgio Buarque de Hollanda, um dos intelectuais brasileiros que foram revelados pela grande explosão cultural ocorrida depois da revolução de 1930, que sepultou a República Velha e inaugurou a era Vargas. Quando o presidente Vargas se suicidou, em 1954, Chico já tinha dez anos de idade, ou seja, sua personalidade estava pronta, seus parâmetros definidos, seu ethos consolidado. Em 1966, quando emergiu de maneira soberba com seu mega-sucesso A Banda, seu recado foi explícito: o Brasil estava sendo destruído e era preciso resgatá-lo, era preciso que a Banda passasse novamente, que o Brasil retomasse seu rumo. Que Brasil perdido era esse? O Brasil da Era Vargas.

Notem que depois de 1954 não foi formada uma quantidade gigantesca de gênios. Foi revelada, o que é diferente (e que fez a fama do colhedor da seara varguista, o matreiro JK). Apenas foi revelado esse número monumental de pessoas geniais, de Chico a Pelé, de Glauber a Caetano, todos formados nos anos 40, quando o presidente do Brasil Soberano estava no poder. Foi um baby boom de gênios porque existia no país o ambiente propício para que eles se formassem. Existia o país, que não estava na mão de energúmenos como hoje. O presidente americano vinha aqui pedir a bênção. Nosso diplomata em Washington, Oswaldo Aranha, encantava o mundo. Chamava rei de tchê loco.

É impressionante que verdade tão cristalina, a de que devemos tudo ao gênio político de Vargas, seja tratado como crime de lesa consciência. Vi recentemente uma série de filmes brasileiros absolutamente horrendos, como é o caso de O Vestido, de Paulo Thiago. A certa altura, o Renato Borghi fazia piada sobre o Barão de Itararé, que teria apanhado muito na “ditadura de Getúlio”. O Barão publicou toda sua obra na era Vargas. O que se conhece dele era conhecido naquela época. Vargas ria junto com os artistas que debochavam dele, ria junto com quem o criticava. Vargas inaugurou o riso do estadista no Brasil. Antes dele, todos eram uns encasacados com cara de cabrito empesteado.

Vargas é destruído no atacado e na ponta do varejo. Ditadura é sempre getulista, jamais a ditadura civil da República Velha e a atual, comandada por mega-especuladores e instrumentada pelo coronelismo do sertão, os capitães do mato dos grotões. É fundamental reiterar todos os dias que Getúlio foi esse monstro asqueroso que teve a ousadia de inventar o Brasil. Pois estamos em pleno sucateamento do país, entregue à sanha imperialista e à brutalidade interna. Vejam a Quarta Frota, que os americanos reativaram para tomar conta do quintal. Estamos ainda em plena operação Brother Sam.

Por que insisto nesse tema? Porque simplesmente os críticos não dormem. Estão sempre alertas, demolindo o mito Getúlio. O mal que o grande estadista fez para essa canalha não tem perdão, é preciso derrotar Vargas todos os dias. Senão o Brasil é capaz de acordar novamente, de gerar música brasileira de alta qualidade, literatura que deslumbra o mundo, arquitetura de vanguarda (que começou antes de JK, no prédio do MEC do governo Vargas, no Rio). É um perigo. É provável que, se Vargas ressuscitar, venha uma nova operação Xingu, que coloque os irmãos Villas Boas na Amazônia. Talvez aí a Amazônia volte a ser nossa.

Já imaginou? Deixar a Amazônia para os brasileiros? Impensável!

RETORNO - Imagem de hoje: o garoto Chico e seu sucesso, A Banda. Atenção: Chico pertence à Era Vargas à revelia de suas opiniões sobre o grande presidente, à revelia de suas posições políticas. Pode achar o que quiser, gostar de Lula como bem entender, mas quando desfila na Mangueira, de chapéu palhinha, sabemos a qual mundo ele pertence. Ao mundo do Brasil Soberano. E atenção: gosto de toda a obra de Chico e não quero, com este post, confiná-lo à Banda. Nem poderia, já que Chico sobra.

15 de julho de 2008

DIAMANTES DO ACASO


Nei Duclós (*)

O que ficava no fundo, veio à tona. O que era oculto, foi decifrado. Quem estava escondido, deixou de ser tímido. Quem guardava um tesouro, embriagou-se. Quem estocava palavras, desandou. Não há mais segredos, embora persistam os mistérios. O mundo é um enorme divã, mas a angústia permanece. A pobreza de espírito implantada impede que se formem feixes de luz, ambientes habitáveis, grandezas. Há um espalhar de ruínas. Os ventos sopram, invariavelmente, restos de uma estranha ferocidade.

Matamos ilusões, mas adquirimos outras. Somos uma espécie de microorganismos que ganham imunidade às vacinas. Novas obsessões andam aos pares, como almas gêmeas. A certeza de que nada muda convive com a caridade performática: o vazio e o pessimismo geram assim seu antídoto, as boas intenções. A indignação passa para o próximo bloco, mas o ressentimento permanece. O amor dura meia estação, enquanto todos trocam juras em frente às câmaras.

Quem romperá esse círculo de ferro? A criação, tão pouco entendida. Costuma-se confundir os verbos: inventar parece idêntico a imitar. Já que é impossível entender de onde vem a inspiração, a fonte que gera uvas, a liga que viabiliza o ninho, o visgo que transforma o ovo, então se decreta o fim do enigma: basta puxar de um outro nicho a fantasia que concorre em originalidade. É uma confusão perversa, pois nega (e finge que confirma) o que o espírito possui de mais genuíno, que é a capacidade de recolher trapos de espanto a rolar pelo cais.

Destramar as redes que são impostas em discursos e retomar seus fios em novas combinações é, aparentemente, o mesmo que reinventar a roda. A diferença é sutil para quem consome, mas não para quem se toca. É brutal para quem assume o papel de protagonista nesse passe de mágica. O duro é ter optado pela criação, que não tem volta, enquanto participamos de um cruzeiro com cartas marcadas. As emoções baratas, fundadas em imitação, formam o álibi perfeito para a mediocridade triunfante, que se locupleta no Mesmo. Enquanto isso, fica à margem a excelência do ofício: reunir o que está disperso, muito mais urente do que expor as vísceras.

Jogadas pelos cantos, vivência e cultura compartilham o impasse provocado pelo multiuso. De tanto ver triunfar as nulidades, proprietárias do pensamento, a desesperança colhe flores amargas. O que nos deslumbra fica para trás, ou nos engana: é descartável a revelação que deveria transformar vidas, mas não dura um fim-de-semana. Perdemos a noção do perigo: deixamos de abraçar o que nos habita, sob a justificativa de que nada vale a pena, já que nos convenceram da nossa pequenez. Ligamos botões e desligamos o Acaso, essa permissão da divindade, esse esquecimento, o não-lugar de onde é possível renascer.

Onde encontrar a diferença que provoque faísca, onde está a madeira de novas fogueiras? Bóiam sobre o mar os restos dessa tempestade. É neles que encontramos sobrevivência. Juntamos tábuas no alto da maré, raspamos pedras sob a chuva. A intensidade da estação nos provoca: é hora de armar o dia sem medo de errar. Não importa o que digam. Talvez nos cobrem coerência, pose, postura. São armadilhas do vazio. Veja o sol, que interrompe a treva. Tão previsível na sua semeadura de diamantes.


RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, 15 de julho de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Machado de Assis em holandês, encontrado em Amsterdam e fotografado por Daniel e Carla Duclós. Ontem, dia 14 de julho, Carla Duclós fez aniversário. O Diário da Fonte cumprimenta Carla, esposa de Daniel, carinhosa, competente e determinada, nessa bela data, que também é aniversário do meu pai, Ello Ortiz Duclós. Dizem também que se comemora a Revolução Francesa. Mas isso é só um detalhe. Mais vale as Bastilhas que desativamos, as bandeiras que levantamos para o alto, os hinos que espalhamos pelas ruas, a plenos pulmões.

14 de julho de 2008

NOVA SAGARANA NO AR


Está no ar a nova edição de Sagarana, a melhor revista cultural do mundo, editada por Julio Monteiro Martins (foto), o mais importante escritor brasileiro em atividade no Exterior (mora em Lucca, na Italia, onde publica seus livros em italiano, é professor de narrativa da Escola Sagarana e professor universitário). Julio nos conta quais são as jóias desta edição de número 32:

"Caros amigos,

É com satisfação que anunciamos a publicação on-line, a partir de hoje, do n° 32 da revista Sagarana (em língua italiana), no endereço telemático www.sagarana.net . Neste mesmo endereço é possível ler os textos atualizados da seção Il Direttore, com o conto inédito "L'altro da sé", de Julio Cesar Monteiro Martins.

Esta nova edição de Sagarana, dedicada à figura do escritor argentino Roberto Arlt, oferece aos seus leitores um artigo sobre a vida de um escritor na Rio de Janeiro das milícias e das balas perdidas, sobre a obra de Zélia Gattai, um conto inédito de Peter Karvaš e um de Rubem Fonseca, poesias inéditas de Kenneth Patchen, de Eguren, de Arnold de Vos e de Gregorio Carbonero, textos importantes de Elias Canetti, Clarice Lispector, Pier Paolo Pasolini, Susan Sontag, William Gibson e muitos outros, além da Exposição virtual, que apresenta aos leitores de Sagarana o Brasil colonial através das obras dos quatro pintores europeus mais importantes entre aqueles que retrataram a vida quotidiana brasileira entre os séculos XVI e XVII: Jean-Baptiste Debret, Johann Rugendas, Frans Post e Albert Eckhout.

A pedido dos nosso leitores, todos os números precedentes de Sagarana são ainda accessíveis no mesmo endereço telemático e podem ser consultados. Ademais, na seção Archivi, estão disponíveis para leitura todas as "Lavagne del Sabato" publicadas até hoje em Sagarana.

Esperamos que os ensaios, os contos, as poesias, e os trechos de romances selezionados possam oferecer-lhes muitas horas de agradável leitura.

Cordialmente,

A Redação de Sagarana"

13 de julho de 2008

AS APARÊNCIAS ENGANAM



Daniel Dantas é um banqueiro emergente, que ascendeu com a entrega, de mão beijada (mas sob gorda comissão), do patrimônio público criado e desenvolvido na Era Vargas. O banco que dirige é, no nome, uma flor lombrosiana: Opportunity. É a entronização do oportunismo, é a esperteza institucionalizada. Banqueiros como ele fazem parte do grande sucateamento da soberania promovido pelo tucanato, quando FHC recebeu, em troca, todas as honrarias com as quais sempre sonhou. Intelectual medíocre e alpinista social, FHC viu nas chamadas jóias da coroa, as estatais brasileiras, a chance de realizar o velho projeto da direita, o de destruir a obra da revolução de 1930.

Dantas é a bola da vez, mas não o sistema que representa. O sistema especulativo das máfias financeiras continuará em vigor, impondo sua ditadura por todos os meios. Dantas poderá até ficar na prisão ou fugir, mas o esquema continuará agindo. Pois tanto faz no sul como no norte. É só ver o que fez o petismo logo depois do tucanato: envolveu-se com um esquema de corrupção escancarado, denunciado pela Procuradoria Geral da República. Qual a fonte desse poder? Ele se consolidou por imposição externa e conivência interna.

Ficamos sabendo que ferrovia no Amapá liga jazidas riquíssimas ao Exterior, sem passar pela alfândega (sou um homem da fronteira, sou do tempo da Alfândega, da Aduana). Quem é o proprietário? Uma multinacional. Quem faz a intermediação? Políticos regionais. Estamos entregando o ouro? Nããããão. Estamos sendo globalizados. Parece aquele jogo de denúncias do bom e velho Carlos Estevão, na revista O Cruzeiro, “As aparências enganam”. Ele desenhava apenas as sombras de uma cena e levantava alguma hipótese sinistra. No quadrinho seguinte, com o título de “Não, apenas isso...” aparecia um candente e inocente flagra de cidadãos bem intencionados.

O sinal mais explícito de que o sistema está sendo desmascarado é a grita geral contra atos anti-democráticos. A ditadura, por não ser oficial, precisa ser reiterada todos os dias, em todos os estamentos. Por isso o juizão do Supremo solta o banqueiro duas vezes, o jornalista dos grotões é assassinado, a censura à imprensa se instala por várias medidas, tudo num varejão explícito para mascarar a essência do regime. E não adianta alguns jornalistas se acharem muito éticos e autênticos, pois apenas participam do jogo de rodízio de assalto ao butim.

A ditadura civil é como a economia informal: não é reconhecida, mas existe e dá as cartas. Também não adiante os ídolos da falsa redemocratização vir agora a público reclamar do Judiciário. Colhem o que plantaram. Criaram um arcabouço fajuto em que a repressão e o arrocho convivem com o discurso do Estado de Direito. Você pode colocar o que quiser na Constituição Cidadã, o que conta é a força bruta. Poderosos malfeitores tentam derrubar a democracia ainda nascente, destruindo assim vinte anos de bom-mocismo? Não, apenas isso: pacatos cidadãos brincam de democracia enquanto o pau continua correndo solto em todos os estamentos.

E vai denunciar isso para ver onde você vai parar. Todos debocham e acham que você está delirando. É uma espécie de Matrix. A democracia é a realidade virtual criada pelos bandidos, enquanto eles sugam até o osso a energia que acumulamos nesta vida impossível.

RETORNO - Imagens de hoje: Carlos Estevão sabia das coisas.

12 de julho de 2008

CARTA DOS BOCA-ABERTA


Há uma carta aberta contra o ministro do Supremo que libertou o banqueiro Daniel Dantas. O texto começa cada parágrafo dizendo que o regime democrático foi atingido pela decisão. Não foi, não. Quem foi atingida foi essa ilusão de que vivemos num regime democrático. Vivemos numa ditadura, tanto é que um cara que é pego pagando propina de um milhão de dólares sai solto depois de um processo cuidadoso de 175 páginas comandado por um juiz federal.

Aí o Lula, que viaja para escapar do batente, diz que a Polícia Federal está incomodando quem sai da linha. Não seja bôbo. A PF prende por duas horas, dois dias, mas não prende mesmo, já que o sistema que nos governa, a ditadura, solta quem quer, mantém preso quem quer e manda matar quem bem entender. É assim que funcionam as ditaduras e a que vivemos hoje não é diferente.

Aí tem uma falcatrua de 800 mil reais por mês na subprefeitura do Brás, em São Paulo, troco arrecadado entre as pessoas excluídas da economia formal e que acabam caindo na armadilha do sistema ditatorial para sobreviver. Não tem licença para tabalhar? Então paga por baixo do pano. Já estouraram uma merda dessas há anos e o troço continua o mesmo. Por que não muda? Porque vivemos na ditadura, não muda mesmo. Só mudaria se o sistema fosse derrotado.

Escutem o sujeito que chefia a corrupção do Brás. O cara pontifica, ameaça, canta de galo e ainda é flagrado de tarde comendo prostituta, o que é a cara do poder que nos governa (lembram das putas que seguravam as notas de cem reais nos dentes naquele escândalo de Brasília?). É assim a postura de impunidade da canalha que manda em tudo que é canto. Contra esse tipo de gente você faz o quê? Escreve uma carta aberta? Não sejamos boca-aberta.

Não devemos jogar pombas para o alto exigindo paz, nem publicar cartas abertas sobre a violência que mata todo mundo e ainda limpa o sangue nos cabelos das vítimas. Não vamos fazer cara de indignação e ficar de dedinho em riste. Tudo isso é conversa para boi dormir. Para peitar a ditatura, a primeira coisa a fazer é se convencer de que não vivemos numa democracia. Isso eliminaria 90 por cento das declarações feitas no tom de “mas que democracia é esta”? O segundo passo é detectar como a ditadura funciona, por meio da violência, do convencimento, da corrupção, não só nos altos escalões, mas na esquina, na rua, dentro de você.

Os outros passos, só quando houver uma grande coletividade dando os primeiros. Se milhões de pessoas se convencerem que ninguém derrotou a ditadura, que ela continua impune, triunfante, que é manipulada de fora do país, como se vivêssemos numa gigantesca operação Brother Sam, aquela de 64, então teremos condições básicas para reverter o quadro. Na hora em que os idiotas e sacanas de sempre invocarem o jogo democrático para justificar as merdas que estão aí, e pouca gente acreditar, então existirá realmente oposição. E oposição não faz apenas barulho. Oposição bota para quebrar.

Oponha-se. Abaixo a ditadura e fora o imperialismo.

10 de julho de 2008

A LINGUAGEM DOLOSA


A suposta perseguição policial provocou o suposto crime contra supostas vítimas. Houve dolo, ou seja, cravaram chumbo no crânio de uma criança, portanto o crime é doloso, supõe a Justiça. Se fosse culposo, o suposto homicida seria supostamente inocente, é isso? Costumo escorregar no sebo dessas palavras para onde a cobertura da imprensa nos empurra. Não há mais reportagem, há reprodução de discursos. O texto jornalístico está manietado pelas falas jurídicas, policiais, políticas, corruptas. É um circulo vicioso, mas essa expressão foi transmutada em círculo virtuoso, uma inspiração vinda da especulação financeira.

Tem um sujeito que berra que não queremos monstros fardados nas ruas. O noticiário leva o berro ao ar, mas imediatamente a cena corta para a cara bem pensante do apresentador engravatado. É a postura do Dono, o tsk tsk tsk do coronel bem posto na varanda da casa grande, a mídia comprada. Porque nós habitamos a senzala e o telejornal é a Casa Grande, ou melhor, a representação do poder senhoril, o que passa pelas prisões como se passasse pelo fogo do purgatório, rapidamente, tostando levemente as crinas. É para dar um tchans no visual. Saem todos soltos e fazem caras de sacanas. Essa cara de deboche aparece na capa dos jornais.

A imprensa se presta a que passem a mão na bunda dela. Está sendo caçada de todas as formas, não apenas pelos poderes políticos, que ganham concessões e se espalham por tudo que é veículo; mas pelos outros poderes, que inventam mil formas de censura. Sem falar que continuam matando jornalista para dedéu. O jornalismo é um crime na ditadura consolidada, pronta e acabada. Não é uma atividade legal, permitida. É marginal e dá cadeia ou atentado. Não invente de fazer jornalismo. Faça a faculdade, mas fuja das reportagens. Hoje no Brasil, reportagem mata.

Por isso invento minhas reportagens. Entrevisto personagens, visito fantasmas. Moro na linguagem em plena forma. Gosto de estar próximo aos contemporâneos, compartilhar a criação, viver no mesmo ambiente onde os reconhecemos com nossas diferenças e sintonias. Na terça-feira passada, estive numa sala lotada, no Centro Integrado de Cultura, aqui de Floripa, debatendo criação com psicanalistas, jornalistas, intelectuais, público em geral. Não fosse o que escrevo aqui no Diário da Fonte, não teria preparo para segurar o papo por quase duas horas. A conversa foi animada, coordenada pela psicanalista Soraya Valerim e tendo como participante da mesa o artista plástico Loro de Lima.

Tivemos diferenças, mas principalmente conseguimos nos escutar, saber o que cada um pensa, interagir. É tão raro esse tipo de encontro. Confinado no espaço virtual, saio pouco, mas saio sempre que me convidam. Podem me convocar. Gosto de estar junto com pessoas que usam palavras próprias, que não se entregam a esse jogo horrendo de vícios de linguagem, que começa no doloso e termina no seboso. Somos artistas, de uma arte sempre insurgente. Que nos gratifica, principalmente quando recebo carta de Juarez Fonseca, o jornalista cultural que todos deveriam imitar, que me diz reservar uma vez por semana para ler este blog. Ou quando Daniel e Carla Duclós me enviam a foto da Vênus de Milo, que está no Louvre, lugar que eles visitaram recentemente.

8 de julho de 2008

PAZ NA DIFERENÇA


Nei Duclós (*)

Acho graça na argumentação de que a Amazônia pertence ao planeta, e não ao Brasil e a alguns países limítrofes. Nunca vi ninguém dizer que o Grand Canyon é propriedade dos franceses, por exemplo, ou que seja apenas um parque temático intergaláctico. Essencialmente americano, não há dúvida de que tudo lá pertence à bandeira estrelada. Desconfio que, ao dizerem “planeta”, se referem ao Brasil. Por que não vão cuidar da Sibéria? Criem lá uma boa reserva, gerida internacionalmente. Se os russos reclamarem, denunciem a desertificação das estepes. Eles nem vivem lá, se amontoam em Moscou e Petrogrado, por que querem ser donos daquele monte de neve?

A definição de fronteiras assegura o trânsito pacífico dos povos. Ao contrário do que diz a propaganda, o mundo com fronteiras é que pode se dar o luxo de ser uma comunidade internacional. Sem elas, é a terra de ninguém, como acontecia antes das intermináveis guerras que definiram as linhas divisórias dos países. Uma só nação, uma só moeda: essa idéia já está fazendo água na Europa, modelo de convivência fundada na casa da sogra, onde qualquer um tem acesso ao que a população levou séculos para construir.

Os irlandeses deram um sonoro Não num plebiscito recente. É costume o plebiscito ser a mais soberana das eleições. É quando o povo mostra, preto no branco, o que realmente pensa e quer. E se existe alguém que se preocupa com a terra onde vive, esse alguém é o cara confinado na própria nacionalidade. Ele não possui recursos para viajar até os confins. Acostumou-se por gerações a resolver seus conflitos, escudado em parâmetros como a língua, a memória, a casa, o bairro, a aposentadoria. Tirá-lo de lá não significa libertá-lo, já que o nacionalismo não é uma jaula, mesmo que não seja encarado como uma virtude.

O povo sabe o quanto custou de sangue cada retalho do território outrora conflagrado. Conhece, pelo relato dos ancestrais, o esforço para configurar o que chamam de um país. Há exemplos de sobra que, sem isso, não há nada. Etnias sem pátria rolam pelos campos de refugiados. Países artificiais se esfacelam em guerras civis. Nações fundamentalistas são invadidas. Ditaduras se sucedem pesando a mão sobre fronteiras mutantes.

Só existe paz quando as fronteiras estão consolidadas. O Tratado de Versalhes, que humilhou a Alemanha e movimentou as linhas divisórias no coração da Europa retalhada pela Primeira Guerra, resultou na invasão total dos países em conflito. Por isso não adianta sonhar com a paz se houver esse esgarçamento das linhas divisórias, uma fragilidade denunciada inclusive pela construção de muros, como acontece entre México e Estados Unidos. Quando não há garantia de fronteiras, instala-se a barbárie.

Existem fronteiras que são cicatrizes de conflitos insolúveis, como a que separa as duas Coréias. Mas há outras, definidas por águas comuns, como a existente entre nós e a Argentina; e as que oferecem apenas alguns marcos para determinar o espaço de cada nação, como a longa divisa entre o Uruguai e o Brasil. Uma correnteza dividida virtualmente ao meio, ou uma pedra pintada de branco, com alguns números inscritos nela, perdida no ermo, fazem parte do patrimônio de povos que convivem e se respeitam. Esse é o mais alto grau da civilização humana. Está acima das ilusões ditas integradoras, as que substituem a cidadania bem resolvida pela voragem das crises.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 8 de julho de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: nossa fronteira, segundo Anderson Petroceli.

DUAS CARTAS SOBRE ESTA CRÔNICA

1. "Maracajá, 08 de julho de 2008

Caro Nei

Aceita estas minhas poucas palavras como desabafo, já não aquentamos mais ver o desleixo dos homens públicos deste país, com às causas que ultrapassam nossas fronteiras.

Nei, infelizmente, nossos jovens estão perdidos, envolvidos nas drogas. Nossas crianças, envolvidas com eletrônicos, em geral, muitos se envolvem, permicivamente, no sexo, na bebida, onde muitos conseguem demonstrar a sua falta de caráter.

É deplorável a falta de patriotismo de nossa gente que ora se generaliza no coração do brasileiro. Aparentemente, nos parece, ninguém está muito preocupado com nossa Amazônia. Parece-nos que, o que importa no momento é como ganhar dinheiro, não importa como. A ganância e o consumismo é o que importa. A preocupação do ser humano, hoje, não é o bem estar do planeta, mas o bem individual do ser humano.

Nei, o que está acontecendo com os políticos? Os que mais deveriam preocupar-se com nosso território. Se pararmos para analisar o que eles discutem, é de puro interesse deles e não da nação. É fácil enumerar os assuntos, começando pelo mensalão.

O que quero dizer com tudo isto? Que a tua coluna desta terça-feira deve ser posta num mural, onde todos possam ler e sentir orgulho de quem realmente se preocupa com esse país e defendermos com garra o que nos pertence. Dizer que, o que temos aqui é nosso. Recebemos como herança a ferro, fogo, sangue e certamente com muitas lágrimas. Não é certo que venham de fora dizer o que temos que fazer com o que conquistamos. A Amazônia é nossa.

Se pararmos para analisar o tamanho deste país, em termos de território, nosso orgulho deveria ser igual. Quem defendeu estas terras no passado, tem que ser sempre lembrados, nunca esquecidos. Bravos defensores, patriotas, cujo território nos deram para dormirmos em berço esplendido.

É isso, parabéns a você Nei. Dos limites de nosso território pra lá cuidem eles, aqui cuidaremos nós. O futuro é agora. Exemplos para o mundo é o que temos que mostrar. Tenho certeza.

Abraços
Telmo da S. Lemos"

2. "Nei Duclós:

Apreciei muito sua coluna no DC de 8 de Julho.
Há muitos anos cheguei à conclusão de que a forma pela qual a humanidade está caminhando levaria à desaparição das fronteiras, e por considerar isso inevitável, acabei por entender que seria um bom caminho - sem fronteiras, sem guerras.
Mas este seu artigo me fez ver que estava errado: você está coberto de razão.

Obrigado pela lição.
Paulo Vianna da Silva
"

6 de julho de 2008

CONVERSA ANIMADA


Estou muito animado com o convite feito pela psicanalista Soraya Santos Valerim para participar de uma conversa sobre criação nesta terça-feira, junto com ela e mais o artista plástico Loro, aqui em Florianópolis. Reproduzo a seguir o texto de Soraya, que está publicado no blog da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Santa Catarina (em formação):

"CONVERSANDO SOBRE CRIAÇÃO

Dia 8/07, às 19h30, na sala Multimídia do CIC, em Florianópolis.

Um encontro com dois artistas. Nei e Loro. O que podemos querer ouvir deles, um artista plástico e outro escritor? O grupo de leitura “Psicanálise e cultura: do mal-estar à sublimação” convidou-os a conversarem, com psicanalistas e afins, sobre o que é criar, sobre o que criam, como criam. Sobre como é abordar algo tão próprio e mesmo assim poder tocar o outro, sem que isso afugente. O que é entregar uma obra sua para ser vista, ouvida, tocada, falada?

Produzir objetos para exibir, para entregar ao público. Objetos que saem das entranhas e que são acolhidos pelo outro. Que coisa é essa que o artista nos entrega? A criação se lhe impõe? Como é o trabalho de tentar expressar a alma, a emoção, o mais além. Talvez seja o que Lacan diz, no Seminário 7: “as coisas que estão em questão são as coisas enquanto mudas. E as coisas enquanto mudas não são exatamente a mesma coisa que as coisas que não têm relação alguma com as palavras.”

O que uma psicanálise, que se dispõe a encontrar a verdade única, singular, de cada sujeito, sem saber no que vai dar, tem de criadora, tem de poeta, tem de pintora? Uma psicanálise que se dispõe a suportar o vazio que está além das palavras, mas que pode ser organizado, no que pode, por elas. Talvez o artista seja aquele que é chamado a expressar esse vazio, de uma forma inédita.

Para iniciar a apresentação dos nossos convidados para esta atividade, seguem trechos de suas escritas.

Nei Duclós, em O Sentimento Sem Nome.
“ A vida é um eterno assassinato dos sentimentos sem nome. Como não podem ser identificados, não há batismo. Chamamos de paixão, amor, empatia, todas as palavras, mas não se trata disso. É algo completamente desconhecido. É território inexplorado, que fazem a riqueza da psiquiatria. Não se trata de batizar, mas de identificar como algo próprio, que faz parte de um conjunto maior. É mais do que a arqueologia do coração e da mente, É trabalhar com um universo desconhecido, que está dentro de nós, mas estamos ocupados com outras coisas.”

Loro, por Loro.
“Em tempos me sinto como escura caverna trabalhando solitária e longa na expectativa de uma brecha de sol, uma chama ou lanterna para que eu apareça a iluminar caminhos doutros. Translúcidos.”

Até lá.

Soraya Santos Valerim
Organizadora da atividade
Psicanalista. Membro da Seção SC/EBP."

RETORNO - Imagem de hoje: obra de Loro de Lima.

5 de julho de 2008

A PETRÓPOLIS DAS LETRAS



A Flip é a entronização da nobreza literária. Tem até a recepção aos escritores mais famosos pelo “herdeiro da família real brasileira”, como se referiu a Folha ao senhor João de Orleans e Bragança, tratado como Dom João. Eu poderia jurar que estamos num regime republicano, mas se existe mesmo uma família real, então coroa e trono estão em plena vigência. Pelo menos na realidade virtual da assepsia cultural, que vigora sem nenhuma oposição. E se existe alguém chamado de herdeiro, então não resta mais nenhuma dúvida. A República não tem mais condições de suprir de conceitos e princípios uma arte tão nobre que é a de escrever, publicar e ser lido. Apela-se para a família Bragança, em Paraty, que vira assim uma espécie de Petrópolis das Letras.

A literatura é servida como produto nobre, expondo a ilustração dos autores e seus súditos, perdão, leitores. Basta ver a maneira como rodeiam Neil Gaiman ou Tom Stoppard. É um círculo sagrado de adoração, numa festa que tem tudo para pertencer a uma espécie de monarquia constitucional. Não voltamos ainda ao Absolutismo, mas falta pouco. Temos vários escrivinhadores famosos, sendo adorados como bezerros de ouro, escutados com a veemência do silêncio. Não é de admirar. Já que vivemos numa ditadura ordenada pelas finanças especulativas e pela negação da soberania, já que eliminamos 1930 do nosso calendário, já que nos locupletamos numa República Velha com voto de cabresto, então só falta mesmo restaurar a monarquia.

É incrível que numa festa literária não haja transgressão. Tudo corre como num megaevento comercial. Os consumidores chegam em massa para tocar objetos de luxo, os livros caríssimos, beijar a túnica de autores consagrados e até compartilhar espaço com os emergentes, espécie de legião de príncipes valentes em busca do cálice sagrado. Não importa que Paraty seja, de fato, uma cidade como outra qualquer, que tem apenas uma pequena parte consagrada à glória oitocentista de Portugal. Não dá para caminhar naquele pedregulho e basta sair alguns metros desse núcleo para ver a boa e velha cidade brasileira de sempre, cheia de quinquilharias chinesas para vender.

Mas o importante é a representação, o apoio da mídia, dos anunciantes, a dança milionária dos contratos, a exclusão em nome de um consenso fundado na reprodução de capitais simbólicos. A Flip não serve para revelar ninguém, apenas para reiterar o que o mercado já definiu. É uma vitrine de ossos banhados a ouro. Cheia de atrações que nada tem a ver com literatura, mas isso já faz parte da natureza. Não se insurja contra o livrismo (o encaminhamento da infância para o consumo de bobagens produzidas pelas editoras), ou contra os shows, os passes de mágica, o ribombar das inutilidades festivas. É um festival, então cale-se.

É como as festas consentidas no Paço Imperial. Pode fazer carnaval, desde que não ameace o poder. Desde que continuem deixando à sombra os escritores que contam e que são sistematicamente boicotados. Desde que as figurinhas carimbadas, de editora nova, não deixem de mostrar seus talentos de uma genialidade espantosa. É preciso reiterar o Mesmo para que tudo continue andando para trás. Depois da monarquia constitucional e o absolutismo, certamente voltaremos à divisão dos territórios pelo poder das clãs, se é que já não estamos mergulhados nesse tipo de barbárie.