18 de setembro de 2006

AQUELES PROFESSORES





O escritor e jornalista Sergio da Costa Ramos, uma das instituições da crônica brasileira e pessoa muito querida aqui em Florianópolis, voltou hoje a ocupar o seu espaço no caderno Variedades, do Diário Catarinense. Generoso, deixou o seguinte recado: P.S: Como leitor em férias, acompanhei, com renovado prazer, a prosa sempre arguta e surpreendente - como um enredo de Hitchcock - que se alinhava diariamente neste espaço. Crônicas sopradas pelo vento criativo de Nei Duclós, poeta, contista e prosador poderoso. A ele, meu abraço e meu "muito obrigado". Agradeço ao Sergio pela citação e pela honra de escrever em sua coluna. A seguir, minha crônica de hoje, seguindo o pique a que já me acostumei aqui no Diário da Fonte.

Nei Duclós

A dispersão geográfica e a pesada carga horária do ofício já estão incorporadas na imagem que fazemos dos professores. Dar aula em vários lugares, para turmas de todos os tipos, e muitas vezes em matérias diferentes, para que tudo isso componha um salário, é uma espécie de servidão excessiva para uma atividade que não se circunscreve apenas ao ensino, mas à memória, nem ao conhecimento, mas ao caráter, nem à escola, mas à nação.

Ganhar razoavelmente para se dedicar a um grupo menor de alunos, numa escola só, é coisa do passado. Na minha casa, tivemos a sorte de ter uma professora o tempo todo, pois a mãe exercera o magistério por um tempo até migrar para o serviço público da Saúde, onde ficou até se aposentar. Não perdia o jeito porque gerou sete filhos a quem lecionou todas as tardes, e não apenas quem era da família, mas os vizinhos, os amigos e até mesmo aqueles estudantes trazidos pelo braço por mães desesperadas. Ser reprovado, naquela época, era para valer. Não se passava por decreto. E bastava rodar numa só matéria para repetir todas as outras. Poderia ser num exame oral: bastava um contratempo para que o ano se perdesse miseravelmente. E no caso de reincidência, perdia-se a vaga na escola, porque muita gente estava na fila, na época em que colégio público era sinônimo de qualidade.

Também uma tia minha, irmã da minha mãe, lecionava, mas profissionalmente, em escola do subúrbio. Uma de suas histórias mais impressionantes era de um aluno muito problemático que um belo dia estava muito quieto. A certa altura, ele suspirou: "Hoje estou feliz por causa que eu comi". Ambas tinham vindo da escola rígida da palmatória, da tabuada cantada em voz alta por toda a classe, da caligrafia impecável. O clima de estudo era reforçado pelo grande colégio em frente à minha casa, dos irmãos Maristas, onde havia dedicação exclusiva ao magistério, quando as vocações colocavam à nossa disposição verdadeiros catedráticos.

Um professor de História que jogava futebol conosco era muito sério em aula. Hoje, o Irmão Arno está com 80 anos e é diretor do colégio onde estudei. Foi homenageado esses dias, segundo me informou o escritor e amigo Fernando Pereira da Silva, que leu belo texto seu destacando a importância do nosso mestre. Um professor de física era considerado gênio: o irmão Guido, capaz de fazer uma circunferência perfeita no quadro negro sem a assistência do compasso gigante. Seu truque era fazer o cotovelo como centro do círculo. Mas ele não era considerado por essa qualidade, mas sim porque era capaz de montar uma estação de rádio na sua sala de estudos. Preparava suas turmas com esmero, ensinando os fundamentos da física com seu cabelo despenteado e seu jeito de inventor. O professor de francês fazia gincanas de vocabulários, com prêmios (pontos extras nas provas) para quem fosse capaz de lembrar o maior número de palavras na língua estudada.

Perto da minha casa, moravam mais duas professoras. Uma delas veio me ver esses dias, quando lancei um livro de contos e crônicas. Olhe bem para minha cara, disse ela, e vê se me reconheces. Professora Elsa! exclamei e ela se desmanchou, pois a tinha reconhecido. Era professora particular e fazia parte daqueles quadros preparados, que viviam dignamente, sem precisar se desbaratar por mil endereços. Não que não houvesse escassez, sacrifício. Mas nossos professores faziam parte de uma categoria eleita como prioritária, e isso era uma exigência da sociedade.

Um professor é o penhasco à beira mar para quem navega na costa sinuosa do aprendizado: serve de parâmetro e deslumbramento. É a postura, o lugar que ocupa, o jeito que nos recebe em sua majestade que formatam a idéia que temos dessa profissão que nos carrega vida afora. Eternos estudantes, todo nosso esforço é orientado, mesmo depois que conseguimos todos os diplomas, pelo que ouvimos e estudamos nesse período de formação.

RETORNO - Imagem de hoje: os pórticos, a Igreja do Carmo e todo o horizonte de Uruguaiana, a capital da América Pampeana, vista da ponte. Foto de Anderson Petroceli.

Nenhum comentário:

Postar um comentário