29 de julho de 2010

CID, O PIANISTA



Nei Duclós (*)


Um os meus filmes favoritos é "El Cid" (1961), de William Wyler, com Charlton Heston e Sophia Loren. Duas cenas são marcantes. Uma , a do casal em fuga que acorda no ermo, sai para fora da cabana onde está escondido, e é rodeado pela nação em armas, o povo que veio convocar o herói para a luta. “Pela Espanha!” grita El Cid, enquanto a mulher se desespera, pois sabe que a vida conjugal está ameaçada pelo conflito. Outra cena é quando, vindo da campanha vitoriosa, El Cid encontra alguém que está acima dele na hierarquia e este, em agradecimento, se curva. Ao que o mito responde: “De pé! Um rei nunca se ajoelha”.

O amor que escapa dos dedos, a solenidade diante da missão maior, o desprendimento para com a vida, a entrega, esses são os recados dessa obra, hoje inacreditável vista de longe, no espaço do tempo transcorrido. Perdemos o sentido do épico e até mesmo dos amores verdadeiros, como a arte de viver a vocação a que somos convocados desde o berço. No mundo em pedaços e em ruínas, mascarado por estatísticas de riqueza e crescimento, e assolado pela fúria de problemas aparentemente insolúveis, não temos mais parâmetros para exigir que um rei se levante, nem esperança que um exército venha bater à nossa porta por sermos insubstituíveis na tarefa complicada de costurar uma nova ordem.

Outro filme impressionante é O Pianista (2002), de Roman Polanski, que deu o Oscar a Adrien Brody no papel do polonês que sobrevive à perseguição nazista na II Guerra Mundial. Sua nação, seu povo, seu mundo são reduzidos a pó e ele volta marcado para sempre pela destruição em massa. Mas mantém a sua arte, que cultivou sempre e que o ajudou nos momentos mais cruciais. Manteve-se intacto, apesar de tudo, pois tinha essa grandeza permanente nos dedos, que interpretavam sua cultura, determinação e sensibilidade.

Esses dois filmes me ocorrem a partir de uma notícia triste demais, a morte do maestro Cid Guez, que eu conheci ainda menino, já encantando a todos com sua competência no teclado e que embalou gerações e semeou o amor à música ao longo de seus 74 anos. Como o homônimo El Cid, se comparava aos grandes e foi fiel à sua terra. E como o pianista de Polanski, sobreviveu ao massacre contando apenas com sua arte. Percorreu um longo caminho e foi-se neste inverno tardio, levando de volta para a origem a mestria que nos encanta e o espírito que nos abraça.

Em 2005, quando voltei a Uruguaiana, reencontrei o maestro. Foi uma alegria ver na ativa um mito da minha mocidade, um talento que sempre admirei. E me perguntava: por que não gravou mil discos, porque não foi até os confins do mundo para ser celebrado? Esse é o mistério que Cid Guez leva com ele, esse desprendimento.

Ele não se ajoelhou diante da indiferença e da brutalidade do tempo. Certo de sua identidade, exerceu mais de uma arte, sempre com a mesma competência, se mantendo firme, sem se desviar do seu caminho. Cid Guez dedilhou a música que fica em nós como um sinal, um brilho no escuro, para que possamos voltar a esse lugar perdido, a esperança.

RETORNO - 1.Crônica publicada originalmente no jornal Momento de Uruguaiana, editado brilhantemente por Vera Ione Molina e Ricardo Peró Job. 2. Imagem desta edição (só para o Diário da Fonte): instante privilegiado na Feira do Livro de Uruguaiana em 2005: recebo o aperto de mão do maestro Cid Guez.(Foto de Rubens Montardo Jr.)

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