15 de junho de 2011

O DISCURSO DE RUPTURA NO CINEMA


Nei Duclós

A sociedade do espetáculo vende o que prega, não o que pratica. Amor, princípios, ética, honestidade,solidariedade devem se sobrepor ao pragmatismo, à morte, ao ódio, à vingança, à ganância, que são a rotina da vida real. Vimos como a publicidade falava em saúde vendendo gordura artificial e energia com energéticos artificiais colocados nos produtos alimentícios. No cinema o espectador é mais exigente e é preciso gerar uma dramaturgia que leve a um desfecho favorável. Leva-se em conta que a vida é assim mesmo, complicada e contra o coração humano, mas isso pode mudar, pelo menos no pacote de boa vontade exposto no mercado do entretenimento.

Temos, em conseqüência, sempre um ponto de mutação entre o mal hegemônico e o bem que emerge graças a algum evento extraordinário que tira o protagonista da rotina. Os bons sentimentos então se impõem à avassaladora presença do dinheiro e do prestígio. A bondade rompe a rede maligna por meio de uma fala decisiva, o discurso de ruptura no cinema.

A origem é nobre, não o que foi feito dela. O discurso de ruptura no cinema foi inventado por Charles Chaplin no final de O Grande Ditador (1940). Não conheço antecedentes, mas se existem, não tira o mérito do gênio que elevou essa solução cinematográfica ao esplendor. Todos conhecem a história. O ditador da Tasmânia é convidado a discursar para as massas e nesse momento supremo, decisivo, em que todos estão prestando atenção numa única pessoa, que vai definir seu status de poder, algo se quebra. Lembrei de Chaplin ao tentar costurar os vários discursos de ruptura em filmes variados e quem sempre abordam a mesma situação: é quando o orador fala a verdade e contraria assim os próprios interesses em favor de algo maior.

Há exemplos de sobra, vou só elencar alguns. No filme Kate & Leopold (2001), Meg Ryan é a executiva que enfim chega ao topo, é anunciada como chefe do escritório da sua corporação em Nova York. Ele começa seu discurso de maneira tradicional, dizendo como é bem sucedida ao fazer o que todos querem, mas aos poucos cai em si e fala que deve deixar tudo em favor de um princípio, uma grande paixão. Matt Damon no recente Os Agentes do Destino (The Adjustment Bureau, 2011) é um jovem candidato a senador que conhece uma mulher num banheiro, é fisgado por ela e na hora de discursar depois da derrota eleitoral diz que esteve mentindo o tempo todo. E o mega bem sucedido funcionário de uma empresa que é paga para demitir pessoas, interpretado por George Clooney em Amor sem Escalas (2009) faz o mesmo: abre mão da posição para confessar sua renúncia do cargo em favor de um grande amor.

O general americano da II Grande Guerra interpretado por George C. Scott no filme de 1970, Patton (papel que lhe deu merecidamente o Oscar) é obrigado a fazer um discurso pedindo desculpas por ter ofendido um soldado. Ele acaba se desculpando , mas não abre mão de sua verve e faz todo mundo cair na gargalhada no início da fala. Ele rompe com o esperado dizendo que estava ali para dizer o quanto era um grande filho da puta. Diz a verdade e mostra como estava contrariado em ter que pedir perdão por algo que ele achava justo (bateu num combatente que fugiu do front por ter sentido medo).

Quando enfim consegue vencer os facínoras que vieram lhe matar e aterrorizar a cidade na hora em que se retirava do seu papel de Xerife, Gary Cooper em High Noon (Matar ou Morrer, 1952) tem seu instante de transgressão. Não faz um discurso, mas olha par todos os que o abandonaram e joga a estrela de lata na areia. É o corte mudo em palavras, mas contundente no gesto e na imagem inesquecível.

Depois do macartismo, que eliminou a crítica verdadeira do cinema americano e abriu a guarda para as barbaridades que temos hoje, o discurso de ruptura no cinema diluiu-se em comédias românticas ou filmes falsos sobre política. Nunca mais tivemos um momento grandioso como o de Gregory Peck no final de O Sol É Para Todos (1962, To Kill a Mockingbird), em que ele faz o papel do advogado que livra da pena de morte um trabalhador inocente, negro. Peck termina sua fala, vence na parada e espera todos saírem do recinto. Só ficam, no mezanino,confinados, a família e toda a comunidade de negros da pequena cidade. O filho do advogado está com eles e permanece sentado enquanto o pai se retira lentamente. Ao que a senhora, mãe do acusado enfim liberto, adverte: “Fique de pé, menino, que o seu pai está passando”.


RETORNO - Imagem desta edição: Matt Damon em Os Agentes do Destino.

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