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24 de agosto de 2010
PAISAGEM É POESIA
A máxima transgressão da arte foi o cubismo, que contrariou a natureza e encheu de arestas e ângulos o que a humanidade estava acostumada a ver em curvas. Sorte que fui criado longe dessas barbaridades e cedo me envolvi com as ondulações da paisagem. Palmilhei as coxilhas, que se elevam timidamente para não contrariar a natureza do pampa, e adotei a religião do por-de-sol, quando o fogo suspenso no céu se banha no rio e deixa nele um rastro de arco-íris.
A cidade, apesar de ser concebida na linha reta e no quadrado, praticamente acompanha essa suavidade com as ruas largas e planas. E como está a cavaleiro do Uruguai, é possível voltar para casa contando as estrias de luz sobre a água, doce, que nos define como povo de rosto exposto na fronteira. Desconfio que a poesia nasce dessa navegação e que as palavras completam seus ciclos inspirados na rotação de linhas que se sucedem nos olhos e na memória.
Foi difícil permanecer fiel a essa linhagem sem sucumbir às cristalizações do passado ou se entregar aos modismos. Criar uma linguagem própria, impermeável às tentações e cobranças, sem escapar do tempo presente, é uma engenharia cultural complicada, uma física quântica que desmoraliza o conforto da aritmética da vivência. O conhecimento é um susto na esquina e nossa tendência é puxar a arma para nos defender. Ou então apostar que temos força suficiente para nos impregnar da novidade, mas sem se abaixar à toa aos seus desígnios.
O que sempre nos ajudou foram os exemplos de sobra de pessoas que conseguiram manter sua arte pessoal intacta, e ao mesmo tempo universal e bem postada na vida contemporânea. O segredo é aquilo que Carlos Drummond de Andrade ensinou: “penetra surdamente no reino das palavras”. Surdamente significa: sem diálogo interno, sem interpor conceitos e significados na palavra. Paradoxalmente, ficar aberto à sua música, pois literatura não dispensa o ouvido treinado pela formação e o talento. Tornar-se um virtuose da própria linguagem é a missão de um poeta ao longo de uma vida dedicada ao sonho bom de viver escrevendo.
Mas eu falava dos exemplos locais. Temos alguns expostos na praça. Gonçalves Vianna e Alceu Wamosy, que estão enquadrados em escolas, mas prefiro vê-los como únicos em seus talentos, mesmo que possamos detectar neles fortes influências. Temos o J.A Pio de Almeida, um poeta clássico e épico e que nos deu essa obra-prima oculta, As Brasinas, livro que teve apenas uma edição, de 500 exemplares, cacifados pelo autor. Ninguém deu bola, com exceção do nosso professor Cícero Galeno Lopes, que lhe dedicou um valioso ensaio.
Temos o Bira Tuxo, com seu trabalho pessoal dentro de uma tradição, um inovador como Colmar Duarte, que aborda com espírito livre as lides formatadas por gerações no ambiente que nos criou. Temos Luiz de Miranda com sua poesia grandiosa que corre mundo. E tantos outros exemplos, que é impossível citar, já que Uruguaiana é terra de poetas. Tudo, acredito, fruto dessa paisagem redonda que nos seduz com seu cerco amoroso e inspirador.
RETORNO – 1. Crônica publicada originalmente na Edição nº 304, de 6 a 11/08/2010, do jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: foto de Regina Agrella.
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