4 de abril de 2004

FORA DA ÓRBITA MUNDIAL

O telescópio Hubble poderá ser abandonado pela Nasa. Há revolta em todo mundo, como nota artigo publicado hoje no Mais!, suplemento cultural da Folha que vale por dez mil primeiros cadernos. É possível que o pior aconteça: consertar seus giroscópios pode significar risco de vida (e não de morte, porque morte não corre risco) para esse grande olho do Universo. O dinheiro que deveria ir para o conserto poderá ser empregado nas paranóias do Bush. A partir dessa notícia, me ocorreu o seguinte:

VIAGEM SEM FIM - Cansado de esperar por socorro, Hubble finalmente desprende-se de sua órbita de 596 quilômetros acima da superfície terrestre e escorrega para os confins do Universo. Passa por Marte, Vênus, Saturno, Júpiter, Plutão. Aprofunda-se na gosma cósmica movido pela curiosidade. Seu objetivo é encontrar o primeiro vagido do Desconhecido. Quer pousar no colo de Deus, ou mesmo descobrir o berço onde Ele brinca com a luz. É visitado por viajantes impossíveis, translúcidos seres sem passado, cruza o miolo de cometas jamais vislumbrados, rodopia em galáxias escuras, troca sinais com naves em forma de espiral. Sua passagem acende territórios gelados que vagam sem destino, enreda-se no olho de mil furacões de buracos negros sem jamais se dissolver. Chega enfim a uma porta opaca, feita de material tosco, de madeiras esquecidas e de lá lança uma mensagem. Quem abre é um anjo, que se espanta ao vê-lo e entra correndo para avisar a visita. Acorrem então milhares dessas criaturas, que o envolvem em teias finíssimas de lasers indecifrados e o levam para dentro. Lá encontra o paraíso. Colocam-no numa grande almofada de algodão grosso e visitam cada um de seus compartimentos. A festa é interrompida quando Deus chega para dar uma olhada. Consciente do que se trata, resolve espiar pelas lentes agora em desuso. E lá vê, recolhidos no espaço minúsculo do desengano, os poetas jamais citados, os escritores perdidos, os talentos jogados fora. Penaliza-se Deus com o desperdício de Sua obra, que só Hubble poderia revelar. Deus então, num gesto extremo de misericórdia, libera o telescópio para a viagem de volta. Hubble cruza, de trás para diante, o caminho sem fim que palmilhou no espaço e chega sem ruído ao local vislumbrado pelo Onipotente. Lá é recebido pelos abraços abertos das palavras, que o elegem seu protetor. Cada poeta vira uma estrela. E cada estrela, ampliada um milhão de vezes, ofusca o mar de mediocridade que cerca a Terra. Ele não precisava mais de astronautas temerosos, nem de verbas arrancadas ao esforço da guerra. Estava nas mãos de quem consegue dizer o que ninguém ousa. As novas imagens então derramam-se como maná sobre mil desertos. E um Renascimento brota dessa inverossímel história. Era o que Hubble e seu condenado universo precisavam: a composição da verdade, que antes estava espalhada em gases sem brilho, agora reunia-se pelas suas mãos e pelo olhar de quem nunca desiste de partir antes que o recado seja dado.

RETORNO - Blog Outubro informa: O compositor, instrumentista e cantor Raul Elwanger envia mensagem da Praia do Rosa; o estudioso da cultura brasileira Michael Klegler, que vive na Alemanha, interessa-se por Universo Baldio; graças ao webmaster Miguel Duclós, meu site já está com chamada para o romance, com destaque para comentário de Raduan Nassar.

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