Nei Duclós
Longevidade é isso: viramos
assombrações de nossas vidas passadas
Somos fantasmas da nossa mocidade
arrastamos correntes nas baladas
éramos nós que derrubavam os livros
nas estantes em véspera de provas
Duramos demais sem sentir remorso
somos os mortos imaginando coisas
respondendo pelo que não existimos
Como você está bem, ouvimos as vozes
nem parece que tens já um século
e sorrimos, cúmplices, de olhar sórdido
Alguns voltam à infância para ver se cola
para mostrar que ainda há continuidade
não admitem a ruptura feita pela idade
o tempo que nos devora e nos liberta
é a derradeira chance que vai embora
continuaremos servos da própria obra
O que aborrece é a insistência, flor teimosa
em cima da mesa em jarros bizarros
esquecemos tudo porque lotamos o sonho
deveríamos deixar o mundo ir para o ralo
reinventar-nos, com outra identidade
o olhar como um pássaro, a boca tórrida
Não somos mais nós, há muito já éramos
deixamos a casca do vivido na sala
e partimos junto com o sol, a carruagem
temos resistência, nada mais nos comove
desistimos do humano, peso sem sentido
somos como anjos e afiamos as asas
RETORNO - Imagem desta edição: foto de Serguei Mihailovitch Prokúdin-Górski.