18 de outubro de 2003

FIM DA PRIMEIRA FASE



Esta é a quadragésima primeira edição seguida do Diário da Fonte e a decisão é dar um tempo – que pode ser de um dia, dois, uma semana, ou um mês – para reciclar as baterias e dedicar-me um pouco a outros projetos. A coluna ajudou-me a disciplinar meu tempo de profissional autônomo, a aprofundar a reflexão sobre jornalismo, a resgatar experiências e definir conceitos e a criar pontes com várias pessoas próximas ou distantes. Não é pouco.

DIÁLOGO - Pode ser que eu retome este hábito imediatamente, pois escrever aqui vicia. Minha sugestão é receber textos dos leitores que abordem os temas aqui enfocados, como jornalismo, literatura, linguagens, falas, mídia etc. Ficaria sendo assim um fórum plural e não apenas uma arena pessoal de textos. Todos tem algo na gaveta que guardam para determinado dia. Enviem para cá, desde que tenha tamanho hábil, a gente coloca para suscitar o debate. O importante é não esconder-se em biombos e trabalhar o diálogo para que possamos contribuir de maneira crítica e producente para a cultura do país da exclusão. Falando nisso, ontem tive o prazer de conversar pelo telefone com J. A. Pio de Almeida, e ele foi muito caloroso na conversa. Descobri que sua obra-prima As Brasinas – contos/memórias de apuradíssimo trabalho de linguagem – teve uma edição limitada em 2001 que não mereceu uma só linha da imprensa. É bom lembrar que o Poeta Maior foi também homem importante de redações e muitos dos que hoje enriqueceram com cargos e prestígio sentavam ao seu lado na sua mesa para conseguir divulgação das literatices que produziam. Pois o retorno para o grande poeta é zero. Ele não se queixa, eu é que estou colocando isso. Pio de Almeida é muito maior do que essas mesquinharias, que continuam imperando numa mídia especializada em divulgar os amigos. Isso acontece nas redações. Lembro que, ao editar por cinco anos uma revista empresarial, jamais deixei de receber quem quer que seja. Todo dia era dia de reunião com algum frila novo. Ficavam abismados com isso. Eu argumentava que minha obrigação era convocar todos, aceitar todas as demandas e que o processo, o trabalho é que depurava. Não cabe a mim ser censor de destinos. Faço isso porque assim fui tratado: me deram oportunidades várias vezes e preciso me comportar à altura do que recebi.

MÃE-DE-OURO – Mas vamos, para encerrar esta primeira fase, falar um pouco sobre os contos do grande poeta. Ele me confidenciou que tudo o que escreveu nesse livro – que deve ser colocado no panteão da mais alta literatura brasileira – é real: personagens, situações etc. “Claro que dei uma floreada”, diz humildemente este que é um exemplo de trabalho da linguagem. Sua “floreada” é magistral: não há uma só palavra fora do lugar. Como na história sobre seu quase afogamento num lagoão porque, raridade suprema, o cavalo em que estava montado não sabia nadar. Ele, menino, foi-se para o fundo com cavalo e tudo e só contou para os pais meses depois. O mais impressionante é a maneira como resgata as narrativas do pampa. A migração da Mãe-de-Ouro, por exemplo, da gruta do Cerro Jarau (lugar geográfico mítico do Rio Grande do Sul) para Corrientes, dá-se por um estrondo luminoso, que não mexe com o luar, mas com as sombras das casas, que imediatamente voltam ao lugar de origem. Há também uma saborosa história de guerra, em que um pretenso herói conta a verdade:o susto que todos levaram com uma carga do inimigo e como fugiram a galope, desmentindo assim as patacoadas que foram inventadas sobre o entrevero. Tudo isso é de um sabor enorme. Sua obra é a pedra que faltava no mosaico das minhas predileções literárias, pois não me conformava que a fronteira sudoeste gaúcha ainda não tivesse gerado uma altíssima literatura. Pois encontrei essa mina de ouro e voltarei a ela sempre que possível. Especialmente quando eu fizer uma visita ao Poeta em Porto Alegre, para a qual já fui convidado com todas as honras desse anfitrião maravilhoso e homem talentoso sem igual.

EU DIGO ALÔ – Um poema bem pequeno do meu novo livro, mas que contém o recado certo: "Não sou do exílio ou da morte/ Nada sei da saudade/ Não sou do adeus, mas do abraço".

RETORNO – Escrevam. A coluna agora lhes pertence.

17 de outubro de 2003

Diário da Fonte

LER O NARRADOR

A narrativa oral, dita ao redor do fogo, serve-se da profunda atenção dos ouvintes, assombrados pelo infinito da noite, pela presença do mistério das chamas, pelo sobressalto de ruídos incompreensíveis. Fantasmas e heróis assomam nessa situação, que já não mais existe. Resta, para nós, ler os narradores que ainda mantêm esse poder e que transmitem a sabedoria por meio do prazer da leitura. No jornalismo, o texto tosco e obsoleto, sem a força da narrativa, serve aos podres poderes da ditadura, afastando leitores e aprofundando a crise dos veículos.

PERIGOS - Quando Victor Hugo fez oitenta anos, o povo inteiro de Paris passou na frente da sua casa para atirar-lhe flores. Era o reconhecimento pela alegria de ler seus livros e o agradecimento de todos aqueles que saíram dessa experiência muito maiores e mais completos. Quando um romancista desses de araque que existem hoje publicam, por exemplo, um livro policial para engambelar a platéia, está desservindo a necessidade que temos de narradores de primeira linha, de textos com grandeza, que influam na produção de textos diários da imprensa. Se uma besta consegue algum sucesso – graças ao apoio extensivo da mídia, orientada por critérios fajutos – acaba frustrando os leitores que apostaram nele e tira espaço de quem poderia chegar ao público e não consegue, pois não há vagas num ambiente editorial saturado de mediocridades. O pior é que, sem a grandeza do texto, quando há algum debate de idéias – raramente um verdadeiro confronto – tudo fica contaminado pelo veneno da baixaria, já que ninguém está carregado do poder e da beleza que só o talento pode proporcionar. O resultado é a agressão e o silêncio, ou seja, a violência da argumentação seguida ou antecipada pela moita total, a exclusão do próximo. Nesse hiato, medra a direita com sua argumentação tosca, mas poderosa, que desmoraliza diariamente os direitos humanos, que privilegia a tautologia, a escatologia (nos dois sentidos), o deboche. Einstein disse que não sabia como seria a terceira guerra mundial, mas a quarta seria a machado. Depois do fiasco Lula, é óbvio que a direita chegará com tudo, escudada na traição da pseudo-esquerda e montada na miséria galopante do País. Está na pinta para acharem um magnífico candidato, que chame o País à “ordem”. Esse quadro é permitido por um veneno que é injetado em todos os momentos, graças à pobreza mental triunfante e à erradicação do talento.

MEDO - É impressionante o medo que existe em São Paulo em relação ao presidente Getúlio. Desculpem voltar ao tema, mas ontem Otavio Frias Filho profetizou a transformação do Lula numa espécie de “Vargas operário”. Quase tudo o que o PT faz ou vai fazer de errado é atribuído ao Getúlio. A demonização do gaúcho em São Paulo – que só é levado em consideração pela sua porção “alemã” ou “italiana” – é uma tragédia política, pois se até no Vietnã houve confraternização entre americanos e vietnamitas, nunca soube de um ato de confraternização de mútuo perdão pela guerra de 1932. Claro, dirão aqui, quem tem que pedir perdão é o lado de lá. Depois de uma guerra, só a anistia geral permite que se volte ao normal. Essa anistia não houve. Ainda estamos em guerra. Uma das soluções é nos conhecermos melhor, para erradicar essa mancha. Posso propor essa sintonia, pois sou da fronteira gaúcha, meu pai lutou em 1932, tenho três filhos paulistas (o maior, Daniel, nasceu no Espírito Santo, mas aqui foi criado) e moro em São Paulo desde 1976. Minha sugestão é ler os grandes narradores, não para extrair deles qualquer “verdade” histórica, mas só pela alegria da leitura e do conhecimento . Voto em São Paulo no Sérgio Buarque de Holanda, que como historiador escreve melhor do que muitos romancistas. E no Rio Grande do Sul no nosso Poeta Maior . Vamos pegar alguns trechos do assombroso livro de contos As Brasinas, editado em 2001 em Porto Alegre (editoraage@editoraage.com.br) de J. A. Pio de Almeida. Trata-se de uma obra-prima absolutamente desconhecida, que pode ser comparada ao que há de melhor do grande João Simões Lopes Neto (outro clássico).

ALÍVIO - Sobre um personagem inesquecível, Fausto Balastraca, Pio de Almeida conta como partiu para sempre: “Até o dia em que foi viver na casa branca dos ventos solitários...” Balastraca “era o alívio dos necessitados, a palavra vertida dos celestiais caminhos, cruzes espalhadas na testa, no coração, no vento que nasce e no vento que some – e misturas douradas de ervas colhidas no jujal, por entre as pedras do cerro, no banhadal provedor...” Pio de Almeida lança luzes sobre dois mistérios. Primeiro, o Homem-de-Preto, que é uma assombração, coisa que eu não sabia, mesmo sendo admirador do grande clássico de Paulo Ruschel e imortalizado por Os Gaudérios, Os Homens de Preto, música magnífica vestida pelo arranjo do genial José Gomes (ele está voltando, estou avisando, o maestro Zé Gomes está voltando...). Eu achava que eram campeadores vestidos de preto, mas não, são fantasmas que "grudam" nos tropeiros. Outro enigma é o fim dos índios charruas, que desafiavam “as tropas dos referidos reis, no alto de uma coxilha, armados de lanças de taquara e boleadeiras de pedras mouras”. O Poeta conta como foi o massacre daquele povo: “”Se dizendo amigo dos charruas, dito general inventou um churrasco na costa dum arroio que se chama Salsipuedes, convidou a indiada, distribuiu canha em guampas, e, na hora dos abraços, com um exército de mil homens caiu em cima daquela gente, matando o que não escapou”. O Poeta conta causos à beira do fogo: “Na madrugada funda, na hora da ronda, sem aviso, no veludo do coxilhame apagado, lá longe, aparecia o Fogo-Malo, irmão do Boitatá, alma vivente queimando...” Paz no campo e na cidade: o prazer de ler nos salva das heranças de ódios e nos treina para o abraço.

RETORNO – Julio César Monteiro Martins, homenageado aqui pela sua obra de escritor e professor de narrativa, além de editor da obrigatória revista virtual Sagarana (link ao lado), me envia mensagem: “Caro Nei, que belíssimo texto. Fiquei comovido com este teu reconhecimento. Muito obrigado! E vamos em frente...”

16 de outubro de 2003

CRÉDITO É CIVILIZAÇÃO



Para reconhecer a existência do Outro, é preciso deixar de ser auto-centrado. Quando você admira alguém ou o trabalho de alguém, diga a todos, não se escude na inveja, não lamente a sorte. Esse é um perigo que difunde a dor e o plágio. Mas para reconhecer, é preciso enxergar. O Brasil, país invisível (é tratado como hispânico, por exemplo) tem dentro de si vastas porções de sua civilização completamente invisíveis ou vistas de maneira distorcida. Querem ver uma?

ESPANHOLISMO – Dois jornalistas, escritores da Academia, que deitaram e rolaram no tempo do regime de 64, quando estavam bem acomodados no Império Manchete, continuam sua insidiosa campanha contra todos os avanços do Brasil de 1930 a 1964. São eles: Murilo Melo Filho e Carlos Heitor Cony. Murilo divulga um texto citando um estadista catarinense que alertava para o perigo desses “espanhóis do Sul” que tomariam o poder para sempre. Cony recorda uma viagem a São Borja, terra de Getúlio Vargas, em que elenca os barbarismos locais – atentem: Cony mora na Lagoa, no Rio de Janeiro, terra, como se sabe, onde reina a paz, a concórdia e ninguém morre de bala perdida. Pois bem: nessa mesma época relatada por Cony, meu pai, perto dali (a apenas uns 200 quilômetros) abria a porta da frente das nossa casa no verão e, sofredor de apnéia, dormia à larga em plena calçada, a noite toda. As pessoas passavam e cumprimentavam. Uruguaiana não era nem nunca foi roça, é uma cidade voltada para dois países, hoje conta com cerca de 150 mil habitantes e nos anos 50 deveria ter uns 80 mil. Suas largas ruas e calçadas, desenhadas pela engenharia militar, é um exemplo de urbanismo. Quero destacar a segurança naquela época naquela região. Ninguém perturbava meu pai, dormindo desarmado com as portas da sua casa escancaradas. Não havia motivo para sustos: vivíamos em paz. Não havia portanto a barbárie apontada por Cony, que mora hoje no meio do tiroteio e do horror, mas prefere não ligar a brutalidade que o cerca à tribo a qual pertence – a dos irresponsáveis preconceituosos.

EUROPINHA - Espanholismo é uma acusação injusta para um povo que lutou contra os espanhóis por dois séculos. Outro equívoco é dizer que lá é uma espécie de Europa em miniatura, já que o povo do Sul (esse país imaginário inventado para fazer tábula rasa de três estados, divididos em vários regiões diferentes) seria composto por alemães e italianos de olhos azuis. O Rio Grande do Sul, meus amigos, faz parte do que o cientista Paulo Vanzolini chama de “milagre de português”. Vanzolini esteve na Amazônia, no Pantanal, no Nordeste e em todo o lugar encontrava o brasileiro, sentia-se em casa. Pois no Rio Grande do Sul é a mesma coisa. Impera a vasta população negra, e também a mestiça descendente dos índios, como é o caso de minha mãe, que teve bisavó paterna da tribo guarani casada com um português, e era pela família materna descendente de italianos. Existe também muito descendente de europeu, claro, e os guetos dos imigrantes, alguns, pois a maioria está assimilada à civilização brasileira. Pois são esses guetos os destaques das materinhas ridículas da televisão, que ficam reiterando esse assunto de Europinha no “Sul”. A hegemonia da palavra Sul impede a minha existência, pois sou da tríplice fronteira oeste, um lugar que só aparece no noticiário quando há alguma má notícia, já que é difícil ver matéria favorável sobre Uruguaiana. O que tudo isso tem a ver com crédito? Acho que é preciso enxergar o Rio Grande do Sul na sua diversidade e complexidade e na sua contribuição política (a Era Vargas), cultural (dos Veríssimos a J. A. Pio de Almeida), econômica (a insistência no mercado interno, ponto focal de suas brigas com o poder central, segundo o excepcional brasilianista Joseph Love) e comportamental (o culto às tradições e ao espírito de luta). E não justitificar seus feitos distorcendo sua identidade, como se não pertencesse ao Brasil e fizesse parte dos países do Prata. O equívoco, além da má-fé ( o preconceito contra o Brasil trigueiro), talvez venha exatamente daí: pois não é outro o tal rio que era grande e ficava no sul; tratava-se mesmo do rio da Prata. Mas depois que a colônia de Sacramento foi derrotada por aquelas bandas e a Província Cisplatina voltou a ser Uruguaia no início do século 19, nada mais temos a ver com aquilo lá. Só convívio entre vizinhos, o que é outra coisa.

UM CLÁSSICO OCULTO – Coloquei o poeta maior J. A. Pio de Almeida logo acima por pura provocação. Quem é esse poeta estupendo que hoje está recolhido, quieto, “oculto entre as colunas altas do Silêncio”, como diz, no bairro do Espírito Santo, em Porto Alegre? É um brasileiro também descendente de guarani e portugueses, da estirpe dos primeiros donatários de sesmarias que se fixaram no extremo Sudoeste rio-grandense. Sua poesia pertence ao mais alto patamar da literatura brasileira. Leiam esses versos: ““Há um tapa de jaguar vencido em meu silêncio/ um taciturno fim de época rebelde/ um não-sei-quê de sombra e glória no que eu penso...” Mais: “Procuro temperar o rubro nunca visto/ a cujo faiscar dos ângulos confiro/ relâmpagos de espada estrela pura e vento”. E mais estes: “Atiro nacos de poemas em cima da terra nova/ - eis meu sangue recém/ derramado meu sacrifício vinde ver/ o bravo/ que morre por/ uma coisa que eu não sei se é vergonha ou liberdade.” J. A. Pio de Almeida é uruguaianense, nasceu no interior do município, no meio do pampa, e, menino, foi aluno de um professor de longas barbas e postura bíblica. Sua poesia é clássica e precisa ser conhecida. Voltarei a ele, transcrevendo trechos de seus livros Claves da Harpa e do Vento (Ed. Sulina, 1970) , Ciclo (Lume Editora, 1977) e As Brasinas (crônicas, Age Edditora, 2001). Levei um ano para conseguir convencer o poeta a me enviar estes livros. Agradeço agora no ar pela grandeza do seu gesto, pela gentileza do seu trato e pela majestade da sua biografia, que engrandece o país e nos serve de exemplo. O que João Araújo Pio de Almeida, poeta maior, escreve está gravado no coração da civilização a qual pertencemos, a de uma nação que foi construída com gerações de brasileiros vindos de todas as nações e que encontraram paz e dignidade depois de uma eternidade de sofrimentos.

RETORNO - Recebo mensagem de Fabio Murakawa, repórter que já destaquei aqui, e escritor de literatura de primeira água. As editoras estão demorando, penso eu, em publicar o futuro best-seller “Memórias Póstumas de Gim Tones”, da sua lavra, um magnífico painel sobre o exercício da profissão nestes tempos de barbárie e uma seqüência de personagens inesquecíveis. Aposto que este livro vai vender como água. Entrem em contato com o autor: gim.tones@uol.com.br

15 de outubro de 2003

O PARAÍSO DAS COLUNAS


O espaço pessoal onde tudo cabe, da crônica ao furo, faz a delícia não só de leitores, mas especialmente de quem escreve. Uma coluna pode ser hoje um jornal-síntese completo, como a de Elio Gaspari, um assombro de revelações, como a de Mônica Bergamo, um dos poucos lugares onde existe oposição na mídia brasileira, como a de José Simão. Ou ter formato televisivo, como a de Ricardo Boechat. Todas devem algo aos pioneiros como Tavares de Miranda e Ibrahim Sued, que devem provocar curiosidade histórica, mas jamais saudades. (Antes de falar em colunas, vamos divulgar um fenômeno cultural.)

SAGARANA, ANO 3 - Está no ar a nova edição da melhor revista virtual do mundo, e a melhor revista cultural feita por um brasileiro, a Sagarana (acesse no link ao lado www.sagarana.net), do meu amigo Julio César Monteiro Martins. Sagarana é uma avalanche, um incêndio na floresta, um mergulho profundo no que de melhor e mais importante existe para ler hoje. Neste terceiro ano de existência, Sagarana traz ensaios, contos, poesias e trechos de romances selecionados. Nas páginas principais traz José Saramago, Saul Below, Umberto Eco, Ítalo Calvino, Julio Cortazar, Alejo Carpentier. Nas seções sobre Narrativa (Sagarana é também uma escola de Narrativa, que funciona dirigida pelo nosso grande Giulio), Clarice Lispector, Garcia Márquez, Tchecov. Na seção Novos Autores revela oito escritores, na seção de poesia traz Yeats e Ferreira Gullar entre outros. Gullar mata a pau: “O preço do feijão/ não cabe no poema./ O preço do arroz/ não cabe no poema./ Não cabem no poema o gás/ a luz o telefone/ a sonegação/ do leite/ da carne/ do açúcar/ do pão./ O funcionário público/ não cabe no poema/ com seu salário de fome/ sua vida fechada/ em arquivos./ Como não cabe no poema/ o operário/ que esmerila seu dia de aço/ e carvão/ nas oficinas escuras./ – porque o poema, senhores, está fechado:/ “ não há vagas”/ Só cabe no poema/ o homem sem estômago/ a mulher de nuvens/ a fruta sem preço/ O poema, senhores, / não fede/ nem cheira.” De quebra, o terceiro aniversário de Sagarana traz um site sobre o autor, com textos inéditos, biografia, tudo. Julio César, que publicou vários romances e livros de contos, além de ter feito roteiros de filmes e manter por muito tempo sua editora Anima, desistiu de dar murro em ponta de faca no Brasil e foi brilhar em Lucca, na Itália, onde vive. Conheci-o muito menino, estreante de um livro maravilhoso de contos, Torpalium, do qual tive a honra de escrever o prefácio. Sagarana, na edição anterior, publicou meu poema O País Perdido, com o qual Julio identificou-se, o que para mim é a honra suprema. Leiam e divulguem Sagarana e depois me digam se não é uma grandeza.(Também as Atas do 3° Seminario italiano degli scrittori migranti, que a Sagarana promoveu em Lucca no mês de julho passado, estão acessíveis no endereço http://www.sagarana.net/scuola/index_seminari.html).

DIVERSIDADE - O colunismo social nasceu para tornar importantes as pessoas com dinheiro, mas sem importância. Transformou-se na vitrine da má distribuição de renda no Brasil e emite seus malefícios até hoje, quando diariamente a televisão reitera os papéis sociais de rígida divisão de classes, tanto nas novelas quanto na publicidade. Não há cena de novela sem uma pobre criatura uniformizada sendo destratada por um patronete qualquer, quando não fica exibindo sua subserviência de todos os jeitos. Nos anúncios, o que está sendo divulgado sobre o Chat amizade, serve como exemplo. Nele, uma empregada doméstica (com uniforme, claro) chama a apresentadora-estrela de Dona Sabrina, fazendo gestos e bocas de escrava, enquanto a madame bate papo à toa. Esse é o tipo de acinte tratado como coisa normal. Serve para lembrar a parte que cabe aos escravos neste latifúndio.
Como o Brasil é enorme, o isolacionismo de muitas regiões permite que práticas ultrapassadas sobrevivam e por isso o velho colunismo social ainda existe em vários veículos espalhados por aí, que se transmite não apenas nos cadernos de variedades, mas nos de política e economia. Pequenas notas podem render muito dinheiro, como provou recente matéria de Fernando Rodrigues, da Folha, sobre o jabá em parte da imprensa paranaense (mas isso não é exclusivo daquele estado). Há também excelentes colunas de jornalistas criativos, que tratam a palavra tão sem cerimônia que mereceriam ser analisados pelas suas contribuições à língua. Mas o que pega hoje, quando os manuais de redação transformam todos os repórteres em robocops, é que o estilo pode ser cultivado nos espaços das colunas. Se este espaço for de crônicas, como existe no Estadão, melhor. Se houver abertura para memórias, como a de Luis Nassif aos domingos, ótimo. Se for como a de Luis Fernando Veríssimo, que na Zero Hora (e por um tempo nos jornais da Caldas Júnior) sempre foi diária, é uma festa. Veríssimo é um escritor supremo e ler seus textos é compartilhar do seu talento, que ele distribui generosamente.

MÔNICA E JOSÉ – Mas a coluna mais contundente é a da página dois da Ilustrada. Nela, descobri coisas como a grande festa milionária dos Safra, que Mônica Bergamo reportou como ninguém. A colunista entrega tudo e todos, com uma tranqüilidade de fazer inveja. O impulso que dá às fotos de personalidades deveria ser imitado, pela grandeza e invenção iconográfica. Infelizmente, ainda existem colunas que estão no tempo das certinhas do Lalau – quem é antigo lembra do mulherio abordado pelo Stanislaw Ponte Preta. No alto da coluna à esquerda, ela sempre traz algo forte, que envolve o grande mundo das finanças e da política. Uma coluna de reportagens, que abrange tudo. E há José Simão, que extrapola ao dizer tudo o que pensamos de todo mundo.

RETORNO – O fantástico fotógrafo e criador do www.portaluruguaiana.com.br, Anderson Petroceli, que é um feliz pai estreante, descreve o que há neste mês de outubro na terrinha e comenta meu texto sobre aquele rádio, aquela calçada e aquelas músicas, revelando como sua vocação despertou: “Lindas noites de primavera!! É incrível a maneira como descreve os fatos, tu faz a narrativa e ela conduz direto a cena. Vejo que tens em pensamento e bem guardadas as melhores imagens que se pode levar dessa cruzada. Eu também sou assim, lembro em imagem corrida, tenho verdadeira novela de minha infância, falo lá do meu 1º ano de idade, isso já há uns 33 anos + ou -. Talvez seja daí essa mania de olhar o mundo de vários e inúmeros outros ângulos.” Ontem, Anderson me enviou uma foto dele, maravilhosa (para variar) e fiz um poema em cima. Vejam o resultado na seção Cantinho do Poeta, no melhor portal de cidades do Brasil.

14 de outubro de 2003

A PRÁTICA DA ENTREVISTA


Escolher a fonte é tão importante quanto formular a pergunta certa. O perigo é transformar o ping-pong em debate e tentar manipular a resposta para realçar o brilho do entrevistador. Num exercício que tem, numa ponta, Fernando Faro com suas perguntas invisíveis, e no extremo oposto, Jô Soares, que costuma sobrepor-se aos seus convidados, a entrevista é a pedra angular do relacionamento com o Outro, o desafio maior de uma época de individualismos hegemônicos.

EMPATIA – Os entrevistadores que mais gosto de ver em ação chamam-se Paulo Markun e Roberto Dávila. O preparo dos dois é tão apurado que parece que eles estão sendo informais. O segredo, acredito, é que sentem-se completamente à vontade com seus interlocutores, dos quais destacam a carga de humanidade de cada um, chegam ao coração deles sem pressioná-los ou agredi-los, apenas pelo encanto da inteligência e a formulação elegante das perguntas. Muitas vezes, acho que o Roda Viva poderia dispensar alguns entrevistadores, quase sempre mal-humorados ou apenas com suas arrogâncias saindo pelo ladrão, e deixar que Markun faça todas perguntas. Ontem, com José Saramago, repetiu-se uma situação comum no Roda Viva, da TV Cultura: o entrevistado não agüentou o nível das perguntas e começou a rir nas entrelinhas. Quando falaram em leitura gozosa, ele desmanchou-se num riso abafado e respondeu brilhantemente, dizendo que a leitura pauta-se pelo desafio, pois procuramos ler aquilo que está além da nossa compreensão, para que possamos melhorar. É uma paulada nessa história de didatismo lúdico, que mais aborrece os estudantes do que os conquista para o conhecimento. Deixar a criança à sombra é melhor do que deixá-la ao sol, disse Saramago e explicou: se alguém está melancólico num canto, deixe, a tristeza também pode ser uma coisa boa, a pessoa está lá se transformando, pensando. Markun sempre consegue fazer uma bela pergunta no início (deveriam ter outras, que são raras ao longo do programa), que praticamente transmite ao telespectador o aspecto principal do entrevistado e amarra o diálogo para um nível alto, sem superficialismos. Mas o desdobramento da entrevista, com tantas “estrelas” despreparadas, acaba tornando tudo monótono. Lembro o Pièrre Levy que gargalhava sem querer (simplesmente escapava dele) com algumas perguntas, pois tinha entrevistador que desconhecia princípios básicos de metodologia. A falta de formação intelectual básica deixa muito entrevistador na mão. Conheço jornalista que nunca abriu um livro e acho que não existe uma só biblioteca em qualquer empresa de comunicação. Quando você não tem uma formação maior, não finja, fica feio mentir. O telespectador quer ver sinceridade e eficiência, não uma vitrine arranjada de pensatas.

EXIBICIONISMOS – Muitas perguntas costumam ser exposições, palestras, exibicionismo puro. Markun costuma intervir para lembrar o papel do entrevistador, já que o sujeito não para mais de pontificar em cima do pobre convidado. Em Jô Soares isso assume ares de tragédia. O que mais irrita é que ele sempre fez algo da especialidade da pessoa que está lá, mas, claro, de uma forma muitíssimo melhor. Mas dá para entender Jô escutando o depoimento de Gary Oldman numa desses programas de entrevistas. O camaleão maior do cinema disse que ninguém entendia como conseguira fingir tão bem quando tocava certa sinfonia de Beethoven no filme Amada Imortal. Ele replicou que realmente tocou a peça, pois por um tempo achou que poderia ser um virtuose e quase chegou lá. Quando decidiu também ser um boxeador (por um tempo, com algum sucesso), entre inúmeras outras profissões, descobriu que era apenas um ator. Acontece o mesmo com Jô: no fundo, ele mostra que pode desempenhar qualquer papel (especialmente o de “mais inteligente do Brasil”, como gostavam de dizer sobre ele). Jô é ótimo, mas trabalha com scripts, tem equipes escrevendo para ele no seu programa. O único problema é quando acredita que é o que convence ser.

MAKING OFF - A pior entrevista é a dos atores falando sobre seus “personagens”. A falsidade chegou ali e fez morada. A melhor é quando Roberto Dávila nos traz alguém escondido, mas fundamental. A grande entrevista dos jornalões podem ser trocadas pelas mini-entrevistas, sempre ótimas, de Elio Gaspari. A praga maior das entrevistas são as perguntas “como-é-que-você-se-sente” e “como-é-que-é-essa-coisa”. O “povo-fala” das televisões, fundado na obviedade, é pura perda de tempo. Se chove, a pergunta é “como é que é estar chovendo?”. Se faz frio, a pergunta é “muito frio?”. Isso tem sido duramente criticado, especialmente com o personagem do Tolerância Zero, mas não se conserta. As construções verbais, de um modo geral, são tristes na televisão. Ouvi e vi num dia de temporal alguém dizer, num desses noticiários assustadores do cair da tarde, que “São Paulo está noite”. Outra praga maior é interromper o entrevistado, não deixá-lo completar o pensamento. A compulsão da fala é o retrato da busca de notoriedade a qualquer preço e significa eliminar o Outro. O segredo da boa entrevista é querer saber realmente o que o Outro tem a dizer e não provocá-lo para assistir a vítima cair em armadilhas. A não ser que o entrevistado seja um pulha poderoso ou um ingênuo irritante que mereçam o que levam para casa. Mas a entrevista mais original é a do Fernando Faro, que corta todas as perguntas. Seu obrigatório Ensaio – a maior pesquisa musical de uma nação em todos os tempos –, encanta pelos silêncios entre as respostas: sabemos que Faro está lá, que se agiganta quando sai da reta para deixar seu convidado ficar com todas as honras. Isso é civilização brasileira, a cultura da Humanidade Gentil.


RETORNO - DOIS AMIGOS INTERNACIONAIS

1. A página 7 do Globo de hoje traz um artigo intitulado "A ONU no Iraque", do brilhante diplomata Flavio Hemold Macieira, que sempre me brinda com mensagens a partir dos lugares onde trabalha (no início, Irlanda e agora, Chile). Ler Flavio é um privilégio e sua análise lança luzes importantes sobre a área maior do conflito internacional.

2. O Repórter das Multidões, o globe-trotter Carlos Marcondes, que apaixonou-se por uma australiana e resolveu atravessar novamente a fronteira, me envia mensagens do Velho Mundo (sou da Era do Rádio): “Após uma aventura de amor na Europa de cinco meses, entre melhorar meus dois idiomas extras e brigas de cortar o coração com a Australiana, eu estarei voltando em breve. Passei por Portugal, Inglaterra, Barcelona (onde vivi 2 meses), depois Londres de novo,de onde lhe escrevo, sem falar na semana que passei na Itália.” E numa outra mensagem: “Grande senhor conhecedor dos segredos de inexploráveis Pirâmides!”, diz ele, o maior debochado vivo. “ Hoje em dia vivo na fria e cinzenta Londres!!!!O azul resolveu nascer para tentar dar toque de vida no sorriso sem graca da gente daqui!!!!!” Quando fui editor dele, proibi o frila Carlos Marcondes de aparecer na redação, pois atrapalhava o trabalho, já que as mulheres acreditam que ele é um galã (essa é a palavra, sou da Era do Cinema). Trata-se de um enganador, apesar de ser um grande jovem repórter.

13 de outubro de 2003

AQUELE RÁDIO INESQUECÍVEL


Meu maior presente de aniversário, num longínquo outubro de 1958, foi um potente e pequeno rádio de cabeceira Phillips Mullard, que meu pai me deu num rompante. Liguei na tomada, deixei as válvulas esquentarem e me conectei com o mundo. Numa cidade construída no meio do pampa, paisagem lisa e aberta, todas as ondas desciam pela antena até chegar ao meu travesseiro. Foi quando despertei minha vocação para o jornalismo. E fiz minha vida ser orientada pela música.

OURO PURO – Minhas estações favoritas eram: a Bandeirantes, onde pontificavam grandes radialistas, como Walter Silva com seu Bóssessenta e cinco, que no início da tarde não só tocava música brasileira da melhor qualidade, como trazia grandes intérpretes e músicos para entrevistas; e a Tupi de São Paulo, onde Fausto Canova me ensinava jazz das 11 à meia noite. Mas gostava também da Guaíba de Porto Alegre, que não tinha (não sei se agora tem) propaganda gravada e era uma escola de locução; a rádio Jornal do Brasil, com sua majestade de grande emissora; e a rádio São Miguel, de Uruguaiana, que tocava de manhã à noite só bossa-nova e a partir das 21 horas a maravilhosa música italiana, que sumiu para sempre, levando para o éter infinito melodias e cantores e cantoras sem igual. Adorava música francesa, de Edith Piaf a Jacques Brel, música mexicana de verdade (não essa gritaria de hoje, mal assimilada pelos pseudo-sertanejos), boleros, tangos, samba-canção, música romântica americana. Havia melodia, ritmo, harmonia. Tudo isso antes da hecatombe mundial da cultura, conhecida como rap, que é agressão pura e simples, como se o pobre ouvinte precisasse pagar pedágio por todas as injustiças. Havia a rádio Nacional de Montevidéu, que só tocava música clássica, a rádio General Madariega de Paso de Los Libres, na fronteira da Argentina, que tocava o folclore do país, maravilhoso, especialmente os hilários chamames, dramáticos e rascados; a rádio Belgrano de Buenos Aires, retrato da civilização do Prata, que estava no auge. Mas havia mais, muito mais.

TODAS AS LÍNGUAS – Escutava as transmissões em português da rádio Pequim, da rádio Moscou e da Voz da América, que tinha vozes maravilhosas como Leonardo de Castro e Gaspar Coelho. Havia também a BBC de Londres, que gostava de escutar em inglês, mas tinha também transmissão em língua pátria. As ondas curtas eram maravilhosas, o sinal ficava claro como o dia, de repente sumia, para voltar daí a segundos. Eram assim as transmissões esportivas. Na minha cidade, escutávamos a Cadeia Verde-amarela Norte-sul do País, com Fiori Gigliotti, da Bandeirantes, mas tínhamos também radialistas maravilhosos, como Mario Pinto (cronista da cidade), Mario Dino Papaléo (recentemente falecido, com todas as merecidas homenagens), Degrazia (o maior narrador esportivo do mundo) e o excepcional João Carlos Belmonte, que ganhou prêmios de melhor repórter de campo em três copas do mundo trabalhando para a Guaíba (sim, todos são de Uruguaiana). Esses radialistas da terra faziam parte da dinâmica Radio Charrua, totalmente baseada na clássica Radio Nacional, do Rio , inclusive com programa de auditório e produção própria de radionovelas. Posso garantir: o jogo de futebol era melhor escutado do que visto hoje, quando pernas de pau judiam da bola, como aconteceu nos falsos clássicos.

Os meninos dos anos 40 e 50 (época do nosso estadista maior, Getúlio Vargas), aprendiam futebol na escola, na rua, no campinho da esquina. Tão simples assim. Sobrava craque para todo lado. Para se destacar, só sendo um Pelé. Garanto que o primeiro time do Colégio Santana, com Abeguar à frente, daria de 10 a zero no atual Corinthians. Sem falar em Paret (do EC Uruguaiana) Xirunga (do Sá Viana), Nick (do Ferrocarril), Altamir (que só tirava a bola da área de puxeta, com estilo) Ademir (irmão de Abeguar) e os grandes goleiros Barbosa (que só dava voadora) e Nicanor (que um dia adiantou-se demais, mas voou de costas, virando-se no ar para cair com a bola encaixada). Esse era o Brasil de Getúlio Vargas, o estadista mais caluniado de todos os tempos.

JOGOS – Naquela época, eu me recostava na cadeira preguiçosa para olhar o céu, contar satélites que passavam e ver estrelas cadentes, além do lento subir e descer da lua. Todos na minha casa tinham direito a uma cadeira preguiçosa. Apagávamos as luzes para ver melhor as estrelas (isso depois de um crepúsculo no rio Uruguai encantador) e ligávamos a eletrola Hi-fi da sala, onde tocávamos nossos discos, de Luiz Gonzaga a Liberace, de Os Gaudérios a Trio Los Panchos (“Pasarán más de mil años, muchos más”). Hoje, quando o grande compositor José Gomes, arranjador e maestro, que ajudou a fazer de Os Gaudérios um dos maiores fenômenos musicais do Brasil, provocando uma revolução que infelizmente não teve continuidade, coloca música em dois poemas meus, fico pensando na magia no mundo.

Escrevendo para nosso conselheiro editorial Moacir Japiassu, abordei um tema muito comum naquela calçada, a brincadeira do diabo rengo. Rengo, naquelas lonjuras, quer dizer coxo. A brincadeira se dava assim: uma fileira de crianças tentava passar para o outro lado (da rua, da calçada) mas tinha que driblar o diabo rengo, ou seja, aquele outro que, com uma perna levantada (para aumentar a dificuldade e portanto, a graça) tentava pelo menos tocar em algum dos passantes para livrar-se da maldição e transferir para o atingido o papel de diabo rengo. Quando conseguia, o antigo diabo então somava-se aos felizes cruzadores, que de um lado para outro divertiam-se em não ser o condenado pegador. A complexidade de uma brincadeira tão simples é arrebatadora. Há uma condenação no meio do caminho na figura de um demônio. Mas este tem uma desvantagem: não consegue alcançar ninguém se não se esforçar muito, pois tem uma só perna funcionando. Ou seja, só se a pessoa que tenta chegar ao outro lado da vida prevaricar muito será alcançado por um pobre diabo. Se cair na armadilha, por distração, falta de velocidade ou de estratégia, assumirá toda a herança bandida. Será sua vez de tentar agarrar um inocente para conseguir sair do seu inferno.

O que espanta é a radicalidade do jogo. Não existe duplo papel simultâneo dos figurantes: ou você está livre, ou está condenado. Se estiver livre, precisa correr, driblar, aproveitar as brechas para poder passar. Se não for ladino o suficiente, ou corajoso, será agarrado pela terrível maldição. Então, ao se transformar no indigitado, livrará o outro da sua impostura, libertando-o para a inocência. Há queda, mas há perdão. Há rodízio democrático de papéis.

Simplesmente uma maravilha. Um verso de um poema meu, “não há como enganar o diabo rengo” aborda essa maldição: há tempos, fomos condenados, não conseguimos passar para o outro lado, cumprir nosso destino. Só há um jeito de mudar a situação, e nós sabemos qual é. Sendo o mais eficiente cruzador, o mais bravo, o mais clarividente, o mais lutador. E o que é mais importante: contando com a solidariedade alheia, pois se não houver amigos para distrair o perigo, não há como enganar o diabo rengo. Depois que você cruza, você precisa voltar de onde partiu e enfrentar de novo o problema. A vida é feita dessas corridas de um lado a outro, junto com os companheiros, a família, vencendo a sombra que se atravessa. Naquele tempo, a brincadeira tinha hora de acabar. Hoje, não temos a mesma sorte: não há recreio no acampamento de guerra. E o que é mais grave: não dispomos mais de todo o tempo do mundo. Perdemos o que é extremamente valioso e insubstituível: a eternidade nas nossas vidas.

12 de outubro de 2003

A INVENÇÃO DA REALIDADE


A mídia não divulga fatos, impõe percepções coletivas. A mentira exaustivamente repetida, que torna-se realidade, não limita-se ao que os interesses ditam, mas ao que os jornalistas acham que entendem. O que vai para baixo do tapete é o que interessa aqui, neste espaço da imaginação, que propõe o resgate do Brasil que foi para o lixo, em substituição ao Brasil que não nos serve e nos é colocado à força goela abaixo toda hora, todos os dias. Desse País do mal, abrimos mão.

WEBER - No livro “A ´objetividade` do conhecimento nas ciências sociais” (Editora Ática, 1991), organizado por Gabriel Cohn , Max Weber aborda a construção da realidade por meio do conceito do Tipo Ideal, que seria uma síntese a que se costuma dar o nome de “idéias” dos fenômenos históricos, um quadro ideal dos eventos. Melhor ainda: um quadro de pensamento que reúne determinadas relações e acontecimentos da vida histórica para formar um cosmos não contraditório de relações pensadas. Essa construção, diz Weber, reveste-se do caráter de uma utopia, obtida mediante a acentuação mental de determinados elementos da realidade.

A relação do Tipo Ideal com os fatos empíricos consiste no seguinte: “Onde quer que se comprove ou suspeite de que determinadas relações chegaram a atuar em algum grau sobre a realidade, podemos representar e tornar compreensível pragmaticamente a natureza particular dessas relações mediante um tipo ideal. Isso serve tanto para a investigação quanto para a exposição.” Como se constrói um tipo ideal? Weber explica: “Obtém-se um tipo ideal mediante a acentuação unilateral de um ou vários pontos de vista e mediante o encadeamento de grande quantidade de fenômenos isoladamente dados, difusos e discretos."

Esses dados, continua Weber, podem acontecer em maior ou menor número ou mesmo faltar por completo: "Eles se ordenam segundo os pontos de vista unilateralemente acentuados, a fim de se formar um quadro homogêneo de pensamento. Trata-se de um utopia, onde torna-se impossível encontrar empiricamente na realidade esse quadro na sua pureza conceitual". O que faz um historiador? “A atividade historiográfica determina em cada caso particular a proximidade ou afastamento entre a realidade e o quadro ideal. Desde que cuidadosamente aplicado, o conceito escolhido cumpre as funções específicas que dele se esperam em benefício da investigação e da representação.” Muito complicado? Nada, baba de anjo. Os clássicos são cristalinos. Quem complica são os pseudos. Você se inspira na realidade para construir uma utopia. Sabe que é uma utopia, mas sabe também que ela serve para entender melhor a realidade abordada. Digo aqui, pegando carona não autorizada no mestre: não só para entender, mas para intervir.

O BRASIL IDEAL – Para dizer o que pretendo, escudado agora pelo grande Weber (sempre tem um alemão pensando em tudo), reproduzo mais um pouco do livro: “A construção de tipos ideais abstratos não interessa como fim, mas única e exclusivamente como meio do conhecimento. A clareza de uma exposição não é prejudicada pelo caráter impreciso dos conteúdos, basta uma vaga concepção ou a presença difusa de uma especificação particular do conteúdo conceitual.” Pois vamos resgatar uma utopia, o tipo ideal do Brasil que queremos, mesmo que ela seja difusa.

Como o Cinema Novo, como diz Nelson Pereira dos Santos, era quando Glauber Rocha desembarcava da Bahia no Rio de Janeiro, digo que o Brasil que queremos é aquele apresentado pela série de programas do Roberto Dávila. O último foi com Fernando Sabino, que falou, entre outras preciosidades, sobre o dia em que Vinícius de Moraes dançou com Ava Gardner (tínhamos latin lovers brasileiros naquele tempo). Davila já entrevistou uma série de brasileiros fundamentais, como Paulo José, Carlinhos Lyra, Domingos de Oliveira, entre tantos outros, que a mídia não enfoca, ou divulga menos do que o necessário, pois está a serviço da ditadura e vive transmitindo a trilha sonora da repressão, que é a música pseudo-mexicana e metida a sertaneja dos Zezés di Camargos e Lucianos da vida (que representam um povo que grita desesperado no cárcere). Roberto Dávila é o Brasileiro Gentil, dono da maior empatia da produção audiovisual do Brasil.

FOTOS - O Brasil Ideal (idealizado como resgate do País que perdemos e como projeção para o futuro imediato, longe da sinistro pesadelo que nos empurraram, e não como coisa inalcançável) é também quando Marcelo Min (e centenas de outros fotógrafos maravilhosos, cada um melhor do que o outro) corre para fotografar a periferia, o rio São Francisco, o interior da Bahia. É quando decidimos fazer História (como Min diz no seu brilhante Fotogarrafa, o blog dos blogs, pai deste aqui) assumindo a liberdade. Chega de prisão, abaixo a ditadura.

Por que, por exemplo, a AllTV, no lugar de colocar seus apresentadores falando o tempo todo, não faz uma exposição permanente de vídeos criativos, de fotos que estão dando sopa na Internet, de autores que lutam por um espaço? Cito a AllTV porque acho um desperdício tanta falação e tão pouca imagem fora da conversa permanente (não entro no mérito dos debates). Não falem de custos: é custo zero divulgar o trabalho de tanta gente boa, especialmente da nova geração, essa geração que a ditadura joga no lixo, mas que esperneia, grita e abre seu caminho. Como dizia Oswald de Andrade: “O gênio é uma grande besteira. Viva a rapaziada!”

RETORNO - 1. Imagem desta edição: Max Weber em 1917. 2. O poeta Soares Feitosa, de Fortaleza, nos brinda, no seu espaço magnífico de inclusão poética, o Jornal de Poesia, com textos suculentos no endereço http://www.secrel.com.br/jpoesia/francisco201.html. Soares Feitosa é instaurador de utopias e graças ao seu empenho e talento, conseguiu revelar para o mundo milhares de poetas que estavam escondidos ou eram apenas emergentes. Posso dizer também que o Brasil Ideal é quando Soares Feitosa exerce seu ofício de inventor cultural. Pois cultura é o que os outros produzem para nos tornar melhor do que somos. Insistam no http://www.secrel.com.br

11 de outubro de 2003

TRABALHAR COM LIBERDADE

A disciplina é o método mais eficaz para exercer o ofício com liberdade. Disciplina não é punição, assumida ou imposta, e não medra na solidão, mas na solidariedade. Como no cinema, o jornalismo é trabalho coletivo e precisa reverter a atual situação, em que o discurso ético é pregado nas escolas, mas na prática o que se vê é a reprodução infinita do sistema de ditadura civil.( Leia o perfil de sábado: hoje é Mino Carta).

DEMOCRACIA, ONDE? - O Canal Universitário (CNU) apresentou extensa reportagem sobre a profissão, com destaque para uma aluna que falou exatamente o que está acima: a de que na faculdade os professores destacam o caráter ético da profissão e basta colocar o pé para fora para descobrir o óbvio: violência explícita nos horários, remunerações, relações de trabalho, abordagem dos assuntos. Os hierarcas que pontificam e a “massa” que fica pastando. O tremendo enxugamento que foi conseguido com os avanços da tecnologia foi repassado para recuperar o tempo perdido do poder: em vez de os jornalistas usufruírem do dinheiro que foi economizado com os novos custos de gráfica e com a acumulação de tarefas (um repórter hoje pode ser pauteiro, redator, fotógrafo), serviu para brutalizar as criaturas. O CNU também veiculou um programa assustador sobre o MST . Um dos líderes do movimento falou com todas as letras que “parece o tempo da ditadura militar” pois a repressão invade a sede de um movimento social sério para efetuar prisões. A resposta está sendo insistentemente colocada nesta coluna: não estamos mais na ditadura militar, mas na ditadura civil. Não temos democracia, temos a imposição brutal da repressão em todos os estamentos da sociedade. Perguntem ao Fernando Gabeira, que foi humilhado ontem pelo José Dirceu. O maquiavelzinho de província marcou com Gabeira (possivelmente seu desafeto desde a época do movimento estudantil), mas deixou-o esperando por uma hora para depois não recebê-lo. O Deputado Gabeira agora sabe o que é fazer parte do grosso dos cidadãos sem importância do País. Recebeu uma lição do governo que arrega para os ruralistas transgênicos e deixa importar pneu velho do Paraguai. Lembro sempre do Tarso de Castro, que dizia, ao ver esse tipo de coisa: “Dá vontade de pedir cidadania de cachorro paraguaio”.

LIBERDADE, AQUI – Pode-se argumentar que hoje conseguimos dizer o que bem entendermos. Não é verdade. Vai dizer o que pensa na grande imprensa, para ver o que é bom para a tosse. Só se escreve com liberdade quando há uma decisão pessoal para isso, esteja a pessoa numa ditadura ou não. Não vi na falsa democracia de hoje nada parecido ao que foi publicado na época do regime autoritário civil/militar (1964/1985). Não estou falando das denúncias, essa prática que serve de trampolim para voto e que nunca dá em coisa nenhuma, já que o que prevalece é a manopla de urso com garras da truculência. “Não acontece nada” dizia ontem na TV um deputado inconformado com os assassinatos das testemunhas do crime organizado. Escrever com liberdade não é fazer denúncia, é fazer papel de bôbo. Nada mais ridículo do que você dizer o que pensa, mostrar nossa precariedade humana, nossa vida datada, nossa falta de esperança ou nosso otimismo sem base. Escrever com liberdade é conseguir publicar e morrer de arrependimento depois, porque a autocensura nos pune sempre que a desmoralizamos. Escrever com liberdade é queimar-se em praça pública, pois o mercado é composto de reis da cocada preta, todos sérios e compenetrados, maduros na sua capacidade de mentir a si mesmos. As análises de alguns articulistas da política e economia me parecem uma defesa dos seus próprios investimentos. Aquela “seriedez” toda, de olho nos números e nas tendências, lembra o ímpeto potencial de colocar a grana pessoal no primeiro banco suíço. Quando o saldo é portentoso, as pessoas ficam tremendamente complicadas. E dançam conforme a opereta: o vento vira, mas seus textos costumam ser arrivistas, ou seja, querem chegar primeiro em tudo.
Escrever com liberdade é ficar no fim da fila. Não é um bom programa, mas que é um remédio magnífico contra a hipertensão, lá isso é.

Perfil do sábado – Mino Carta

Na redação do Mino, escrevi o que quis e me arrependi algumas vezes, quando me deixava tomar por fantasmas, no lugar de me disciplinar melhor, e viver aquela situação democrática com mais responsabilidade. Quando se aproximava o dia do fechamento (sempre às quartas-feiras) começava a tremer. Era o medo de não estar produzindo à altura do espaço que ele me abriu na sua redação, que enquanto Mino esteve lá, foi a melhor do País.

Maior jornalista do Brasil, o melhor de Mino é impublicável:
- As coisas no Brasil costumam ser a mistura de QI baixo com sacanagem, dizia na redação da revista Senhor, nos anos 80.
Cansado dos nossos erros, fazia mais uma das suas provocações ao País que adotou:
- Precisamos deixar de ser tão brasileiros.
Sobre os colegas de profissão, era fulminante:
- Os jornalistas brasileiros são um bando de cretinos.
Claro que ele falava de seus desafetos, que, acredito, não são muitos.
Suspirava fundo em todos os fechamentos, amaldiçoava a sorte e concluía:
- Este é o balanço.
Nas reuniões de pauta, sacudia os óculos enquanto passava os olhos por todos:
- E então? Nenhuma migalha de uma idéia? desafiava.
Quem tivesse a idéia, assumia o encargo. Por isso, a moita geral.
Mas não havia ninguém mais correto e com mais coisas para ensinar, o que costumava fazer com suas tiradas:
- Você não pode tentar enganar o leitor, que ele descobre. A legenda tem de obedecer a ordem das pessoas da foto, quem estiver na esquerda é citado primeiro. A foto precisa entrar na página em que a pessoa é citada.
São princípios básicos, que nunca eram obedecidos nos outros veículos e que, sob a supervisão do Mino, eram implantados naquela redação.
Pintor de primeira, desenhava toda a revista:
- A estética contém a ética.
Tudo parecia óbvio, mas era apenas clássico.
Fazia a revista com classe, que traz de formação e de berço. Eu achava, antes de conhecê-lo, que um grande jornalista tinha outro tipo de comportamento, que conseguia as coisas de outra forma. Mas ele mostrou que o caminho é simples. O difícil é seguir reto nele.
Para ajudar, dispunha de um imã natural, que faz acontecer as coisas à sua volta. Quando viajava, nenhuma pauta dava certo. Era só voltar, que tudo acontecia.
Parecia mágica.
Gostava de dividir os corações:
- Afora Fulano, que trabalha como um cachorro, o que fazem os outros?
Entrei para a equipe do Mino Carta de maneira transversa. Fechava sozinho a Senhor quinzenal, dirigida pelo Múcio Borges da Fonseca, que um dia me anunciou:
- O Mino vai assumir a revista e você não vai ficar.
Um jornalista sem importância não acredita em destino. Decidi:
- Vou ficar, sim.
Ofereci a seção de livros, que estava praticamente montada, faltava apenas o principal: os colaboradores.
- Vamos fazer uma seção significativa, disse Mino, depois de me aceitar, graças à intervenção de Wagner Carelli. Com a indicação de Luiz Gonzaga Belluzzo, montei a equipe de colaboradores, todos acadêmicos.
Até a Zélia Cardoso de Mello publicou resenha lá. Mas o melhor era Luís Salinas Fortes, o filósofo, que morreu do coração logo depois.
Salinas custava a desovar a resenha. Tinha excesso de autocrítica.
Foi o trabalho mais importante de um jornalista sem importância. Graças ao Ogro.
- Não fale assim com o Mino, advertia Carelli, escandalizado com minha ingenuidade no trato com o poder.
Carelli, especialista em Mino, olhava para os lados enquanto dizia isso. Acho que era para me assustar.

RETORNO – Roberto Nogueira chama a atenção para o excelente artigo de Paulo Nogueira Jr., uma das exceções do comentário econômico e político, sobre as posições do Brasil em relação à Alca e as pressões que estão se desencadeando contra. Escreveu Nogueira Jr na Folha de São Paulo do dia 9: “É o que sempre acontece. Toda vez que algum governo ousa defender com firmeza os interesses brasileiros, os estrangeiros e os seus aliados tupiniquins armam uma tremenda intriga.”

10 de outubro de 2003

O LEITOR NEM IMAGINA


É costume abrir reportagens ou artigos apostando na ignorância de quem lê ou na sua incapacidade de imaginar qualquer coisa. Isso também se estende aos personagens da matéria. O jornalista que comete essa gafe “não imagina” que informação não pode servir de demonstração de força, nem que a articulação do pensamento não pode ser vista como uma exclusividade de quem escreve, ou que o leitor não merece ser tratado como um indigente mental.

FÓRMULAS – Uma das construções escolhidas é “Fulano jamais poderia imaginar que...” É uma conclusão vazia colocada no início de um texto jornalístico, o que é uma contradição, pois como você pode concluir antes de propor? Normalmente, o repórter não pergunta se o Fulano imaginou ou não. Não se trata de um fato, mas de solução de linguagem, de pseudo-criação. Outra coisa recorrente é o “leitor desavisado”. Como você pode garantir que o leitor não está prevenido? Acho que não existem leitores desavisados, eles estão bem conscientes que estão lendo a matéria, super atentos aos seus erros e normalmente informados sobre o assunto. Pois informação não é mão única, é algo compartilhado. Não existe, portanto, motivos para arvorar-se numa ascendência sem base. Mais uma: o repórter propõe uma pergunta que em tese demandaria uma resposta óbvia. Então ele tasca: “Certo?” E depois surge com sua magnífica intervenção: “Errado!”. Com perdão da palavra, acho esse tipo de coisa de uma babaquice total. Sempre me irrito com isso. Por que não fala logo em vez de tentar criar suspense e demarcar bem o território do gênio que escreve e o bobalhão que lê? Na televisão, esses lugares comuns são um assombro de redundância. Sem falar no dedinho apontado para o telespectador e o sarrinho implícito que há quando se referem ao “sofá”. Com o se o telespectador quisesse apenas folgar, estivesse ali no sofá à mercê dos jornalistas que levam sua comidinha informativa na boca. Quando falam em sofá, tenho urticária. Depois da invenção do zap, as pessoas que aparecem na TV deveriam ter mais compostura.

ESCUTAR - Fala-se muito que o jornalista precisa escutar, que todo mundo precisa ouvir, mas não dizem como. Escutar é uma atividade em desuso. As pessoas falam ao mesmo tempo e estão sempre pensando no que vão dizer, por isso fecham-se em copas. O que há são falsas expressões de atenção, enquanto o pensamento voa longe. Numa sociedade de escravos como a nossa (em que todo mundo é senhor) escutar é encarado como um ato passivo de servidão. O escravo escutava o feitor de cabeça baixa e nem abria a boca. Para insurgir-se contra essa herança até hoje vigente – o da servidão absoluta em plena ditadura – as pessoas se revoltam abrindo o bico a toda hora. Escutar é como escrever um texto, é compartilhar com o leitor, ou com quem fala, de algo que é comum à humanidade. Para escutar é preciso limpar a mente de todo pensamento, exercitar-se em entender o que o Outro está dizendo, abrir-se com vontade, apostando que você vai aprender com ele, ou também como uma forma de boa educação. Não se deve cair na armadilha de ficar repetindo o que o outro diz simplesmente para esvaziar a frase dele de qualquer poder, para checar se o interlocutor está dizendo agora o que disse ontem ou há alguns minutos. Escutar é um exercício ético. É preciso, por isso, deixar de tentar completar as frases do Outro, como se você fosse um serviço digital automático, como se a pessoa que fala não tem mais nenhuma surpresa para você.

APROPRIAÇÃO DA FALA - Muita gente só escuta se consegue apropriar-se da fala. Funciona assim: um diz e o outro boceja. De repente, algo parece ser muito interessante. Finge-se que não se está prestando atenção, mas daí a pouco a pessoa vem e aplica exatamente o que foi dito. Como se o Outro jamais tivesse dito nada. Se você reclamar, aí mesmo que não será escutado. E se você espernear, fica com fama de reclamão. Isso acontece todo o dia. Sinal de que vivemos no meio do desprezo à pessoa humana, como acontece em todos os setores da atual ditadura civil em que nos encontramos. O rapaz que foi assassinado depois de derrubar o radar, diz uma testemunha, levou o tiro de alguém que nem mostrou arrependimento. “Matou como se tivesse matado um passarinho” disse a testemunha na Band ontem. Pois não escutar e apropriar-se da fala alheia é também um crime contra as pessoas. Gente da elite intelectual faz parte da ditadura quando se apropria da fala dos outros. São os mesmos que desmoralizaram o termo Direitos Humanos no Brasil, deixando que a direita tome conta desse assunto (o cacete do presídio Ary Franco, que matou o chinês, era apelidado de Direitos Humanos). E mais uma testemunha contra os exterminadores dançou. A ditadura assim peita as autoridades internacionais dos Direitos Humanos na maior cara de pau. Num país que despreza o semelhante, nada mais natural.

RETORNO – Ontem o professor Carlos Chaparro obteve ampla repercussão no Comunique-se abordando a necessária separação entre jornalismo e da publicidade. Escreve Chaparro: “Jornalismo não é melhor nem pior que publicidade. São apenas linguagens diferentes, para interações sociais organizadas por expectativas diferentes. Mas, embora convivendo em espaços comuns, publicidade e jornalismo não devem se misturar.” No dia 21 de setembro, o Diário da Fonte também deu sua contribuição ao assunto: “Credibilidade de um veículo não-corporativo é a separação entre jornalismo e publicidade. Nos corporativos, as duas atividades podem ocupar o mesmo espaço, desde que se preserve, no jornalismo empresarial, alguns princípios básicos. O anúncio e o marketing precisam ser aliados, mas não cúmplices nem inimigos das redações”. Esse é um tema que precisa ser bastante discutido, pois pega firme nas redações.

9 de outubro de 2003

O VEÍCULO CORPORATIVO

Um jornal ou revista, ou um programa de rádio ou televisão, não deve ser escravo da corporação que representa. Um produto de comunicação é a parte mais visível da família de uma entidade ou empresa, e jamais deve ser tratado como um serviçal, um subalterno, uma lata de lixo de vaidades. O que deve predominar é o jornalismo, que define a credibilidade do veículo e serve de vitrine das ações do patrocinador, sem se entregar a alguns lugares comuns que não passam de mesquinharias do velho marketing.

A CHAVE DO ENIGMA – O marketing já está bem servido da área comercial, da publicidade, dos eventos e das relações públicas. Deve respeitar o jornalismo feito dentro de casa, que é ofício à parte, específico, e demanda grande dose de experiência (e que, na sua especificidade, está a serviço do marketing, mas sem fazer parte deste como um capacho asqueroso). Um jornalista é especializado em jornalismo, não no assunto que aborda. Quem é especializado no tema das reportagens são as fontes. O trabalho do repórter ou editor é arrancar da fonte a chave do enigma, fazer com que ela decodifique a linguagem que domina, para que possa ser veiculada para o maior número possível de públicos. Nesse território minado, o jornalista, coitado, pisa em ovos. Primeiro, porque tem sempre alguém mais entendido em comunicação do que ele, alguém que confunde alfabetização ou mesmo formação superior com capacidade profissional jornalística, o que é um equívoco. Para muita gente poderosa dentro das corporações, a presença de um jornalista – tido sempre como um analfabeto, alguém que costuma errar o que veicula – é uma ameaça ao seu status de gênio. Normalmente, um diretor ou presidente gosta de desovar sua fala exigindo que ela seja integralmente veiculada como saiu. No máximo, pedem para (argh!) “dourar” a pílula, como se o jornalista fosse passador de verniz em sapato alheio. A engenharia da linguagem é a mais terrível das especialidades, pois praticamente desmascara as linguagens corporativas e as joga para os leigos com eficácia, derrubando assim torrezinhas de marfim e colocando pseudo-biografias nos seus devidos lugares.

MISSÃO POSSÍVEL – Pode-se argumentar que essa é uma missão impossível, já que os veículos corporativos servem para colocar o presidente na capa, o diretor com cara de conteúdo tergiversando sobre alguma abobrinha de plantão e funcionários sorridentes, em grande parte das vezes preservando tartarugas e ensinando capoeira (ah, a responsabilidade social, essa moda que serve para dar esmolas às massas desprovidas de direitos, que se estivessem bem servidas, as massas, colocariam a correr todos os bem intencionados que ficam distribuindo gestos de amor em frente às câmaras). Mas o jornalista, para cravar seu trabalho, precisa ser um estrategista. O truque é fazer tudo o que pedem, para poder fazer tudo o que se deve. O importante é como fazer: o que poderia ser uma notinha pífia de oba-oba pode se transformar numa bela reportagem, com repercussão certa na grande imprensa (que faz a festa sem jamais, claro, citar os veículos corporativos, já que estes “não são jornalismo”) . Pedem para dar destaque num evento festivo? Pois esse evento também está cheio de informação, basta saber fazer. Um diretor escreve algo ilegível? Reescreva, baseado no que ele disse, e mostre o resultado. Ele vai gostar. Uma reunião da consultoria aconselhando o óbvio para assustados funcionários que morrem de medo de perder o emprego? Vá atrás do que a consultoria tem no acervo, faça uma matéria com estatísticas, perfis de comportamento etc. Aproveito para lembrar o que fazem as inúmeras emissoras de televisão corporativas, como as TV Senado, Câmara, Assembléia: ficam mostrando as figuras engravatadas falando o tempo todo. Mas que desperdício! Façam televisão! Televisão não é parlamento, é comunicação. Contribuam para democratizar a informação, lutem contra a ditadura civil.

DITADURA CIVIL – Preciso aqui reforçar o conceito de ditadura civil, que uso para encher o saco dos eternos “heróis” (os verdadeiros morreram) que “lutaram” contra a ditadura militar (para mim, um regime civil/militar autoritário). Lembro que ela foi inaugurada com a morte de Tancredo Neves, quando o presidente Figueiredo não quis passar a faixa para o ex-presidente da Arena, José Sarney, em 1985 (símbolo do novo golpe, tanto é verdade que até hoje está no poder). Mas foi implantada de fato com o Plano Real, do FHC, que é fruto do susto do País diante dos fracassos dos planos econômicos e da visível corrupção da Nova República. A ditadura civil manifesta-se na política pelo estamento (Raymundo Faoro); na economia pela gestão dos fundos de pensão (Chico de Oliveira); na ideologia pelo deslocamento das idéias em relação à realidade brasileira (Roberto Schwarz); na mídia pela concentração de poder em poucos donos e pela crise permanente, que serve para mantê-la sob jugo (Mangabeira Unger); na prática pela corrupção e pela violência; e no marketing pela cara anódina do ministro Palocci, serviçal do FMI, no “nóis-neste-país” do presidente Lula (que já cansou o mundo com sua arenga) e na postura de maquiavel de província de dois Josés, Genoíno e Dirceu. Enquanto isso (ou “mientras tanto”, como dizem os hispânicos) o ruralismo reacionário debocha com os transgênicos, José Rainha e Deolinda estão no cárcere, o coronelato e o resto da direita deita e rola, com a boca na botija, pronta para recuperar o marketing desta ditadura, que tão brilhantemente montaram a partir da apropriação da fala e da frustração da revolta popular.
Que esperavam? Que eu falasse só de jornalismo corporativo hoje? Tenham dó!

RETORNO – Ontem o Diário da Fonte completou um mês de edições ininterruptas e foi agraciado com uma súbita, embora modesta, alta das visitas. Sinal que o blog, se for tratado seriamente, pode um dia se transformar num veículo importante de comunicação, apesar de ainda sofrer preconceitos da parte, digamos, mais “nobre” da mídia. Falando nisso, é bom assistir ao Boris Casoy neste sábado, quando irá ao ar uma matéria sobre blogs, com destaque para a fotógrafa Regina Agrella, do http://www.fotoblog.blogger.com.br/

8 de outubro de 2003

TELEVISÃO O TEMPO TODO


Assim como o Google é a universidade do pobre, a televisão é um banho diário de cultura audiovisual. Internet e TV desempenham hoje um papel anti-isolacionista que serve para lambuzar o cidadão com dados nunca dantes navegados e, pela importância, são alvos da mais cerrada blitz do conservadorismo. Ficar atento à destruição do caráter democrático desses veículos faz parte da luta pela emancipação humana.

CANAL 21 - Essa rede tem acertado numa programação viável, mas peca por alguns erros primários. Primeiro, apresentar o genérico da testosterona, o execrável Antônio Banderas, a cada cinco minutos chupando uma pobre criatura, além de ser de um mau gosto atroz, revela o pouco caso dedicado ao telespectador. Não é preciso lembrar a toda hora que a emissora é “de qualidade” e por isso exibe o atorzinho em exercício de sugação. Segundo, colocar o finado Casal 20 em horário nobre, durante uma hora, das 20 às 21, e deixar o Larry King com legendas para alta madrugada, é simplesmente jogar dinheiro fora. Larry King é bamba em jornalismo e poderia peitar tranqüilamente o Jornal Nacional, sempre às voltas com os mesmos temas, como se a realidade fosse uma suíte permanente dos interesses da emissora, intercalados pelas terríveis “materinhas humanas”, praga que se alastrou na mídia junto com a proliferação de ONGs – uma síndrome que eu chamo, sem entrar no mérito de nada nem de ninguém, de “preservar tartarugas e ensinar capoeira”. Outro erro do Canal 21 é repetir no seu noticiário as mesmas coisas já exaustivamente exploradas pelo Boris Casoy, o Jornal da Band e o JN. Horário alternativo de noticias, em emissora alternativa, tem de apostar, não numa pose de credibilidade, mas na ousadia total. É só investir no inusual, no oculto e parar com essa história de falar sempre no início do noticiário que o jornal “está começando”. Por que dizem sempre isso? É lei? E por que cumprimentam o telespectador (isso todos fazem) depois de dizer as manchetes? Então você primeiro fala com o cidadão e depois dá boa noite? Outra coisa que o 21 deveria fazer é investir mais em cinema. Ontem passou O Destino do Poseidon. Até quando, meu Deus? Por que não fazem um Festival Sundance Film, evento que há décadas revela cineastas do mundo todo?

PROVOCAÇÕES – Ontem, o melhor programa da televisão brasileira, Provocações, do Antônio Abujamara, foi ao ar pela TVE, do Rio, com uma entrevista com o Miguel Arraes. O ex-governador de Pernambuco disse coisas decisivas. Primeiro, de que o PT nunca deu a atenção devida à História, como se a política prescindisse desse dado. Arraes é da opinião que devemos achar nosso caminho a partir das lições da História, uma coisa que está esquecida, com as conseqüências visíveis, onde vivemos presos num eterno presente fantasmagórico. Também é da opinião de que o golpe de 1964 no Brasil (que, para mim, foi dado para acabar com as conquistas da revolução de 30) foi preventivo, pois os Estados Unidos precisavam garantir uma América Latina em estado de arrocho político, sem ebulição, para que pudessem abrir uma frente de guerra com o Vietnã. A redemocratização no Brasil, disse Arraes, coincide com o período posterior ao fim da guerra vietnamita. Os americanos se deram conta, segundo Arraes, que à força não poderiam subjugar os povos, pois levaram uma surra no Vietnã. Decidiram então apostar na mídia como o caminho mais eficiente de manter as nações subjugadas. Até quando essa dominação por esse meio vai durar, não se sabe, disse Arraes. Mas pela política atual dos Estados Unidos, vê-se que esse barco está fazendo água e a pressão vai aumentar.

CONCENTRAÇÃO - A Internet nasceu na Guerra Fria sem centro, para evitar que um ataque nuclear acabasse com o sistema de uma só vez. Como não tem centro até hoje, virou uma mídia democrática, a mídia das mídias. A atual tendência é vilanizá-la: a toda hora, no noticiário televisivo, a Internet engravidou alguém, é culpada de algum crime. Se uma garota foge com o mariner, a culpa, claro, é da Internet e de mais ninguém. A Microsoft proibiu seus chats porque era um flanco aberto para o assédio. A rede de prostituição, com menores inclusive, em todo mundo, nem é motivo de preocupação. Isso existe a céu aberto. Outra evidência é colocar toda informação da Internet debaixo de algum endereço poderoso, que serve como guarda-chuva, onde toda informação deverá ficar abrigada (uma rede “confiável”?) Não existem mais links na televisão? Isso é gravíssimo. Para terminar a coluna de hoje: ontem, também pela TVE, vi uma longa entrevista com o Geraldo Carneiro, importante poeta do Rio de Janeiro. Mais poesia na TV é a nossa reivindicação. Sorte que Abujamara sempre nos brinda, no seu Provocações, com um longo e maravilhoso poema.

RETORNO - Miguel Duclós (que mantém há anos o site www.consciencia.org) me apresenta um texto de Robert Stam sobre o filme de Glauber, Terra em Transe, publicado numa antiga revista filosófica Discurso, e fico impressionado. Vou para o Google e descubro maravilhas no site do Estadão: “Bob Stam tem dois de seus livros editados no Brasil -- O Espetáculo Interrompido – Literatura e Cinema de Desmistificação (Paz e Terra/81), e Bakhtin: Da Teoria à Cultura de Massa (Ática/85). Neste ano, mais quatro novos livros de sua autoria estão sendo lançados em língua portuguesa. A Papiros edita Introdução à Teoria Cinematográfica. Depois será a vez de Crítica do Eurocentrismo, que sairá pela Cosac & Naify. A Edusp estuda a publicação de Multiculturalismo Tropical – O Negro no Cinema Brasileiro e a Editora da UFMG avalia A Literatura através do Cinema – Realismo, Magia e Arte da Adaptação. Apaixonado pelo cinema brasileiro (em especial por Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, e Terra em Transe, de Glauber Rocha), Bob conquistou respeito acadêmico pela consistência e ousadia de seus estudos sobre literatura e cinema. Além de D. Quixote, de Cervantes, o pesquisador norte-americano mergulhou na obra literária, teatral ou cinematográfica de Rabelais, Sterne, Fielding, Brecht, Jarry, Godard, Glauber e Ruy Guerra.”

7 de outubro de 2003

O MUNDO ALÉM DA JANELA


Redação é exílio e a maneira mais eficiente de ficar longe da vida e dos acontecimentos é passar a vida batucando em teclas, de cabeça baixa, trabalhando linguagens alheias e obedecendo a mil imposições dos poderes da mídia. Há, nesse deserto gelado, lugares por onde é possível respirar. Mas a paisagem vista dessas aberturas é sempre sinistra. Só o coração pode tornar-se a nau capitânea que irá te resgatar em meio à névoa.

LÁ FORA - Pode-se argumentar que um repórter vive mais do que um redator ou editor, mas seja qual for a função exercida dentro de uma redação ? de jornal, revista, rádio, televisão ? a maior parte do tempo é dedicada ao ofício bruto, à produção de milhões de linhas ou imagens para o consumo. Por mais vibrante que seja a vida do jornalista, o que pega mesmo é a ?cozinha?, e isso serve para todo mundo. Ontem, revi o início do clássico Todos os Homens do Presidente, e cheguei à conclusão que esse é o único filme americano em que os jornalistas trabalham de verdade. Nos outros, eles vivem aventuras, conquistam princesas, espionam, lutam, atiram. Mesmo uma redação completa como nos filmes de Super-Homem não serve para nada (tanto, que o vilão Lex Luthor, ao destruir tudo, revela que aquilo não passa de um aquário de luxo). Clark Kent é perfeito como repórter : tem certeza que é o Super-Homem, mas não passa de um panaca. Nunca está trabalhando, está sempre sendo desviado para loucas escapadas (como o Tintim, outro repórter que jamais escreveu uma linha). Vendo Redford e Hoffman colocando laudas nas máquinas, tirando papéis amassados do bolso, me deu uma infinita tristeza, não a tristeza dos poetas, como alerta Mario Quintana, daquele tipo ?que em vez de se matar, faz versos? (Quintana é mortal!). Mas repassei as milhões de horas em que fiz aquilo, pressionado pela História. Lembro Mino Carta me dando uma reportagem que ele não gostou e que eu devia reescrever inteira para ?descer? à gráfica em poucos minutos. Era uma reportagem enorme, sobre o enterro do Tancredo Neves. Tive que bolar uma estrutura (a partir do que estava escrito, criei, para costurar a matéria, o tema ?o funeral serviu de teste político para seus organizadores e principais participantes?). Enquanto ia escrevendo, Mino ia lendo e passando a caneta. Tremo só de pensar naqueles minutos terríveis.

VOCAÇÕES - O jornalismo, pelo que tenho visto, é uma vocação rara e a maioria está lá por contingências. Mino, que é um grande pintor (e que desenhava cada edição da revista Senhor), fala muito sobre isso. Conheci poucas vocações. Uma delas é Caco Barcelos, que fez, entre milhares de outras matérias, a magnífica ?Sabotamos a central nuclear!?, com chamada de capa na revista Repórter Três. Caco virou operário em Angra dos Reis e em plena época do regime autoritário civil/militar levou uma máquina fotográfica dessas descartáveis e provou que esteve lá dentro e que, assim, qualquer um poderia entrar - a segurança era furada. O editor da Repórter Três era outro vocacionado, Hamilton Almeida Filho (ninguém mais fala dele? mas que escândalo!). E tem uma lista boa, muitos aqui citados, mas lembrei do Pena Branca, repórter policial e ídolo do Caco. Para não me acusarem de saudosista, quero dizer que a ditadura civil, vitoriosa em 1985, com a morte de Tancredo, e que até hoje dá as cartas, eliminou o jornalismo verdadeiro do Brasil, de uma maneira muito eficiente: cortando a sucessão natural nas redações. Eliminaram-se os grandes repórteres, que sumiram sem deixar vestígios. Sobrevivem alguns poucos, todos ótimos, e formam-se novos, alguns promissores, mas nenhum ainda com aquela grandeza. O ponto de mutação foi a desastrada greve dos jornalistas em 1979, quando o patronato descobriu que poderia fazer jornal sem jornalistas. As redações foram às ruas, cruzaram os braços e... os jornais noticiaram a greve. Foi um erro colossal, sem o apoio dos gráficos. A partir daí, o cargo de diretor de redação ficou restrito às famílias proprietárias (com algumas exceções). Somam-se a necessidade do coronelato político de manter o garrote na nação inerme (desarmada), os negócios mal feitos das empresas de comunicação e temos o quadro tremendo de desertificação.

ESPÓLIO - Os jornalistas que se formaram nos anos 60 e 70 amargam exílio não apenas pela idade ou a morte, mas por essa brutal intervenção na mídia, em que a reportagem cedeu ao evento, a coragem ao tráfico das denúncias, o talento à mediocridade bem comportada, a ousadia à consultoria, a revelação ao compromisso. Para isso, sucumbir ao horror da ditadura civil, é que dedicamos nossa vida. Deveríamos desconfiar: em pleno autoritarismo dos 60 e 70, apesar de tantos sonhos e alguns momentos de euforia, a maior parte do tempo estávamos às voltas com a censura. Ela então, sob a forma do politicamente correto, desceu sobre nós como um anjo mau. Com o agravante apontado hoje pelo obrigatório Mangabeira Unger, na Folha: "A mídia está quase toda quebrada e dependente do governo. Sobram poucos espaços livres". O que nos resta é resistir, de coração em guarda, e contrariar tudo o que aqui escrevi, tomando contato com a mídia que hoje nasce democrática na Internet e lutando para que a grandeza do jornalismo brasileiro volte com tudo às redações e deixe de ser, nelas, uma exceção. Hoje, os jornalistas de verdade continuam sendo assassinados (e os líderes populares, presos). A ditadura civil não perdoa.

RETORNO - O bom de publicar no Comunique-se é que, embaixo do texto, tem sempre comentários. Isso sim é que é vida!

6 de outubro de 2003

AMIGOS, COLEGAS E CHEFES

Hoje inauguramos alguns links, comentamos o encontro com jornalistas e poetas e reproduzimos situações vivenciados nas redações com o mais temível dos colegas de trabalho: aquele que todos chamam chefe. Quem tem chefe é índio, dizem. Então, os jornalistas são a mais explícita tribo do mundo.

OSMOSE - Tenho feito crítica literária e reportagens culturais ao longo das décadas e trabalho por osmose: entro na linguagem do autor para tentar decifrar um pouco a sua criação. Dois exemplos estão no ar: uma resenha (na seção Em Pauta) sobre o romance “Concerto para Paixão e Desatino”, de Moacir Japiassu, no Comunique-se (link ao lado) e o poema Folha de Vidro , sobre o livro de Fabrício Carpinejar, Biografia de Uma Árvore, já colocado no endereço http://www.carpinejar.blogger.com.br/. É uma resenha que procura navegar na linguagem de Japi e um poema que se alimenta do que as palavras de Carpinejar sugerem.

RABISCOS - Não consegui meu primeiro emprego porque resolvi rabiscar o lead a lápis, ao lado da máquina (instrumento antigo que fazia tec-tec-tec, barulho que alardeava a dedicação ao trabalho ). O chefe de reportagem viu e me dispensou antes de eu começar. Acabei passando num teste para foca na extinta Folha da Tarde, de Porto Alegre. Meu primeiro chefe de reportagem era bastante explícito. Todos os dias dizia:
- Vai lá ver o que tem e o que não tem.
As pautas eram sucintas e incompreensíveis. Ganhei prestígio quando fiz o seguinte lead, sobre um acidente no campo:
“O avião vinha vindo pelo campo e bateu numa vaca. O caso foi parar na justiça. O juiz perguntou para o piloto:
- A que altura o sr. viajava?
- Numa altura de meia vaca, respondeu o piloto.
- Então, da próxima vez, ande na altura de vaca e guampa.
O Luiz Fruet, grande jornalista que já emitia seu brilho, adorou. Era possível fazer uma abertura dessas naquela época, quando não havia manual para padronizar o texto dos repórteres e assim, por eliminação, dar destaque aos comentaristas e suas criativices, como acontece hoje. Buscava-se a criatividade. Era o tempo do JT inaugural, do Pasquim, da revista Realidade. Todo mundo queria ser de vanguarda. Mesmo rodeado de pampa por todos ao lados.
Em Vitória, na revista Agora, tive outro chefe muito sucinto nas suas recomendações. Trata-se de Rogério Medeiros, que depois virou político do Espírito Santo pelo PT. Ele entregava um rabisco onde estava escrito em garranchos:
- Ir na malária.
Até descobrir que havia um departamento governamental que cuidava da malária, onde seria desencadeado um programa de prevenção ou algo assim, o repórter pastava. Até hoje brinco com essa frase ao passar para os repórteres algum encargo cavernoso. “Ir na malária”, digo, vingativamente, para olhos abertos em pânico.
Vitória do Espírito Santo era um lugar privilegiado. Tinha semanas inteiras de feriados originais, baseados em datas desconhecidas até pelos próprios habitantes.
- Por que não tem expediente nesta semana em lugar nenhum de Vitória?
- Ah, porque quarta-feira é o Dia da Hora.
- E o que vem a ser isso?
- Sabe que eu nunca soube? Nasci em Vitória e sempre comemorei o Dia da Hora... Acho que é a hora em que Jesus subiu ao céu.
Vitória é uma cidade maravilhosa. Recebeu-me, a mim e minha mulher, de braços abertos. Lá nasceu meu primeiro filho, Daniel. Uma cidade da hora.

SARGENTO GUIMA - Chefe importante foi o Woile Guimarães. Começava um comentário de maneira macia: “Olha esse texto que você escreveu, nesta parte aqui...dizia ele mansamente, para completar: -...está cheio de lugares comuns. Isso que você escreveu aqui é uma grande b. do c.!” Eu ficava impressionado como tratavam os jornalistas nas redações de São Paulo. Por muito menos, no Rio Grande do Sul aquilo dava tiro. Como nunca tive uma arma, reescrevia. E foi assim que me livrei de um monte de fumaças e aprendi alguma coisa.
Na TV Guia, editada por Woile, decisivo foi Macedo Miranda, filho, o Rei do Texto Redondinho. Filho de romancista, ele tinha vindo do Fantástico e dava a receita:
- O texto tem que ser redondinho. Cada parágrafo liga no outro e o último liga no primeiro. A primeira frase é fundamental. Com ela você seduz o leitor para o resto do texto, que escorre como água.
Macedinho amansou Woile, que estava rosnando demais para cima de mim. Os textos que fazíamos eram sínteses de matérias de grandes repórteres como Caco Barcellos e Audálio Dantas. Tive chefes excelentes, como Paulo Torre, da Tribuna de Vitória e Nestor Fedrizzi, do Jornal de Santa Catarina. Pessoas do bem, divertiam-se por terem contratado um louco. “Não aguento mais essa tua calça jeans com grega que você usa todos os dias,” dizia Paulo Torre para mim, depois de me ungir editor de Nacional. Na época, essa vestimenta era complementada por um cabelo que o mar de Vitória tinha feito um nó górdio.
Fedrizzi tinha história no jornalismo, que eu desconhecia. Foi um dos pilares do sucesso da Última Hora, em Porto Alegre. Montou o Jornal de Santa Catarina com um bando de gaúchos, todos metidos a revolucionários. Sofreu bastante.
Mas, pelo menos, não teve que aturar minhas piadas, como aconteceu com Woile. Para me vingar, depois que me aceitou graças à intervenção de Macedinho, fiz uma série de cartuns sobre a criação do mundo. Um pobre Deus enunciava: “Faça-se a luz” e um caricato Woile argumentava: “Nossa, uma ênclise logo no lead”. Deus, com o rosto conformado, criava o homem e Woile tascava: “Capricha nesta matéria que ela vai dar capa”. Deus criava a Terra e Woile: “Tá ruim, tá ruim, achata um pouco nos pólos”. Quando, no sétimo dia, Deus resolvia descansar, Woile tascava: “Calma lá, amigão, vamos mandar o pau para o segundo número.” Woile foi decisivo: na redação dele, virei jornalista. Glória eterna ao bom chefe.

RETORNO – Nasceu Manuela, filha de Luiz Moraes, diretor de arte de primeira linha e com quem é um privilégio trabalhar. Antenor Nascimento (quando a palavra chega ao topo) me escreve elogiando o Diário da Fonte (claro, é meu amigo!) e querendo relembrar ao vivo velhos sucos de manga para curar ressaca. O número de links aqui da coluna vai aumentar, mas o bom mesmo é quando eu conseguir colocar fotos e mais fotos. Assim, aborreço menos os meus dez leitores.

5 de outubro de 2003

VIOLÊNCIA FORA DE CAMPO


A eliminação física do Outro começa com o mau uso de adjetivos, verbos, substantivos, conjunções e advérbios. Xinga-se antes de matar, mas o que é mais grave, engendra-se pensamentos tortos por meio de palavras viciadas para justificar ações violentas. Uma boa solução é acompanhar o noticiário esportivo, que é uma arena de representação do conflito e de promoção do equilíbrio.

DEBATE – Numa lista que deveria ser fina, de pessoas cultas e educadas, e que defendem teses acadêmicas importantes, chamei a atenção contra essa tentativa de excluir o interlocutor por meio das mais baixas vilanias. Criminalizar o debate é uma tentação, principalmente nesta época de e-mails, que é fácil, veloz e não dispõe da presença física de outra pessoa. A tentação de “acertar” alguém está disseminada por todo lado. Ontem mesmo, num estacionamento de um shopping quase fui atropelado por um automóvel desses de luxo, e fui salvo porque duas pessoas gritaram e bateram na lataria alertando a motorista . Passei então pela experiência de testemunhar a reação da jovem e audaz volante, completamente errada, mas cheia de razão (duas coisas que andam de mãos dadas), furiosa porque tinham passado a mão no carrinho dela. Foi mais uma prova de que muitas pessoas, no seu pequeno mundinho de conforto, gostam de tratar o resto da humanidade como lixo. Não sou um bom exemplo de equilíbrio na hora do pega, mas a idade me fez ser mais prudente e muitas vezes entro para apartar, para tratar o evento como transitório e que não deve deixar seqüelas. É que entrei em brigas homéricas por nada e fui parar em lugares terríveis, coberto de sangue. Morrer por ninharias não é um bom programa de vida. O destempero não é um bom conselheiro. Melhor é envolver-se com esportes, que mesmo atraindo grandes paixões, sempre deixa espaço para a análises mais elaboradas, como prova a presença de grandes jornalistas como José Trajano, Juca Kfouri, Armando Nogueira, Luciano do Valle e o magnífico (e cada vez mais ausente) Juarez Soares, sem falar no rei dos bordões, Sílvio Luiz, e no antológico Fiori Gigliotti (autor do maior verso do esporte mundial: "Lá vai a lua branca rolando num céu de grama"). A seguir, um texto que tem alguns anos, mas que gosto demais.

CHUTES A GOL - Chute a gol tem nome. Chedinho, por exemplo, é quando a bola pega na veia e evolui, sutil, colocada, como faz hoje Marcelinho, às vezes Sávio (lembram do Sávio?) e antigamente Neto. O chedinho faz parte de uma linhagem que tem como divindade a folha seca.
O oposto do chedinho é o bostaço, capitaneado por especialistas como o aposentado Branco, Célio Silva e Roberto Carlos. Bostaço nem sempre é gol, mais é marca na barreira, trajetória para a arquibancada e, muitas vezes, arma. Teve gente que já morreu em conseqüência de bostaço, mas é muito raro. O normal é furar a rede, como faziam Pepe ou Quarentinha.
Às vezes, até Juninho dá seus bostaços, e ele também já fez muito gol de chedinho. Mas sua especialidade, o gol espírita, como a obra-prima na diagonal e em curva contra o Uruguai, no Pré-Olímpico, merece uma nova definição. A proposta é dar a esse tipo de chute a gol o nome do próprio autor. A característica de um juninho é a surpresa absoluta, que emudece por um milissegundo o estádio, os adversários, os companheiros, os telespectadores e, pasmem, Galvão Bueno.
Nesse lance, nossa visão estava dividida entre o erro previsto - a bola parecia ir para a linha de fundo - e o objetivo reconhecido pelo próprio Juninho, que eram os pés de Caio. Mas por ser um gol com nome de batismo, que obedece ao Espírito do goleador - e não à sua razão - ele cria o hiato, surpreende a câmara, dribla o olho, confunde os torcedores.
Com o gol contra o Uruguai, a platéia de argentinos, que, como sempre, secava, muda radicalmente de comportamento, humaniza-se, entrega-se, enfim, ao Outro, esta entidade que sempre soube negar.
A comemoração de um gol argentino ou uruguaio é um ritual de vingança, é a euforia de ter dado uma facada certeira, a celebração de um assassinato. Diante de um juninho, as mãos perdem a rigidez e, no final do jogo, aplaudem seus inimigos de camisa amarela.
A civilização platina reconhece assim, não a hegemonia adversária - que isso seria contrariar princípios gravados em bandeiras brancas e azuis -, mas a sagração de uma outra cultura. Os jogadores brasileiros transformaram-se, com seu virtuosismo, em instrumentos de uma religião, o futebol da camisa canarinho, e toda a religião que faz milagres merece, pelo menos, respeito.
O juninho é, como o chedinho, uma oração contrita de um ritual que, em dia de inspiração, pode converter o gentio. Já o bostaço, grife da era Dunga, é o chicote que paga com a mesma moeda a incrompreensão da barbárie.
Aquele chute de Pelé do meio do campo contra a Tchecoslováquia, na copa de 70, é uma espécie de síntese histórica dessas três manifestações. À distância, parecia um bostaço, pelo efeito, foi quase um chedinho, mas pela lenda que criou, já era uma espécie de pai de um juninho.

PAZ – Um dos poemas do meu novo livro, que tem uma parte toda dedicada à paz, centrada na figura do nosso grande Sérgio Vieira de Mello: Não digo fatalidade/ Quando a vontade decide/ Não está nas mãos de Deus/ O caminhão de explosivos// Não digo fazer o quê/ Quando matam o estadista/ Não me coloco à mercê/ Das imposições do crime// Não me conformo perder/ o que de fato já tínhamos/ Não posso me recolher// Quando a metralha se anima/ A História mais uma vez/ Não me protege, me obriga.

RETORNO – O jornalista Roberto Nogueira, que revelou-se um fotógrafo de mão cheia além de ser um repórter magnífico, gostou das observações que fiz sobre a intervenção estatal na mídia. Diz ele: “Estou lendo vários textos sobre ética e imprensa, teoria das comunicações, tendências atuais, media setting etc. Se tiver algo ou alguma fonte de consulta, por favor, me informe.” Eis um apelo também para os leitores desta coluna, que nos últimos dias têm estado em número cada vez mais decrescente e bem que poderiam dar um sinal de vida.

4 de outubro de 2003

INVENÇÕES EM BUSCA DE INDÚSTRIA

Esta coluna aproveita o sábado de primavera para lançar sua primeira edição de Ciência e Tecnologia, destacando idéias que poderiam dar samba em chão de fábrica e que são consideradas malucas pelos que tomam conhecimentos delas. Destaque para a sinistra televisão descartável que zapeia sozinha e o fofíssimo Porta-Focinho.

REVOLTA – Antes de mais nada, não posso deixar de destacar a carta de repúdio publicada hoje na Folha de S. Paulo ao artiguete (que defini aqui como “diatribe extravagante” na coluna de 30 de setembro) do tal de Nelson Ascher (pronto, citei o cujo) contra esse grande intelectual que é Edward Said. A carta tem 152 assinaturas, entre elas as de Roberto Schwarz, Antonio Candido e Celso Furtado. A grande imprensa precisa repartir o espaço editorial com o maior número possível de intelectuais e não deixar que, impunemente, meia dúzia de eleitos deitem e rolem no jornal, publicando abobrinhas insuportáveis. Omitir é mentir e a meia dúzia que é dona de espaços gigantescos ajuda a enterrar vivos autores que possuem obra importante e tornada desconhecida por esse tipo de política suja. A direção da Folha precisa se penitenciar: em vez de encarar o fato como “democracia”, é melhor cair a ficha e reduzir o espaço de tanto pseudo-pensador, abrindo mais suas portas para os enterrados vivos, os que possuem obra importante e foram excluídos da mídia. Quem sabe desse jeito publicam alguma resenha sobre meu livro de poemas No Mar, Veremos, lançado em 2001 pela Editora Globo e apresentado pelo mais importante poeta vivo do Brasil, Mario Chamie? O que é preciso fazer para ter vez nesse espaço público que é a imprensa?

PIPA DIGITAL – Agora vamos às invenções, para cumprir minha promessa de não destilar tanta crítica (esforço quase sempre em vão). A TV descartável que zapeia sozinha é o pior dos pesadelos: ela liga e desliga quando quer, muda o canal (sempre procurando anúncios pré-programados) e impõe o tipo de coisa (isso mesmo, coisa) que você "precisa" ver. É um ibope invasivo, que conquista o telespectador pelo aparente custo zero e precisa ser substituída a toda hora, já que as campanhas publicitárias mudam. Não é terrível? Outro pesadelo é catraca em elevador: pedágio para subir ao terceiro andar. Mas nem tudo é horror. Vejam o caso do Porta-Focinho, uma invenção que grita para ser fabricada em série. Quem tem cachorro sabe: eles estão sempre procurando um lugar para descansar seus focinhos, fator permanente de desequilíbrio na hora da sesta (e como dormem!). Qual será o melhor material: tecido, plástico? E o enchimento? Espuma?
Para as crianças, imaginei a Pipa Digital: o eterno brinquedo agora manobrado pelo zap. Dizem que é inviável. Não sei, não. Acho que dá para fazer: não levantam helicópteros, muito mais pesados? O que custa levantar uma pipa com tecnologia digital? Teria que ser de baixo custo, para ser fabricada em massa, com todos os tipos de design e cores. Daria também para fazer com que um só zap manobrasse mais de uma pipa, inventando coreografias. O marketing iria adorar!
Há anos “invento” um jogo de aros, desses que se jogam em feiras, mas compacto. Ou seja, feito de aros plásticos que se encaixam e se diferenciam pelas cores, cada cor valendo determinado número de pontos (os maiores com menos pontos, claro). Vem dentro de uma caixa: você puxa o dito pelo centro dos aros encaixados, onde sobressai uma pequena bola de plástico. O jogo vira um cone, com os aros em volta. Você tira os aros e deixa o cone a certa distância (que pode ser definida no manual). E aí joga para ver se encaixa. A seqüência deve ser obrigatória, de maior a menor, até o último aro, que vale mais. Não é bom?

ELÉTRONS A ESMO – Minha desconfiança com os parâmetros da ciência e tecnologia ganhou status acadêmico quando li em Thomas Kuhn que o motor das revoluções científicas não é o racionalismo, mas o obscurantismo. Ele explica: quando uma teoria não responde mais às perguntas importantes, uma parte da comunidade científica dedica-se ao problema. De repente, num sonho ou num insight supremo, um desses pesquisadores tem uma idéia genial, que ajuda a resolver o impasse. Só que o resto da comunidade já fez carreira com a velha teoria e a novidade leva décadas e até mesmo um século, como aconteceu com Newton , para ser aceita e se consolidar. Então a ciência avança não porque os luminares se convençam, mas porque morrem! Só uma nova geração é capaz de assumir integralmente os novos parâmetros. É por isso que numa certa manhã, há muito tempo, quando abria mal-humorado o portão para começar meu dia, e meu vizinho reclamou do fícus que tomava conta da minha casa dizendo “isso aí, seu Nei, atrai os elétrons!”, respondi muito prontamente para esse vizinho que é muito católico (como eu):
- Pois o senhor saiba que eu acredito em Deus, mas não acredito no átomo.
Até hoje não sei o que ele quis dizer com atração de elétrons pelo ficus. Esse negócio de partículas girando em redor do núcleo como se fossem planetas nunca me convenceu. Mas cada um com seu cada qual. Não acredito também no big-bang (agora está caindo a ficha de todo mundo), nem no magma (que história é essa que o centro da terra é uma lava derretida?) nem nas placas tectônicas (os continentes deslizando na superfície do magma, quá, quá, quá). Contem outra.


Perfil – Samuel Wainer

Pequena contribuição para lembrar o jornalista que mudou a imprensa com sua Última Hora. Chamado de Profeta por Getúlio Vargas (sua manchete “Ele voltará” fez História), Samuel ganhou uma biografia com texto final primoroso de Augusto Nunes. Ler Augusto Nunes basta. Mas, para os amigos, coloco um pouquinho das minhas lembranças.

- Você é editor? perguntou Samuel na lata, antes de me cumprimentar. Porque eu estou precisando é de um editor.
Eu ainda era redator, mas menti que sim. Tinha vindo da extinta TV Guia, da Abril e quem me indicou foi o Woile Guimarães. O jornal era o semanário Aqui São Paulo, onde Samuel insistia nos velhos jargões do jornalismo depois de brigar com uma redação cheia de grandes jornalistas como Sergio de Souza, Hamilton Almeida Filho e Myltainho (o texto total). Colocava manchetes com o General Inflação, para lembrar do velho General Inverno da Segunda Guerra, lugar comum que tinha sido enterrado pelo Paulo Francis no Pasquim.
Foi a única pessoa que me levou para o noticiário policial. Fiz duas matérias de polícia enquanto fechava o jornal e montava uma equipe para Samuel.
Ele tinha olho de cobra. Ficava na boca da máquina, pegava o primeiro exemplar, folheava e arrepiava-se com os erros:
- Meu Deus, que cagada, dizia a cada página do tablóide.
Samuel parecia ter 80 anos aos 60 e poucos (era final dos anos 70). Grandes sobrancelhas brancas, voz muito rouca pelo cigarro, chegou até a me dar uma coluna sobre “jovens” (eu acreditava nessas coisas na época), mas desisti. Samuel lamentava ter perdido seu império jornalístico. Dizia ter sido o cassado número 1 do país. Perguntava sobre a Zero Hora, que surgiu do espólio da Última Hora, fechada pelo regime da ditadura civil/militar.
- Eles fizeram um império com o jornal, não é? dizia Samuel, profundamente magoado. Deus levou-o com as costas cravadas de lutas memoráveis, que devem ser conhecidas por todos os jornalistas. Leiam Augusto Nunes.


RETORNO – O conselheiro do Diário da Fonte, Moacir Japiassu, impressiona-se que eu tenha visto sua entrevista na TV Assembléia. É que sou o rei do zap, Japi, e procuro pepitas enterradas no gigantesco monturo da programação.

3 de outubro de 2003

A REVOLUÇÃO DE OUTUBRO


Hoje é dia de comemorar a revolução de 3 de outubro de 1930, um evento riquíssimo da historiografia brasileira, que gerou livros seminais que devem ser lidos urgentemente. Um divisor de águas com reflexos diretos e indiretos na mídia até hoje e um espaço de disputa política que envolve no mínimo dois partidos (PDT e PTB) e uma massa poderosa de votos. Isso significa que todas as tentativas de erradicar a revolução de 30 da memória brasileira foram em vão.

O NOVO DIP – O assunto é "agigantamento do noticiário oficial" , denúncia dos jornalões contra o que eles chamam de o Departamento de Imprensa e Propaganda da era Vargas adaptado ao século 21. O presidente Vargas hoje é o papel higiênico da ignorância histórica. Costuma-se vê-lo como um personagem sem nuances, um ditadorzinho qualquer, uma espécie de caudilho latino-americano. Qualquer problema que exista no País é coisa do Getúlio. Se o PT erra, é porque está imitando o Vargas, não porque esteja errando por conta própria (e como erra!). A CLT do Getúlio, todos sabem, é obsoleta (estão gostando da terceirização? voltamos à República Velha, quando não havia férias, nem jornada de oito horas e quando as crianças trabalhavam sem parar?). O jornalista, antes de embarcar em canoas furadas, precisa estudar História. Existem vários Vargas, dois deles eleitos pelo voto. Em 1934 ele assumiu a presidência eleito pela Assembléia Constituinte e em 1950 ele deu um a lavada gigantesca de voto popular nas urnas. Como “ditador” existem outros dois momentos: quando assumiu o governo provisório em novembro de 1930, depois da revolução vitoriosa (que teve intensa participação do povo, inclusive pegando em armas, como aconteceu no Rio Grande do Sul) e em 1937, com o golpe do Estado Novo, quando continuou no poder amparado pelas Forças Armadas. Ou seja, existem muitas mudanças numa trajetória de 25 anos (interrompida com o suicídio em 1954, quando o povo saiu às ruas quebrando tudo, como aconteceu no Rio de Janeiro e em Porto Alegre).

RESPOSTA EM ITENS – Quanto à traição petista de encher de dinheiro seus marketeiros, enquanto o desemprego e a violência avançam, devo compartilhar com a preocupação, mas também defender a necessidade de uma intervenção do Estado na atual situação caótica da mídia, palco de grandes crises e instabilidade permanente, em que meia dúzia de gigantes fazem o que bem entendem (inclusive tentando destruir o jornalismo de bairro com encartes ridículos que só servem para dar malhos regionais). Acho o seguinte:
1. Só os grandes grupos privados, as famílias tradicionais, a máfia internacional e os aventureiros podem concentrar mídia nas mãos. O governo não pode, a mídia proíbe.
2. A fase de ouro do rádio brasileiro coincide com a maciça presença estatal na radiofusão.
3. A Ultima Hora, jornal subsidiado pelo governo, provocou uma revolução na imprensa brasileira que a era Collor-FHC ajudou a enterrar.
4. O subsídio governamental deve servir para regular a televisão (sim, regular, impedir por exemplo que eles interrompam a programação a cada dois minutos com intervalos comerciais de 10 minutos, onde veiculam basicamente mídia interna, ou seja, propaganda dos programetes deles – principalmente nas emissoras da TV a cabo, que é paga!); colocar de volta a música de qualidade na rádio e televisão, interrompendo o execrável ciclo hegemônico dos chororões daniéis alexandrespires (que chorou ontem nos braços do Bush, que vergonha, meu Deus) e tchans (a genitália rebolante 24 horas por dia); e ajudar a criar mais concorrência nos quadros jornalísticos, valorizando o talento e obrigando os jornalões e revistonas a pagar melhor e contratar mais gente competente para poder peitar a máquina estatal.
6. Subsidiar a mídia não quer dizer obrigatoriamente criar notícias favoráveis, mas contribuir para criar um ambiente mais competente no noticiário e na programação (desde que seja uma política orientada pela ética).

LIVROS - Precisam ser lidos, no mínimo: Outubro, 1930, de Virgílio de Melo Franco; A Verdade Sobre a Revolução de Outubro, de Barbosa Lima Sobrinho; A Revolução de 30, de Boris Fausto; e Oswaldo Aranha, de Stanley Hilton. Para quem gosta de Uruguaiana (e quem não gosta?), entende-se melhor a revolução de 30 lendo Lusardo, o Último Caudilho, um livro de História do Brasil do século 20 escrita pelo talento e a competência desse jornalista fantástico que é Glauco Carneiro. O livro (em dois volumes, sendo o primeiro uma obra-prima) de Glauco foi minha introdução à História que as escolas escondiam.

RETORNO - Já me aconselharam a baixar a bola aqui na coluna e não emitir tanta crítica, mas normalmente não consigo evitar. Amanhã volto à poesia e às técnicas jornalísticas. Hoje eu estava comemorando a revolução de 30, que teve a participação de um soldado de apenas 18 anos. Esse soldado passou a vida contando histórias da revolução vitoriosa e posso garantir, pelo seu relato: correu bala como nunca. Não foi um passeio. Ele se chama Ello Ortiz Duclós, meu pai. Devo-lhe a minha vida.