17 de maio de 2009

CUIDADO, JOHNNY MCQUEEN ESTÁ MORRENDO


Nei Duclós

Acompanhe Johnny McQueen, o rebelde irlandês ferido num assalto. Acompanhe James Mason, no papel de Johnny, em mais uma obra-prima de Sir Carol Reed, Odd man out (O Condenado), de 1947. Ele sangra pelo braço esquerdo, imobilizado por uma bala disparada pela sua vítima, que morreu ao tentar prendê-lo. Johnny, condenado à morte, fugitivo da cadeia e chefe da organização política que assumiu a vanguarda do movimento pela libertação, é um pássaro ferido, que passa de mão em mão pela cidade apavorada, onde todos os conhecem e ninguém lhe dá guarida.

Todos se livram do moribundo: as senhoras bondosas que fizeram curso de primeiros socorros e o recolhem da rua e depois se arrependem; o marido de meia idade que chega atrasado porque há barreira policial pela cidade inteira, e fica desesperado com a presença do fugitivo na sua sala; o cocheiro que o joga num terreno baldio; o atendente do balcão que o tranca num canto do bar; o mendigo que tenta conseguir a recompensa; o pintor que o rouba para retratar o olhar de alguém que vê a morte.

Cuidado com Johnny, ele é o cinema que chega ao nível do gênio e se despede. Ele é a Sétima Arte que atinge o status de criação humana clássica, a mesma que pode inspirar uma revolução, como aconteceu com Renascimento, na época em que os sábios e a cultura da Antiguidade foram revisitados por uma civilização exausta, que nesse retorno encontrou a salvação. Precisamos acompanhar todos os passos de Johnny pelos becos de Dublin, pelo mosaico do diretor fundamental, Sir Carol Reed, que ilumina seu personagem terminal embaixo da chuva e da neve, enquanto as pessoas perdem tempo falando asneiras, sem se lembrar que todos nasceram condenados, é só uma questão de tempo.

O destino de Johnny e do cinema está traçado. Ele tentou enfrentar o poder e saiu de lá pingando sangue, caçado pela brutalidade, a mediocridade, o medo, os interesses, as obsessões. A única coisa que pode salvá-lo é o amor, que ele não notou quando havia tempo. Johnny estava distraído, assim como nós. Estava focado na sua missão, sem reconhecer que a vida, a mulher que o amava, estava do seu lado, mais do que qualquer companheiro de luta. Johnny não estava mais só, mas ele não acordou para essa janela de luz que incidia sobre seu rosto marcado.

Ele tinha um compromisso, uma responsabilidade. Precisava dar um golpe no poder, seqüestrar o dinheiro, cacifar a revolta. Foi punido porque estava perto demais de conseguir algo, romper o dique que mantém as pessoas presas, alienadas, perdidas. Faz parte de uma consciência popular, de massa, já que todos os cidadãos da Irlanda sabem que são uma nação invadida e que estão em desvantagem diante do inimigo que os transforma todos em moribundos, em pacientes terminais de uma vida sem sentido. Por isso Johnny é perigoso, por isso o poder exulta por tê-lo ferido de morte, por isso é preciso acompanhar Johnny pela cidade sem misericórdia.

Nós também, Jonhny, acreditamos um dia que o cinema só iria subir, voar cada vez mais alto, transcender, nos salvar. Mas não foi isso que aconteceu, Johnny. Veio o macartismo, que destruiu tudo e hoje vivemos a era de ouro da repressão e do comércio na Sétima Arte. Veja as locadoras, Johnny, você que não está em nenhuma delas. É um açougue, uma exaltação do ego, uma derrota sem fim. Nada parecido com a história que Carol Reed nos conta, com detalhes que nos fazem saltar da cadeira.

Detalhes como a lufada de ar frio e úmido que bate no rosto descoberto de Johnny quando as senhoras piedosas e o marido em pânico o expulsam para a sarjeta. Como a tampa do lixo que fica rodando sem parar denunciando o paradeiro dos fugitivos com cem policiais no encalço. Como a cena milagrosa em que você, Johnny, confessa seu crime para o guarda fictício da prisão, que veio pegar a bola de futebol. Não era o guarda da prisão, Johnny, era a menina muda que veio buscar o brinquedo e ficou parada te vendo e escutando tua confissão.

Acompanhe nosso herói tendo alucinações diante das bolhas da cerveja derramada, ou sentado no trono do pintor. Johnny é o protagonista que agora senta na cadeira da morte. Ele virou platéia da sua destruição. Seu rosto serve de modelo para uma posteridade espúria, a que estamos agora, quando esquecemos filmes como este, Odd Man Out, filme para ser levado no coração aflito da cidadania, para que o remorso vire insurreição, para que o vazio vire arte e para que possamos ver os filmes fundamentais antes de morrer junto com o cinema.

Cuidado. Johnny, ferido de morte, está morrendo. Você que ama o cinema e foi exilado dele, sabe. Você, sim, espectador noturno, mergulhado num poço onde te proibiram de ver, esse verbo sagrado da civilização. Não há mais espaço para morrer tantas vezes e de tantas maneiras. Por isso acompanhe Johnny McQueen no seu passeio forçado e terminal pelo inverno da cidade sitiada. Ele tem algo a dizer. Escutem. Ou melhor, vejam.

RETORNO - Imagem de hoje: James Mason em "O Condenado", mais uma obra-prima absoluta de Sir Carol Reed.

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