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2 de setembro de 2006
TESOURO PESSOAL
Nei Duclós
A verdadeira citação é a feita de memória. Citação letra por letra parece plágio. Lembramos o que foi dito ou escrito por alguém para que a frase ou o pensamento admirável ajude a conversa a atingir um ponto de iluminações. Cada vez que algo é citado pela lembrança, a criação alheia recupera o viço e funciona melhor, evitando também que nos tornemos reprodutores do já visto ou lido. É a nossa maneira de dizer o que já faz parte do acervo coletivo.
Com o tempo, acumulamos um tesouro dessas peças vivas, num convívio que se torna cúmplice e ajuda a nos identificar em qualquer conversa. O perigo é limitar o número dessas recordações da linguagem, o que nos transformaria num pequeno almanaque de referências, para o bocejo de quem se aproxima de nós.
Pode-se argumentar que as ferramentas de busca na Internet impedem que tenhamos dúvidas nas citações. Basta pesquisar rapidamente e eis a frase perfeita para uso imediato. Mas não podemos nos transformar em palm-tops ambulantes e nem sempre há energia suficiente para alimentar os instrumentos que nos permitem utilizar a busca virtual e infalível. Continuamos humanos e o que nos define é uma soma de produção própria de pensamento com o apoio dos mestres que nos servem de bússola.
Na identidade pessoal, formatada pela experiência e as leituras, reside o que há de mais importante nesta época de informação de massa, de cultura manipulada, de leituras apressadas, de excesso de exposição, de total interferência nos territórios de sobrevivência nacionais por parte de forças explícitas, armadas ou imaginárias. Notório ensaísta, dias atrás, lamentava o fato de termos uma literatura excessivamente voltada para a questão nacional, o que nos atrapalharia para a modernidade. O certo, disse ele (e aqui cito de memória, para deixar claro o que ficou em mim da leitura do texto alheio) seria deixar esse tipo de preocupação para lá e abraçar o mundo irreversível dos sem-nação.
Não foi exatamente com essas palavras que o autor se expressou, mas coloco assim para dizer como esse tipo de colocação me incomoda. Só nações com fronteiras secularmente definidas, que se espalham em ações imperiais pelo mundo, produzem cultura própria embalada como internacionalismo. O que os países ricos geram na superestrutura seria a modernidade globalizada, o resto não passaria de folclore. Para sermos iguais a eles, portanto, devemos imitá-los e deixar de ser tão brasileiros.
Não há espaço aqui para aprofundar essa conversa, mas é bom tocar no assunto, porque a campanha contra as fronteiras parece sob medida para nós, que temos tantas e foram conseguidas em séculos de lutas. Fronteira é paz na diferença e definição de identidades. O Brasil, território aberto para o mundo, sempre foi o exemplo de tolerância e sob sua guarda todos os povos encontraram abrigo. Aqui forjamos uma identidade própria, que se parece com uma conversa informal onde entram muitas contribuições. Essa é a sua solidez, pois qualquer origem encontra espaço suficiente para continuar intacta e ao mesmo tempo transformada pela vida no país continente.
E se nos perguntam o que é ser brasileiro, citamos algo da nossa literatura. Ela cuida disso desde que nasceu. A linguagem é a única arma que dispomos.
RETORNO - 1. Esta crônica foi publicada hoje, dia 2 de setembro de 2006, no caderno Variedades do Diário Catarinense. Escrevo diariamente como interino na coluna do jornalista e escritor Sergio da Costa Ramos, que está de licença. 2. Imagem de hoje: Garças, de Helcio Toth.
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