4 de junho de 2011

DARCY RIBEIRO: LUTA CORPORAL


Nei Duclós (*)


O futuro cacique de uma tribo da Amazônia sai menino de sua aldeia e vai para o seminário, onde o contato com os padres lhe tira a fibra de guerreiro: fraco e contraditório, ele jamais poderá ser o tuxana da tribo mairum, tão esperado por seus irmãos, que o viam como uma esperança de salvação do extermínio. Essa tragédia – como procura demonstrar o antropólogo Darcy Ribeiro neste seu primeiro romance, Maíra (Civilização Brasileira, 1976) – não seria um acidente provocado pelo erro da política colonialista, mas sim o resultado natural da colonização, que procura apenas tirar os índios do caminho.

As provas da violência contra o índio são minuciosamente levantadas e analisadas pelo autor, num relato profundo e apaixonado que faz do livro um dos romances brasileiros mais importantes dos últimos anos, tanto pela urgência do tema como pelo enfoque: o drama mairum é visto de dentro, por alguém que mostra a verdadeira natureza dos índios e a dimensão real da sua cultural. A filosofia dos mairuns é visceral e fisiológica, e sua sabedoria não vem da mortificação, mas da glorificação do corpo e da noção do seu significado dentro do universo. Os costumes indígenas, tão ridicularizados pelos brancos, em vez de serem apresentados como manifestações bizarras e atrasadas, estão profundamente identificados com as manifestações da natureza.

Alma seca – O romance, escrito no mesmo ritmo dessa cultura marginalizada e mágica, é também uma viagem através do corpo. Isaías – personagem central e futuro tuxaua -, ao perder sua identidade e sua fé na vida, ao secar sua alma no seminário, fica com o corpo precocemente envelhecido. A perda da sua alma na civilização branca equivale à perda do seu corpo – mantendo relações sexuais com todos os homens da tribo, transforma-se em mixiroxã, uma espécie de sacerdotisa do amor. Na mitologia indígena, a luta entre Maira-Coraci, o sol e Maira-Ambir, seu pai, o Deus Criador, é também uma luta corporal, pois o filho rouba partes do corpo do pai para dar aos homens.

Do ponto de vista do civilizado, com suas religiões de desprezo ao corpo, a criação do mundo narrada pelos mairuns – e divulgado por Darcy Ribeiro ao longo do livro, em capítulos curtos – é profundamente imoral: o filho de Deus é apenas o seu arroto, e sua luta contra o Deus Pai é feita com todos os recursos do corpo, como a habilidade manual e a força, além da famosa manha indígena. Numa luta contra uma entidade do Criador, Maira vence com a ajuda do seu irmão Micura-Laci, a lua, que solta gases fecais contra o nariz dessa entidade. E a superioridade de Maira-Coraci é tanta que seu pai se transforma em Maira-Manon, o Deus-Defunto, que rege o mundo dos mortos.

Fim dos Tempos
– Por isso, a subversão colonizadora manifesta-se principalmente no corpo, o elemento básico da civilização indígena. A deterioração física dos mairuns, na visão de Darcy Ribeiro, representará o sinal evidente desse fim-dos-tempos na mata, que coincide com o fim da ação pastoral dos padres católicos na tribo. Pois os mairuns, já totalmente dominados (e dizimados), deixam de ser a preocupação principal da missão religiosa por decisão de um senador empenhado em fazer a distribuição das terras e empresários. O político determina que os religiosos passem a distribuir a palavra de Deus entre os Epexãs, índios arredios e violentos, que poderiam confundir o gado das grandes fazendas como uma nova caça.

Apesar da crítica contundente, Darcy Ribeiro não cai apenas num necrológio. Para ele, o que realmente importa não é a morte dos mairuns, já condenados às doenças da civilização e aos limites da sua aldeia, por sinal muito mal cuidada por um homem da Funai. O importante seria a luz que essa tragédia revela – os índios dão uma chave para a salvação, que é a convivência com a natureza. Pois, na verdade, é o mundo destruído (simbolizado por Alma) quem procura auxílio indígena, querendo entender a fórmula de viver feliz. E este livro excepcional de Darcy Ribeiro oferece uma maneira de se entender tal fórmula, tão simples quanto dificílima de alcançar.

RETORNO –1. (*)Resenha sobre MAIRA, de Darcy Ribeiro, Civilização Brasileira, publicada na revista Veja em 20 de outubro de 1976. 2. Na foto maior: o jovem Darcy Ribeiro junto aos indios brasileiros, início de uma saga do antropólogo, professor, escritor, político e gênio do Brasil soberano.

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