Nei Duclós
Ao se ver na grande tela ao lado do líder, misturado à
multidão de um comício, o desempregado que tinha levado mulher e filha ao
cinema finalmente se enxerga. Ele deixa de ser anônimo e divide espaço visual
com o candidato popular à presidência da Colômbia. Sente orgulho daquela
surpreendente aparição e descobre assim sua cidadania, que estava oculta pela
falta de dinheiro e de oportunidades. Começa então a misturar no seu imaginário
as duas personalidades, a dele e a do famoso advogado que se identificava com a
população indígena do seu país em oposição às “elites” (a cena é de 1948). Se
convence que a diferença entre os dois é apenas uma questão de sorte e que
bastaria achar um lugar no mundo do líder para que a justiça social fosse
feita: poderia assim ocupar o espaço que o destino lhe reservava.
Para confirmar essa predisposição para o grande papel da sua
vida, insiste com o amigo intelectual que lê sua mão. O velho bruxo representa
a intelectualidade que procura confirmar ideologicamente os grandes destinos do
povo. Apoiado pela profecia, que, mesmo dita em tom de deboche, estava
desenhada em sua mão, e que ele acreditava ser grandiosa, começa a perseguir o
candidato nos mínimos passos. Procura enxergá-lo para poder caber na sua vida.
Espiona pela janela da rua a cena familiar, que seria idêntica à sua, pois lá
está a esposa e a filha estudiosa, as mesmas personagens da sua vida privada.
Só que ele está imerso no fracasso. Por não enxergar-se no
carro e no trânsito, acaba batendo o taxi do irmão que procurava ensiná-lo a
dirigir. Isso inviabiliza uma das demandas para arranjar colocação junto ao advogado,
pois este viu como ele bateu o carro na calçada. Expulso de casa pela mulher
por ser um maluco fracassado, acaba nas mãos da máfia que tenta convencê-lo do
pior: de que ele queria mesmo era matar o líder. É como Mark Chapman, o matador de John Lennon: o fã que
quer substituir o ídolo no fundo quer exterminá-lo para ocupar seu lugar.
Certamente ao reproduzir pela ficção os claros da biografia de Juan Roa Sierra,
matador do líder popular Jorge Eliécer Gaitán, o escritor Miguel Torres se
inspirou em Chapman para mostrar o obsessivo que cai nas malhas do crime
político organizado e acaba se envolvendo em um homicídio totalmente
manipulado.
Desesperado com a chantagem dos bandidos que o obrigam a
cometer o assassinato, Roa (interpretado por Mauricio Puentes
) tenta desaparecer, sumir. Na beira da cachoeira, o velho lambe lambe pergunta
se quer tirar uma foto antes de pular. Garante que custa pouco e a foto será
entregue para quem for indicado. Ele consente mas em vez de se matar pede para
ver a foto. É quando se vê novamente, olha para sua imagem e decide voltar para
a cidade. Lá encontra emprego na difusão visual da arte popular, a do teatro,
colando catazes por todas as paredes e muros. Ele é o protagonista dessa
necessidade que a cidadania tem de se ver para poder existir.
Fica agradecido pelo emprego, mas acaba sucumbindo ao seu
torpe destino. É linchado em praça pública no célebre Bogotazo, revolta popular
desencadeada pelo homicídio de Gaitán. O Bogotazo foi dois anos antes do
Maracanazo, nossa derrota para o Uruguai. O superlativo hispânico estava na
moda. Alguns críticos disseram que o diretor de Roa, filme colombiano de 2013,
Andrés Baiz, não filmou suficientemente o Bogotazo. Mas ele fez de propósito.
Sua intenção era mostrar o que se escondia, não o que ficou explícito nos
jornais e televisões do mundo todo. Ele foi atrás da história oculta do
assassino, reproduzindo, com a ajuda da atriz Patricia Castaneda, co-autora do
roteiro, o livro de Torres e compondo um
cenário de opressão e pobreza, que acaba no previsível desfecho de uma revolta popular.
Roa é um filme sobre a interferência visual na autoconsciência
da cidadania e a exposição das suas contradições num impasse gerador de grande
conflito.
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