30 de janeiro de 2007

O MUNDO É SURDO



Você começa o fim de semana acordando com som lá no alto. Sempre é um som de merda. O sujeito vai lavar a lataria, pintar o madeirame, fazer qualquer coisa que os afaste de algum pensamento e lá está o baticum, o pagodoso, o sertanojo. Como o Brasil gerou inutilidades, tanto por parte de quem grava, como de quem compra. Não há um acorde, um piano, nada. É a barulheira infernal. Aí você foge de casa, pois nunca se sabe o que vai encontrar pela frente quando vai dizer alguma coisa (e também não adiantaria, pois são surdos, a prova é o som que colocam a toda) . Quando volta, o cara já cansou de atordoar a vizinhança. Mas o Mal migra de uma criatura a outra. Outro sujeito liga a serra elétrica. O barulho da primeira revolução industrial é a verdadeira vida espiritual dos surdos. Eles precisam do barulho dos motores como a alma precisa de reza. Eles se alimentam do rasgar de ferros. Há também os que martelam, ou batem duramente no chão, o que faz tremer toda a rua. Nos intervalos, ou junto com a sonzeira, eles falam aos gritos. Claro, são surdos.


Saio um pouquinho do bairro e cruzo com carros desses que foram feitos para o campo e são utilitários. Possuem uma carroceria, que para nada serve. Dentro deles há um som de arrasar quarteirão. Ninguém fala nada, nenhuma autoridade vai em cima. É o desplante total. No Brasil, todo mundo pode matar pelo menos uma pessoa. Está protegido por lei. É réu primário. Também pode infernizar o ambiente com som alto, que ninguém vai dar umas chapuletadas na fuça do meliante. Por que eles podem? Porque sim. Você agüenta calado. Se reagir, será chamado de reclamão. Também estará diante da sólida argumentação da lógica do Brasil: mas ninguém até agora recramou, dizem. Certo, por que haveria eu agora de recramar?


Tom Jobim é superhomenageado. É importante homenagear, mas sinto que colocam a bossa, Tom, Vinicius e tudo o que temos de bom em departamentos estanques, em programas especiais de comemorações. Deveria haver todo o dia o tempo todo. Deveria ser tão difundido quanto o resto. Deveria haver uma intervenção contra a idiotice na radiofusão. Não se pode deixar para os energúmenos uma coisa tão importante quanto o que vamos escutar diariamente. Você liga o rádio e só tem sandices. Existe a opção de você baixar a versão pirata de qualquer música. Mas queremos o mundo oficial, rádio e TV estatal ou privada sem a sacanagem das atrocidades.


Mas é disso o que o povo gosta, dizem. Claro, tiraram a música do colégio, a população virou analfabeta musical e querem que escute música? Dê-lhe merda. É preciso atordoar o pensamento, senão vamos esquecer que 600 mil pessoas morreram assassinadas entre 1980 e 2000, segundo o IBGE. Tínhamos estatísticas de Vietnã, agora temos de II Guerra Mundial. Normal. Para isso foi feita a ditadura. Quando chegam as festas, os palhaços enchem teu quintal de fogos. Estão curtindo, celebrando. Olho para eles. Possuem o rosto impassível dos imbecis. Soltam o foguete na cara das pessoas (como acontece nas praias) e dali a pouco acendem outro. É assim que se comemora o ano novo, aniversário, qualquer coisa.


O Brasil continua fazendo música boa, só que esta não tem chance. A brutalidade tomou conta de todas as mídias. Ligam o som e tudo parece a mesma coisa. Não há um acorde, uma harmonia. Qual a saída? Acabar com a ditadura.


RETORNO - Imagem de hoje: Rio, a eterna capital da República. Quando Brasil tinha música.

28 de janeiro de 2007

O QUE MOLHA E NÃO É ÁGUA


Nei Duclós

Vida vidinha é assim: há tanto Deus, que Deus transborda. Acaba virando fonte, que são as chances oferecidas por Adélia Prado à visita do gentio (os que não fazem parte do seu universo). O leitor vai da sala para o fogão, do quintal para o enterro, da reza para a imprecação. É a comunhão com criaturas que se fartam de religião e vivem na solidão de seus pecados, indizíveis. Adélia Prado rompeu esse silêncio com sua poesia única, que impregnou a literatura do que mais lhe faltava: a mulher mesmo, e não o apêndice lírico do devaneio noturno. Hoje fica fácil enxergar o que uma brasileira sabe sobre Deus e o mundo, já lemos e relemos Adélia Prado. É o que se pode dizer uma poesia clássica: voltamos a ela sempre que perdemos o rumo da nacionalidade. A poeta nos traz de volta ao Brasil profundo, não o que a geografia ou a História mostra, mas o que um corpo sábio experimenta.


Esse humano tão real parece inventado. Como pode uma ditadura tão longa acabar com a visita do casal de compadres, cercado de filhos, aos domingos? Não foi o tempo que fez esse estrago, foi a política e sua companheira sinistra, a economia. Arrebentaram com a família, não porque ela tinha mesmo que morrer devido às modernidades, mas porque foi feito tudo de propósito. Para começar, não há mais calçadas. Como crianças poderiam brincar em calçadas em visitas dominicais se tudo é tomado pela sujeira, o barulho e a violência? Também as casas que duravam gerações sumiram. Hoje é feio imaginar uma casa assim tão antiga, a não ser que seja para a exibir recauchutada em revista de moda como exemplo de reciclagem politicamente correta.


Casas antigas, daquelas que tinham retratos ovais de homens e mulheres de rostos sérios, de bebês sorridentes com topete em cima, são difíceis de encontrar. Não é saudade que nos move em direção a esse país desinventado, mas desconforto. Destruímos o país mas ficaram as ruínas, onde está a poeta com sua palavra no ermo. Seu tema seriam as inúteis e sagradas paisagens pastoris e de subúrbio que cercam as pessoas de cama, mesa e fogão? Difícil enquadrar a poeta, que roda pela palavra com a circunavegação das sílabas em forma perfeita ("a poesia é pura compaixão"), a palavra sem a beleza compactuada, maravilhosa como a cigarra que se gruda na árvore e tem vidro moído no peito. Tudo isso ela faz sem pose, sem forçar a barra. Tudo soa natural porque há um rio profundo nesse encontro primal entre a criadora e sua obra.


O que molha e não é água é o amor, que ela coloca no altar, acima de Deus, que pode se manifestar na cozinha. O amor é o luxo que desembesta a vidinha. O sentimento faz a vida ter sentido e mesmo que tudo seja só rotina, quando há amor, mesmo esmigalhado por manifestações externas brutas, há esperança e eternidade. Um recado simples proporcionado pela intensa elaboração do ser antes da poesia, do talento antes de escolher o poema, da inventora antes de saber-se escritora ou imaginar-se real com o livro posto.


Vida doida, de Adélia Prado (Alegoria, 78 pgs.), com ilustrações de Ana Viola, que faz parte da coleção Palavra e Arte, é sobre a alegria convivendo com a dor: doida, doída. É uma antologia que nos resgata o melhor da poeta e abre as portas para uma visita aos seus supremos redutos.

27 de janeiro de 2007

A CIVILIZAÇÃO DO MERGULHO



Ir além da barbárie da superfície é enxergar o que aparentemente está escondido. Não nos conformamos quando somos enquadrados nesta ou aquela gaveta, mas fazemos isso o tempo todo com nossos semelhantes. Isso se aplica ao espaço pessoal, imagine no coletivo. Populações inteiras são vistas com a mesquinharia do olhar, nações são reduzidas ao pó por falta de informação. Quadras de tempo ficam submersas graças ao nosso evolucionismo de araque.


Tendemos a repetir os insumos da percepção que conforma as idéias que temos sobre tudo e todos. Basta um sinal, uma pequena prova de que estamos certos em pensar errado para continuarmos na mesma. O oposto também é trágico: por excesso de prudência, desconfiamos de tudo o que nos chega às mãos, pois sempre haverá algo escondido que ninguém percebe. Encontrar o equilíbrio entre o aparente e o oculto é a engenharia do iceberg: só a harmonia que leva em consideração os dois pesos, um que está fora, outro que está abaixo, poderá nos levar a alguma espécie e sabedoria.


Isso é praticamente impossível, nesta altura do campeonato, em que a indústria cultural e a bandidagem política define os rumos do que vai ao ar. A internet esperneia, mas começa a fazer água. Turar o You tube do ar, impedir que o Google pague seus colaboradores no Brasil (os cheques de publicidade dos anúncios estão retidos pela Justiça), processar até comentaristas de blog, tudo isso pressiona a grande rede para o reduto a que todos estamos acostumados. Ainda está longe de acontecer censura total, mas por quanto tempo? Costumo dizer que estes dez anos iniciais de internet serão lembrados como a época de ouro da criatividade e da opinião pública.


O poeta Emanuel Medeiros Vieira, que está detonando no blog novaklaxon, fala dos blogueiros de luxo em promiscuidade com o poder. O cerco começa a se fechar e o álibi são as inumeráveis visitas que alguns blogs conseguem atrair. Se visitam é porque estão gostando e se estão gostando, vamos negociar. A rede não seria exceção à regra da manipulação da opinião pública. A resistência é ainda caótica, pois estamos acostumados ao hiperindividualismo e a tela do computador é a única parceria confiável. Nos fóruns, sobra agressões. Já me retirei de alguns deles, para evitar a pedreira das brigas disfarçadas em debate. Em outros, peitei a mediocridade disfarçada em politicamente correta. Às vezes venço, às vezes perco.


A internet veio se somar às várias mídias. O impresso ainda reina soberano, pois o objeto se impõe sobre o virtual. Não se faz o download de um pão, adverte o marxista alemão contemporâneo Robert Kurtz, a mais evidente prova de que existe inteligência no pensamento de esquerda hoje. Vejo isso pessoalmente. Um livro impresso tem muito mais força do que milhares de posts. Ainda é cedo, concordo, para avaliar essa diferença, mas por enquanto noto que pegar o texto com a mão é muito mais poderoso do que simplesmente vê-lo na tela. O papel ocupa espaço e atinge mais profundamente os leitores. Por enquanto, acho. Talvez isso não seja uma regra, mas o fato é que tudo vai conviver e nada vai morrer. Quando fizeram a fotografia, diziam que a pintura iria acabar. Quando veio a televisão, falaram que o cinema e o teatro já eram. Tudo continua firme e forte, contrariando as profecias apressadas.


O bom da internet é que acaba com a gaveta. Tudo pode ir ao ar, com ou sem repercussão. Imagino que a leitura na rede está se disseminando primeiro de maneira geográfica e aos poucos entra para a civilização do mergulho. Retemos o que é mais significativo para nós. Visitamos os espaços virtuais que mais nos tocam. Nem é preciso imprimir para que algo permaneça. O importante é o convívio ativo com os contemporâneos. Sair do autocentrismo, furar a casca e abraçar o que está próximo e distante. Aos poucos, mergulhamos no desconhecido que é a alma alheia, único caminho para uma civilização de verdade.


RETORNO - Paulo Gil informa sobre a imagem de hoje: "Esta foto foi enviada pelo administrador de uma plataforma petrolífera da Global Marine Drilling, estacionada em St. Johns, Newfoundland. Eles têm que mudar o rumo dos icebergs, puxando-os com rebocadores para evitar que se choquem com as plataformas. Neste caso particular, o mar estava calmo, a água cristalina, e o sol quase diretamente sobre o iceberg, assim um mergulhador pode fazer esta maravilhosa foto. O peso estimado deste iceberg é de 300 milhões de toneladas".

26 de janeiro de 2007

LÁ NOS EUCALIPTOS





Confesso que senti falta da barreira de velhos eucaliptos que existiam atrás da goleira do campo de futebol do Colégio Santana, em Uruguaiana. Hoje o campo está muito melhor, mais cuidado, mas falta alguma coisa, precisamente essa fila de árvores que definiram o cheiro da minha infância. Costumávamos juntar folhas secas para queimá-las, só para sentir o ar perfumado. Acho também que eram usadas para afastar mosquitos. Serviam de quebra-vento, evitando assim que os jogos fossem assolados pelo minuano importado do pampa hispânico. Costumávamos dizer, quando a bola extrapolava os limites do bom senso e se chocava muito além do travessão, que ela batia lá nos eucaliptos. Isso servia quando a árvore nem estava por perto. Chutar forte, longe do gol, só para buchinchear, era atingir os eucaliptos, estivessem eles lá ou não. Tudo isso me ocorre depois da Eucalipto, Histórias de um Imigrante Vegetal (Já Editores, 128 pgs., 25 reais), de Geraldo Hasse, que aprofunda o tema e dá um banho de informação sobre silvicultura no Brasil e especialmente no Rio Grande do Sul.

TALENTO - Escrito com clareza e talento, o livro dedica uma boa parte do estudo à polêmica gerada pelo interesse de grandes empresas de papel e celulose de se instalar no pampa. Lança luz sobre essa briga candente, privilegiando os aspectos técnicos, fundamentado em seleta e providencial bibliografia e manejando a sustentabilidade de um espírito desarmado, a serviço da informação bem apurada. Hasse é craque no seu ofício. Dá voz a engenheiros, empresários, ambientalistas e aposta num acordo em favor do desenvolvimento sem agressão ao meio ambiente. Minha dúvida é se as leis de regulamentação não serão desvirtuadas em favor da desertificação da paisagem, mas isso o autor também discorre com propriedade. Hoje, com a pressão internacional a favor do planeta, é impossível para empresas multinacionais, diz Hasse,deixarem de lado as necessidades de um país escaldado na agressão ambiental.

HISTÓRIA - Mas a polêmica é uma parte do livro. O que mais gostei foi a história do eucalipto em terras brasileiras e os estudos que o colocam entre as opções mais preciosas do insumo para uma série de atividades industriais. O argumento mais poderoso apontado por Hasse é que o Rio Grande do Sul original não existe mais, transformado que foi pela pecuária e as plantações de arroz. Há vasta devastação e estagnação econômica. Nas entrelinhas, se é que eu entendi direito, Hasse sugere que a luta ambientalista está voltando a maior parte das suas baterias para uma empresa nacional, a Aracruz Celulose, e que a pressão poderá muito bem ajudar a concorrência de empresas estrangeiras, de olho na paisagem superfavorável à silvicultura (que não se restringe ao eucalipto, mas também ao pinheiro, este muito mais maléfico quando transformado em monocultura).

CONFIANÇA - O que importa é que o jornalismo está a serviço do esclarecimento neste livro. Por mais que exista convencimento de ambas as partes, é importante que os espíritos se desarmem e encontrem soluções a favor do país e da população. Pessoalmente, implico demais com essa indústria e só mesmo Geraldo Hasse para prender minha atenção num texto que levanta todas as possibilidades existentes sobre o tema. Sou contra a desertificação, mas o livro sustenta que a convivência pacífica entre o eucalipto e a paisagem é favorável e proveitosa para ambos os lados. Confio no trabalho de Geraldo, que tive o prazer de encontrar na Feira do Livro de Porto Alegre em 2006, quando ele me trouxe um exemplar de presente.

PERFIL - Mas o que eu gostaria mesmo de ler do Geraldo é o seu livro sobre os lanceiros negros. Pode ser ou está difícil, mestre? Vamos agora à mini-biografia da fera, fornecida pela assessoria de imprensa da editora: "Geraldo Hasse, gaúcho de Cachoeira do Sul, formou-se jornalista na Universidade Católica de Pelotas (RS), em 1968. Aos 22 anos foi para São Paulo e empregou-se na Folha da Tarde com uma matéria apurada no caminho. Fez carreira em São Paulo como editor e repórter-especial em Veja, Exame, Guia Rural e Gazeta Mercantil. Além de A laranja no Brasil e O Brasil da soja, Hasse publicou Filhos do fogo - história industrial de Sertãozinho e Mar de âncoras. Fez duas biografias: Semeador do Sertão, do paulista Maurílio Biaggi e a do gaúcho Darcy Azambuja.Em parceria com Elmar Bones, lançou Pioneiros da Ecologia, em 2002. E ainda neste ano coloca na Feira a segunda edição de Lanceiros negros, que escreveu em parceria com Guilherme Kolling em 2005. Entre outras premiações ao longo de uma carreira de 37 anos no jornalismo, destaca-se o prêmio Esso de Reportagem Econômica, em 1979 e o Prêmio Interamericano de Jornalismo, em 1992."

25 de janeiro de 2007

O CALCANHAR DOS GÊNIOS





Hoje a mediocridade achou uma brecha para desconstruir a cultura que nos mantém vivos. Basta destacar algo sinistro na biografia de um gênio. Costuma ser calúnia. A de Monteiro Lobato ser racista, por exemplo. Ou a de grandes poetas e romancistas terem sido coniventes ou estarem a serviço de ditaduras ou partidos da direita. Há uma multidão de Ches e Trotskis ciscando as fezes dos gênios para descobrirem a pepita que vai transformar o gênio em alguém abaixo deles, medíocres. Incriminar o gênio é a maneira que a mediocridade tem de transformar tudo em tabula rasa. O álibi é querer dizer a verdade, ser politicamente correto e provar que o cara não foi tão genial assim. Esse tipo de postura e ação serve para que medre entre nós a praga das expressões definitivas, todas intragáveis. Pois se você afasta os mestres, desmoralizando-os, o território fica livre para a bostandade espiritual. Vamos a algumas dessas expressões.

Filosofia de vida - Quem nunca leu nada de filosofia costuma ter filosofia de vida. Normalmente vem acompanhada de conselhos, pois quem tem filosofia de vida se coloca como parâmetro de comportamento da humanidade. Buscam a harmonia num universo hostil, o mesmo que gera criaturas que, para sobreviver, se entredevoram. A filosofia de vida costuma ser o dourado da pílula de um planeta estranho, nascido e criado no conflito e que exige o conflito para solucionar seus impasses. Você não peita bandido soltando pombinhas da paz e se vestindo de branco, por exemplo. Você peita perseguindo traficante de armas na boca do leão. Você peita investigando a fundo qualquer soltura de facínora. Você peita evitando a corrupção na política e a prostituição na mídia. Você não enfrenta bandido tendo filosofia de vida.

Beijo no coração - É preciso abrir alguém como um frango assado para cometer uma barbaridade dessas. O coração não pode ser beijado, assim como o sistema de som não pode extrapolar as paredes do templo na esquina da sua casa. Se você beijar na altura do coração, aí é outra coisa. É aquilo que o hoje famoso escritor gaúcho dizia em sua nem tanta juventude: "Te chupo um têto". Oigaletê. Até seio é macho no Rio Grande.

Fica com Deus - Quem diz isso tem a certeza que Deus está com ela e, num gesto magnânimo, esse privilégio é terceirizado para o pobre do interlocutor. Ou seja, o chato te deixa um pouquinho do que ele tem de sobra, o tal Deus que ele acredita. Como Deus está acima das criaturas, não é um bunda suja qualquer que vai definir o fato de você ficar com Ele ou não. Fica aí com Deus, já que antes Ele não estava com você. Ara, como diziam em Uruguaiana.

Amén? - Significa: fim de conversa, ok? Você concorda comigo, senão és um inguinorante. Amén serve para tudo. Até para receber troco em padaria, como vi e ouvi alguns meses atrás.

Dia desses - Acho essa infinitamente execrável. É de uma pretensa criatividade coloquial, como se o autor fosse alguém muito à vontade para fazer essa coisa que ele imagina ser uma elipse. "Dia desses" me lembra uma firma que fica ou ficava na Rebouças, em São Paulo: Toldos Dias. Parece um trocadalho.

Está bom ou quer mais? - Me aplicaram essa no orkut. Como formação sobra, cultura temos de montão, e cada um de nós é um valume, então isso se aplica aos pobres de espírito que nada sabem. Esses coitados levam e ainda podem pedir bis. No vulgo, pode ser traduzido pelo velho e obsoleto conheceu, papudo? É ótimo para debates digitais, desses que não provocam dor.

RETORNO - Imagem de hoje: o túnel do metrô bem no miolo do acidente da cratera em São Paulo. Foto de Marcelo Min, que foi detido por estar fotografando. Foi parar na delegacia, onde deletaram tudo. Mas Min recuperou e publicou na revista Época. Min, como todo mundo sabe, é gênio.

22 de janeiro de 2007

VIVA A VARANDA!





Estou em excelente companhia no caderno especial sobre crônica brasileira na mais recente edição do jornal Rascunho. Ao redor de destaques como Manuel Bandeira, Aldir Blanc, João Ubaldo Ribeiro, reparto espaço nas notas com Lya Luft e Miguel Sanches Neto, entre outros. Meu livro de conto e crônicas, O Refúgio do Príncipe, estréia assim na imprensa impressa acima de Santa Catarina (Rascunho é de Curitiba, mas tem circulação nacional). Daqui a pouco, deverá aportar em São Paulo, Rio, Oropa e Bahia.

A excelente matéria principal sobre o tema é de autoria de Carlos Ribeiro, de Salvador, que aborda a riqueza da crônica brasileira desde o século 19, focando especialmente Machado de Assis, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino. Suas referências são as melhores: Antonio Candido, Davi Arriguicci Jr. É de um sabor especial saber que este cronista, que publicou milhares de crônicas pela internet, foi incluído nesta edição graças a um livro impresso, que reúne as jóias aqui do Diário da Fonte.

Pelo menos uma pessoa reclamou, o JE Castro, da minha ausência nos últimos dias aqui no DF. Deixei passar quase uma semana sem novos posts, o que é uma extrema raridade neste espaço. Assunto não falta e a crônica no fundo não é assunto, é puro exercício de linguagem e esta brota todo dia. Mas o verão, a volta ao trabalho, alguns contratempos me deixaram ficar um pouco à deriva, fazendo de conta que este jornal não se chama Diário.

Os blogs do cybershark estão renovados graças a daniduc, que veio com tudo com seu dude´s talk renovado. Destaque também para o Nada a ver, de Ida Duclós, que está cada dia melhor e mais bonito. Os links estão aí do lado.

Na conversa na varanda (já que fujo do noticiário), fico sabendo que o ministro Sardenberg está sendo processado por ter sugerido a entrega de um pedaço da território nacional para os americanos, exatamente onde fica a base de Alcântara. A idéia de jerico deu com os burros nágua, exatamente na época em que nossa base espacial foi totalmente destruída, num evento pouco esclarecido e com conseqüências tremendas, em perdas de vida e de experiência tecnológica acumulada. Parece que o processo foi colocado em banho maria e o processador meteu também a juíza, que tomou essa decisão, na justiça. Existe um código penal militar que prevê prisão de 15 anos para quem tem a idéia de entregar soberania. Foi o que ouvi na varanda.

A varanda é uma instituição portuguesa em nossas terras. Ainda existem e eu tenho uma, pequena, mas agradável. Lá nos reunimos para a conversa sobre assuntos do dia e outros temas, desde literatura até filosofia. Nada substitui a conversa direta, nem internet nem jornal nem televisão. O real é a liberdade que temos quando conversamos e a varanda é o grande fórum nacional de debates e convívio. Viva a varanda!

RETORNO - Imagem de hoje: uma das pinturas de Juliana Duclós, da maravilhosa série Coisas de Maria.

16 de janeiro de 2007

O ACASO NÃO FAZ UM ANJO





Nei Duclós

Não uso relógio e a noite parece interminável. Mas a claridade se anuncia pela fresta da porta e bate na janela como um lençol atirado por um anjo. Saio para a frente da casa e ainda assim permanece intacta minha dúvida de que de fato vá amanhecer. É o hábito. Só enxergo o dia quando ele está pronto e sempre perco esse momento em que o breu desiste de jogar cabra cega com a luz e vai para casa. No fim da rua, o fole da manhã insufla a rubra pátina sobre as nuvens esparsas, que tomam conta do céu sem sufocá-lo. O conjunto de algodões agora avermelhados formam uma espécie de vestimenta de quem sai da cama, enquanto no horizonte o sol vai forçando a barra, e meu olhar coadjuvante prende a respiração, como um olhar da infância.

Mas há uma súbita trégua para que o fundo do céu, com consistência de pérola, disponha aqui e ali algumas nuvens levemente roxas, acompanhadas do resto do tropel inicial de algodões, agora conformados em creme. O sol parece estar com preguiça. Prefere brincar de fazer o dia antes mesmo de levantar-se como um gigante no abismo. Aguardo o momento enquanto escuto a timidez dos pássaros. Há pios por enquanto, nenhum grasnar mais consistente, como se toda a criação estivesse no ninho e houvesse imitação, por parte das criaturas, da atitude solar ainda espesso em cobertas invisíveis e em pouco instantes, inúteis.

É que o sol, antes de despertar totalmente, conversa com um anjo e as aves escutam. Estavam assim todos - céu, nuvem, sol, plumas - ao redor dos segredos trocados em miúdos, pelo gigante antes de lançar-se ao alto, e o anjo, especialista em amanhecer. Há demora na interlocução que começara quando eu ainda imaginava ser infinita a noite, naqueles minutos que antecederam o milagre. Desta vez, havia demora porque o brilho do anjo estava desenhado para revelações mais densas. O sol escuta enquanto vai levantando aos poucos a cobertura depositada pelo sereno, a essa altura já seco em suas fontes mais íntimas. Havia manhã, e a intervenção humana já se fazia sentir pelo ronco da estrada ao longe. Mas havia também a possibilidade de a conversa se estender um pouco mais, como se Deus permitisse semelhante abuso, já que corria-se o risco de um atraso nos relógios de prontidão suprema.

Claro que jamais saberei o que se passou entre o anjo e o sol, mas posso adivinhar. É como conversa de portão logo depois da ordenha. Ou conversa de vizinhos sitiantes antes de começar a lida. O visitante é o anjo que se debruça sobre o muro e orienta seu rosto que parece impassível, mas é pura concentração de espelhos, resíduos de tesouros brancos em grutas de mármore. Ele nos enxerga enquanto diz algo que agora entendemos perfeitamente. Ele conta, aparentemente, uma história banal, mas nas entrevozes escutamos a lenda da criação já resolvida, do dia pronto antes que o sol se mexa, do hábito que faz a senda, da estrela que não só anuncia, mas encarna o que traz de longe. Por isso talvez o sol tenha se deixado ficar enquanto o dia se manifestava com seus acordes.

Não existe acaso quando, no forro desse repasse de forças, acontece um anjo que proclama. Escuto a conversa de ouvido suspenso. Tento decifrar o mistério. Sigo o rastro deixado pela luz e os pássaros. Mas o sol, bruto com sua carruagem de fibras, já começa a cavalgar a manhã que tardava. Nada mais há a dizer do que bom-dia, que repetimos sem cessar nas horas seguintes. Trazemos guardado na dobra do rosto esse sopro, do anjo que segreda ao sol a criação antes da planta, da animação antes do bicho, do coração antes da prosa. Estamos dobrados em volta de nós como a asa desse anjo improvável, mas nítido, graças ao pacto que faz entre o despertar e a poesia.

RETORNO - Imagem de hoje: o pescador e o rio Uruguai, foto de Anderson Petroceli.

14 de janeiro de 2007

O FANFARRÃO DESASTROSO




O socialismo é a fase posterior do capitalismo. Capitalismo bem resolvido gera, por força da luta e do engenho humano, o socialismo. Mal resolvido gera o imperialismo, que é o desvio de conduta, que se impõe pela força e mantém o perfil do velho mercantilismo monopolista da época colonial. Quando todas as forças sociais estiverem desencadeadas, a intervenção socialista regula a economia em proveito da população. Isso só pode acontecer por via pacífica (como acontece nos países ricos europeus). Lênin tentou por meio de um golpe de estado contra uma revolução burguesa vitoriosa (derrubou Kerenski, que tinha derrubado o Czar). Tentou remendar liberando o campo para a força produtiva da pequena propriedade, mas Stalin acabou com esse projeto, engessando a economia por setenta anos. A conseqüência todos sabem: a Rússia voltou ao estado inicial e caiu no gangsterismo a la anos 20. Fidel falhou por obra do boicote econômico: com a economia estagnada, continuou sendo dependente de produtos coloniais como cana e charuto.

PRESSÃO - No Brasil, tivemos um processo simultâneo: enquanto as forças econômicas eram desencadeadas pela implantação do parque industrial e pelas políticas sociais, o Estado se estagnava para se contrapor à pressão reacionária dos escravocratas. O estado que buscava o equilíbrio entre capital e trabalho (idéia de base socialista) acabou sendo derrubado depois de sucessivos golpes de estado: 1945, 1954 e 1964 e foi enterrado de vez nesse sub-produto de 1964 que é 1985, a posse de um vice-presidente sem que o presidente, eleito indiretamente depois da derrota das Diretas-Já,tivesse assumido antes. A esperança era reverter o quadro por meio do voto. As lutas populares desaguaram em Lula, o presidente dos banqueiros. O fosso anti-socialista se aprofundou, enquanto se disseminou o discurso pró-socialismo, que aqui ficou apenas no discurso.

LIBERDADE - O slogan de Chavez, socialismo ou morte, é um desastre. Você não implanta o socialismo pela força, ainda mais num país atrasado, dominado pelo imperialismo mercantilista e com forças sociais e econômicas engessadas. Você precisa liberar essas forças por meio do capitalismo, como ensina a cultura marxista clássica. Chavez não sabe o que é socialismo. Ele simplesmente aproveita a situação de exaustão popular diante do terror e a miséria, gerada pelo imperialismo e a traição reacionária interna, e confunde tudo, trocando as bolas. O vilão não é o capitalismo, mas o imperialismo. A solução não é a luta armada, mas o socialismo que é construído a partir de um projeto econômico e social que faça as forças produtivas atingirem o seu auge. Você não vai à praça pública levantar o punho fechado e dizer slogans obscurantistas. É preciso se dar o respeito, respeitando contratos internacionais, primeiro, e negociando a mudança deles por meio da força do Estado de Direito e não pela fanfarronice desastrosa.

EXÉRCITO - Chavez está criando um exército de 500 mil jovens, dando treinamento militar e chamando esse sujeito perigoso, o presidente iraniano , para visitar a América Latina. Está implantando aqui o pesadelo que existe há décadas no Oriente Médio. O imperialismo adora a guerra. O socialismo adora a paz. Ao optar pelo arsenal e o ilimitado exército disseminado pela sociedade, Chavez apostou no pior e vai nos levar junto para o buraco. Toda vez que ele exibe aquela cara metida a esperta em Brasília, me dá calafrios. Não pelos motivos apontados pela esquerda ou direita. Mas porque na sua alegria imbecil está contido um futuro de guerra total.

SOBERANIA - Nenhum estado poderoso poderá fazer o que fez na América Latina, a não ser que você dê motivos para eles. Não me entendam mal. Se você se impuser como Estado Soberano, os Estados Unidos ficam de mãos amarradas. Mas se você chamar o Irã para cá, se armar até os dentes e ficar fazendo discursos fanfarrões desastrosos, então os gringos terão a faca e o queijo na mão para intervir. Bush precisa de clones, de idiotas perigosos como ele, para reinar. Veja quanta munição Sadam Hussein, com sua fanfarronice sanguinária, forneceu para Bush disseminar o terror.

ERRO - A fonte do equívoco Chavez não está no processo histórico, mas no artificialismo das teorias de esquerda e direita. Quanto mais insumo houver para essa ilusão de que "venceremos, pátria o muerte, no pasarán", mais perderemos, mais teremos morte e mais eles passarão. Aliás, eles sempre passaram, por mais que no pasarán tenhamos dito.

CORAGEM - Para deixar de ser fanfarrão ou entreguista, é preciso coragem pessoal e gênio de estadista. Não temos nada à vista por enquanto. Temos no Brasil e na Venezuela dois desastres políticos, alimentados pela propaganda mentirosa e grotesca, que vai acabar colocando fogo na mata. Na hora que houver a grande tragédia, não digam que não avisei.

RETORNO - Imagem de hoje: pintura de Bosch.

13 de janeiro de 2007

A COMPAIXÃO EM ANSELMO DUARTE (*)





Nei Duclós

A cena que vai levar Anselmo Duarte para o céu do cinema é a da procissão, em que há identificação entre os rostos da imagem de Santa Bárbara/Iansã e do Zé do Burro/Leonardo Villar. O movimento nos degraus é a cidadania desamparada que ascende pela espiritualidade, única porta de acesso à justiça. Essa subida, feita ao sabor das ondas do andar, e que ajusta a sintonia entre as duas expressões, é o momento supremo deste filme maior que é O Pagador de Promessas. O rosto do personagem transcende o pedido, já é uma confirmação da bondade que lhe assiste e que só existe fora da vida social, totalmente contaminada pela exclusão e a violência. Os dois rostos se encontram na inocência que gera a compaixão.

O pedido de Zé, a cura do animal que o serve e faz parte da família, é o sintoma de uma vida terminal. Zé precisa ser atendido, pela contingência da miséria. Uma santa, sem poder temporal, vai em socorro da vítima e a salva. O homem agradecido é impedido de entrar na Igreja porque cometeu um pecado: invocou a santidade intensificada por duas culturas diferentes. Mas uma cultura isolada não forma uma nação, que é feita de somas e inclusões.

Não haveria necessidade da santa se houvesse país, ou seja, se o Brasil realmente cuidasse dos seus filhos. Mas não há país e a porta do templo está fechada para a compaixão. A solução é a ruptura, o resgate da crucificação. A expressão usada pelo diretor quando viu a cópia do filme em Cannes, logo antes de entrar na disputa, serve para definir o filme: um veludo. É desse veludo que se alimenta Anselmo Duarte, o diretor que veio do Brasil profundo. É preciso destacar a influência desta obra brasileira, que arrebatou a Palma de Ouro de Cannes, sobre Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, que em início de carreira foi assistir as filmagens em Salvador.

O rosto de Anselmo Duarte personifica a inocência do cinema brasileiro quando ele era apenas um ator (foi quando aprendeu a filmar). Sua estréia como diretor, o perfeito Absolutamente Certo, mostra como outro cidadão desamparado, deste vez no universo urbano, tenta a ascensão social pela via lotérica, um concurso de rádio que testa a memorização. Ele se insurge contra a manipulação do concurso. Não quer explorar a boa fé do povo, pois é nisso que reside sua principal abordagem cinematográfica.

Anselmo vê o país como um fígado à mercê dos abutres num rochedo, e procura fazer a representação da revolta por meio da tomada de decisão, ou de uma palavra que virou moda, atitude. Zé do Burro, assim como os personagens de Vereda da salvação e O crime do Zé Bigorna, são vítimas da própria determinação. São manipulados pela esperteza nacional, massacrados pelo sistema de opressão, assassinados por gosto ou opção.

É um Brasil que veio do sonho feliz da urbanidade de cara limpa (as comédias da Atlântida), que tentou ser sério como o cinema da Europa (os filmes da Vera Cruz) e que deságua na obra de Anselmo Duarte como denúncia e como afirmação da nacionalidade. Ele mostra a compaixão necessária para que ainda exista país, e ao mesmo tempo abre as vísceras desse sentimento perdedor, que sucumbe diante da crueldade e da indiferença bem nutrida.
O ressentimento de Anselmo Duarte tem razões de sobra para existir. Ele realizou um sonho: venceu todos os grandes diretores no festival de Cannes, levantou a Palma de Ouro, da mesma forma que os capitães Bellini e Mauro ergueram acima das cabeças (sinal de auto-superação do país) a taça Jules Rimet nas Copas de 58 e 62 (gesto midiático que ele fez de propósito, como referência) e foi alvo da mais pura inveja. Mas, se a inveja não dá trégua, o problema é da inveja.

Anselmo sempre nos deslumbra com sua estampa impecável, sua cara de Brasil bem resolvido e suas histórias maravilhosas, sintetizadas em algumas obras, como O homem da Palma de Ouro, de Luiz Carlos Merten, e o ainda inédito Não dá para acreditar neste cara - Histórias e lendas de Anselmo Duarte, de Wendel Martins. É uma personalidade que nos deu pelo menos uma obra-prima e que merece o respeito da nação que ele tanto honra em sua longa e proveitosa vida.

RETORNO - (*) Artigo publicado neste fim-de-semana no caderno Donna DC, do Diário Catarinense.

12 de janeiro de 2007

AI DE TI, SÃO PAULO





O Metrô não tem culpa de nada. O problema é o solo, que é instável. Onde já se viu, São Paulo, teres solo tão instável? Por tua culpa, o chão cedeu e engoliu caminhões, mas as assessorias de imprensa garantem que não morreu ninguém. Ah, bom. É uma pena que o solo tão instável continue cedendo e a cratera aumentando. Talvez os 30 diâmetros iniciais cheguem ao bairro de Pinheiros inteiro. Talvez esse solo tão gentil, São Paulo, que a todos acolhe, esteja cansado de tanto abuso.

Te abriram como se fossem tatus ensandecidos. Te perfuraram inteira, para construir túneis, que passam por todo canto, até mesmo por debaixo do rio. Eram necessários, pois tua superfície não suportava mais a carga de gente que chega para pedir socorro em tuas ruas, empresas, casas. Acharam que eras imortal, cidade querida. Por isso és culpada por expores a céu aberto a loucura humana que tomou conta do país.

Como um São Sebastião amarrado a um poste, todas as setas te perfuraram. Picharam todos os edifícios, favelizaram tudo. Usaram até o osso tua vocação para a generosidade. Tudo sai de ti, São Paulo. Tanto dinheiro, tanta criação, cultura, sabedoria, experiência, vivência. Em ti aprendemos o que é ser cidadão de um país e do mundo. Não estás amarrada a mesquinharias provincianas, mesmo quen isso também teime em medrar em ti. Em teu colo pousam todas as ousadias de quem deixou tudo para trás para te conhecer, São Paulo. Ai de ti, cidade amada. Toda a poluição confluiu para teu regaço e agora, com as vísceras em fiapos, cospem no teu solo como se fosses uma traidora.

É que disseste basta, São Paulo. Nem querias chegar a tanto. Imaginavas que todos os alertas, como pontes que tremem, ruas que não andam, violência e miséria, eram suficientes para que mudassem de rumo. Mas insistem, São Paulo. Querem mais de ti sem nada te dar em troca. Por isso uma parte de ti, pequena, mas importante, agoniza enquanto os besouros da mídia voejam ao redor da cratera, a informar a quantidade de quilômetros de engarrafamento e a celebrar o próprio ofício, de dar o serviço sobre a tragédia.

Ai de ti, São Paulo, que me recebeste como a um filho e aos meus filhos acolheu e serviu de terra natal. Ai de ti, cidade amada, na mão de tantos gângsters. Teus donos preferem passear de helicóptero, São Paulo. Não suportam o que fizeram contigo, por isso te evitam. És um recorte urbano de dor no horizonte sangrado da Pátria. Virou fora de moda falar em Pátria, cidade amada. Falam em mercado, parece que essa Linha Amarela não é pública, é privatizada. Longe de mim querer colocar a culpa na engenharia, tão ciosa de seus feitos. A culpa é tua, São Paulo. Não permitiste que te furassem mais uma vez, do mesmo jeito de sempre. Por isso cedeste e caíste como um saco de ferro velho nas profundezas de teu solo contaminado.

Te rebentaram, São Paulo. Mas vão consertar tudo. Tudo isso será esquecido. O metrô passará dentro de ti, como sempre. Nem inventes de morrer. É só uma ferida aberta, que vai cicatrizar. Fico pensando mesmo é no teu coração, cidade da minha vida. Como deve estar machucado. E eu longe de ti, expulso pela ferragem que tomou conta de tuas praças, da fuligem que derrotou o arvoredo de teus casarios. Longe do teu coração de ouro, não o ouro dos tolos, mas o ouro dos jardins mágicos, o do pote no fim do arco-íris. Te caluniaram como se fosses uma cidade hostil, mas isso jamais explicaria porque és tão amada. Simplesmente destruíram o que tinhas de melhor e mais valioso.

Mas sei que resistes, cidade. Sei que és de fato imortal. E poderás até tragar tudo e todos com tua queda, mas isso jamais será ódio do teu solo. Porque és o chão que beijamos em nossa lembrança, porque tudo veio de ti, São Paulo, e tudo continuará vindo, pois ao contrário do que dizem, és mais dura do que o concreto que toma conta de ti. Tens a dureza da História, a que se eterniza no coração dos seus filhos.

RETORNO - A imagem é de São Sebastião, representativa de São Paulo hoje.

11 de janeiro de 2007

IR À PRAIA





Ir à praia dá trabalho. Só passar protetor solar leva duas horas. E sempre fica uma ponta de garrão, um pedaço de nuca, um fiapo de tornozelo, para queimar à noite. Tem dias esplendorosos que fico em casa por preguiça de gastar essas melecas caríssimas. Como estou longe da beira, uns dois longos quilômetros, é preciso se armar de toda a boa vontade para chegar até onde, dizem, o verão refresca sob a ameaça de poluentes, especialmente os fecais, já que a ilha não dispõe de saneamento básico. Armar-se de espírito de pic-nic significa tentar sair várias vezes. Sempre falta alguma coisa. O chapéu, que odeia praia e se esconde embaixo de algum jornal velho. O calção, que pede aposentadoria mas, como eu, ainda tem algum bom tempo de trabalho pela frente. E as camisetas, dessas puídas, que são feitas para se encher de areia e são sacudidas ao vento para desespero dos outros banhistas, e que jamais estão perto de você na hora de partir para o banho salgado.

DESVIO - É preciso depois desviar de todos os ciclistas, pedestres, motoqueiros, caminhões, carrões e ônibus que insistem em evitar que cheguemos antes que o sol atinja a marca perigosa, aquela que sempre chega cedo demais, mesmo em horário de verão (ou apesar de, nunca sei o sentido certo do horário de verão, se é uma hora para cá ou para lá). Tem os becos, as servidões, os mata-burros, os buracos para transpor. E também a rodovia principal, que despeja dez mil veículos por segundo exatamente no ponto em que precisamos passar. Não tem sinalização, então é tudo feito no grito, na cara e na coragem. Cruzar a estrada para chegar ao outro lado, onde fica o mar, é um transtorno diário para quem tenta ser veranista como eu.

VAGA - Mas, desfeitos todos os contratempos, você chega a tempo de colocar sob o sol claudicante seu carrinho desprezado por tantos poderosos motoristas que jamais dispõem de paciência de compartilhar a rua com você. A vaga é imediatamente cobiçada, mesmo que você esteja totalmente instalado nela. Então você se esgueira pelo meio-fio, acha uma abertura para a praia, mete o pé no areão escaldante e pronto: lá estão todos eles, jogando frescobol ou futebol mesmo, com a intenção óbvia de acertá-lo no primeiro instante em que você chega perto das ondas.

APITO - Mas você não dá bola. Deposita a roupa sobressalente - camiseta, chapéu, bermuda, óculos, carteira, chave do carro, protetor, tudo formando uma maçaroca - e parte firme para seu objetivo. O mar está normalmente encapelado, às vezes morno e há várias bandeiras vermelhas te proibindo entrar por ali. Você escolhe o lugar mais apropriado, para não ser alvo do apito frenético dos salva-vidas (que ganham por apitada) e finalmente mete o pé na água. Mas eis que vem um surfistinha, desses que dizem "sai da frente", com a evidente e sorrateira vontade de te atingir o olho esquerdo com um pranchaço. Mas você pode mais, pois é bem maior que esses fedelhos, e abre caminho. Mais adiante estão os surfistões, os marmanjos mangolões que se atiram das ondas e vem direto para você. Aí você sai da frente. É melhor.

PRAGA - Então você, no maior cuidado, encontra um pedacinho de oceano para refrescar o corapanzil quando então chega o Conversador. Ele vem vindo, vindo, para te perguntar se ali dá pé ou se o mar é sempre assim. Não costumo dar trela ao Conversador, pois sou escolado nessas pragas e vou me afastando. Mas aí chego perto da área proibida pela bandeira vermelha e lá vem o salva-vidas saradão te avisar que deverias estar em casa, longe daquele perigo. Replicas que vives ali mesmo há anos e que conheces bem as manhas do mar. O salva-vidas ri. Nunca viu uma bóia dizer que sabe nadar.

HORIZONTE - Afora isso, é um delícia. Você gasta uns mil dólares para tomar uma água de côco, que vem chocha e azeda, escapa dos vendedores de qualquer coisa, como os que vendem queijo na brasa (é verdade! eles passam com o troço fumegando) e roupitas de verão, fora os chapéus de vários tipos, que jamais servem em você. Os vendedores também adoram descansar bem na minha frente, para evitar que eu olhe um pouco o horizonte. Lá fica o cara de camiseta regata a coçar uma perna com a outra, olhando as frangas. Quando você desiste de tudo, ele também vai embora. Você volta e tem que enfrentar tudo de novo. E quando chego em casa com aquela cara de mar e sol, todos dizem: como te fez bem o banho de mar! Só eu sei.

RETORNO - Imagem de hoje: a praia é boa, o banhista é que é mais ou menos.

9 de janeiro de 2007

A INDIFERENÇA FAZ PERGUNTAS





A pessoa não te vê há algum tempo e resolve te cravar de perguntas sucessivas. Esse interlocutor provisório e episódico te aborda se baseando em alguém que, como pele de cobra, já largaste numa esquina do tempo. Esse é o momento da provação. Aquela pessoa, tão íntima, jamais te deu a mínima importância. A atenção que ela dispensa nesse instante tem a ver com idéias fixas. São como perguntas de médico quando dobras o cabo da Boa Esperança: elas sempre atingem o alvo, acabam encontrando o que tanto procuram. E o que procuram? A retaliação por terem convivido por algumas horas ou dias contigo no trabalho, numa festa, num cinema. Compartilharam sem querer aquela proximidade e isso ficou como um travo amargo na pessoa que agora tenta te desesperar com perguntas sucessivas.

Como ela foi completamente indiferente no passado, não consegue suportar o fato de que te conhece. Então te dá uma saraivada de perguntas, pretensamente interessadas nas respostas. E vais tentando escapar até que és atingido, confirmando o que ela quer, enfim, extrair de ti: a absoluta falta de necessidade cósmica da tua existência, justificando assim o alívio que ela sente em ser a própria. Isso já nem é auto-centrismo, é doença social.

Vejo filmes e mais filmes. Não comento aqui porque ficou recorrente demais. Mas o que mais me encanta nos filmes é o trabalho de equipe mostrado nos extras, nos bônus, nos making of . São grupos de profissionais qualificados que dedicam em média dois anos em cada projeto. E vão assim sucessivamente produzindo obras, algumas mais fortes, outras menos. E não importa o tipo de filme produzido, o que vale é a indústria montada, toda ela baseada na eficácia, no talento e na sintonia. Os atores dão deixas e dicas sobre cenas, os diretores aceitam. Os roteiristas vão até suas fontes, ou seja, até o jornalista que escreveu determinada reportagem que vai gerar o argumento para o filme. Os dois conversam e se animam com o resultado. Não há esse esforço mútuo de um boicotar o outro, de um ser mais que o outro.

Isso tudo faz com que haja grande diversidade no meio. Existem milhares de roteiristas, diretores, atores, todos de primeira grandeza na indústria do primeiro mundo. Aqui temos meia dúzia de roteiristas, regiamente pagos, que muitas vezes chupam idéias alheias para continuarem pontificando. É triste.

Por que não podemos fazer o mesmo? Por que aqui existe esse esforço de padronizar tudo, de reduzir tudo a meia dúzia de nababos? Os filmes brasileiros, em sua maioria, estão contaminados pela estética da televisão ultimamente. Por que fazer também do cinema um reduto do império televiso? Porque assim os apaniguados não sofrerão nenhuma concorrência. Eles também acreditam que é o povo que quer assim, os cafagestes, que colocam a culpa no povo, de onde vieram e contra o qual se voltaram.

O povo gosto de representações sofisticadas, vindas da literatura. Querem um exemplo? Jeca Tatu, que fez grande sucesso com Mazzaroppi. Pois Jeca Tatu é uma obra de Monteiro Lobato, escritor de primeira grandeza. É uma síntese, uma denúncia, um trabalho que teve grande repercussão cultural. Os traidores acham que povo é assim mesmo, só gosta de porcaria e coisa padronizada. Enquanto isso, levamos de lavada de um monte de paiseco que se mete a fazer cinema.

Por que somos assim? Porque não conseguimos derrotar a ditadura. Porque o sistema educacional se esfacelou. Você vê nas equipes americanas: todo mundo é alfabetizado, todos exercem a língua básica e comum proporcionada pela educação. O resto vem por si. Aqui tudo é entendido ao contrário. Há inveja demais. O objetivo é não permitir que os outros aconteçam.

8 de janeiro de 2007

UM PEQUENINO GRÃO DE AREIA





Hoje não escuto qualquer tipo de música. Funciona apenas meu ouvido interno, fundado na lembrança. Tenho medo de ligar o som e despertar a atenção ao redor. Eles lembrarão, penso eu, de colocar seus guinchos horrendos de sertanejos, baticuns, raps e rip-rops. Há exceções, raras: escutei dias atrás no you tube a nova música de Cat Stevens, que resolveu pedir licença para sua religião e gravar de novo. Há anos não escuto Mozart, nem Brahms, nem Beethoven. Não escuto Beatles nem mais nada. Quero apenas o silêncio, quando há.

Conseguiram me afastar de tudo que lembre melodia, harmonia, arranjos. Esqueci do jazz, da música romântica italiana, da música francesa. Desaprendi as notas musicais. Emburreci. Fechei-me para desbalanço. Foram as décadas de primeira revolução industrial nos trilhos e motores de São Paulo. Foram os carros passando sem parar. Foi essa gritaria do gogó malvado, foi essa estupidez que tornou tudo igual, foi esse vibrato no final de toda frase musical, em canções que jamais acabam.

O rádio está ligado em alguma dessas coisas. Você vai lá e desliga. Liga uns dez minutos depois e está a mesma voz esganiçada berrando sem parar algo que considera a coisa mais tesão do mundo. Tem agora a moda fanha da voz. É algo que parece folha de outono, que vai caindo sem parar. Vi no centro do meu bairro, ao ar livre, algo assim: a garota fanhava sem parar trocando os ãos pelos ahumns. Era acompanhada de dois patetas que riscavam algo com cordas. Usavam calças aparecendo parte do púbis e do rego, que é moda agora. Falam em cintura baixa. É cintura nenhuma. É o gesto de se pelar em público.

Nas novelas, um rapazinho que ainda não engrossou a voz se esgoela em frente a uma peruinha que dá gritinhos apaixonados. Ele é tão romântico! Precisam ambos de boas palmadas. Vão estudar música no primário. Para isso, precisa resgatar o primário e fazer da música matéria obrigatória, de repetência. Rodou em música, repete de ano. Queria ver nahum aprender. Nheco nheco bilau bilau. Tá todo mundo precisando de laço.

Milhares de estudantes entre 14 e 17 anos desistem de estudar no Rio de Janeiro porque não aprendem nada em aula. Fizeram pesquisa. Deve ser em todo o Brasil. Os professores não ensinam nada, nada sabem e vivem um repetindo o outro. O estudo perdeu o sentido. A garota desiste da escola e vai para a balada e engravida. O garoto se enturma fora da escola. Existem milhares de professores desempregados. Tem gente qualificada comendo mosca por falta de oportunidade. Não há política pública que junte as duas pontas. Deixam a educação a cargo de ignorantes e medíocres, com exceções, claro, em toda a rede de ensino. Existem ainda grandes escolas, grandes professores e alunos aplicados. Mas falo do ensino de massa. Está atirado.

É por isso que as pessoas ligam o som e só sai porcaria. Não escutam nada que preste. Um terreno baldio aqui perto de casa, gigantesco, está sendo montado às pressas para as pessoas se entupirem na estrada, irem em massa com cerveja na mão escutar porcaria. É uma tradição, todo ano tem. Com apoio do poder público e da mídia. Irado, dizem. Irado estou eu.

Nos coletivos, fica um montão de gente se atordoando com fone de ouvido. É uma barulheira infernal. Precisamos de 50 anos de silêncio absoluto para voltarmos a ter música e a saber escutá-la. Shhhhhhhh!

RETORNO - Imagem de hoje: fotaça de Regina Agrella. A escolha da foto influenciou o título. É para cantar, no ouvido interno:...que era um pobre sonhador/ olhou para o céu, viu uma estrela..."

7 de janeiro de 2007

TORNEI-ME PASSOS





Nei Duclós

Tornei-me passos
em busca da aurora

Belo como geada
acordei enrolado num cobertor
que o sol dourava
nos terrenos baldios
da minha estrada

As cidades construíram
muros à sua volta
mas com cordas
escalei pedras
e penetrei nas entranhas
de concreto e praças

RETORNO - 1. Este é um dos poemas do meu livro de estréia, Outubro.2. Imagem de hoje: Praia dos Ingleses, por Miguel Duclós.

6 de janeiro de 2007

OS MALVADOS SE DIVERTEM





A maldade é a expressão de culturas atrasadas. Os americanos não são malvados, são cruéis, o que é completamente diferente. A crueldade, nos países ricos, serve aos interessem nacionais. É a mão armada da vingança e da hegemonia. O Brasil, por sua vez, é a terra da malvadeza, que é a manipulação do Mal pelo Mal. Não existe projeto nacional na malvadeza. Existe gozo. Vejam como são malvados. Primeiro, destruíram a malha ferroviária, que criava milhões de empregos, só para consumirmos mais diesel e gasolina. Enquanto pagamos quase três reais pelo litro de gasolina, tem país como o México que cobra 20 centavos de dólar. Poderão dizer: é para atrelar o Brasil aos interesses estrangeiros. Não é. É pura malvadeza. Assim eles enchem o rabo de grana e gargalham da nação sufocada.

Vejam como são malvados. Te tiram a estabilidade acabando com milhões de empregos e te colocam no farol a vender porcaria chinesa. Isso é para obedecer as leis do mercado globalizado, dirão. Não é. É pura malvadeza. Pois deve ser divertido ver as criaturas do país se destruindo por uns trocados enquanto os carros param no farol. Chega o verão e eles acabam com ao água. Ou fazem obras para entupir o trânsito. Ou asfaltam a pista e não cuidam do escoamento da água da chuva, então a pista fica alagada. Por que são incompetentes? Não, porque são malvados. Adoram fazer isso. Pegam toda a grana do país, da merenda escolar ao investimento em infra-estrutura, e embolsam. Por que são ladrões? Não, porque são malvados. Deve ser gostoso pegar trilhões em impostos e contratar umas putas para concretizar velhas fantasias.

Aí os blogs começam a fazer sucesso. O que fazem os malvados? Tentam engessá-los em esquemas corporativos. Porque a liberdade incomoda, a arte chateia, a cultura ofende. Eles precisam transformar tudo numa josta, dividir o próprio inferno. São incapazes de patrocinar um blog realmente livre. O blogueiro precisa raspar a bunda no tapete vermelho, senão não serve. Sabe o que é isso? Pura malvadeza. Assim eles podem distribuir a renda para os próprios cachorros e deixar que a favelização e o terror tomem conta do país. Não se trata de um projeto nacional. Não se trata apenas de ditadura. É pura tesão, vontade de fazer o mal. Por isso eles êm essa cara lombrosiana, que tanto gostam de exibir na televisão.

Ficou impossível de andar nas grandes cidades? Eles tomam os helicópteros. Ficou impossível de suportar os facínoras que deitam e rolam sobre a população? Eles vão para a TV e dizem que vão coibir, que é um verbo deles, mistura de cocô com exibir. Toda vez que falam em coibir, esteja certo: é merda no ventilador. Eles coíbem só para fumar cohiba de primeira linha. Estou muito malcriado? Isso é só o começo.

RETORNO - Imagem de hoje: pintura de Bosch.

3 de janeiro de 2007

ENTREVISTA RELÂMPAGO




O poeta Marcelo Ariel fez esta entrevista comigo e publicou no seu blog Teatrofantasma. Reproduzo aqui para os leitores do DF.

Por que você escreve?

Nei Duclós: Lembro o primeiro dia em que comecei a escrever. Tinha acabado de chegar de uma longa temporada na praia.Para quem nasceu e foi criado numa cidade que fica no meio do pampa, o mar revelou que existe uma paisagem neste mundo parecida com a que te cerca - lisa, poderosa e infinita -, mas com uma diferença fundamental: ela é livre, mutante e pode jogar no teu corpo a água misteriosamente fria num tórrido dia de verão.Quando entrei no mar pela primeira vez, enfrentei-o a socos e às gargalhadas. Foi uma relação intensa de felicidade, o de descobrir o tesouro que o mundo real escondia além da minha fronteira: movimento e liberdade. Ao voltar para minha escrivaninha de estudos, fiz meu primeiro poema. Hoje, adoto a explicação do escritor Julio Monteiro Martins, que mora na Itália: escrever é missão não imposta, nascida do próprio senso de humanidade do escritor. Julio diz mais: a literatura é o único discurso com poder suficiente para enfrentar a manipulação da publicidade, da mídia e dos governos.

O que é a vida para você?

A vida é um mergulho intenso no verbo, representação e carne de um espírito maior que nos cria e redime. Viver é estar no miolo do furacão desencadeado pela palavra, esse canal que nos liga ao eterno e nos prende à humanidade. Viver é estar eticamente ligado ao que está vivo.

E a morte?

Morte é mistério e perda. É presença, detectada pelo medo, e uma advertência perene à nossa arrogância. Morte é revelação quando a sentimos e obscurantismo quando a ignoramos .

Qual seria a função da poesia em um mundo como o nosso, assolado pela peste consumista e em permanente crise ou inversão de valores?

Poesia é a palavra com o dom da transformação. Poesia é claridade e avalanche. É denúncia e resgate. É o que dá sentido à dispersão da vida. É síntese e desdobramento e é luta contra a indiferença.O maior inimigo da poesia é a sua imitação: a máscara que a exila, a espada que a retalha, a dor que é puro deboche. A imitação é a negação do carisma e a danação do verdadeiro poeta.

A poesia está fora do circuito, porque seu sentido sempre retorna renovado, por mais que a cerquem. A poesia desmoraliza o circo de horrores e recupera, para o humano, sua transcendência. Por isso a linguagem das religiões usa o poético, porque esse é o único meio de se sobrepor a todas as pestes.A poesia é quando Deus silencia para escutar e ao mesmo tempo é o grito da divindade quando se enxerga.

A função da poesia é engendrar o sagrado, mesmo quando precisa ser profano para expulsar o que nos aniquila. A poesia traz de volta o que estava oculto e eternamente presente. É o alívio da criação quando encontra enfim a saída do labirinto.Poesia é a proximidade mais íntima com o humano.

RETORNO - Imagem de hoje: Foto aérea de Uruguaiana, feita por Anderson Petroceli.

2 de janeiro de 2007

TUDO, MENOS A RESPONSABILIDADE





Se os facínoras dão ordens de dentro da cadeia, tutelada pelo Estado, para que tasquem fogo em crianças e idosos, isso é responsabilidade sua, cidadão brasileiro. É a sociedade que acumulou esse tipo de problema e agora explode na nossa cara, pois fomos incapazes de nos opor a isso. Não vá culpar as autoridades do governo estadual, federal ou municipal. No meu governo, no meu país, nos meus ministros, tudo isso é meu, menos a responsabilidade. Eu agradeço a Deus por ter ascendido socialmente, da miséria para o Palácio. Vocês foram os intermediários desse salto para o acesso a toda a riqueza da nação.

Por isso tomo posse, com tudo a que tenho de direito. Eu me aposso do país que vocês me entregaram graças a essa democracia que a luta do povo consolidou. Porque isso é democracia: nunca antes nesse país teve uma criatura como eu, inventada pela incompetência histórica da esquerda brasileira, e que é fruto do ressentimento de classe social. É por isso que, no lugar da classe média e seus horrores, decidimos fazer ascender uma parte dos miseráveis para todos os vícios da classe média. Pena que minha posse seja numa segunda-feira.

Se fosse numa sexta, aí sim íamos festejar. Todos os marombados saradões iriam berrar bêbados em carrocerias de utilitários do campo só usados em cidade; todos os imbecis ágrafos iriam jogar bomba nos vizinhos; todos os surdos cafajestes iriam tocar sertanejo bem alto para que o sistema solar inteira ouça esse berreiro. Aí sim seria o bicho. Vestidos de branco para celebrar o ano novo, estouraríamos champagnes e cidras em areias lotadas à beira de mares poluídos; iríamos oferecer beldades pobres a celebridades milionárias e ainda difundiríamos isso como o charme e o veneno da mulher brasileira. Ou seja, seria uma beleza só.

Agora que entro no meu segundo mandato, e que vou tirar dez dias férias, podem dizer para todos: deixem o Homem trabalhar e, pela lógica, deixem a mulher lavar louça e pilotar fogão. Eu, com minha primeira dama italiana e meus filhos italianos. O José Alencar, esse portento que passou quatro anos reclamando da política econômica e que agora está aqui acenando para ninguém. Todos juntos, para frente Brasil. Para isso Deus existe: para me manter neste cargo onde continuarei usufruindo tudo o que a divina providência me reservou.

E se existe mortandade e falta de paz no país, se as estradas estão rebentadas e nelas milhões de indivíduos se suicidam em todos os feriadões, se acabo de decretar a privatização da Amazônia, se continuarei com minhas bolsas esmolas para manter a miséria sobre o meu controle neste meu país, e se assim mesmo continuarei sendo apoiado pelos que se acham lúcidos, então locupletem-se. Vocês são culpados, torcida brasileira. Eu estou na minha. Viram como foi difícil chegar até o palanque? Viram quanta gravata e terno e risos, risos, risos? São os detentores do butim. Nós mandamos no país. Nós, não vocês.

RETORNO - Imagem de hoje: Ravi Ramos Lacerda em Abril Despedaçado, de Walter Salles.