30 de junho de 2018

COURAÇA

Nei Duclós


Mostrei o poema que do frio se abriga
(da indiferença que inaugura escola)
Ele não gostou da ferida exposta
(seu amor, ultrapassada criatura)

Temia o deboche dos vícios da vanguarda
Ou a imitação barata de rimas a galope
O que preferia era a ciência exata
Crua arquitetura de múltipla couraça
Caixa de ressonância de jóias sem grife
Sangue que circula em nós, e isso basta



TENHO ENCOMENDA

Nei Duclós


Não perco mais tempo, faço poesia
Abandonei o eito para os predadores
Espantalho feito de palha e panos
Exibo a gargalhada dos loucos de circo

Quando te aproximas por algum engano
Escutas o mármore sob o cinzel tirano
Vês que uma deusa assume os contornos
Ao som de flautas e cantos gregorianos

Sou eu, artesão sem nenhum aprumo
Focado no fogo do ofício insano
Tenho encomenda a partir dos anos
Em que me dedico à arte sem retorno



29 de junho de 2018

RECESSO

Nei Duclós


Uma parte da safra se perde
Muita palavra tira pedaço
Corta a navalha um risco no rosto
Amarga conversa se impõe como um jogo

Onde guardar a melhor recompensa
O amor que excede em tontos contornos
Qual a esperança que nasce da treva
Quem poderá surpreender um encontro?

Vimos de longe, de um tempo adverso
Somos marcados nos corpos em brasa
Falta confiança nos passos reunidos
Em torno de um fogo ainda em recesso



ANDORINHA NA MONTANHA

Nei Duclós


Enfim este amor repousa
Não te cobra retornos a horas tantas
Podes exercer a tua liderança
Sem a sombra de uma agenda

Fomos sinceros
Mas quem diz que prendo
O que parecia ser pomba
Pelo arrulho e plumas na garganta
E era apenas o oposto

Uma andorinha que inventa o voo
Pandorga na montanha
Na ponta de uma corda
Que a conduz pelo indecifrado cosmo



28 de junho de 2018

OFERTÓRIO

Nei Duclós


Serão versos antigos
os que ficarão comigo
Dirão: já foram lidos
pertencem ao passado
Eu estarei contrito em modo de ofertório
Recitando talvez o que não foi escrito

Na areia onde existir o mudo sacerdócio
não haverá lembrança do que manteve viva
a página do livro, a fala em rosto imóvel

Será só a estrita comunhão de um rito
Que dividirei com os anjos e os mendigos
Serão os versos livres da concentração mesquinha
Gotas do oceano, flores de um abismo



27 de junho de 2018

DUAS PONTAS

N ei Duclós


A vida começa cedo
todos os dias

Moço ou antigo
A hora do fim é segredo

Cada aceno pode virar
despedida

O tempo puxa o freio
Ou finca a espora



25 de junho de 2018

DIREÇÃO

Nei Duclós


O sentimento é sagrado
mas a palavra é vulgar

A não ser que mude de lugar
e viaje em direção ao vento

Na estrada do silêncio
encontra o ar



ANTIGO ESPÓLIO

Nei Duclós


Eu estava no auge quando veio a tempestade
Não pude desistir antes da hora
Achei que era firme a coluna do sustento
Mas o que chamam natureza é a definitiva prova

Juntei os farelos para seguir em frente
Só que o acidente deixou muitas sequelas
Não sou mais o mesmo, mudei minha moldura
Estou o que resta de um antigo espólio

Rosto marcado, curvo onde era reto
Peso em excesso, roupas sem cuidado
Sou barrado em portões de ferro
Outrora com acesso a mil castelos

Talvez seja a sina de quem arrisca tudo
E sai a descoberto no fragor da guerra
Hoje posso dizer, vivi completo
Fui colhido pelo tempo, velho tirano



24 de junho de 2018

ARRABALDE

Nei Duclós


Abasteci a cidade com poemas
Para serem usados no arrabalde
Quando a invasão romper a divisória
Entre a nossa emoção e o desespero

Cada um terá sob o casaco
Os versos que compus malhando ferro
Não serão punhais, não serão revólveres
Mas a dúctil consistência da coragem

A poesia aprenderá com quem batalha
A fazer o pão no fogo da fornalha
Dizer com toda gana a resistência
A braço com o amor, nosso comparsa



MESMA LÍNGUA

Nei Duclós


Não posso ser contra você
Por seres a favor do que sou contra
O que pensas de oposto a mim não conta
Nem o que sentes devo sentir escândalo

O que resta então do tanto que somos
Se não há sintonia valerá a amizade?
Estaremos armados na fronteira do front?
Falaremos horrores para marcar território?

Ou será que é uma outra freguesia
O que nos aproxima no drama do ofertório
Será a memória, do tempo de ser livre
Da ameaça de viver em pé de guerra?

Talvez o que é humano venha da poesia
Que recitamos diante de quem tomba
Ler os avisos para deixar de ser tontos
Paz na diferença, falando a mesma língua



23 de junho de 2018

JÁ PARTIU

Nei Duclós


Vou me embora vou me embora
Para além do mar irei
Inventar outras histórias
Num lugar que criarei

Vou me embora vou me embora
Vou pegar esse navio
Venha em meu bota fora
Meu coração já partiu

Vou me embora vou me embora
Vou deixar o meu país
Vou mudar esse destino
De evitar de ser feliz

Agora sou folha ao vento
Agora sou trovador
Vou me abrigar ao relento
Vou curar a minha dor

Adeus à terra ferida
De uma tristeza sem fim
Origem de toda vida
Um dia volto para mim



TEMPO LIBERTO

Nei Duclós


Não perder tempo com o que passa
O tempo é evento sem motivo

Não prender tempo com o que fica
O tempo não é âncora de granito

Só a paixão que tu dedicas ao conhecimento
vale o risco
mantém vivo o tempo
em boa companhia

Ele fica contando a história
que passa à tua revelia



21 de junho de 2018

MAD MEN: A VIDA É UMA CONTA PUBLICITÁRIA


Nei Duclós

Cada capítulo da série (inteira no Netflix) Mad Men (2007-2015) é a relação entre a conta publicitária e a vida pessoal dos personagens, os profissionais de uma agência. Exemplo: o bilionário do aço quer uma campanha que coloque seu produto como a essência e a estrutura das cidades. Há uma briga interna entre os executivos da agência. E vence a ideia de que o aço é a espinha dorsal da América. Só que o capítulo mostra que a verdadeira essência da cidade, no caso Nova York, e mais especificamente Manhattan, são as relações humanas pautadas pela riqueza . Dinheiro e tradição dão as cartas, colocando todos na mesma armadilha, e não o aço, que é apenas coadjuvante.

Em outro capítulo, procura-se batizar uma conta bancária privada, que o executivo possa manobrar sem que a família interfira. É uma porta aberta para a liberdade fora da jaula conjugal e todos os homens envolvidos na criação e na clientela gargalham dizendo que o esquema já existe, faltava apenas oficializá-lo. Pois bem. Don Draper, o personagem principal da série, é uma criação publicitária de um ex-soldado que roubou a identidade de um companheiro. Ele precisa usar seu dinheiro escondido numa gaveta para fazer calar o irmão que cresceu e surge do nada para desmascará-lo. A conta executiva, tão charmosa nos anúncios, serve para a fraude.

Don Draper é uma criação publicitária, encarnando o modelo que fuma Lucky Strike, o cirgarro que ele inventou de chamar de toasted, para alegria do cliente. De pele tostada, atlético, fuma sem parar, o que não o impede de fazer cem flexões antes de dormir e arrancar suspiros como se fosse participante de uma olimpíada. Uma fantasia dos anos 60, a época em que se passa a série, quando não fumar não era proibido e o vício era incentivado pela indústria do espetáculo - cinema e propaganda.

Psicanálise, neste mundo machão, é coisa para criaturas fracas, as mulheres. Elas tem tremores nas mãos e falam para dentro, com pânico de perder o status matrimonial, e por isso aturam todas as traições dos maridos. Você não encontrou o amor da sua vida, diz Don Draper para  uma cliente que ele está a fim de transar, porque o amor não existe, ele foi inventado por nós para vender meias. Está além do cinismo e do poder masculino. Faz parte da cultura da América, é seu nicho mais profundo, em que as pessoas são projeções das fantasias criadas em salas fechadas.

Os americanos são admiráveis. Ao mesmo tempo em que a publicidade é sua principal obra, a que a define o Império que se impõe pela força , o dinheiro e o convencimento, faz uma obra como esta em que derruba todos os mitos de um falso charme e expõe, num clima de um filme noir, as verdades que compõem esse poder. Nosso negócio é comprar e alugar espaços da mídia, diz um publicitário. A criação é dada de graça, serve apenas para preencher este espaço.

Estou revendo a série. Perfeita em todos os detalhes. A concorrência devoradora não só no mercado, mas principalmente entre as pessoas que o alimentam. O papel triste e limitado das mulheres no meio de um ambiente de hositilidade masculina. Os objetos, utensílios, roupas, móveis que cercam esse universo da ficção que, por isso mesmo, captura a realidade de uma maneira que nenhuma outra arte consegue atingir.

Nei Duclós   

20 de junho de 2018

MANSO CONVÍVIO

Nei Duclós


Tudo o que eu vivo
quero repartido
O sufoco do dia
O sonho na correnteza

O que está na mesa
são porções idênticas
Este é meu vinho
No teu rosto de vidro

Nada que eu perca
Será ressarcido
Extraio da fonte
O manso convívio




VENCIMENTO

Nei Duclós


Abri o pacote de lembranças
Eram só palavras
Nenhum território de pertença
Coisas provisórias, fatos diversos
Casas, desfiles monumentos feitos de gesso
Diários inúteis, esquecimentos

Onde fica o postal que recebemos
De alguém distante
Falava de amor em alguns garrachos
Grudou certamente no aço vencido
Dos espelhos





18 de junho de 2018

O CÉU EM LIVRO

Nei Duclós


É difícil ler os pássaros
O que eles dizem no céu de inverno?
O que repassam das dobras do tempo
O que anunciam em voos cifrados?

Por que ocupam um canto do espaço
E deixam o resto para o ar e nuvem?

Quais novas eles espalham
O que adivinham seus argumentos
Oculto é o vento, força sem origem
Acompanha as asas sem destino
Que transportam recados de antigos pergaminhos



15 de junho de 2018

RIO REMOTO

Nei Duclós


Passou o tempo e eu fiz tudo errado
Não era esse trampo que deveria ser pago
Não era para pegar tudo no tranco
Num rompante brutal desgovernado

Deveria fluir, não na vida mansa
Mas sem os contratempos inúteis do drama
Que eu inventei em papéis estranhos

Hoje estou na margem de um rio remoto
Não o da infância, que não tem tamanho
Mas de uma água que cabe num copo
Tenho sede, como um condenado

Escrevo para caramba por dever de ofício
No barro e no vento é onde publico
O lenço que perdeste num arame da cerca
Ao fugir de mim no pampa sem limite
Talvez seja um poema, meu último maleficio
O que te faz cativa, flor que não cultivo



AMBIENTES DO INFINITO

Nei Duclós


Tantas coisas ditas que se contradizem
Num roteiro complicado de ideais confusos
Como paralelas vindas da mesma origem
E que farão sentido quando se encontrarem
Nos muitos ambientes do infinito

Mas por enquanto há conflito
Não consigo acomodar um deus partido



DA SOLIDÃO

Nei Duclós


A vida é uma desvantagem
Perde o equilibrio com a longevidade
Desanda porque não é natural no cosmo
feito de frio e pedra

Contraria o resultado da luz, sua madrasta
Que a queria confinada
Como nas costas dos vagalumes

Vida é solidão, quando sua arquitetura se flagra
Que está por um fio
Diante da régua indomável
A que orienta para o caos
O desenho da perfeição



BAILE

Nei Duclós


Há muito preciosismo
Como se as palavras, fuligem
Precisassem de brilharecos

Esse esforço oblíquo
De sugerir profundidades
Quando vemos as pepitas
rolarem na superfície

É suja a linguagem
E desaforada
Pode arruinar seu baile de gala



14 de junho de 2018

MUTS: A VIAGEM DO SOM

Nei Duclós


Junho leva Muts para sempre
bem no aniversário de Fernando Pessoa
Ele que era tão cuidadoso com os poemas do amigo

Lembro no quintal lá de casa em Porto
Muts com o violão folheava meu caderno
E ia improvisando melodias na sonoridade da palavra

Depois vestiu tudo com bandas, arranjos, guitarra e voz
Fazendo mais composições com tantos talentos que ele atraiu com seu carisma

O roqueiro trovador da mesma linhagem dos grandes
Fazia parte dessa galeria sem ser reconhecido
Mas era amado em excesso, professor de muitas gerações

Sabia tudo da música que fez nossa cabeça e nosso corpo
E manteve a chama pois não se conformava apenas com a memória
Incorporou o Tempo e o defendeu com unhas e dentes

E agora se foi com sua solidária presença
Maior entre nós, seus contemporâneos
Às vezes indiferentes às pontes que lançava para a amizade

Nos deixou com inúmeras canções no colo
Ele canta agora e no futuro
Para além de nós, da Terra e de Saturno
Com as cordas nos dedos e na garganta
Viagem de um som que não acaba


RETORNO - Imagem: Carlos Eduardo Weyrauch, o Mutuca (1946-2018)

13 de junho de 2018

CONSOLO


Nei Duclós

Não há motivos para quem se dedica
a vida toda por dever de oficio
De ser celebrado com as medalhas
A fornalha mostra a cicatriz do ferro

Prefiro que encomendem novas obras
E paguem pelo esforço do serviço
Os veteranos de guerra sabem disso
Sobre as vaidades e outros artifícios

A morte já providencia a homenagem
A última viagem, sólido destino
Os aplausos são inúteis, a mãe terra
É o unico consolo dos seus filhos





A MELHOR APOSTA

Nei Duclós


Dicionário pobre
Língua sem proveito
Somos uma nação
Que não sei direito
Falta-nos noção
Do que a palavra serve
Pedra de fundação
Que o mato toma conta

Faça uma canção
Para entoar no vento
Leve de roldão
O que nos trava o peito
Temos a vocação
De ser a melhor aposta




COMPULSIVA


Nei Duclós



Você coloca Deus a toda hora
Como se isso fosse obrigatório
Talvez seja só remorso à toa
Pelo beijo que teu sonho não perdoa

Achas que meu foco é apenas carne
Porque não rezo assim tão compulsivo
Que penso no que quero e não transijo
Com essa devoção cheia de glória

A divindade está em outro plano
Não presta atenção no sacerdócio
De quem morre de desejo e se recolhe
Nas orações que ficam no fio terra

Não me importo, fique a pampa
Que eu espero um sinal do céu aberto
Agora! diz o anjo
E eu me jogo
em tua vontade ardente e sem história



11 de junho de 2018

SUSPENSO

Nei Duclós


Reaprendi contigo o verso romântico
que eu abandonara
A usar o mais-que-perfeito
dos tempos parnasianos
A falar em pele e sonho junto com sonetos

Depois, partiste, como nuvem que encerra
precocemente uma serenata
Mas continuei no aprendizado

Hoje te leio para sentir as armadilhas que pões na trilha
Tuas canções misturadas com memórias
Tua eterna fome de mistério

Fico suspenso entre o olhar e o poema
Quando poderei te mostrar
o novo estrago a que me condenas?



TODO PODER É PROVISÓRIO

Nei Duclós


Todo poder é provisório
O palácio é a véspera do exílio
O abandono é o desfecho de um império
O comando perde território

A ordem reverte para a queda
Mas com o coração dá-se o contrário
Ele permanece em tua obra
Costura que no fundo faz História

O sentimento tem a força de uma pétala
Que segura uma estação, a primavera
No clarão produzido pelo sonho
Mão no leme que a borrasca não devora



ARRULHO

Nei Duclós


Custo a acertar a embocadura
Repito o gesto até chegar à meta
Aperfeiçoar o detalhe, cumprir o rumo
Olhar à distância para ver se é certo

Aproximar o olho no fiapo solto
Luzir a madeira para que se transforme
Carpir o lote que pedia arado
Deixar de lado ao receber visita

Ao insistirem na mesma pergunta
Responder que isso é apenas um rascunho
Pois com a idade já perdeste o jeito
Não te diz respeito mais a oficina
Aposentado não costuma ficar de banda

Difícil será explicar porque o arrulho
De um pássaro em teu ombro algo anuncia
É que Deus está vendo o disfarçado oficio
E aguarda o poema, sentado na varanda



ACENO DO CAIS

Nei Duclós


Demos um tempo na nossa amizade
Isso contará em futuro acervo?
Era amor, mas não fizeste alarde
E assim ficamos, entre poema e arte

Hoje distantes cevamos o silêncio
Receita de total falta de sorte
Éramos próximos, mas o coração covarde
Definiu a fronteira, bíblica muralha

Não aceno porque desce a neblina
E daqui do cais o lenço só me serve
Para enxugar a oculta e renitente lágrima
Ninguém pode ver o que a verdade sente

Pode estragar a possibilidade
De superar a abrupta ruptura
Como viver sem que tua doçura
Grude em meu corpo, pintura de uma tarde?



10 de junho de 2018

INACESSÍVEL

Nei Duclós


Hora do poema
Relógio sem ponteiros
Canetas invisíveis nos tinteiros
que trouxe do ginásio

O único papel é o tempo
que não admite rascunho
Só o prato feito
o verso que é sempre de improviso
E todo minuto original
no seguinte é cópia

Guardo o que não disse
para que escrever não seja mal de ofício
Não sei o que mendigo
Se a letra, tesouro de confisco
Palavra, imposto de um império
Ou tua atenção, olhar inacessível



7 de junho de 2018

DUPLA FACE

Nei Duclós


Cavo à força o barro quase pedra
que cobre a fonte oculta com vergonha de tão rara
Fio ou nesga, fiapo, linha d'água
Sob últimas camadas

Trago o ronco agudo que foi terra
E se dissolve em mãos de miséria
Porque é pobre o árduo esforço
De quem sua mendigando a arte

O fruto é o que se acaba
quando os olhos abandonam a palavra
Que volta ao normal, ser o objeto de dupla face:
o repouso e a alma



SUPORTE

Nei Duclós


O que há por trás da palavra
Suporte que um cartaz ampara
Bastidores de oculta alma
fonte e motivo da linguagem?

Talvez, nada
Só alguém em solitária lavra
Insone premissa de uma estrofe
Mendigo de um momento que tarda

Ou talvez o armistício
de criatura que se esforça
E te diz um poema
antes que o mundo acabe



TEMPO ENIGMA

Nei Duclós


O tempo não se adivinha
Retrocede quando avança
Encontra quando se perde

Quanto mais antigo o vinho
Mais sem sentido é a espera
O amargo sabor das horas

Não estoco mais espinho
Para me poupar das trevas
Tenho o sol em cada rosa


VOCÊ NA CARRUAGEM

Nei Duclós


Fico pior quando desço do poema
Viagem correta, submissa à técnica
E passo no bar para me entregar à prosa
Falar bobagem, debochar da gramática
Ser um bebum de linguagem pobre

Fico toda noite cantando bolero
Portunhol insuportável e besta
Até cansar e esperar de novo
Você na carruagem a me tirar o fôlego



SOMOS ASSIM

Nei Duclós


Tenho vergonha desse ranço literário
Mofo que sempre veste a moda
E joga com o dinheiro das vitórias
A vaidade pontuada por medalhas

Cabeça posta a prêmio, como os facinoras
Mas sem ninguém que denuncie a presa
Pose de estátua, vida sem virtude
E discursos em ágapes soturnos

Também não curto a glória dos cabeças
A marginália que no fundo quer ser nata
O jugo da vanguarda, o pessimismo besta

Prefiro tuas fotos de casas bem antigas
Tua liberdade de ser o que bem queres
Somos assim, de gesto sem mistério
Ouvimos a lua em cima do Himalia



3 de junho de 2018

LEMBRAR

Nei Duclós


Já esqueci das paisagens
Elas sumiram do mapa
Por isso quando perguntam
Falo que desconheço

Lembrar é o único acervo
De uma vida sem espaço
Somos limite de um tempo
Fronteira que nos apaga



JARROS DE METAL

Nei Duclós


Algumas palavras moram em nós
E formatam tudo o que escutamos
Nada nos convence, pois usamos
O que vem de fora ao nosso gosto

Admiramos o verbo alheio com disfarce
E reproduzimos distorcidos o adventício
Não é apenas vício, é a maquete
Que projeta uma obra de granito

Nela moram nos cantos dos andares
Os poemas que lemos por enfeite
Eles secam em meio ao pó e a tinta
Em jarros de metal, que é a nossa essência



2 de junho de 2018

OS SATÉLITES


Nei Duclós

Os satélites se iludem com suas órbitas
presas a corpos iluminados indiretamente
Confundem o objeto de sua devoção com estrelas
Por isso possuem sempre uma face na sombra
E rodam em vão para iluminá-la

Assim também os espiritos coadjuvantes
Exaustos desse esforço
Por isso nos encantam quando às vezes assomam
em forma de lua cheia



1 de junho de 2018

EM FIRENZE

Nei Duclós


Uma herança me levou a Firenze
Onde parei em hotel antigo
para escrever um romance
A cidade com seus monumentos
serviu de labirinto e contratempos
para eu estruturar os conflitos da narrativa

Fui bem tratado até que o dinheiro acabou
e precisei terminar minha história na rua
em garranchos sobre papéis jogados fora

Sorte que encontrei uns estudantes
que passaram tudo a limpo
Consegui publicar por especial obséquio
do dono do restaurante onde gastei minhas economias
Apostava que eu ganharia um prêmio

Ninguém leu, paciência
Mas o livro era bom