18 de julho de 2010

KAMTCHAKCA E O CINEMA POLÍTICO


Fora Buenos Aires e a Patagônia, tudo na Argentina parece a minha terra, Uruguaiana e arredores, situada bem na fronteira. Sempre que vejo um filme feito pelos hermanos me dou conta que a paisagem, as calçadas, as cidades do interior, as pessoas, as roupas, as expressões, tudo faz parte da minha vida. Bem que os portoalegrenses me avisaram quando cheguei na capital gaúcha e abri minha grande boca: me perguntavam sempre se eu não tinha nascido no lado errado do rio Uruguai.

A verdade é que não há barreiras entre aquelas crianças que os geniais cineastas argentinos filmam e minha infância ou juventude. Eu estou lá e por isso, talvez, ache que o cinema nacional hoje, com suas putarias e violências, com alguns oásis como Sergio Rezende, está mais distante do que um Juan José Campanella e suas obras-primas (Clube da Lua, entre outras) , ou um Marcelo Piñeyro e seu
Kamtchakca (2002).

Ma não é por me identificar plenamente com o cinema argentino que o considero o melhor cinema do mundo atualmente. O topo já foi dos americanos nos anos 40 e 50 (graças principalmente aos imigrantes europeus corridos pelo nazismo), dos italianos e franceses nos 60 e 70, nos chineses e suas lanternas vermelhas nos 80 e início dos 90, dos iranianos e seus jarros nos 90 e agora é desses caras que não perdoaram a ditadura e lutam contra ela todos os dias, ao contrário de nós, que deixamos nos absorver pela tirania e por isso vemos o país resvalando inapelavelmente para o fundo do poço.

Kamtchakca é a saga de uma família em fuga e que acaba se esgarçando. Por força de uma situação política de sufoco, que aparece em alguns flashes na televisão e no rádio e é apenas sugerida pelo pânico dos protagonistas, que procuram escapar. Mas não há mágica possível quando se trata de uma ditadura que envolve a todos e destrói o tecido da nação.


Com a tecnologia, perdemos a embocadura da cronologia cinematográfica, já que temos acesso a todos os filmes ao mesmo tempo. Não ficamos esperando lançamentos ou sentimos saudades de filmes antigos. Além de ir ao cinema, basta comprar ou alugar dvds ou fazer downloads legais de filmes de domínio púbico ou que são colocados na rede pelas próprias produtoras. Isso nos permite ver no espaço de algumas horas, além de Kamtchakca, um thriller político de primeira água como King´s Game (2004), de Nikolaj Arcel, feito na Dinamarca , ou Waltz with Bashir (2008), de Ari Folman, uma animação impressionante, de produção e direção israelenses, sobre o massacre dos palestinos na guerra do Líbano.

O cinema político é a resposta ao noticiário, à cobertura da mídia, à História formatada em suas inúmeras versões. Os filmes em questão trabalham a investigação de personagens que procuram saber a verdade sobre os bastidores da tomada do poder na Dinamarca, o que de verdade aconteceu no envolvimento israelense dos massacres do Líbano ou o que houve com famílias da classe média argentina que de uma momento para outro foram tratados como animais e inimigos da nação. São temas explosivos demais para caber na produção jornalística diária.


Sem memória, o ex-combatente da Valsa com Bahshir vai atrás dos companheiros da guerra para saber por que esqueceu as cenas do massacre, onde esteve presente. É pressionado por pesadelos e acaba descobrindo que sepultou as lembranças porque identificou o horror presenciado com o horror herdado, já que os pais estiveram em Auschwitz. O filme assim traça um paralelo entre o nazismo e o que ocorre no Oriente Médio. E o filme dinamarquês é um modelo de cinema sobre política e jornalismo, com dois repórteres indo atrás de uma história sinistro de manipulação da opinião pública e do Parlamento. O objetivo era o acesso ao cargo de Primeiro Ministro. “Isso tudo será esquecido em duas semanas”, diz o vilão para o jornalista. “Duas semanas são suficientes”, responde o repórter. Magnífico diálogo.

Kamtchakca traz para a cena esse ator que não canso de celebrar aqui no Diário da Fonte, Ricardo Darin, o cara que demora demais a receber um Oscar. Neste filme, o grande ator exerce novamente seu ofício exibindo a capacidade de provocar emoção sem mover uma linha do rosto. Um exemplo de concentração e talento, raros entre os atores alimentados a maizena de hoje. Darin faz o papel do pai dedicado que precisa fugir dos filhos, junto com a esposa (interpretada maravilhosamente por Cecilia Roth), deixá-los na mão do avô e partir para o nada, aquela estrada sem fim que o cinema já nos acostumou a mostrar como o limite de uma narrativa e que em Piñeyro é o limite de muitas vidas. Fica a resistência, o pequeno lugar onde nos refugiamos para conseguir reverter o jogo imposto pela maldade.

Cinema político contemporâneo: a mil! Precisa ser visto, disseminado, celebrado. Para que todos aprendem antes que novamente a noite aconteça.


RETORNO - Imagens desta edição: na foto maior, Darin cria a metáfora da resistência num jogo com o filho, em "Kamtchcka". Na segunda foto, Anders W. Berthelsen e Søren Pilmark se enfrentam em "King´s Game", com uma inimizade estimulada pelo diretor, mas a má impressão acabou junto com as filmagens, quando então ficaram amigos; e na terceira foto, uma cena do impressionante "Waltz with Bashir".

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