27 de julho de 2010

O “PAGADOR DE PROMESSAS” ARGENTINO


O filme “O Caminho de San Diego” (de Carlos Sorin, 2006) é “O Pagador de Promessas” (de Anselmo Duarte, 1962) argentino. Há diferenças radicais entre os dois filmes, mas os pontos em comum são inúmeros. Começa que a principal diferença é sua grande semelhança: enquanto Anselmo reporta a chegada do devoto às portas fechadas da Igreja de Santa Bárbara, Sorin refaz toda a saga até as portas fechadas do clube onde está “São Diego” (Maradona). É uma questão de foco: o brasileiro preferiu contar o desenlace, trágico, enquanto o argentino focou na peregrinação, solidária ( povo argentino apresentado em toda sua escassez, ingenuidade e fé).

A “cruz” de Benitez, o fanático pelo número 10 da seleção argentina, é uma estátua do ídolo, que ele esculpiu numa raiz de timbó, desencavada por uma tempestade na remota selva de Misiones, no norte do país. Não é pesada como a do Zé do Burro, mas obedece ao mesmo quebranto: as duas cruzes estão relacionadas com a cura. Uma, do animal que presta serviços ao fiel e que por pouco não morreu, e a outra, do ex-jogador que pode morrer por insuficiência cardíaca.

O pedido de cura é feito para os santos pagãos. A santa pagã de Anselmo é Iansã, equivalente de Santa Bárbara, enquanto o santo pagão de Sorin é Gauchito Gil, equivalente de Maradona. Benitez põe a mão na cabeça de Guachito e pede a cura de Maradona. Quando o ídolo foge da clínica para ir até o campo de gole, sinal evidente de melhora, os caminhões na estrada buzinam sem parar. Assim, o filme argentino faz uma ligação com a crença de que se deve buzinar quando se passa em frente ao santuário de Gauchito, para que a viagem siga em frente sem problemas.

Mas acontece uma complicação na trajetória. O caminhão do brasileiro que leva Benitez precisa parar diante de um bloqueio provocado por trabalhadores de um curtume que vai fechar. Só mostrando a estátua de Maradona foi possível convencer os líderes de que poderiam passar. Esse episódio significa que agora fica livre o caminho para que Diego possa se recuperar e continuar vivo, eterno, como dizem ao longo da narrativa. É o povo que tranca a estrada por pressão econômica e a libera por necessidade de transcendência (a santidade representando a superação das dificuldades)

Carlos Sorin tirou toda a carga pesada que Anselmo Duarte colocou no seu filme, baseado em peça de dias Gomes. Benitez encontra apoio por onde vá, não só dos seus irmãos argentinos, mas também do motorista brasileiro. E quando consegue colocar sua cruz nas mãos de San Diego, recupera a esperança, representada pelo bilhete de loteria que recebe de graça de um cego ajudado por ele. Mas nem por isso o filme argentino deixa de ser, como o Pagador brasileiro, uma denúncia social pesada.

O povo despossuído é representado por Benitez, desempregado de uma empresa que corta madeira na selva. Ele não tem um tostão, precisa sustentar mulher e três filhos, mora num casebre, não sabe ler nem escrever. Esculpe a estátua com ajuda de um velho índio artesão, porque viu na madeira derrubada do timbó um gesto característico de Diego. Uma cena importante é a do seu diálogo com o padre que trabalha na pobre região missioneira. O cura decifra a missão de Benitez, explicando que ele viu o que desejava ver e foi agraciado pela sorte de ter encontrado a raiz tão parecida com Diego porque sua fé o levou a isso.

Bem diferente do padre de O Pagador, que fecha as portas da Igreja e acaba tendo de engolir a pressão popular, que colocou Zé do Burro, com cruz e tudo, dentro do templo de Santa Bárbara.

Benitez não correu o mesmo risco de Zé do Burro, que foi pagar sua promessa junto com a mulher. A família do argentino fica em casa e ele assim está imune a ataques a seus parentes próximos na jornada que decide empreender pela cruz geográfica do seu país. Seu contato com a prostituta é light, ao contrário da do brasileiro, que se envolve com a prostitua, o gigolô e o jornalista sem escrúpulos. A mídia, em Sorin, ocupa um lugar importante, reportando o que se passa com Maradona ao longo do filme. Mas não prejudica Bentiez, como acontece no filme de Anselmo.

São muitas identificações, que saltam aos olhos. O Pagador de Promessas é uma obra-prima. O de Sorin, um grande filme, dessa safra admirável do melhor cinema do mundo atualmente. Os argentinos fazem filmes ruins também, mas disso prefiro não falar. Quem quiser ver Plata Quemada, de Marcelo Pinñeyro, que veja, mas depois não diga que eu não avisei. Eu desisti nos primeiros 15 minutos.

RETOIRNO - Imagens desta edição: a foto maior é Tati/ Inacio Benitez e sua cruz para San Diego e a menor a do Zé do Burro/ Leonardo Vilar, para Santa Barbara.

Nenhum comentário:

Postar um comentário