9 de dezembro de 2011

DISFARCE


Nei Duclós

Foi bom o disfarce. Como se não houvesse o vulcão do teu charme. Mas foste traída pelo veneno escarlate das unhas. Por ti levaria um tiro

Cicatrizou? ela disse ao abrir a porta. O ferimento sim, falei. Mas não o beijo que me deste no dia do acidente, desconhecida.

Quantas te querem? ela falou. Contando com você? perguntei. Sim, disse ela. Só uma, falei.

Qual teu objetivo? ela perguntou. As mil e uma noites, respondi. Ah, sultão maldito, disse ela.

Pare com isso, não estou agüentando. disse ela. Vire sereia, falei. Poderás respirar ao mergulhar para sempre nas tuas águas interiores

Ela apagou as pistas, mudou de endereço, se fez de desentendida. Mas não conseguiu virar o rosto quando vi seu braço tatuado com meu nome

Você fala por parábolas, eu sou o escriba. De vez em quando durmo em cima do manuscrito. Quando acordo, ele está imprestável

Já vi todas as apresentações possíveis e pedi bis para que caísse tua ficha. Não adiantou. Não tiraste a máscara. Vou invadir o palco

Humor é involuntário. Por isso a platéia gargalha do palhaço que, sem querer, tropeça

Eles vendem espaços no teu coração em pedaços. Ninguém costura o que tens, exausta, porque usam tua fome em seus banquetes

Parece bonito o que dizem. Funciona. Mas quando giras a chave do quarto, uma vertigem te devora e nenhuma palavra de verdade te ampara

O que pega é o amor que cultivas em teus canteiros, longe do olhar dos usurpadores. Lá medra a flor que me beija, possuída

Ele é teu ídolo porque é teu grande amor, disse o marido. Não, ele é meu ídolo porque me fez ver que meu grande amor é você, disse ela

Perdi todas as tuas cartas. Foram jogadas no vazio uma a uma, por obra do mistério. Ficaram apenas as minhas, que devolveste

Sei agora qual foi o motivo: aquela frase, de verbos errados, que te escandalizou. Não fui perdoado. Viste como um sinal do que sou de fato

Nem sempre consigo esconder o que me forma.O verbo escasso deixa algo de fora,como roupa que não encolhe.Também te vejo através da maquiagem

Não te peço trégua nem volta, pois vou acabar repetindo o que me estraga. É melhor a distância e a lembrança daquela tarde

Pedes que eu olhe a paisagem. Mas ela é dominada por ti, portentosa.O que pode o olho diante do teu foco?


RETORNO – Imagem desta edição: Kim Novak

Nenhum comentário:

Postar um comentário