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22 de outubro de 2014

ROA: MARK CHAPMAN EM BOGOTÁ



Nei Duclós

Ao se ver na grande tela ao lado do líder, misturado à multidão de um comício, o desempregado que tinha levado mulher e filha ao cinema finalmente se enxerga. Ele deixa de ser anônimo e divide espaço visual com o candidato popular à presidência da Colômbia. Sente orgulho daquela surpreendente aparição e descobre assim sua cidadania, que estava oculta pela falta de dinheiro e de oportunidades. Começa então a misturar no seu imaginário as duas personalidades, a dele e a do famoso advogado que se identificava com a população indígena do seu país em oposição às “elites” (a cena é de 1948). Se convence que a diferença entre os dois é apenas uma questão de sorte e que bastaria achar um lugar no mundo do líder para que a justiça social fosse feita: poderia assim ocupar o espaço que o destino lhe reservava.

Para confirmar essa predisposição para o grande papel da sua vida, insiste com o amigo intelectual que lê sua mão. O velho bruxo representa a intelectualidade que procura confirmar ideologicamente os grandes destinos do povo. Apoiado pela profecia, que, mesmo dita em tom de deboche, estava desenhada em sua mão, e que ele acreditava ser grandiosa, começa a perseguir o candidato nos mínimos passos. Procura enxergá-lo para poder caber na sua vida. Espiona pela janela da rua a cena familiar, que seria idêntica à sua, pois lá está a esposa e a filha estudiosa, as mesmas personagens da sua vida privada.

Só que ele está imerso no fracasso. Por não enxergar-se no carro e no trânsito, acaba batendo o taxi do irmão que procurava ensiná-lo a dirigir. Isso inviabiliza uma das demandas para arranjar colocação junto ao advogado, pois este viu como ele bateu o carro na calçada. Expulso de casa pela mulher por ser um maluco fracassado, acaba nas mãos da máfia que tenta convencê-lo do pior: de que ele queria mesmo era matar o líder. É como Mark Chapman, o matador de John Lennon: o fã que quer substituir o ídolo no fundo quer exterminá-lo para ocupar seu lugar. Certamente ao reproduzir pela ficção os claros da biografia de Juan Roa Sierra, matador do líder popular Jorge Eliécer Gaitán, o escritor Miguel Torres se inspirou em Chapman para mostrar o obsessivo que cai nas malhas do crime político organizado e acaba se envolvendo em um homicídio totalmente manipulado.

Desesperado com a chantagem dos bandidos que o obrigam a cometer o assassinato, Roa (interpretado por Mauricio Puentes ) tenta desaparecer, sumir. Na beira da cachoeira, o velho lambe lambe pergunta se quer tirar uma foto antes de pular. Garante que custa pouco e a foto será entregue para quem for indicado. Ele consente mas em vez de se matar pede para ver a foto. É quando se vê novamente, olha para sua imagem e decide voltar para a cidade. Lá encontra emprego na difusão visual da arte popular, a do teatro, colando catazes por todas as paredes e muros. Ele é o protagonista dessa necessidade que a cidadania tem de se ver para poder existir.

Fica agradecido pelo emprego, mas acaba sucumbindo ao seu torpe destino. É linchado em praça pública no célebre Bogotazo, revolta popular desencadeada pelo homicídio de Gaitán. O Bogotazo foi dois anos antes do Maracanazo, nossa derrota para o Uruguai. O superlativo hispânico estava na moda. Alguns críticos disseram que o diretor de Roa, filme colombiano de 2013, Andrés Baiz, não filmou suficientemente o Bogotazo. Mas ele fez de propósito. Sua intenção era mostrar o que se escondia, não o que ficou explícito nos jornais e televisões do mundo todo. Ele foi atrás da história oculta do assassino, reproduzindo, com a ajuda da atriz Patricia Castaneda, co-autora do roteiro,  o livro de Torres e compondo um cenário de opressão e pobreza, que acaba no previsível desfecho de uma revolta popular.
Roa é um filme sobre a interferência visual na autoconsciência da cidadania e a exposição das suas contradições num impasse gerador de grande conflito.

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