29 de abril de 2018

VER NO ESCURO

Nei Duclós


Cada vez enxergo menos, ou melhor, mais confuso, com silhuetas preenchendo o que não vejo direito, com o olho formando cenas que escapam ao cotidiano.

São mundos paralelos que a falta de visão inventa e acabam existindo ali mesmo, se desdobrando em infinitos espelhos.

Num desses perfis de riscos e brilhos existo ainda eu, que alguém tateia para adivinhar a que nos reduzimos nesta progressão no escuro.



PELO AVESSO

Nei Duclós


O amor funciona pelo avesso
Vê os defeitos para fazer o teste
E também para afastar a concorrência

Ela não vale a pena, diz o amor ciumento
Antes de levá-la para a casa
sem que ninguém veja

Você erra a todo instante, confessa o meliante
Enquanto tece um poema de deslumbramento

O amor não regula direito



25 de abril de 2018

COLÔNIA

Nei Duclós


Pões de lado a mala de viagem
E olhas o desolado planeta
Que se expõe sob nuvens de gesso

E isso é só o começo
Ainda procuras um lugar para implantar uma fazenda
Criarás espécies extintas de outros universos


DEPRESSA


Nei Duclós

O dia é mais depressa que o oficio
exercido em concêntricos minutos
Diferente do sol, que pula súbito
e mergulha em hábitos de crepúsculo

Enquanto isso a silaba emperra o conteúdo
A consonância falha, acode a pobre rima
E a palavra se perde como o perfume
que negas ter posto para evitar ciúme



24 de abril de 2018

O RESTO DE MIM


Nei Duclós

Vou substituir este mundo por outro
Um que não faça sombra ao que sou por dentro
E jamais me lembre o tempo
que imaginei perfeito
até tomar conhecimento do destino

Mundo sem o medo
que travou o resto de mim
depois do inverno



TEMPO E DINHEIRO

Nei Duclós


O dinheiro estraga tudo: amizade, amor, ideologia.
Há sempre um veneno nas dobras do dia.
O sentimento deveria ser obrigatório, mas ele não sobrevive.
A não ser com o tempo, nação sem território.



ENTENDIMENTO


Nei Duclós

É sempre noite no entendimento
Horas azuis, corpos ao vento
Nada que existe você compreende
Paredes rachadas, telhas de amianto

É úmido o cárcere da mente humana
Pule no mar na encosta da barra
O que bate asas é teu espanto



23 de abril de 2018

ARRISCO

Nei Duclós


Arrisco, depois de um dia de erros
o acerto impossível do poema
Como grão misturado na colheita
ao granito que envolve a semente
e não há quem tire, encosto em desavença

Vem junto à palavra sua inconsequência
Lixo de diálogos, vergonha alheia
e o verso fica meio torto como tronco na tormenta

Resta bater forte na madeira
não por superstição ou devaneio
Mas para que ouças, flor que nunca dorme



21 de abril de 2018

SALVA PELO POEMA


Nei Duclós

Tenho a palavra como companhia
Ela traz tua alma tocada pelos olhos
furando a papelada do escritório

É quando vens à tona
salva pelo poema
que compartilhamos

Custamos a confessar
esse amor não planejado


ALÉM DE JÚPITER


Nei Duclós

Não espere a terceira idade para se desapegar de tudo. Nem se apresse na mocidade. Desinstale o HAL dentro de ti sem precisar bater com a cara na porta da nave. Cante Daysi quando desistir do socorro. Júpiter já ficou para trás. Agora é tu e o cosmo sem paredes nem teto. Cair é a única realidade das criaturas que perdem o poder de girar em torno de alguma coisa.


NOTURNO DE ABRIL


Nei Duclós

Fui lá fora e vi o céu noturno de abril
como um luminoso acrílico
Com estrelas esparsas bem distribuídas
E a lua no cantinho já indo embora mar adentro.

Melhor do que uma foto temos a palavra
que boia nesse éter em forma de abóbada


BEBI O MAR


Nei Duclós

Bebi o mar, restou a sereia
Que me afogar não mais pudera
Sobrevi porque era terra
o que foi sal e contingência

Meu barco encalhou na areia
Nenhum vento mais me navega
Vivo do que deixei na tormenta
Meu coração indevassável


20 de abril de 2018

PERDIDOS


Nei Duclós

A solidão nos enlouquece
Mas não nos damos conta
Ficamos ao redor do mesmo
ano após ano
E quando nos reencontramos
já somos outros

Enlouqueceu, dizemos uns dos outros
Implodidos em nossa teimosia dos sentidos

Tomamos trilhas sem volta
Para escapar dos convivios
Enquanto isso, sinais de algo terrivel nos circunda
Achamos que não pega nada
permanecer perdidos