27 de agosto de 2022

DESPERTAR

 Nei Duclós 


De manhã à noite, a palavra

E seu sucedâneo , o poema

Impregnado de sol e madrugada

Solto como arco-íris na espátula 

Quadro composto de letras e nuvem

A civilizar nações com sua pena bárbara 


Paro de repente, há som de pássaros 

Preciso dormir, adormecida amada

Despertarás em mim por força do hábito

Criatura maior, sonhas calada

Enquanto canto para as estrelas

Na linguagem futura da primavera


Nei Duclós



26 de agosto de 2022

ATLANTE

 Nei Duclós 


Não descanso deste ofício que me fez gigante

Deixei de ser pequeno com a força do meu verso 

E hoje cruzo o mar dos contemporâneos 

Torno raso o traço que riscam no oceano


Dizem que sou louco de tanta soberba 

E que me convenço sendo um velho moço

cheio de fumaças na cachola insana

Um Quixote sem escudeiro nem Cervantes

E não um semideus da raça dos atlantes


Mas sou o que vim a ser, monstro

Ou como diz o poeta, impávido colosso

Pegue minha mão, beba desse cálice 

Nasci para jogar a terra além de Andrômeda


Nei Duclós

13 de agosto de 2022

PROMESSAS

 Nei Duclós 


Ameaça amanhecer

E o céu ganha aos poucos

Uma cor de rosa desmaiada

Como se você, pálida 

Exausta de partir

Se reanimasse no meu colo 


Na natureza tudo se cumpre

Mesmo sendo inverno 

O sol, embora tímido

Irá brilhar no meu quintal


Assim como teu corpo

Emerge da sombra

Para confirmar as promessas da manhã 


Nei Duclós

LONGA VIDA

 Nei Duclós 


Longa vida dediquei a outros mares

Achando que era meu o santo sudário 

Mas eu nada seria se não fossem os mapas

Os sinais repassados por mãos solidárias 


Hoje estou imóvel sem o poder diverso

Que tive em tantos anos de sacerdócio 

Sinto o vazio de viver só para si

Como árvore isolada e madeira de calvário


Mas aproximam-se quem foi beneficiado

Perguntam como estou em meu exilio sagrado

Vou bem, digo para não espanta-los

Só dói um pouco quando tento levantar-me

Como fiz com as velas nas tempestades


Nei Duclós

12 de agosto de 2022

NOTURNO

 Nei Duclós 


Café preto com torradas

Na alta madrugada

Quando até a Lua esconde as horas

E as estrelas varridas no último ciclone

Piscam em pânico 

Em direção a Andromeda


O sono vem a cavalo

Contrariando histórias lendárias 

Adormeço com as mãos presas num sonho

Que é  acordar-se por dentro

Lá me sirvo do que está em falta 

na mesa ainda posta

E noto o sol tentando romper a aurora

Com o fígado exposto depois de acender a fogueira


Nei Duclós

6 de agosto de 2022

MUDANÇA

Nei Duclós 


Não reconheço mais estas ruas

Como a cidade pode mudar sendo sempre a mesma?


A memória não cabe no presente

O passado ficou dentro de mim

Pássaro preso


A alma da paisagem abandonou o ninho

E as casas, calçadas, asfalto e pedregulho

Parecem precipitar- se sobre o rio

Como piava assobiando em caniço 


É de barro o sentimento

Que amarra os pés no acampamento

O pampa mora longe

Barco de pesca como chapéu no candango


Sou desta terra, raiz e cartucheira

Fui para o mato  e na volta estranhei tudo

Já existia a mudança 

Na infância devorada pelo tempo


Nei Duclós

MINHA CIDADE

 Nei Duclós 


A  cidade das águas e do pampa

Das ruas largas

Dos bustos de bronze dos poetas na praça

Da caça às  perdizes

Com linhadas no barranco e no barco


Não foi a cavalo que te  conheci

Montado em rebanhos que pontuam soberanos no pasto

Foi a pé, como se eu fosse do

Exército 

Foi a remo, para além do Touro Passo

Nos invernos do Jarau e dos assombrados horizontes da Argentina

Compartilhados conosco

Os do Outro Lado


Cidade do rio Uruguai e das despedidas do sol

Que some engolido pelos silêncios 

Que cultivo em meu intimo acampamento


Minha mãe varrendo a calçada onde meu pai dormia no verão 

O rádio Mullard em sintonia  com Londres e Pequim

E Liberace a toda na eletrola hi fi


Tudo visto da janela do trem

Que numa curva sumiu e reapareceu

No lombo da palavra do tempo 

Que resiste no adulto ainda menino

morando onde jamais partiu


Nei Duclós



3 de agosto de 2022

CICLO

 Nei Duclós 


A vida volta ao princípio 

Quem aprende a andar na primeira infância 

Caminha com o mesmo passo trôpego dos avós


Passada a juventude e a meia idade

Os velhos contam apenas com a formação herdada

Hábitos e crenças que resistem ao tempo

Porque fazem parte da carne 

E o coração precisa desse impulso antigo mas vivo

Para continuar até a despedida


Por isso sigo ainda os horários das refeições 

Impostos na casa paterna

E estudo depois do café com pão 

E vejo filmes à  noite ou aos domingos

E creio em Deus e a Mãe Santíssima

E  confesso meus pecados no sacerdócio da poesia 


Só não jogo futebol no campinho

Nem vejo a saída das gurias

Ao meio dia no  colégio Bom  Conselho


Tenho  compromisso com a idade

E uma saia xadrez acima do joelho 

Pode dar enfarte


Nei Duclós

BLEFE

 

Bate o vento de surpresa

Na funda rua do bairro 

São os anjos com certeza

Que à noite jogam baralho


Voam papéis na sarjeta

E folhas secas se espalham

Será chuva de tocaia

Que as asas botam na roda?


De repente, tudo para

E a calma volta às estrelas

A mesa verde da aurora

Recolhe as fichas marcadas 


Só eu fico invocado

Com a sorte ao trocar de lado

O que era farra hoje é birra

Volta, que serei perdoado


Venta, amor sem pecado

Ponha as cartas do estrago

Blefe com a cara mais limpa

Perdi, mas continuo no baile


Nei Duclós

JACK SE RETIRA

 


Amei o mar

Mas fiquei devendo

Ao me retirar

Não pago a conta

50 anos de sal

E acho pouco 

Na hora da homenagem


Todo porto é igual

Na abordagem

Uma só tripulação 


Todo lugar é conquista

Um monte Paschoal

Em cada  continente

O sonho grita

Terra à vista

A coragem nunca se aposenta


Eu, Jack o Marujo 

Sou comandante 

Capitão de sete mares

Mas simples navegador 

Sob as ordens de Netuno 


Lanço minha âncora 

Não por cansaço 

Mas por amor

Ainda mais alto 

Uma Sereia me escolhe

E faz a cama


Nei Duclós

1 de agosto de 2022

MISTÉRIO


Viciei nos hábitos 

cevados na escassez

Assistir em vez de provocar

Dormir porque agir me faz mal

Ficar em claro na solidão noturna 

Fantasiar no abandono social

Para economizar conversa

E sentir-se miserável no meio da festa


Só a poesia livrou-me da pena máxima 

A palavra soprada pelo anjo da guarda

Emissário do mistério maior

A vida eterna


Nei Duclós